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O debate gramsciano sobre o fascismo: um fascismo “à brasileira”?
The Gramscian debate on fascism: a “Brazilian style” fascism?
O Social em Questão, vol. 24, núm. 51, pp. 103-126, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro



Recepción: 01 Marzo 2021

Aprobación: 01 Mayo 2021

Resumo: Nas diversas interpretações que se apresentam, hoje, para a explicação de nossa conjuntura nacional, expressões como “fascismo”, “neofascismo”, “processos de fascistização” e “bolsonarismo” estão presentes. Diante dessa polêmica em aberto, o presente artigo objetiva evidenciar o debate sobre o fascismo a partir da ótica gramsciana, discutindo a apropriação deste conceito para a explicação da conjuntura brasileira atual. Para tanto, o tema nos exige o necessário retorno a Gramsci, buscando elementos para fomentar o debate à luz da conjuntura atual, ao mesmo tempo em que se mantem o rigor teórico na tradutibilidade do autor para a realidade periférica.

Palavras-chave: Fascismo, Neofascismo, Gramsci, Conjuntura brasileira.

Abstract: In the various interpretations that are presented today for the explanation of our national situation, expressions such as "fascism", "neofascism", "fascist processes" and "bolsonarism" are present. Faced with this open controversy, this article aims to highlight the debate on fascism from the Gramscian perspective, discussing the appropriation of this concept for the explanation of the current Brazilian situation. Therefore, the theme demands the necessary return to Gramsci, seeking elements to foster the debate in the light of the current situation, while maintaining the theoretical rigor in the translator of the author to the peripheral reality.

Keywords: Fascism, Neofascism, Gramsci, Brazilian conjuncture.

Introdução

A conjuntura brasileira atual, marcada por intensas transformações antidemocráticas, que se instala fortemente após o golpe de 2016 e que se reforçam com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, em 2019 – resultado da elaboração de um verdadeiro caldo cultural antipetista –, vem sendo bastante discutida e colocada como objeto de análises conjunturais. A tangível postura antidemocrática e cristã, aliada ao discurso da defesa da família tradicional, da ordem e progresso, a apologia à segurança nacional, a anticorrupção, o desprezo pelas políticas sociais destinadas a trabalhadores e trabalhadoras e, mais recentemente, a política da morte que vem administrando em face da pandemia da Covid-19, faz com que o governo bolsonarista se apresente assemelhado, em muitos dos discursos e das análises recentes, ao fenômeno do fascismo e do neofascismo. Por vezes, essa analogia entre governo Bolsonaro e fascismo atinge um grau absoluto de convicção que parece haver uma transposição direta e mecânica entre a conjuntura brasileira atual e o fenômeno do fascismo, de maneira a ignorar as inúmeras mediações necessárias nessa complexa simbiose.

Por esse motivo é que, frente às diversas acepções construídas, o presente artigo tem como objetivo evidenciar o debate sobre o fascismo a partir da ótica gramsciana, discutindo a apropriação desse conceito para a explicação da conjuntura brasileira atual. Tendo em vista tratar-se de um fenômeno que se desenvolve a partir do contexto italiano, seu debate nos exige o necessário retorno a Gramsci, dado a particularidade com que é analisado pelo autor e o constante reclame de seu nome no âmbito das análises conjunturais mais recentes.

Nesse sentido, o trabalho organizou-se a partir de quatro seções. A primeira introduzirá a relação entre os elementos da vida de Gramsci, desde as suas origens na Sardenha, e os desdobramentos de sua militância política na grande Turim, fomentando o impacto da práxis política no processo vivido pelo líder comunista a partir de seu encarceramento promovido pelo regime fascista de Mussolini.

A partir daí é que, a segunda sessão, se configurará em uma análise do fenômeno do fascismo por Gramsci a partir de seus escritos pré-carcerários, ou seja, dos diversos artigos redigidos para os jornais italianos do período, advertindo o contexto pós-guerra que se abria na Itália e o “palco” encenado pela pequena burguesia com a criação dos fasci, em 1919. Prosseguindo esta análise que se empreenderá até a confirmação da Marcha sobre Roma e a elevação do fascismo de encarnação pequeno-burguesa a regime, a terceira seção mostrará o exercício gramsciano no cárcere de pensá-lo como uma forma de revolução passiva, uma vez que se especializa na modernização imperialista da Itália, fazendo com que o Estado assuma as tarefas que as classes dirigentes não puderam realizar devido à debilidade interna e a crise do país naquele momento histórico.

Com a retomada de Gramsci é possível então, na quarta seção, colocar em evidência o debate sobre o fascismo na tentativa de explicar a conjuntura atual, primando por autores que o fazem a partir da perspectiva gramsciana. Afinal, algumas expressões como “fascismo”, “neofascismo”, “processos de fascistização” e, mesmo, “bolsonarismo”, estão presentes nas interpretações que tomamos para a análise. Com isto, espera-se contribuir com elementos para fomentar o debate sobre nossa conjuntura atual, circunscrevendo condições para possibilitar a “aplicação” criativa de Gramsci, sem, no entanto, exaurir-se do devido rigor das mediações necessárias para a sua tradutibilidade na periferia do mundo capitalista.

Gramsci e o fascismo

Como se sabe, Antonio Gramsci nasceu em 1891, na ilha de Sardenha, localizada no Sul da Itália, conhecido como Mezzogiorno. É importante considerar suas origens, pois terão grande influência em todo o trabalho desenvolvido por Gramsci no Partido Socialista Italiano (PSI) e, depois, no Partido Comunista da Itália (PCd’I) e na construção de seu aparato teórico constituído pelos escritos pré-carcerários e pelos Cadernos do Cárcere. O tema da questão meridional é sempre recorrente nas análises de Gramsci, visto que, ademais de acompanhá-lo desde a juventude, expressa a preocupação em desvelar a formação social italiana desde as suas particularidades dadas pelo processo de unificação nacional.

Assim, ainda que seja um homem europeu do seu tempo – ou seja, tem como base toda a filosofia desencadeada pela cultura ocidental branca e europeia –, é consciente da posição ocupada pela Itália no quadro geral da Europa e, mais do que isso, da posição que ocupa o Mezzogiorno dentro da península italiana. Por isso, é um autor que está preocupado em construir uma história integral dos grupos subalternos, haja vista que ter sentido na pele as experiências de ser um sardo do Mezzogiorno, fizeram dele um revolucionário que, mais tarde, será duramente perseguido pelo governo fascista de Mussolini.

Com o objetivo de encontrar estratégias para realizar a revolução socialista na Itália, Gramsci tem seu principal aporte teórico nos textos de Marx publicados até aquele momento, sem, contudo, desconsiderar toda a tradição filosófica italiana daquele período histórico, tendo nas figuras de Benedetto Croce e Antonio Labriola alguns dos expoentes máximos de cultura popular naquela virada de século, com os quais estabeleceu um profundo contato. Longe, no entanto, de reproduzir mecanicamente esse aporte teórico, Gramsci procura atualizá-lo e desenvolvê-lo a partir do contexto em que está inserido, já que, como indica Semeraro (2006, p.11), Gramsci analisa “as contradições do seu tempo, os fatos históricos concretos, os homens e os grupos sociais reais, até chegar a descobrir os nexos de uma totalidade em movimento por trás da aparente fragmentação e normalidade”.

Em um famoso artigo de 1917, intitulado A revolução contra O Capital, Gramsci (2004) afirma ironicamente que a Revolução Russa de 1917 é a revolução contra O Capital de Marx e que os bolcheviques foram capazes de realizar uma revolução socialista com as armas das quais dispunham, sem a necessária formação de uma classe burguesa, conforme defendiam os teóricos da Segunda Internacional. Gramsci afirma que o povo russo já havia apreendido em pensamento com o proletariado europeu sobre o peso da exploração capitalista, e que não precisaria vivenciá-la na realidade para então construir uma consciência de classe e realizar sua revolução.

Com isso, Semeraro (2014) nos recorda que Gramsci vivenciou eventos históricos que modificaram consubstancialmente toda a realidade social – desde a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, até a grande crise de 1929, que desembocará no fenômeno do americanismo e, por conseguinte, do fascismo. Na esteira dessas grandes transformações sociais, Gramsci passa a reconhecer a cultura popular como um elemento importante a ser considerado, apesar de pouco estudado pela filosofia. Criticava a tradição filosófica ocidental que costumava separar o conhecimento erudito e científico de posse dos grandes intelectuais, daquela sabedoria contida no senso comum e no bom senso das classes populares. Gramsci (2000) vai levar esta ideia até as últimas consequências, afirmando que todos os homens (e mulheres) são intelectuais, filósofos detentores de uma visão de mundo, reprodutores de um senso comum e conformistas de algum tipo de conformismo.

E justamente por compartilhar de uma determinada concepção de mundo, “ninguém é desorganizado e sem partido”, ou seja, mesmo que inconscientemente, todas as pessoas fazem parte de um ou mais grupos e conjuntos orgânicos que as identificam enquanto sujeitos inseridos em determinada posição na realidade social, “desde que se entendam organização e partido num sentido mais amplo e não formal” (GRAMSCI, 2007, p. 253).

Numa condição democrática, por exemplo, é possível se visualizar uma multiplicidade de tais grupos ou conjuntos particulares aos quais se vinculam os distintos sujeitos. Inclusive, é possível que o mesmo indivíduo se vincule a grupos que contrastam entre si. Porém, numa situação totalitária, como é o caso do fenômeno do fascismo, Gramsci visualiza a ocorrência de uma tendência em dois sentidos:

1) a fazer com que os membros de um determinado partido encontrem neste único partido todas as satisfações que antes encontravam numa multiplicidade de organizações, isto é, a romper todos os fios que ligam estes membros a organismos culturais estranhos; 2) a destruir todas as outras organizações ou a incorporá-las num sistema cujo único regulador seja o partido (GRAMSCI, 2007, p. 254).

Como o próprio adjetivo “totalitário” indica, o objetivo desse tipo de regime é criar um ambiente totalizador, em que não haja múltiplas organizações, mas apenas um único centro homogeneizador que vincule e absorva todos os cidadãos. A forma encontrada para exercer esse controle totalizador é exatamente a de promover a destruição das demais organizações e partidos políticos, absorvendo seus membros no partido totalitário.

Assim, o programa fascista “[...] estava elaborado na base de negações: antipartido, antiburguês, antimonárquico, anticlerical, antissocialista” (FRESU, 2017, p. 47). Ou seja, tentou encarnar o maior número possível de grupos em seu primeiro programa, ampliando bastante sua base de representatividade através da absorção de diversos núcleos da sociedade. Mas, ao fim e ao cabo, de “antitudo” o fascismo se limitou a ser mesmo antidemocrático.

Voltando a Gramsci (2007) e, particularmente, ao Caderno 6, a ocorrência de regimes totalitários se registra em duas situações diversas. Na primeira, de perspectiva progressista, como no caso do comunismo, quando o partido totalitário porta uma nova cultura e propõe a superação da cultura ultrapassada, necessitando, assim, se espraiar por toda a sociedade, visando expandir-se. E no segundo caso, quando uma força reacionária tenta precisamente impedir que uma nova cultura de tipo progressista se torne uma força social tão poderosa e expansiva. Nessa segunda situação, as forças sociais que, na realidade, são reacionárias, se apresentam como portadoras de algo novo, como forma de atrair e de congregar os demais grupos sociais em seu favor.

Há, contudo, uma diferenciação substantiva entre o que se pode chamar de “sistema totalitário fascista” e sistema “comunista”. Nota-se que Gramsci usa a palavra totalitária para se referir aos sistemas com aspas em uma acepção positiva do conceito (COSPITO, 2016), pois enquanto no sistema comunista existe uma tendência de absorção da sociedade política na sociedade civil, no sistema totalitário fascista, o partido tende a absorver a sociedade civil no interior do Estado, reduzindo a hegemonia à força.

Para Gramsci, o fascismo não é um produto espontâneo da história, e sim regime que se consolidou, pois, as condições objetivas que se coadunaram no país, expressas na formação social da Itália, no modo como adentrou no processo de unificação nacional e na intensificação do abismo entre Norte e Sul no período pós-risorgimentale, estão nas bases estruturais de sua ocorrência. Isto é: os limites e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de resolvê-los, levou a esta elaboração fascista que se torna uma hegemonia burguesa e coloca a Itália no circuito da economia imperialista, ainda que de forma subordinada.

Para Gramsci o fascismo não é um parêntese irracional na história da Itália, mas tem origem nos limites do processo de unificação nacional, o chamado Risorgimento, na debilidade das suas classes dirigentes, na utilização permanente do transformismo como meio de consolidação do poder, e na tendência endêmica à subversão reacionária das classes dirigentes. Tudo isso aparece bem antes do fascismo. (FRESU, 2017, p.37).

Portanto, desde os seus escritos pré-carcerários, Gramsci analisará, em uma série de artigos, o fenômeno do fascismo em ascensão na Itália, tornando a elaborar a sua reflexão no próprio cárcere. Desde já – afirmando em consonância com Fresu (2020) de que não há uma ruptura entre um Gramsci militante político e um Gramsci filósofo e “homem de cultura” do cárcere –, a análise sobre o fascismo vai se adensando para Gramsci, levando em conta alguns dos elementos centrais que observa já estarem presentes na história italiana, quais sejam: o transformismo, a revolução passiva, as transformações moleculares, o jacobinismo.

Gramsci, fascismo e os escritos pré-carcerários

As premissas para a ascensão do fascismo na Itália podem ser identificadas em dois fatores: 1) na derrota do movimento operário no biennio rosso e 2) na crise do Estado liberal depois da Primeira Guerra Mundial. Com a conduta de guerra que assumiu em 1915, a Itália aspirava conquistar novos territórios e promover a expansão econômica do país – o que não foi possível de se concretizar, apesar de sua vitória com a Entente. Ademais, essa situação provocou um clima de grande insatisfação geral no país, desagradando tanto o proletariado, quanto os camponeses e a pequena burguesia, que viram frustradas as suas promessas de melhoria de suas condições de vida (COROCCI, 1994).

A insatisfação do proletariado pode ser observada por meio do desencadeamento das greves durante os anos de 1919-1920 e com a ocupação das fábricas. Ora, a grande guerra havia travado apenas o enriquecimento dos industriais com a adoção de uma política interna que, ao favorecer os investimentos nas indústrias, só fazia reproduzir a fome e a miséria dos trabalhadores na Itália. Outrossim, a revolta dos camponeses no contexto pós-guerra também se intensificou, pois a conquista e a partilha das terras conquistadas na guerra não se realizou. Por esse motivo é que trabalhadores urbanos e camponeses se constituíram em “fermento” contra a postura do Estado liberal no pós-guerra, vislumbrando, nos anos de 1919 e 1920, a possibilidade de uma revolução proletária no biennio rosso.

Somado a esses dois grupos, a pequena burguesia, da qual faziam parte ex-oficiais de guerra, também se encontrava insatisfeita, visto que contava com pouco prestígio social, apesar de se constituírem nos “combatentes de guerra”. Assim é que, ao mesmo tempo em que assistia a crescente monopolização dos grandes industriais, se via reduzida a condição de mero apoio parlamentar.

Assim, a crise do Estado liberal italiano no contexto pós-guerra se evidenciou, dado que a monarquia, que governava em favor dos interesses burgueses, não conseguia mais conciliar os diversos interesses das distintas representações parlamentares entre socialistas, católicos, pequena burguesia e burguesia – devendo ainda enfrentar o movimento operário em efervescência na Turino rossa e a ascensão do novo partido verdadeiramente comunista que nascia em Livorno, em 1921 (DEL ROIO, 2005).

Todo esse cenário possibilitou o desenvolvimento do movimento fascista, liderado por Mussolini e composto por ex-combatentes de guerra, voltados a dedicarem seu rancor contra aqueles que julgavam serem os responsáveis pela crise que se abria. Desta forma, pode-se dizer que a pequena burguesia foi a principal arquiteta do fascismo. Insatisfeita, servindo de apoio parlamentar, mudou, como define Gramsci (2004), sua forma de prestação de serviço. Passou a atacar o próprio parlamento e a corromper as instituições fundamentais do Estado: o exército, a polícia e a magistratura.

É a partir daí que, mesmo alertando que os seus escritos estavam propensos a morrer ao final de cada dia, Gramsci analisará o caráter de classe assumido pelo fascismo em uma série de artigos datados a partir de 1921. Em O povo dos macacos, por exemplo, investiga a pequena burguesia, alertando a sua tendência à dissipação pelo desenvolvimento da grande indústria e do capital financeiro. Perdendo a sua função no terreno produtivo, tornou-se uma classe estritamente política, especializando-se no “cretinismo parlamentar”: “A pequena burguesia se incrusta no instituto parlamentar: de organismo de controle da burguesia capitalista sobre a Coroa e sobre a administração pública, o Parlamento se torna um bazar de mexericos e escândalos, um meio para o parasitismo” (GRAMSCI, 2004, p.30).

A ruína do pós-guerra, ao evidenciar a sua condição limitada de apoio parlamentar a burguesia, e o atento para o prestígio dos socialistas no parlamento, fez com que a pequena burguesia voltasse seu terror para as duas classes. Na burguesia, no entanto, encontrou uma aliança, em que a fascistização se tornou um mecanismo para assegurar a (re)produção da natureza do Estado capitalista e que, no conjunto dos trabalhadores, voltou a sua violência reacionária.

Em Itália e Espanha, Gramsci (2004, p. 46) define o fascismo como sendo “a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadora e de tiros de pistola”. Duas premissas fundamentais podem ser identificadas: 1) assistir o sucesso do fascismo era assistir o sucesso da burguesia no controle do movimento operário italiano. Por trás deste movimento, estava a aliança entre pequena burguesia e burguesia, uma vez que a violência reacionária pequeno-burguesa do fascismo era financiada pela burguesia e pelos latifundiários do Sul, tendo em vista o ataque às organizações proletárias. É assim que, para Gramsci, o fascismo se configurava na última “encarnação” da pequena burguesia, que estava para atender os interesses burgueses sob o impulso de suas camadas, utilizando-se de rajadas de metralhadora e de tiros de pistola para tal; 2) nesse movimento, é evidente que a pequena burguesia não oferece e não elabora um projeto societário, devendo atrelar-se ao projeto burguês. A impossibilidade de criar um projeto de sociedade autônomo faz com que se utilize da força e da violência para mascarar a sua incapacidade, revelando

[...] definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capitalismo e da propriedade agrária, de agente de contrarrevolução [...] fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histórica [...] o “povo dos macacos” se caracteriza precisamente pela incapacidade orgânica de criar para si uma lei, de fundar um Estado. (GRAMSCI, 2004, p. 32-34).

Se a pequena burguesia acaba por se aliar com a burguesia porque não propõe um novo projeto autônomo de sociedade, a burguesia também adere ao fascismo porque é uma forma de marchar sob os movimentos “subversivos” do proletariado. O fascismo se tornou possível somente pelo fato de que “[...] dezenas de milhares de funcionários do Estado, em particular os organismos de segurança pública (delegados de política, guardas-régias, carabineiros) e da magistratura, tornaram-se seus cúmplices” (GRAMSCI, 2004, p.66). Essas inferências revelam que o fascismo não é a negação do Estado burguês: é a negação da forma tradicional do Estado burguês, o qual assume um novo formato que associa repressão legal do Estado com violência extralegal de associação privada. O fascismo “está intimamente ligado à atual crise do regime capitalista e só desaparecerá com a supressão deste regime” (GRAMSCI, 2004, p. 74).

Ao mesmo tempo em que analisava o caráter de classe do fascismo em ascensão na Itália, Gramsci estabelecia críticas ao PSI por este não ter sido capaz de realizar sua função histórica de fundação de um novo Estado. Em O Estado Operário, Gramsci (2004) afirma que o PSI não passou da propaganda à ação e não foi capaz de dar uma direção e consciência das tarefas particulares do proletariado. É por esse motivo que em Socialistas e Comunistas, Gramsci (2004) afirma existir na Itália dois partidos resultantes de Livorno: o socialista e o comunista.

Os comunistas apostavam no caráter passageiro e transitório do fascismo, valendo-se da tese na qual a burguesia abandonaria a violência reacionária assim que fosse capaz de contornar a crise do pós-guerra; enquanto os socialistas apostavam na pactuação com os fascistas para evitar o terror. Mas, na realidade, a insuficiência da análise do movimento do real realizada pelos comunistas naquele momento histórico, isto é, de apostar no fascismo como um instrumento transitório, como indica Del Roio (2005), leva a própria incapacidade de reverter o processo de fascistização em curso na Itália.

No artigo A velha ordem em Turim, datado de maio de 1921, Gramsci (2004) analisa a conjuntura das eleições ocorridas nesse mesmo ano. Um dado inovador é a ascensão dos fascistas às cadeiras do parlamento, ocupando 35 das 275 cadeiras. Ao mesmo tempo, é o período em que os socialistas se engajam em um pacto de pacificação com os fascistas, o qual foi assinado em agosto do mesmo ano, prevendo a cessação das ameaças e dos ataques mútuos entre os dois partidos. Os comunistas se negam a assinar esse documento e, em Os líderes e as massas, Gramsci (2004, p. 71) dirá que o PSI “assinou o início de seu fracasso político”.

Nesse momento, Gramsci também se distanciava da análise do PCd’I sobre o fascismo como sendo um instrumento passageiro utilizado pela burguesia para contornar a crise pós-guerra. Em O golpe de Estado, Gramsci (2004) já alerta para um possível golpe de Estado fascista – prospecção que acabará se confirmando um ano depois com a Marcha sobre Roma e a tomada do poder estatal por Mussolini, evidenciando que o movimento seria mais duradouro e profundo do que se esperava.

Considerando que em seus escritos políticos pré-carcerários Gramsci está avaliando o fenômeno fascista durante o desenrolar dos acontecimentos, podem-se depreender duas óticas de leitura do movimento: 1) o período que antecede a tomada do poder estatal, que se caracteriza pela denúncia do caráter pequeno-burguês do fascismo impulsionado pelos fasci di combattimento, de 1919; e 2) o período de consolidação do fascismo com a Marcha sobre Roma – momento em que o movimento passa de uma organização pequeno-burguesa para partido e, posteriormente, para regime.

Como Gramsci desenvolverá nos Cadernos, o fascismo foi a forma encontrada para, em um contexto de crise do pós-guerra, reorganizar a economia da Itália. Nas condições em que o velho morre e o novo ainda não pode nascer, o fascismo se colocava como alternativa, homogeneizando uma saída para a crise dada pela concentração industrial, pela decadência do parlamento, pela inépcia das classes dirigentes e como uma resposta aos movimentos revolucionários – condições que, em realidade, se aglutinam ao longo da formação social da Itália, reiterando os elementos presentes desde o processo de unificação.

Seguindo esta mesma perspectiva de análise, Fresu (2017, p. 46) nos indica que a cadeia de montagem taylorista então implantada nos Estados Unidos, teve a mesma função que o fascismo, isto é, de “resposta à ‘crise orgânica’ da burguesia mundial, mas coerente com a ideologia americanista e economicamente muito mais racional e progressiva”. Por isso, na medida em que se configurou em uma via para a modernização, o fascismo foi a forma encontrada para americanizar o país, integrá-lo na economia internacional e superar o seu atraso histórico – daí que seu caráter burguês, daí que sua revolução passiva.

Fascismo e Revolução Passiva

“Mas, nas atuais condições, o movimento correspondente ao do liberalismo moderado e conservador não seria precisamente o movimento fascista?”. É a partir desta indagação que Gramsci (2006, p. 298) se interroga ao longo do § 9, Paradigmas de história ético-política, no Caderno 10, sobre a historiografia crociana oferecida à cultura europeia e sua tendenciosidade a reforçar o movimento ideológico do Risorgimento.

Quando Gramsci trata da revolução passiva – expressão retirada de Vincenzo Cuoco e reformulada – nomeia vários processos distintos que poderiam servir como exemplo para a extensão e aplicabilidade do conceito. É nesse sentido que, apesar de dedicar longas notas, e mesmo Cadernos inteiros (como é o Caderno 19), ao Risorgimento como um processo de revolução passiva, também esse conceito é estendido ao americanismo e, certamente, ao fenômeno do fascismo.

Se no Caderno 10, Gramsci advoga sobre o reforço de Croce ao movimento ideológico do Risorgimento, qual seria esse reforço? Precisamente o de excluir o jacobinismo das grandes transformações econômicas, políticas e sociais contidas no processo revolucionário, como aconteceu na França com a Revolução Francesa. Em outras palavras: para Gramsci (2006), o Risorgimento italiano não se deu a partir de uma participação ativa das grandes massas e da incorporação de algumas de suas reivindicações na pauta de um programa nacional-popular, portanto, jacobina, para superar a condição fragmentada do território italiano, mas se deu por meio de uma revolução passiva, cujo fenômeno do transformismo é o recurso que melhor o caracteriza.

[...] ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da intervenção legislativa do Estado e através da organização corporativa, teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais ou menos profundas para acentuar o elemento “plano de produção”, isto é, teria sido acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com isso tocar a apropriação individual e grupal do lucro (GRAMSCI, 2006, p. 299).

No Caderno 19, Gramsci põe em destaque uma análise aprofundada sobre a formação social italiana e o processo de unificação, esclarecendo a articulação desses elementos, visto que as forças sociais que disputavam a direção do processo risorgimentale, aglutinadas em torno do Partido de Ação e do Partido dos Moderados, não empreenderam uma revolução de tipo “jacobino”. O Partido de Ação, representante das forças democráticas, era a força social do Risorgimento que poderia ter se vinculado organicamente às massas camponesas, mas, como indica Gramsci, não foi capaz de se colocar como uma força autônoma, de modo a alavancar um verdadeiro projeto popular e democrático (GRAMSCI, 2002).

Como este projeto poderia ter sido concebido? Por meio de um programa de governo que trouxesse em seu interior as reivindicações da maioria da população, representada pelos camponeses, e traduzidas em um programa de reforma agrária. Mas, na unificação, o Partido de Ação não soube se contrapor ao Partido dos Moderados, sendo cooptado por meio do transformismo, isto é, pela capacidade de absorver as lideranças das forças contrárias e atrelá-las ao seu projeto (GRAMSCI, 2002).

Assim, Gramsci (2002) caracteriza o Risorgimento italiano como revolução passiva, ou seja, uma revolução sem revolução. A experiência italiana foi muito distinta da Revolução Francesa, porque o Partido de Ação não desenvolveu uma atitude jacobina, não sendo capaz de ligar as grandes massas ao seu projeto, envolvendo-as na construção de uma vontade coletiva nacional-popular.

Se a revolução passiva também serve na análise do fenômeno do fascismo, porque em sua origem estão os mesmos elementos observados no contexto de unificação nacional – a debilidade das classes dirigentes, o transformismo como um recurso de permanência no poder, a crise da sociedade italiana –, então a reflexão que Gramsci realiza no Caderno 10 é a de pensar a revolução passiva não apenas como forma de ingresso na sociedade burguesa (como foi o Risorgimento), mas também como forma de atualização e desenvolvimento dessa sociedade (como é o fascismo). Ora, quando se pergunta se o movimento do liberalismo seria correspondente ao movimento fascista, Gramsci parece indicar que, para a crise que se abria no período pós-guerra e diante da incapacidade de resolvê-la pelas velhas elites dirigentes, o impulso para integrar a Itália ao ritmo dos padrões de acumulação imperialista, só poderia ser dado, novamente, por uma revolução sem revolução. Nesse sentido, o fascismo teria sido uma solução, e talvez a única possível naquele momento “[...] para desenvolver as forças produtivas da indústria sob a direção das classes dirigentes tradicionais, em concorrência com as mais avançadas formações industriais de países que monopolizam as matérias-primas e acumularam gigantescos capitais” (GRAMSCI, 2006, p. 299).

Um fascismo “à brasileira”?

Desde a onda de protestos ocorrida no Brasil a partir de junho de 2013, e já retratada em diversas pesquisas (MARICATO, 2013; LIMA, 2017), o período histórico vivenciado desde então, tem sido analisado a partir do conceito gramsciano de “crise de hegemonia”. Gramsci (2007) caracteriza este tipo de crise no Caderno 3 como um momento no qual o velho mundo está morrendo, enquanto as forças que representam o novo ainda não estão preparadas para nascer – possibilitando, nesse meio tempo, o surgimento de fenômenos bizarros, grotescos e monstruosos. No caso brasileiro, poder-se-ia dizer que o fenômeno que surge em decorrência dessa crise de hegemonia e, por conseguinte, da falência do velho e impossibilidade do novo, é o governo Bolsonaro.

Dadas as características reacionárias, ultraconservadoras e antidemocráticas deste governo, surgem perspectivas de análise que buscam caracterizá-lo como um neofascismo, já que assistimos a um movimento mundial que coincide com a tomada do poder por líderes da extrema-direita em nosso e em outros países. Assim, é possível identificar tendências que se diferenciam, e até mesmo se distanciam, em relação a análise da realidade, dando ênfase a diferentes momentos na defesa de seus argumentos. Partindo do ponto de vista mais amplo e do prisma do debate internacional, destacam-se autores como Stanley (2018) e Bray (2017), que optam pela categorização da forma “fascismo” sobre alguns grupos caracterizados como ultranacionalistas, visualizando o elemento fascista no modus operandi dos grupos da extrema direita que assumiram o controle do Estado em alguns países na última década. Trata-se de análises interessantes, cujo desenvolvimento apurado não cabe no espaço do presente artigo, mas que sinalizamos sua indicação para reflexões posteriores.

Realizando a leitura da conjuntura brasileira, Löwy (2020) se destaca como um autor que identifica o governo de Jair Bolsonaro com uma tendência neofascista. Apesar de haver diferenças entre o neofascismo brasileiro e o fascismo dos anos 1930, este governo assume algumas características novas que são próprias do século XXI, ao mesmo tempo em que preserva características do fascismo clássico. Conforme Löwy (2020), o neofascismo não assume uma face de ditadura policial e pode, inclusive, respeitar as liberdades democráticas, como as eleições, a liberdade de imprensa, o Parlamento, etc. Outrossim, é um fenômeno que se reveste hoje do neoliberalismo, reiterando o enxugamento máximo do Estado na economia, ao passo de sua completa submissão ao imperialismo norte-americano. Se esses elementos atualizam o fascismo, impondo a atualidade de um “neofascismo brasileiro”, preserva de sua versão clássica, o autoritarismo (característica bastante presente no governo de Bolsonaro), o culto ao líder (“mito”) e a pátria, a aversão à esquerda e ao movimento operário e o desprezo pela ciência, expresso no total descaso com as medidas preventivas no contexto da atual crise sanitária.

Reiterando algumas destas importantíssimas análises conjunturais mais recentes, mas adentrando, agora, na especificidade de alguns autores gramscianos que também se lançam a interpretações de nosso tempo, temos em Lincoln Secco (2020) um autor que recentemente analisou a particularidade brasileira e considerou Bolsonaro e Donald Trump como “líderes neofascistas”.

Analisando o contexto da pandemia causada pela Covid-19, o autor indica que “[...] o confinamento no século XXI coincide com a nova ascensão do fascismo”, já que o próprio fascismo se utiliza dos termos da epidemiologia na política (SECCO, 2020, p. 71). Para ele, os “fascismos” encontraram, hoje, terreno fértil para disseminarem as suas ideias em alguns elementos presentes nas sociedades contemporâneas: 1) a popularização de redes sociais, como o Whats App; 2) a frustração das promessas feitas pelo neoliberalismo; e 3) o crescente afastamento entre academia e sociedade.

Inclusive, a construção do “binarismo” atual, expresso no dilema entre “salvar vidas” versus “salvar a economia”, tem duas lógicas: 1) a constante mobilização das massas (uma característica do fascismo), e; 2) a acumulação capitalista. Desta forma, para Secco (2020), o neofascismo hoje, assim como o foi o fascismo no século XX, fornece uma forma para o engajamento das grandes massas, construindo um sentimento de comunidade em torno de um ideal que não depende da racionalidade dos envolvidos, mas que está, sobretudo, voltado para a classe média.

Assim como Gramsci retratou uma crise de hegemonia na emergência do fascismo na Itália, é perceptível e compreensível essa tendência em identificar o que se vive hoje no Brasil como fascismo – ou neofascismo, porém é necessário afirmar que essa identificação perpassa por várias mediações, de modo que não é consensual entre os autores denominar como “fascista” a conjuntura instalada no país.

Neste contexto, é também importante a posição de Fresu (2017) sobre o debate, pois o autor analisa com cautela a transposição do fenômeno fascista para outros contextos além do momento histórico específico vivenciado pela Itália no pós Primeira Guerra, principalmente no que diz respeito às tendências que acabam denominando como “fascismo” quaisquer movimentos de caráter reacionário ou autoritário. Assim, para o autor, se existem, por um lado, processos e/ou momentos de fascistização em algumas sociedades, inclusive com movimentos se autodeclarando como “neofascistas”; por outro, é preciso compreender com exatidão todas as especificidades e potencialidades da Europa – e não só da Itália – no início do século XX, porque são elas que ofereceram as condições para o estabelecimento do fascismo como de fato ocorreu.

Assim, considerando que não se deve apostar na tese da mera e simples repetição de processos ao longo da história, a análise de um fenômeno histórico deve avaliar as diferentes determinações colocadas por cada formação social e econômica nos mais diferentes países e contextos.

Fresu (2017) indica ainda que, se é possível observar hoje o ressurgimento de forças ultraconservadoras e autoritárias, a relação que devemos buscar para compreender essa nova ascensão, encontra-se localizada mais na formação social de um determinado país, do que na incorporação de fenômenos que lhes são externos e na atribuição de categorias abstratas para explicar a realidade. Com isso, o autor não está desconsiderando a necessidade de se pensar sobre o fascismo nos dias atuais – até mesmo para que se possa compreendê-lo e criticá-lo adequadamente –, mas está pondo em relevo a necessidade de refletir e recuperar a dinâmica interna do próprio país, visto que as forças ultraconservadoras e autoritárias, por exemplo, nunca deixaram de existir na dinâmica política de um país como o Brasil.

Luciana Aliaga (2020) é também outra autora que apresenta uma análise particular sobre a conjuntura brasileira a partir da perspectiva gramsciana. A autora levanta a hipótese da existência em curso no país de um processo de revolução-restauração, cuja expressão do “bolsonarismo” é a forma particular dessa dialética no país. Tendo como base o fundamento teórico gramsciano de que a revolução-restauração implica numa teoria do desenvolvimento histórico caracterizada por um processo de expansão e inovação (e, portanto, de revolução), seguida por um processo de reação e regressão (e, portanto, de restauração) – em que a Revolução Francesa se constitui em seu modelo clássico –, essa dialética da conservação-inovação (revolução-restauração) adquire uma forma particular na conjuntura brasileira atual, se revestindo do bolsonarismo.

Sabe-se, como identifica a autora, que apesar da Revolução Francesa ser o modelo clássico da revolução-restauração, existem países em que ela se realiza de modo distinto, como foi o caso italiano e o processo risorgimentale: uma revolução-restauração cujo período da revolução é simultâneo ao da restauração, quer dizer, quando a expansão e a inovação são acompanhadas da reação e regressão por impedir a afirmação de uma nova hegemonia e por reiterar as velhas forças da sociedade (ALIAGA, 2020). O novo é impedido de nascer ao mesmo tempo em que o velho ainda não morreu.

É nesse sentido que Aliaga (2020) afirma a possibilidade de existência de uma forma particular da dialética revolução-restauração no contexto brasileiro. O bolsonarismo emerge a partir de uma crise de hegemonia, isto é, uma crise orgânica (da política, da economia, e do contexto sanitário), colocando em vias de ascensão a permanência de algo “bizarro”. O bolsonarismo é, portanto, para a autora, uma definição da política atual brasileira e não pode ser identificado e reduzido na figura individual do presidente Jair Bolsonaro, mas antes em um movimento de massas reacionário que emerge no contexto da crise e que se alastra diante da propagação do recurso mais utilizado por este governo: as fake news.

Para Aliaga (2020), a ausência de uma saída democrática e popular para a crise de hegemonia que se instala na conjuntura brasileira, levou a alternativas autoritárias. Se a forma da política atual brasileira identificada no bolsonarismo não pode ser confundida com a figura do presidente, Bolsonaro, no entanto, tem uma forma particular de administrar a crise, qual seja: aquela que a intensifica e provoca rachaduras no bloco do poder. Não propondo um projeto coletivo, mas individual, o presidente, “[...] no movimento de agarrar-se ao poder, aprofunda, portanto, a crise política, econômica e sanitária, permitindo e mesmo contribuindo para morte de milhares de pessoas” (ALIAGA, 2020, p. 127).

Considerações finais

Piero Gobetti, intelectual italiano vítima do regime fascista no auge dos seus 26 anos, escreveu um artigo em 1922 afirmando que o fascismo é a autobiografia da Itália e propondo a reflexão de que esse se consolidou menos pela força de Mussolini do que pela fraqueza dos italianos, que tinham, segundo ele, ânimo de escravos (GOBETTI, 1922). Essa reflexão de Gobetti pode servir, como em Gramsci, para a análise do contexto brasileiro. Como hipótese, talvez a questão aqui não seja necessariamente, assim como na Itália, a força do projeto político que Bolsonaro representa, mas sim o modo de vida subalterno ao qual o povo brasileiro está profundamente enraizado.

Ao contrário da luta abolicionista estadunidense, por exemplo, no Brasil, temos que a luta abolicionista foi travada pela própria classe dominante – até que a Inglaterra declarou o fim da escravização legal. Esse domínio das questões sociais dos grupos subalternos pelos grupos dominantes é trágico e fatal para o desenvolvimento de uma cultura política autêntica e progressista dos subalternos. Essa subalternidade construída por séculos de submissão – e que ainda não foi superada – criou tanto a subjetividade do escravo, quanto a subjetividade do coronel e do senhor de escravos; ambas reproduzidas nas relações sociais entre patrão e empregado.

Para usar uma vez mais a Inglaterra, enquanto Boris Johnson lamentava as cem mil mortes por Covid-19 e pedia desculpas ao povo inglês, Jair Bolsonaro perguntava ao povo brasileiro até quando iria durar a choradeira pelas mais de 250.000 vidas perdidas. Afinal, se o Brasil foi construído na base do genocídio dos povos originários e da escravidão, por que lamentaríamos as mortes agora? Se Canudos e Contestado têm algo a demonstrar na atualidade, é que a vida nunca foi prioridade para a classe dominante brasileira.

Neste sentido, reiterar o debate sobre o fascismo com a finalidade de refletir sobre a realidade brasileira e a conjuntura atual serve mais para questionar as análises firmadas até o momento do que para cimentar certezas. A exemplo do que fez Gramsci na análise dos processos históricos ocorridos na Itália, reafirmamos a importância de remeter o nosso olhar para a própria formação social brasileira e, ao mesmo tempo, para o futuro que temos ainda a construir – uma verdadeira tarefa gramsciana no sentido de fazer o novo nascer.

Referências

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GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 3: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Edição e tradução Carlos Nelson Coutinho; coedição Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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Notas de autor

1 Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social pela UFSC; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Brasil; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1998-9301; E-mail: deborarvro@gmail.com.
2 Mestra em Serviço Social pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Brasil; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9934-7121; E-mail: mirelehashimoto@hotmail.com.


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