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Resumo: Neste trabalho busca-se analisar os desdobramentos da Lei 12.010/2009 e seus efei- tos no cotidiano de sujeitos sociais implicados diretamente por estaLegislação. A Lei 12.010/2009 trata da Convivência Familiar e Comunitária para crianças e adolescentes, mas ficou nacionalmente conhecida como Lei da Adoção. A judicialização das relações sociais manifesta-se sensivelmente no tratamento dado e na necessidade de se obter res- postas rápidas que nem sempre atende aos interesses das famílias e das crianças e ado- lescentes envolvidos. A negligência imputada frequentemente às mulheres pobres tem um viés perverso e sexista, que muitas vezes, confirma discriminações e exclusões. O trabalho tem como recorte territorial, em sua escala municipal, o município de Nite- rói – RJ sendo grande maioria da população formada por mulheres, contabilizando uma população feminina de 261.656.
Palavras-chave: Família, Mulher, Relações sociais, Legislação, Lei 12.010/2009.
Abstract:
This paper seeks to analyze the ramifications of a new legislation and its effects on the daily lives of social actors involved directly on the impacts of this legislation. The Law 12.010/2009 deals with family and community life for children and teens, but became widely known as the Law of Adoption. The judicial nature of social relations manifests itself appreciably in the treatment given and in the need to get quick answers that does not always meet the interests of families, children and teenagers involved. Neglect often imputed to poor women have a wicked and sexist bias that often confirms discrimination and exclusion.The work focuses on the territorial clipping in Niterói - RJ, where most of the population are women, accounting for a female population of 261,656.
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Family;Woman; Social relations; Legislation; Law 12.010/2009
A influência da Lei 12.010/2009 para a judicialização das relações sociais e seus efeitos na vida de mulheres – algumas reflexões
A Lei 12.010/2009 trata da Convivência Familiar e Comunitária para crian- ças e adolescentes, mas ficou nacionalmente conhecida como “Lei da Adoção”. A judicialização das relações sociais manifesta-se sensivelmente no tratamento dado e na necessidade de se obter respostas rápidas que nem sempre atendem aos interesses das famílias e das crianças e adolescentes envolvidos. A negligência imputada frequentemente às mulheres pobres tem um viés perverso e sexista, que muitas vezes, confirma discriminações e exclusões.
Neste sentido, torna-se fundamental, ao tratarmos da análise de uma legisla- ção, mesmo considerando-se tratar de uma regulamentação cujo teor ainda seja novo no cenário nacional, acentuar que uma ordenação jurídica para sua efe- tividade deve dialogar com o contexto societário no qual ele se insere. Assim, para análise dessa Lei faz-se necessário um estudo mais complexo que permita perceber algumas das particularidades e singularidades presentes e da extensão de suas repercussões. A Lei 12.010/2009 foi introduzida em nosso ordenamento jurídico e como consequência alterou significativamente o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) e o Código Civil de 2002, que eram as úni- cas leis que versavam sobre adoção, como também tem apresentado significantes alterações nas relações sociais dos sujeitos sociais implicados neste processo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza que a pobreza não se cons- titui em justificativa para a retirada do poder familiar, como também para o aco- lhimento institucional de criança e adolescente. Mas, o afastamento de famílias pobres e de seus filhos tem ainda acontecido e, se constitui em uma das principais causas do acolhimento institucional, já bem estudado pelo IPEA (2004).
O censo de 2010 apresenta o aumento do arranjo monoparental feminino (núcleo simples, formado majoritariamente por mães e filhos), que passou de 11,5% em 1980 para 15,3% em 2010. Portanto, ao destacarmos as mulheres, como alvo de nosso estudo, esta focalização representa não só um perfil de uma mudança societária, como também se ressalta a importância do papel da mulher
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nas organizações familiares — fenômeno que ganha magnitude ampliada se con- siderarmos o efeito das relações de gênero4 na construção dos papéis familiares (FREITAS, BRAGA e BARROS, 2010) e, principalmente, na ênfase existente na responsabilização das mulheres pelo bem estar das crianças (BADINTER, 1985). Este texto apresenta algumas considerações preliminares de estudos que te- mos desenvolvido sobre a temática e seus desdobramentos. O tema acolhimen- to institucional, bem como as diversas formas de “abandono” ou “negligência” tem sido objeto de nossos estudos por longo tempo5. Para o desenvolvimento destes estudos e para o aprofundamento de nossas pesquisas buscamos apresen- tar de forma mais ampla o contexto estudado e, relativizar sobre os cenários que ressaltem a criminalização das famílias pobres, normalmente tidas como
negligentes ou “perigosas”.
O dar um filho em adoção, o “circular de crianças” (FONSECA, 2002) entre familiares e amigos, ou a necessidade de institucionalizá-las podem (e na maioria das vezes, deveria) ser vistos como possíveis estratégias elaboradas por esses in- divíduos6 e ser entendido em seus aspectos econômicos, mas também culturais. Uma perspectiva judicializante dessas relações pode se revelar extremamente perigosa e danosa para essas pessoas. É sobre isso que este texto se volta, tendo como ponto de partida a criação da Lei 12.010/2009 e seus efeitos na vida de mulheres pobres. Aproveitamos esse espaço para tecer algumas reflexões e em seguida, concluímos esse escrito com algumas considerações.
Judicialização, criminalização e a perda do poder familiar
É inegável a contribuição da Lei 12.010/2009 para um novo olhar para o pro- cesso de adoção, como também para trazer ao cenário nacional debates importan- tes como a questão da adoção por casais homoafetivos (mesmo que a legislação não tenha garantido a adoção por casais homossexuais, este debate está posto e tende a ser enfrentado7), a adoção de embriões, e outras questões de semelhante interesse. Contudo, como se trata de uma norma jurídica recente, que visa a mudar uma estrutura pré-existente, principalmente sobre a adoção, seus aspectos práticos na realidade cotidiana e os seus efeitos na vida das mulheres pobres que sofrem com a perspectiva de perda do poder familiar, tem sido ainda incipientemente estudados, ainda sutilmente percebidos, mas seus efeitos repercutem em profundidade na vida dos sujeitos sociais envolvidos. Durante longo período na história do país tem sido constante um processo excludente da população pobre e de suas famílias do cenário social e uma ênfase nos processos de criminalização da pobreza.
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Neste sentido, o entrelaçamento da Lei 12.010/2009 com à questão so- cial, a judicialização das relações sociais e as questões de gênero, constituem- se em elementos fundamentais para a análise dessa legislação. Esta implicação quanto mais visivelmente explicitada, permite que os efeitos da Lei sejam mais bem compreendidos, sua repercussão seja mais claramente exposta, como também os eventuais benefícios.
A negligência na atualidade é o fator de maior evidência e, muitas vezes, a miséria e a pobreza são consideradas como negligência (MESQUITA et all, 2011). Mas o fato é que muitas dessas negligências são causadas pela falta de proteção social de forma ampla, especialmente sua face institucional. Ou seja, em grande parte é o Estado o maior agente negligenciador (BARROS, 2005). E muitas das famílias negligenciadas pelo Estado são as culpablizadas como negligentes com seus filhos. Neste contexto são as mulheres pobres e suas famílias as mais criminalizadas.
Os debates que envolvem a questão da judicialização e sua repercussão nas re- lações sociais apresentam uma gama de fatores existentes neste processo. Desta- cam-se, principalmente, na contraditoriedade que expressam entre a concepção de cidadania presente nas democracias contemporâneas, em que a plena defesa dos direitos legais em todas as esferas da vida constitui-se em uma conquista que legitima o sistema; entre a ativação da judicialização da política que se funda em jogos de interesses de grupos que ganham posições em decorrência da impu- nidade a determinados grupos sociais e entre a judicialização da questão social manifesta na profunda desigualdade social e entre gênero, uma das marcas que distingue diferentes participações de diversos sujeitos sociais em nossa sociedade. A judicialização das relações sociais refere-se a extrapolação do contexto ju- rídico no âmbito de sociabilidades das vivências em sociedade. Assim, a interfe- rência do Poder Judiciário nos mais diversos âmbitos da vida privada não significa o atendimento aos interesses coletivos de forma mais geral e igualitária8. As mu- danças legislativas contribuem para que se possa realizar uma reflexão sobre as inovações da legislação, verificando se de fato a nova lei trouxe um número maior de melhorias ou não para nossa sociedade e ordenamento jurídico ou se permite o aumento da intervenção do Estado no ambiente privado e, consequentemente,
a judicialização das relações sociais9.
Assim, a Lei 12.010/2009, ao contribuir inegavelmente com um novo olhar sobre a Convivência Familiar e Comunitária para crianças e adolescentes e, prin- cipalmente, para o processo de adoção, deixa sérias lacunas que permitem in-
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terferências para além das políticas regulatórias. A partir dessa Lei, houve maior ênfase as questões relativas à criança em situação de abandono ou que são con- sideradas “institucionalizadas”, por estarem em entidades de acolhimento, res- saltando-se, muitas vezes, de forma a-histórica e descontextualizada, a legítima necessidade do direito de crianças e adolescentes conviverem e pertencerem a uma família. Dessa forma, o que poderia ser, teoricamente, concretizado através do processo de adoção que viabilizaria o direito dessa criança ou adolescente a ter um lar, pode gerar “desvios” que criminalizam as famílias pobres.
A própria consideração da família extensa na legislação —que amplia a noção de família e abriria maior possibilidade para a convivência familiar para criança e adolescente — pode contribuir também para a desresponsabilização do poder público em sua responsabilidade com os cidadãos ao transferir tal dever às famí- lias em seus diversos arranjos. As práticas de proteção e do cuidar exercido pela família extensa é um fenômeno de longa permanência histórica, como é o caso da circulação de crianças (FONSECA, 2012), da “adoção a brasileira”, das mater- nidades transferidas (COSTA, 2002) ou compartilhadas, entre outras práticas. Porém, a forte ingerência do poder público, nestas instâncias de ações, corrobo- ra a transferência de responsabilização e intervenções consideradas informais e mediadas pelo estreitamento de vínculos, pois muitas vezes, ganham contornos definitivos e irrevogáveis.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem hoje no Brasil cerca de 30 mil pretendentes à adoção e 4,7 mil crianças e adolescentes cadastrados e “aptos” a serem adotados. São consideradas aptas as crianças e ou adolescentes que estão em instituição de acolhimento, e que já tenham tido decretada a destituição de sua família “natural”. Os números fornecidos pela Associação dos Magistrados do Brasil demonstram que cerca de 80 mil crianças e adolescentes estão em abrigos, e apenas 10% desse total podem ser adotados. Sobre estes dados, o vice-presidente da AMB10, alerta que o número de 80 mil não é uma avaliação precisa.
A destituição do poder familiar de crianças que se encontram em entidades de acolhimento tem gerado, em muitos casos, um efeito perverso para as famí- lias envolvidas no processo e, especialmente, aquelas que a elas comparecem. A reflexão sobre a culpabilização das famílias envolvidas em casos de perda do poder familiar, não é uma preocupação que se confirma nos relatos veiculados pela mídia11 sobre destituição do poder familiar cujos cenários são evidentemente pobres ou não considerados adequados para os padrões de quem analisa tais casos.
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No contexto brasileiro de adoções é evidente a preferência do adotante pelo perfil de crianças brancas, do sexo feminino e de até dois anos de ida- de. A lei 12.010/2009 enfatiza em seus parágrafos, o incentivo em se rea- lizar as adoções necessárias de crianças mais velhas, dos grupos de crianças especiais, bem como as adoções inter-raciais. A questão da idade da criança a ser adotada tem sido o fator de maior recusa à adoção, sendo superior à não-adoção por motivos raciais.
A Lei 12.010/2009 não soluciona todas as questões no que se refere à adoção. Mas destacamos como uma mudança importante, o fato da lei ter criado o prazo máximo de dois anos de permanência de crianças e adolescentes em abrigos, obrigando os juízes a justificar, a cada seis meses, a permanência nessas institui- ções (Artigo 19 § 1º e 2º da lei 12.010/2009). Depois deste prazo de dois anos, não sendo possível a reintegração familiar da criança e do adolescente, estes en- trariam no Cadastro Nacional e só permaneceriam em instituição de acolhimento quando não fosse possível a adoção.
A obrigatoriedade à assistência psicológica às gestantes e às mães nos pe- ríodos pré e pós-natal, inclusive às que manifestam interesse em entregar os seus filhos para a adoção. (Artigo 8 º §4º da lei 12.010/2009) tem sido um aspecto que merece destaque, pois a questão do abandono carrega em si toda uma gama de complexidade que não se restringe aos contextos objetivos dos fatos. Aspectos da subjetividade presente no processo de convivência familiar e nas questões relativas à adoção tendem a ser considerados, como o direito de conhecer a sua origem biológica e de obter acesso irrestrito de adoção após completar 18 anos (Artigo 48 da lei 12.010/2009). E, nestes aspectos, a inclusão de tais novidades legislativas revitaliza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ampliando a aplicação de princípios, além de moderni- zar, organizar e aumentar o sistema de proteção, constituindo-se em uma ten- tativa de aproximar a norma da realidade de fato no Brasil, compreendendo-a na prática e não somente na teoria.
A inclusão da família substituta12, nesse contexto, é um novo elemento, mas, sua incorporação neste cenário deve ser vista de forma cautelosa. As famí- lias substitutas devem ser incorporadas em casos extremos, depois de esgotadas as possibilidades de conservação da família de origem. Esta referida legislação evidencia, de forma bastante incisiva à efetividade do direito fundamental de convivência familiar dentro da família natural13 e estabelece deveres jurídicos no sentido de sua manutenção.
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A introdução feita por esta Lei no que tange a necessidade dos grupos de ir- mãos serem colocados sob adoção na mesma família substituta, salvo se for com- provado risco de abuso ou qualquer outra situação que justifique se excepcionar solução diversa, é um ponto a ser destacado. Assim, se contribui para a perma- nência do vínculo fraternal, independente dos irmãos estarem na mesma família, ou em família diversa, desde que não percam os laços já estabelecidos anterior- mente (Artigo 28 §4 da lei 12.010/2009).
Mas, como se decide pela retirada desse poder? Gostaríamos de concluir esse item citando uma criança acolhida, e que foi ouvida numa audiência. O juiz pergunta à criança se não queria uma nova família. A essa questão, a menina responde que não. O que ela quer é: “Eu quero morar com minha mãe, e ter uma casa, para eu poder cuidar da minha mãe e ela ficar boa logo. Eu não quero uma família nova.” (M.E)14
À esta resposta, o juiz a questiona se realmente queria continuar com a mãe, consumidora de crack e moradora de rua. A segunda resposta da criança também é significativa: ela quer continuar com a mãe, mas pede ajuda para ter uma casa e apoio para a mãe poder se tratar. Em última instância, essa criança demanda pro- teção. E, mais especificamente, ela faz referência a uma das principais questões referentes à essa seara: o direito de que a pobreza não seja condição para que uma família perca o poder familiar.
A necessidade da efetividade desta Lei pode gerar uma inflexibilidade que, descontextualizadamente, terminam por reforçar estigmas sexistas e reprodu- tivistas. Em uma sociedade extremamente desigual como a nossa, caso não haja políticas sociais atreladas à aplicação da nova lei, as possíveis consequências desta poderão se desdobrar em um contexto de culpabilização destas mulheres e de criminalização da pobreza. Nossos entrevistados e nossa observação participante estão nos revelando um perfil das famílias que perdem o poder familiar: a respon- sável é normalmente mulher, negra e pertecente a famílias monoparentais.
É claro que não se pode abrir mão de exigências, que permitam ao Judiciário, por um lado, conhecer a pessoa que quer adotar15 e, por outro lado, a necessidade de construção de um olhar menos acusatório para as famílias de origem.
A questão que nos preocupa não é que não reconheçamos a importância do estatuto da adoção, mas entendemos que esta não pode ser a única opção a ser tomada. Afinal, a entrega de um filho para adoção é algo na maioria das vezes bastante sofrido (MOTTA, 2001) e não necessariamente é uma forma de abando- no16, mas antes aponta mulheres que foram abandonas e negligenciadas.
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Considerações finais
É o próprio ECA — e a Constituição também — que diz que cuidar das crianças é dever da família, mas também do Estado e da Sociedade e não deveria existir uma hierarquização nesse dever.
As mudanças introduzidas pela nova lei, com as adequações ao Estatuto da Criança e do Adolescente, visam agilizar a adoção no país e também possibilitar o rápido retorno das crianças que estejam em programa de acolhimento familiar ou institucional a convivência em família o que pode gerar um retorno ao ambiente familiar ainda sem condições e uma “depreciação” das entidades de acolhimento, mesmo aquelas que realizam um trabalho de qualidade.
Motta (2001) nos relembra que não basta a sociedade se chocar com a irres- ponsabilidade das mães que abandonam seus filhos, é necessário assumir a res- ponsabilidade pela situação do abandono dessas mulheres numa realidade social da qual todos nós fazemos parte. E imprescindível que a sociedade assuma o des- conforto ao lidar com situações que expõem velhos mitos e recobrir as próprias imperfeições como mães e pais meramente humanos, cujo amor nem sempre é tão “natural”, automático, infinito ou incondicional.
Nessa linha de raciocínio, devido a toda essa responsabilidade que recai sobre a mulher, e a forma como esta fica exposta à maternidade, as cobranças e expectativas que lhe são impostas, quando não cumpridas, faz dessa mu- lher/mãe alvo de criminalização. O que se espera de uma mãe é que ela cuide de seu(s) filhos(s). E quando isso não acontece, por diversos fatores, esses são retirados de suas famílias.
Contudo, a preocupação — profundamente válida — com as crianças não pode nos fazer esquecer da subjetividade das mulheres envolvidas. É preciso desconstruir a concepção de que a responsabilidade do cuidado com os filhos e com a família é exclusivamente da mãe, bem como a visão de que quando o pai cuida dos filhos este é um super pai, enquanto a mulher está apenas cumprindo suas obrigações.
A proposta deste escrito também se faz no sentido de discutir o que o Estado oferece enquanto políticas públicas para essas mulheres. É necessário refletir toda a subjetividade envolvida na vida de uma mulher (sentimentos) na hora da retirada ou até mesmo da entrega de um filho para a doação. Ainda que na lei esteja previsto o apoio às mulheres no pré e pós puerpério, o que temos assistido, na maioria das vezes, é um Estado que sob a alegação de priorizar o atendimento ao bem estar das crianças e adolescentes, desconsidera as vidas
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dessas mulheres e suas famílias, bem como o próprio desejo das crianças, como vimos no caso acima narrado.
Um aspecto a ser destacado é que mesmo após o advento desta nova legislação, quem defende as crescentes perdas do poder familiar de forma mais ágil ressalta que os principais problemas, para quem quer adotar uma criança ou um adolescente, continuam sendo a burocracia e a falta de es- trutura nas Varas da Infância e da Adolescência para atender à demanda das famílias interessadas.
Ficam as questões: Por que os abrigos substituem muitas vezes as creches? Por que não repensar este espaço enquanto um espaço de proteção, que deve fazer parte da rede de proteção. Há de se pensar que em muitos casos, a não judiciali- zação das relações sociais, permite que se construam estratégias de sobrevivência que podem se tornar alternativas importantes para a consolidação de vínculos afetivos e construção de sujeitos sociais mais felizes.
Apontar para a necessidade de ações e práticas de proteção à infância e adolescência, levando em conta as demandas desses sujeitos e suas famílias é uma forma de avançar neste debate. A proteção social —em seu viés insti- tucional — deve ser pensada não como uma alternativa ou opção, mas um direito. Um direito que envolve as crianças e adolescentes, mas também as suas famílias, especialmente suas mães.
Importante tecer breves comentários quanto aos casos em que a mulher, decide entregar seu filho para adoção, direito esse assegurados às gestantes, conforme disposto no parágrafo único do artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo Walter Gomes17, supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal JDF, as principais razões que levam as mulheres a optar por entregar o filho em adoção são: o abandono por parte do companheiro e/ou da família: o fato da gestação advir de uma violência sexual; ou a mãe já possuir prole numerosa, havendo também, segundo ele, aquelas que engravidaram em um encontro casual e não desenvolveram laços afetivos com a criança.
Por fim, é importante refletir: de que vale novas e modernas legislações, se possuirmos um judiciário precário, falho, sem estruturação para atender as demandas que surgem na sociedade? É preciso antes de qualquer outra alteração, uma reestruturação em todo o sistema judiciário, uma reforma do Estado, para dar condições e amparo a Justiça a atender a sociedade e suas demandas de forma digna e justa.
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Notas