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Resumo: Este artigo foi construído a partir de reflexões teóricas acerca da despolitização e judicia- lização da questão social na cena contemporânea. Recortamos algumas das problematiza- ções projetadas para a feitura de pesquisa sobre a temática. Compreendemos que tanto a despolitização quanto a judicialização da questão social são fenômenos que evidenciam, na contemporaneidade, o revigoramento de práticas conservadoras destinadas ao trato da questão social. Num contexto marcado por reconfigurações na relação Estado-Sociedade, processadas desde as ultimas décadas do século XX, tais fenômenos podem expressar o controle exercido sobre a classe trabalhadora pela via da coerção para a manutenção da hegemonia do capital.
Palavras-chave: Judicialização, Despolitização, Questão social.
Keywords: Judicialization, Depoliticization, Social issue
A judicialização e a despolitização da questão social: duas faces de uma mesma moeda 29
Considerações Finais
O debate explicitado neste artigo ensaiou a ideia de que a despolitização e judicialização da questão social na cena contemporânea podem ser consideradas como efeitos das redefinições na relação Estado-Sociedade levadas a cabo desde o final do século XX, no bojo das respostas construídas para responder a crise da acumulação do capital.
Ou seja, tais fenômenos podem ser inscritos na reconfiguração dos mecanis- mos de enfrentamento da questão social, conduzidas em especial pelo Estado, que revigoraram práticas de caráter punitivo e repressivo contra a classe traba- lhadora para conter suas movimentações, rebeldias e reações frente às desigual- dades sociais vivenciadas.
A despolitização da questão social é forjada no processo que desencadeou a institucionalização de suas lideranças e ainda a desarticulação da luta política dos movimentos sociais pela garantia dos direitos de cidadania.
A captura pelo Estado dos movimentos sociais aponta para o esvaziamento do viés de classe que costurava a agenda posta no espaço público nos idos anos de 1980, fragmentando as reações e reivindicações que passam a representar, em sua maioria, interesses e necessidades de determinados grupos específicos. A referida fragmentação é útil à própria contrarreforma conduzida pelo Estado que objetiva a precarização do acesso aos direitos fundamentais.
Tal esvaziamento dos movimentos sociais contribui, então, para a reedição do pensamento conservador que identifica as manifestações da questão social como problemas de ordem privada e resolvíveis no âmbito do planejamento, gestão e execução de políticas sociais.
Nesse sentido, a desarticulação da luta dos trabalhadores e esvaziamento do conteúdo de classe do seu projeto societário e, ainda, a inscrição da gênese das expressões da questão social nos aspectos vinculados à subjetividade dos sujeitos que as vivenciam, oferecem as bases para intervenções coercitivas do Estado para o manejo da hegemonia da classe dominante.
A judicialização da questão social compõe, então, o hall de tais mecanismos na medida em que o Poder Judiciário, em sua gênese, foi desenhado para desempenhar a função da coerção na perspectiva da adaptação, do controle e da punição dos comportamentos que carregam em si a rebeldia e a reação à ordem estabelecida.
Noutro diapasão de análise, num cenário de escassez de acesso aos bens e ri- quezas produzidos socialmente, tendo em vista a precarização do trabalho, o su- cateamento das políticas sociais e a perda da referência da luta coletiva, o Poder
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O Social em Questão - Ano XVIII - nº 31 - 2014
30 Mônica Santos Barison
Judiciário é acionado sob a expectativa de que direitos específicos de cidadania sejam garantidos.Tal movimento contribui, em ultima análise, para o esvaziamento da mobilização coletiva em torno da luta pelo enfrentamento das desigualdades sociais e desencadeia um processo de reconhecimento individualizado dos direitos. Ou seja, é notório o movimento que evidencia a transferência do Poder Exe- cutivo para o âmbito do Poder Judiciário da responsabilidade acerca do enfren- tamento das expressões da questão social — seja para punir os comportamentos considerados desviantes ou para garantir o acesso de determinados indivíduos a
direitos sociais específicos.
Este “mix” de funções que forjam o protagonismo do Poder Judiciário no en- frentamento das expressões da questão social na cena contemporânea, conforme explicitamos, revela um paradoxo: explicita a redefinição das funções do Poder Judiciário e do Ministério Público, advindas após a promulgação da Constituição de 1988 (que são inscritas, em linhas gerais, na defesa dos direitos) e, ainda, mantém conexão com a retração do Poder Executivo na oferta de políticas sociais universais e articuladas (assistiríamos uma transferência para o Poder Judiciário responsabilidades que são eminentemente do Poder Executivo).
Nesse sentido, as reflexões de Vianna (2007) nos fazem observar que não há nada de novo no front: a classe hegemônica combina o consenso e a coerção para formar a classe subalterna “à sua imagem e semelhança”, usando a expressão do autor, através do controle do conjunto da sociedade política e da sociedade civil. Frente às reflexões ensaiadas neste artigo, é mister destacar a necessidade de realização de estudos empíricos para descortinar as intencionalidades e efeitos das intervenções do Poder Judiciário no bojo dos processos judiciais que tramitam
nas diversas áreas da Justiça.
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