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A literatura de Carolina Maria de Jesus - arte como resistência, resistência como elemento da Questão Social
Carolina Maria de Jesus’s Literature: Art as Resistance, Resistance as an Element of the Social Issue
O Social em Questão, vol. 1, núm. 62, pp. 181-202, 2025
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro



Recepción: 01 Octubre 2024

Aprobación: 01 Diciembre 2024

Resumo: Este artigo busca dialogar com algumas obras literárias da artista e literata Carolina Maria de Jesus: poemas, romances e outras produções. Busca-se evidenciar o potencial dos escritos carolineanos enquanto elementos fundamentais para a compreensão da totalidade da Questão Social brasileira, a partir do olhar da própria classe trabalhadora. Destaca-se, ainda, a necessária articulação com a questão étnico-racial. Demonstraremos, ao longo deste estudo, que as obras de Carolina sofreram um apagamento histórico, em razão do potencial artístico e combativo que carregam. Abordamos pesquisas recentes nos campos das letras, história e ciências sociais que demonstram tendências de ruptura com essa lógica.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus, Literatura, Questão Social.

Abstract: This article seeks a dialogue with some literary works of the artist and literate Carolina Maria de Jesus: poems, romances and other productions. It aims to highlight the potential of ‘carolineanos’ writings as key elements to comprehension of Brazilian Social Issue in its entirety – based on the working class perspective. We outline the necessary articulation with racial issue. We demonstrate here that Carolina’s works have suffered a historical erasure, due to their artistic and combative potential. We approach some recent research in the letters and historical fields as also in social sciences, which demonstrates tendencies to break with this logic.

Carolina Maria de Jesus; Literature; Social Issue.

Keywords: Carolina Maria de Jesus, Literature, Social Issue.

Introdução

A análise sobre a Questão Social no Brasil precisa estar fundamentada pelo conhecimento das particularidades que são próprias da formação social brasileira (Iamamoto, 1998). Aqui reiteramos o posicionamento de que tal apreensão em sua totalidade deverá ser compreendida paralelamente aos estudos e pesquisas sobre a questão étnico-racial (Gonçalves, 2018). Apoiadas nos estudos de Ianni (1989), buscaremos demonstrar – em diálogo com a produção literária de Carolina Maria de Jesus – como a Questão Social brasileira se constitui na história do país, com expressões significativas em todo o território e desde a abolição do trabalho escravizado. Defendemos que promover conexões entre estudos acadêmicos e as trajetórias e as obras da artista e literata, Carolina Maria de Jesus, é estratégia para compreensão da Questão Social no Brasil a partir do olhar e narrativa de quem a experienciou de perto.

Esta abordagem possibilita o conhecimento sobre como a Questão Social e suas expressões incidiam no cotidiano e nas vivências da classe trabalhadora, com o privilegiamento de uma narrativa que ainda tem pouca visibilidade nos espaços acadêmicos: aquela advinda do cotidiano das classes trabalhadoras, das mulheres, e, especialmente, das mulheres negras.

Na pesquisa elaborada por Dias (1995), nota-se a tendência histórica - construída nas fontes documentais e literárias ao longo da formação sócio-histórica brasileira – de silenciar as mulheres ou registrá-las de maneira estereotipada. Nesta análise, no início do século XX, o alto índice de mulheres analfabetas, negras e brancas, contribuía para a impossibilidade de um auto registro e, portanto, a ausência dessas sujeitas nas fontes documentais e literárias ou uma presença registrada de forma depreciativa.

Na contramão desse movimento, Dias (1995, p. 51) demarca a necessária iniciativa de “descortinar as estruturas do cotidiano” para encontrar os testemunhos mais fiéis sobre a participação feminina. A autora aborda o processo histórico de apagamento imposto às mulheres em busca da compreensão da invisibilidade das conquistas femininas, e a necessária valorização de narrativas não convencionais. De acordo com ela, por serem frutos de tensionamentos e não de concessões, as participações femininas foram usualmente pouco registradas (Dias, 1995). Seguindo essa mesma perspectiva, tratamos aqui de reivindicar e valorizar os escritos carolineanos como expoentes da literatura brasileira e também como elementos ricos para a compreensão de um fenômeno específico, qual seja, a Questão Social.

Carolina, mulher negra e escritora, conquistou espaço a partir da publicação de obras nas quais pôde registrar o cotidiano. Ainda assim, é necessário olhar atentamente para tais escritos com dois objetivos: o primeiro, manter acesa a chama de esperança que fez com que uma mulher negra e pobre pudesse assumir o lugar que socialmente lhe era negado: artista e literata. Em segundo lugar, perceber seus escritos enquanto registros literários, mas também documentais, os quais retratam o cotidiano da classe trabalhadora nas suas relações e materializações históricas nas expressões da Questão Social no Brasil.

Por fim, consideramos Carolina Maria de Jesus, escritora brasileira com análises pungentes da Questão Social, uma verdadeira intérprete do Brasil que tem nos levado a identificar, conforme já analisou Gonçalves (2018), que a questão racial é nó da Questão Social.

Tratar a Questão Social como um processo que expressa as desigualdades, mas também as resistências, têm sido um desafio rico e potente. Esse posicionamento nos permite desvendar que, em contextos de predominância das estruturas, ideais e valores conservadores – que marcaram a formação sócio-histórica do Brasil – havia também resistências políticas de diversos segmentos da população. O aprofundamento sobre a produção de Carolina Maria de Jesus é uma forma de nos aproximarmos das perspectivas não hegemônicas, já que sua literatura traz o que a própria autora nomeou de “Um Brasil para os brasileiros”.

Ser artista, ser escritora: resistência na vida e obra de Carolina Maria de Jesus

Temos trabalhado a produção de Carolina como um importante recurso de análise sobre a realidade brasileira, o que inclui considerarmos sua constituição e existência como indivíduo social (Iamamoto, 2001). Nas leituras, pesquisas, atividades extensionistas e de ensino na universidade, dedicamos especial atenção ao fortalecimento de narrativas que buscam desconstruir a “imagem” de Carolina como uma autora “descoberta”, aspecto que atribui uma passividade que não condiz com sua existência. Destacamos, aqui, um registro que lemos como elitista e que está explícito na primeira edição de “Casa de Alvenaria - Diário de uma ex-favelada” - publicada em 1961. Audálio Dantas (1961, p. 10) assim apresenta Carolina:

Finalmente, uma palavrinha a Carolina, revolucionária que saiu do monturo e veio para o meio da gente de alvenaria: você contribuiu poderosamente para a gente ver melhor a desarrumação do quarto de despejo. Agora você está na sala de visitas e continua a contribuir com êste nôvo livro, com o qual você pode dar por encerrada a sua missão. Conserve aquela humildade, ou melhor, recupere aquela humildade que você perdeu um pouco — não por sua culpa — no deslumbramento das luzes da cidade. Guarde aquelas “poesias”, aquêles “contos” e aqueles “romances” que você escreveu. A verdade que você gritou é muito forte, mais forte do que você imagina, Carolina, ex-favelada do Canindé, minha irmã lá e minha irmã aqui.

A recomendação do próprio editor dos livros, para que Carolina desse “por encerrada a sua missão”, deixa escapar uma percepção limitada e até mesmo estereotipada da escritora. Em entrevista concedida, em 2014, à pesquisadora Raffaella Andréa Fernandez3, Audálio tece os seguintes comentários: “Antes desse diário ela pretendia, como eu disse, muita coisa ela pretendia. Inclusive, ser atriz, cantora, uma série de coisas. Era uma pessoa em busca da glória…” (Fernandez, 2014, p. 307). Com relação ao projeto literário de Carolina, Audálio afirmava que era inexistente, ele também afirmou que Carolina não tinha método, atribuindo ao processo criativo da escritora atributos inatos, como um talento, uma força natural (Fernandez, 2014, p. 39).

No entanto, Carolina seguiu fiel ao seu projeto literário. Podemos encontrar a materialidade deste projeto, da sua “cabeça de artista” e das relações conflituosas entre fazer arte e auferir os resultados financeiros dessas produções num dos primeiros registros impressos de sua voz literária:

“[...] ― Sei não... minha cabeça está cheia de versos. Brotam sozinhos, e eu coloco-os no papel... Outros aproveitam do meu saber. Há discos com poesias de minha lavra. Mas o que adianta reclamar? Eu produzo e outros lucram…” (Aureli, 1940 apud Ximenes, 2020, n.p.)4.

Com as novas edições de Casa de Alvenaria volume I e volume II acessamos os escritos de Carolina na íntegra5. Isso nos permitiu visualizar a multiartista Carolina que não abandonou “[...] aquelas ‘poesias’, aquêles ‘contos’ e aqueles ‘romances’” (Dantas, 1961, p. 10). No entanto, a orientação de Audálio Dantas é uma sombra recorrente no projeto literário da escritora: “[...] Audálio diz que eu devo escrever Diario, sêja fêita a vontade do Audálio.” (Jesus, 2021, p. 99). É uma questão que tensiona a escrita de Carolina. Nos registros publicados na versão ampliada de Casa de Alvenaria, por exemplo, acompanhamos seu cotidiano permeado pelas diversas tentativas de assegurar o tempo para escrita e para fruição artística através da produção de seu figurino para as festas de carnaval, das iniciativas poéticas e musicais.

Compreendemos que a experiência narrada por Carolina – o encontro com o pensamento literário – aconteceu a partir da necessidade de “fazer trabalhar a cabeça” ao chegar à cidade de São Paulo. Essa experiência tem relação com a assimilação e apropriação da autora com o novo espaço que ocupava e soma-se à possibilidade de expressão dos encantos e desencantos proporcionados pela experiência de ocupação do espaço urbano.

Tal apreensão pode ser equiparada ao que Conceição Evaristo (2020) denomina como escrevivência. A autora define como o ato de escrita das mulheres negras, em contraposição a uma realidade anterior na qual essas não tinham direito sequer sobre o próprio corpo ou voz, mas passam agora a exercê-lo também sobre a escrita, sem, no entanto, apagar desses registros as marcas da oralidade e ancestralidade africanas.

E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa-grande”, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos (Evaristo, ٢٠٢٠b, p. ٥٣-٥٤).

É o que veremos no próximo tópico: uma Carolina que se apropriou da escrita, com marcas próprias, para fazer poesia, escrever romances e denúncias sobre uma realidade marcada por profundas desigualdades que incidiram no cotidiano dela e dos que a cercavam.

Para comer só feijão e farinha: o Brasil nas letras da classe trabalhadora

Consideramos que o diálogo com a literatura permite a realização de exercícios de abstração e de reflexão importantes à construção e à transmissão de conhecimentos, especialmente no que se refere à matriz crítica do pensamento social. A obra de Carolina tem sido de grande riqueza nesta interlocução.

A infância e adolescência de Carolina foram registradas na obrpóstuma, Diário de Bitita6 (2014). Nesse livro, destacamos inicialmente a aproximação da autora com o mundo das letras e literatura, a partir da narrativa do seu processo de alfabetização. Carolina narra que foi na escola em que pôde pela primeira vez descobrir o próprio nome, antes acreditava se chamar Bitita – apelido de infância, utilizado pelos familiares para referir-se a ela.

Carolina deixava, a partir das experiências de letramento, de fazer parte do grupo de mulheres que não poderiam contar suas histórias, sujeitas a invisibilidade ou aos estereótipos dos registros. A leitura e escrita colocavam-na enquanto uma exceção diante da maioria da população negra em geral, e, das mulheres negras, especificamente.

Nessa obra, após relatar sobre o curto período frequentando a escola, Carolina destacou a necessidade de abandonar os estudos, em razão de uma oportunidade de trabalho oferecida à mãe no campo. Dali em diante, a trajetória da autora por nós analisada seria marcada por uma série de deslocamentos forçados em busca de trabalho ou tratamentos de saúde.

Na pesquisa de Frasson (2016), é possível observar a representação cartográfica dos 16 deslocamentos forçados, todos na região sudeste, registrados no Diário de Bitita (2014). O destino seria o estado de São Paulo. Entre tentativas frustradas de encontrar moradia, trabalho e atendimento de saúde adequados, passou por pelo menos cinco cidades do interior paulista – marcadas também por tentativas de retorno a seu lugar de origem. Por último, fixou moradia na capital paulistana, precisamente na então favela do Canindé, conforme demonstrado ao longo da obra Quarto de Despejo.

Tais deslocamentos forçados compreendem expressões marcantes da Questão Social brasileira, especialmente no momento histórico em que Carolina estava inserida, demarcado por Costa (2020), como o período de eclosão da Questão Social no Brasil. Segundo essa autora, a década de 1930 foi marcada pela lógica de crescimento do país pela via do trabalho, em que os trabalhadores negros estiveram expostos às mais precárias condições laboriosas. Nesse contexto, a organização coletiva foi fundamental para o enfrentamento das precárias condições de vida e trabalho e contrapunha também as ameaças de exclusão massiva dos postos formais de trabalho diante do incentivo à imigração de trabalhadores (brancos) para ocupar as novas indústrias.

No entanto, a população negra que fora escravizada, bem como seus descendentes, foi majoritariamente excluída do processo de trabalho formal7, sendo exposta às formas de trabalho informais e precarizadas. Ou seja, as expressões da Questão Social incidiram de forma acentuada no cotidiano desses sujeitos. Vera Eunice e Conceição Evaristo (2021) indicam outros pontos importantes para a compreensão dessa análise: o nascimento de Carolina apenas 26 anos após a assinatura da Lei Áurea e sua condição de descendente de pessoas que foram escravizadas como elementos determinantes do processo de violências, exclusões e discriminações vivenciados pela autora.

Um olhar atento para a obra literária de Carolina permite notar que, apesar de ser ela uma literata e artista quase autodidata, trabalhou em ocupações como: lavadeira, cozinheira, doméstica e catadora de materiais recicláveis.

Fui trabalhar na casa do senhor Teófilo, me mandaram embora por causa da tosse. Eu pensava que se readquirisse a saúde, ia viver como fidalga. Enganei-me. Os dias, para mim, eram ainda funestos e trágicos. Os meus sonhos não se concretizavam. Queria trabalhar para cuidar da minha mãe. Os bons empregos já estavam ocupados por pessoas de melhor aparência (Jesus, 2014a, p. 188)

Lélia Gonzalez (2020) demonstra que o processo produtivo brasileiro se organizou promovendo uma integração social do tipo marginal para as populações negras. Gonzalez caracteriza três tipos de inserção pela via do trabalho: Tipos A, B e C. O Tipo A é dividido nas subcategorias: a) rural por “conta própria”; b) rural “sob patrão”; c) urbano por “conta própria”; e, d) urbano “sob patrão”8. De acordo com os dados expostos nos registros literários de Carolina, é possível compreender que ela esteve inserida no Tipo A, na categoria “rural sob patrão”. Nos períodos em que registra a fixação de sua família em moradias rurais na condição de colonos no interior do Estado de Minas Gerais.

Nos estudos de Lélia temos o detalhamento de uma outra categoria de trabalhadores que seriam o

Tipo B: constituído por mão de obra livre que fracassa, total ou parcialmente, na tentativa de se incorporar de forma estável no mercado de trabalho. A diferença fundamental, nesse caso, permite distinguir as variedades rural e urbano das formas compreendidas no tipo: o desemprego aberto, a ocupação “refúgio” em serviços puros, o trabalho ocasional, o trabalho intermitente e o trabalho por temporada (Gonzalez, 2020, p. 30).

Essa categoria pode ser identificada nas condições de trabalho descritas por Carolina, especialmente, no que se refere às inserções de trabalho nas áreas urbanas, em particular, o período em que viveu em São Paulo. Ao longo de todo o livro Quarto de Despejo, ela narra sua trajetória no trabalho informal como catadora de materiais recicláveis e demais ocupações informais, na tentativa de garantir o sustento de si e dos filhos: “Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta” (Jesus, 2014a, p. 12).

A desilusão com São Paulo, bem como a evidente desigualdade social e racial escancaradas pelo espaço urbano, eram registrados pela autora:

Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem-vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas (Jesus, 2014b, p. 85).

Os escritos de Carolina são retratos fiéis da grande artista que foi, com poesias e composições musicais que celebram a diversidade de sua escrita e capacidade de expressão linguística e literária. Conforme anunciamos anteriormente, esses escritos também a colocavam em uma posição atípica em relação a outras mulheres negras naquele mesmo período. De acordo com o Censo Demográfico do Estado de São Paulo de 1950 – década em que fora escrito o Quarto de Despejo, o número total de mulheres alfabetizadas entre 30 a 39 anos de idade (idade de Carolina na época) era de 585.352. Dentre esse grupo, 296.321 eram brancas, 16.219 pretas, 9.715 amarelas, 6.199 pardas e 467 sem declaração de cor9.

No entanto, conforme temos demonstrado, aquele lugar de literata - considerado incomum para uma mulher negra - não assegurou à Carolina ascensão social imediata. Mas, por algum tempo, garantiu os meios necessários para utilizar-se da escrita enquanto uma forma de erguer a voz, promovendo-lhe ferramentas para produzir resistência diante das desigualdades sociais e raciais, as quais lhes eram impostas. Agora ela não mais precisaria ter sua história contada por terceiros, à mercê de estereótipos e silenciamentos10.

As críticas sociais elaboradas no projeto literário carolineano consideradas formas de resistência, estiveram presentes em todos os seus escritos – muitos deles obtiveram menos destaque, justamente por conta do seu teor combativo. Trechos dos poemas “Negros” evidenciam que Carolina utilizava a escrita enquanto uma ferramenta de luta: “Negro tem todos os defeitos/ Sofre sempre humilhação/ Se reclama o seu direito,/ Nunca o negro tem razão/ O negro não tem defeito/ Tem qualidade e valor/ O Judas não era preto/ E vendeu nosso senhor” (Jesus, 2019, p. 26).

Uma reportagem tratando da “Poetisa Negra”, publicada em 1940, apresentou a transcrição do poema O Colono e o Fazendeiro, explicitando que desde sua juventude Carolina buscava mostrar sua produção artística, com ênfase aos seus escritos poéticos. Neste poema, Carolina aborda múltiplas expressões da Questão Social e as diversas formas de sua materialização na vida dos sujeitos sociais:

Diz o brasileiro/ Que acabou a escravidão.../ Mas o colono sua o ano inteiro/ E nunca tem um tostão!/ Se o colono está doente/ É preciso trabalhar!/ Luta o pobre, no sol quente/ E nada tem para guardar.../ Cinco da madrugada:/ Toca o fiscal a corneta/ Despertando o camarada/ Pra ir fazer a colheita./ Chega à roça. O Sol nasce./ Cada um na sua linha/ Suando. E para comer?/ Só feijão e farinha.../ Nunca pode melhorar/ Esta negra situação./ Carne não pode comprar/ Pra não dever pro patrão!/ Fazendeiro ao fim do mês/ Dá um vale de cem réis./ Artigo que custa seis/ Vende ao colono por dez/ Colono não tem futuro/ Trabalha todo o dia./ O pobre não tem seguro/ E nem aposentadoria.../ Ele perde a mocidade/ A vida inteira no mato/ E não tem sociedade!/ Onde está o seu sindicato?/ Ele passa o ano inteiro/ Trabalhando. Que ‘grandeza’.../ Enriquece o fazendeiro/ E termina na pobreza! (Jesus, 2019, p. 50).

As relações de trabalho no pós-escravatura do início do século XX estão em evidência no poema A empregada. Nesse texto, pode-se observar a ênfase em elementos da perspectiva hegemônica sobre os pobres no Brasil e o inconformismo com as condições de trabalho degradadas:

Quando eu era empregada/ Sofri tanta humilhação./ Às vezes, eu tinha vontade/ De dar uma surra no meu patrão/ Era um patrão malcriado/ Não deixava eu parar um segundo/ E o diabo ainda falava/ De mim para todo mundo./ Obrigava eu levantar/ A uma da madrugada/ E ainda andava dizendo/ Esta malandra não faz nada. (Jesus, 2019, p. 39).

Carolina também se pergunta do papel das pessoas da “elite”:

[...] elas são filantropicas nas palavras, mas não agem. São falastronas, papagaios noturnos. Quando avistam-me, é que recordam que ha favelas no Brasil. Quando eu morrer, o problema será olvidado como decreto de político que vão para as gavêtas. Será que surge outras Carolinas? Vamos ver! (Jesus, 2021, p. 99).

No livro Quarto de Despejo há muitas passagens nas quais Carolina aborda os Serviços Sociais, instituições filantrópicas e, sobretudo, estratégias de apoio mútuo entre os favelados nas situações em que as expressões da Questão Social se radicalizavam, especialmente, quando a fome era profunda e enfrentada com os parcos recursos disponíveis entre a vizinhança e as iniciativas sociais das igrejas e dos políticos.

No romance Pedaços da Fome11 Carolina utiliza a personagem Maria Clara para apresentar a questão da fome como um problema político, mas também demarca o privilégio da branquidade da personagem (Pureza, 2017). Há um apelo moral aos “nossos políticos”, ao mesmo tempo que recorre ao seu lugar de origem de classe para apresentar soluções:

– Será que os nossos políticos não têm vergonha de ver tantos pobres circulando pelas ruas? [...] Quando eu era rica não me preocupava muito com os pobres, mas agora estou nesse núcleo.

[...] Se eu voltar a ser rica um dia, juro que hei de ser filantrópica. Eu nunca dei uma esmola a um pobre.

Se os ricos conhecessem a vida sacrificada que os pobres levam, havia de obrigar seus filhos a estudar e aprender uma profissão (Jesus, 1963, p.154-155).

Para Ianni (1989, p.147), Questão Social é um processo marcado por “desigualdades e antagonismos de significação estrutural”. De um lado, há a prosperidade do capital, do outro e como resultado: o desemprego, os subempregos, a fome, a ausência de habitações dignas e o pauperismo. É em resposta a tais condições que surgem os movimentos e manifestações sociais (Ianni, 1989).

Todos esses elementos estão presentes, em maior ou menor medida, nos escritos e na trajetória de Carolina Maria de Jesus. Assim como, as suas manifestações contra desigualdades sociais – próprias do capitalismo. O que nos faz defender tais produções como estratégias de resistência e ao mesmo tempo, reivindicá-las enquanto ferramentas fundamentais na análise da Questão Social brasileira.

Na obra Casa de Alvenaria (2021), mais uma vez no formato de um diário, a autora registra o momento de transição e suposta ascensão social, já que havia deixado a favela, deslocando-se para a cidade de Osasco. A mudança e os novos escritos, agora partindo de um outro lugar, não descaracterizaram o tom de denúncia em relação às desigualdades sociais e raciais presentes em seu cotidiano e no entorno:

Fiz uma sôpa e preparei para ir a cidade. Fui de ônibus. Fico horrorisada vendo o sacrifício do operário para pegar condução de manhã para ir trabalhar. Uns vão de pé, outros vão sentados. Penso, quando eles chegam ao trabalho já estão exaustos. (...) Uns ja tem casa própria, outros estão pagando prestações, tem que comprar alimentos e roupas para a família, a vida de um operario é dura, com D maiúsculo (Jesus, 2021, p. 48).

Os posicionamentos da autora seriam, mais tarde, no curso da ditadura civil-militar, considerados subversivos. Desse modo, as obras de Carolina foram censuradas durante o regime, e ela foi apelidada de “língua de fogo”, conforme indicam as pesquisas de Rocha (2019). Naquele período todas as obras, produções e sujeitos que oferecessem algum risco ao modelo de dominação vigente, não passariam pelo crivo repressor dos militares. De acordo com o autor, nesse contexto, os escritos carolineanos representariam ameaças a partir de duas vias: a primeira como rebelde e a segunda, como uma evidência da possibilidade de ascensão social.

O processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro promoveu profundas desigualdades – refletidas em maior medida nas vidas da população negra. Nesse ínterim, junto às reações de trabalhadores e às desigualdades, está situada a Questão Social. Tais eventos e reações de contestação em resposta a essa lógica estão a todo tempo presentes nas obras e vivência de Carolina. A autora, que encontrou nos escritos possibilidades de expressão e existência para além do destino que lhe fora socialmente imposto, produzia a partir daí formas de resistência, visibilidade e arte.

Embora não seja o foco de aprofundamento desta análise, consideramos oportuno demarcar que não são só os estudos literários e acadêmicos que ganharam ou podem ganhar com as contribuições de Carolina Maria de Jesus. Há nessas produções uma característica muito singular e indispensável aos intelectuais e movimentos sociais contemporâneos, que é a capacidade de aproximação e diálogo com a classe trabalhadora. A compreensão da Questão Social brasileira em sua totalidade é indispensável, mas o diálogo e mudanças decorrentes de tais análises também são fundamentais a um processo de transformação societário.

Os mesmos motivos que faziam com que os escritos carolineanos fossem considerados como subversivos e a autora fosse apelidada de “língua de fogo”, o tornaram fonte de inspiração e admiração para tantos outros sujeitos negros e pobres a partir de exposições das desigualdades sociais e raciais presentes no cotidiano, narradas por alguém que as viveu. Nos registros da Casa de Alvenaria – quando Carolina já ocupava um lugar de autora e artista, sua existência representava um exemplo e incentivo:

O guarda e o seu colega queriam conhecer-me, o guarda disse-me que está estudando e o seu colega é nortista do estado de Alagoas, queria umas fotografias para levar ao seu estado para apresentar ao estudantes de Alagoas para estimula- ao estudo. Que eu sou um exemplo para o povo do Brasil que não querem estudar. Eu com dois anos de escola passei a minha vida ao lado dos livros. Disse-me que é casado e está estudando lêi, pretende formar-se (Jesus, 2021, p. 64)

Por outro lado, aqueles que estavam preocupados com a manutenção do status quo jamais aceitaram genuinamente a autora, tampouco seus escritos. A exclusão social e discriminações raciais antes percebidas por Carolina no Quarto de Despejo12 da cidade ainda eram parte do cotidiano na sala de visitas da Casa de Alvenaria. A autora descreve com frequência olhares maldosos, publicações tendenciosas e estereotipadas, maus tratos a si e aos filhos em razão da origem social e racial.

Tais elementos escancaram fatores próprios da formação social brasileira. Mesmo após a abolição, a população negra permaneceu excluída não apenas dos postos de trabalhos formais, mas dos espaços convencionais de convívio da vida social. A presença de Carolina, uma mulher negra, em meio a intelectualidade branca, majoritariamente masculina e entre as elites de forma geral, quando não era vista com excentricidade, o era com estranheza.

Sodré (2023) classifica essa relação como “forma social escravista”, na qual as elites brasileiras buscam preservar privilégios e posições mantidas desde o período escravocrata, adaptando tal forma às transformações do capital. O autor sinaliza que esse modelo produz impactos na sociedade e no imaginário dos sujeitos brancos e não brancos.

A estranheza com a qual Carolina era percebida e a brutalidade como fora tratada em alguns dos espaços em que esteve após a publicação do primeiro livro, também oferecem indícios marcantes da Questão Social em sua interlocução com a questão racial – já amplamente discutidas aqui, e que Sodré (2023) denominará como a reprodução da forma social escravista no cotidiano da classe trabalhadora negra brasileira. Ademais, há muita riqueza de detalhes e possibilidades de análises nas obras de Carolina, as quais não poderão ser aqui esgotadas.

No limiar desta argumentação, julgamos prudente demarcar que mesmo após a transposição de muitos limites impostos às mulheres negras, a leitura e publicação do tão sonhado diário13, à Carolina foi imposto novamente um lugar de silenciamento e apagamento, o qual atribuímos aos padrões sociais, de gênero e raciais, vigentes na sociedade brasileira, que seguem devendo ser alvos constantes de tensionamentos.

Ao longo das últimas décadas, os estudos e pesquisas em torno da obra de Carolina têm ganhado novamente destaque14. Nosso intuito é contribuir ativamente nesse processo, buscando adensar as produções que dialogam com a autora e suas contribuições no campo das ciências sociais e, especificamente aqui, olhar para os elementos e registros cotidianos presentes em suas produções que permitam a ampliação das análises em torno da Questão Social no Brasil.

Considerações finais

Ao longo deste ensaio buscamos enfatizar a trajetória e as diversas produções de Carolina Maria Jesus, enquanto ferramentas essenciais na compreensão da Questão Social brasileira. Para isso, destacamos o processo histórico de silenciamento e invisibilização imposto às mulheres, com ênfase nas mulheres negras.

A autora por nós analisada também foi vítima desse processo de silenciamento, mas pôde, a partir de sua escrita e entre muitas tentativas de restrição, durante algum tempo representar uma exceção. Demonstramos o processo de tomada de espaço no mundo literário, realizado por Carolina em meio a uma série de desafios, e a forma como utilizou desse recurso enquanto ferramenta de manifestação e luta contra desigualdades e opressões impostas aos sujeitos pobres e negros.

A partir dessa análise, bem como da compreensão sobre a Questão Social no cenário em que a autora esteve inserida, defendemos ao longo do trabalho sobre a necessária articulação entre as produções da autora e as análises em torno da Questão Social. Entendendo, assim, que a perspectiva por ela apresentada deve ser valorizada para a compreensão da Questão Social no Brasil, justamente por constituir uma narrativa não hegemônica nos estudos sobre o tema – porque é oriunda do seio da classe trabalhadora. Na análise desse elemento, outro aspecto que se mostrou fundamental, devendo ser pensado de maneira articulada, é a Questão Racial, a qual aparece com frequência nos escritos carolineanos, conforme demonstramos em trechos de livros publicados e poemas.

Embora Carolina Maria de Jesus tenha alcançado espaços de prestígio social, nunca foi verdadeiramente aceita neles. Sua presença, como mulher negra, favelada e autora de escritos subversivos, demarcou, direta ou indiretamente, a possibilidade de tensionamento das relações sociais e raciais. Esse fator permite evidenciar também outro elemento constitutivo da Questão Social brasileira: a contraposição da classe trabalhadora às opressões e às relações de exploração e desigualdades. Assim, a escrita de Carolina, representa um testemunho da não passividade desses sujeitos diante do cenário que se impunha, revelando manifestações sociais em sua diversidade.

Demarcamos que, após algum período de sucesso, a autora foi novamente exposta a um processo de apagamento. Ao reivindicarmos as produções da autora como elementos fundamentais à análise da Questão Social brasileira, reivindicamos também o seu lugar como literata e artista plural – o que lhe foi deliberadamente negado durante décadas. Ao mesmo tempo, caminhamos na contramão de uma produção de conhecimento hegemônica, que nega às contribuições oriundas das classes trabalhadoras, neste caso, das mulheres negras trabalhadoras, o reconhecimento devido. Buscamos contribuir com os movimentos recentes que têm feito crescer os estudos e pesquisas em torno da produção de Carolina, visando demonstrar a riqueza de sua obra nas mais diversas áreas do conhecimento.

Referências

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Notas

1 Assistente Social e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa sobre Fundamentos do Serviço Social e Relações Étnico-Raciais (REFASS) da UFF Campus Rio das Ostras. Orcid nº 0000-0003-4577-386X. E-mail: rebecasilvar@gmail.com.
2 Professora adjunta do curso de graduação em Serviço Social da Universidade Federal Fluminense - Campus Rio das Ostras. Integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB). Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Fundamentos do Serviço Social e Relações Étnico-Raciais (REFASS). Orcid nº 0000-0002-9119-8168. E-mail: claricecarvalho@id.uff.br
3 Houve um questionamento bem direto realizado pela pesquisadora, por sua importância, o transcrevemos juntamente com a resposta de Audálio: “RF: O senhor chegou a entregar cadernos novos, canetas ou lápis para ela escrever? / AD: Não, ela nunca me pediu, e, curiosamente, nem me ocorreu isso. Não cheguei a fazer isso.” (Fernandez, 2017, p. 308). Sobre outras iniciativas artísticas de Carolina: “RF: O senhor chegou a ver as três fantasias de carnaval confeccionadas por Carolina de Jesus? AD: Eu vi uma que era um vestido de lâmpadas. Ela chamava de vestido elétrico. Eu acho que isso revelava certas alucinações. Um vestido elétrico é uma coisa assim inimaginável.” (Fernandez, 2017, p. 311).
4 A bem da verdade Aureli expressou em sua matéria jornalística muitos preconceitos correntes nos idos de 1940: “É bom que os leitores saibam: os jornalistas têm verdadeiro pavor às mulheres metidas a literatas, poetisas, declamadoras! Portanto, à voz de que uma fazedora de versos estava à espera de ser recebida produziu-se um vácuo imediato.” O machismo e o sexismo extrapolam: “Dois olhos rutilando nas órbitas brancas, duas genuínas jabuticabas irrequietas a nadar no leite dos bulbos. Mais abaixo, dentro de um negror profundo, um sorriso alvar, um traço claro numa noite escura: os dentes níveos numa boca jovem. Em suma, um belo espécime de mulher negra. Boa estatura, elegante mesmo, porte rainha Sabá [...]. Valida Carolina pelo fato dela se mostrar sem traços de “[...] fanfarronice ou gabolice, tão próprias dos pretos pernósticos. Diz tudo com a maior franqueza e ingenuidade”. No texto, Aureli (1940) reforça as características esperadas para uma “boa mulher de cor”: fraqueza e ingenuidade.
5 Neste artigo escolhemos nos referenciar na decisão do Conselho Editorial expresso no texto de Conceição Evaristo e Vera Eunice Outras letras: Tramas e sentidos na escrita de Carolina Maria de Jesus (2021): “[...] a publicação de Casa de Alvenaria precisa trazer toda a engenhosidade de Carolina Maria de Jesus, representada em sua maneira de lidar com as palavras; suas construções frasais; seus modelos clássicos de linguagem, pelos quais a escritora tinha desejos e encantamentos; sua pertença aos lugares de falas populares; seu acento mineiro; seu estilo de pontuação; sua entonação oralizada, que ela intencionava transportar graficamente para o texto, e, por fim, sua fala nos moldes do “pretuguês” - termo cunhado e defendido por Lélia Gonzalez em Racismo e sexismo na cultura brasileira, de 1984, usado para assinalar que a língua falada no Brasil tem forte influência das línguas faladas pelos povos africanos aportados no território brasileiro, em consequência da escravização” (Evaristo & Jesus, 2021, p. 43-14). No entanto, sabemos que não há consenso com relação às interpretações do que seria realmente o desejo de Carolina para seus registros literários. Veja mais em Miranda (2021).
6 Obra que a autora desejava que fosse intitulada “Um Brasil para os brasileiros” ou “Minha Vida”, ganhou esse nome após uma decisão editorial em razão do sucesso da primeira publicação de Carolina: “Quarto Despejo: Diário de uma favelada” (Rocha, 2019). Os manuscritos originais foram entregues por Carolina para publicação à Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge, com o título original de “Um Brasil para Brasileiros”. Veja mais em: Entrevista com Clélia Pisa (Fernandez, 2014).
7 Nelson Werneck Sodré (2023) trata esse elemento como parte da forma social escravista, na qual as elites dominantes trataram de atribuir a figura dos sujeitos negros – outrora responsáveis por todo o trabalho e lucros obtidos no modelo escravista, como incapazes para o trabalho fabril. Segundo o autor, trata-se de uma lógica que ainda opera na sociedade brasileira, a qual consiste em produzir métodos e estratégias diferenciadas – de acordo com o tempo histórico – para “renovar a velha relação entre senhor e escravo” (p.157-156).
8 Ver mais em: Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher (Gonzalez, 2020).
9 Aqui nos inspiramos na pesquisa realizada por Giovanna Xavier (2020) nos arquivos do IBGE, para consultar onde se inseria a trajetória educacional da intelectual, assistente social e militante do movimento negro, Maria de Lourdes Vale do Nascimento. Veja mais em: IBGE. Censo demográfico: 1950. São Paulo: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, População e Habitação, 1955, p. 20 e 24, tabelas 17. (Série Regional, v. XXV, tomo 1): “Pessoas presentes de 5 anos e mais por sexo e grupo de idades segundo a instrução e a cor”.
10 Ao nos referirmos aos silenciamentos, tratamos da ausência de menção da mulher, neste caso específico da mulher negra nos registros biográficos e literários, bem como documentos, no mesmo caminho apontado por Dias (1995). Apesar de compreendermos que os escritos carolineanos foram, por muitas vezes, alvo de silenciamentos – também consideramos primordial demarcar o corajoso movimento da autora de registro de si e do outro ao seu redor, do cotidiano – rompendo, assim, no nível das microrrelações, com um silenciamento histórico imposto à população negra e às mulheres negras.
11 O estudo de Pureza (2017) aborda a relação fome e inventário de alimentos, o que, em nossa análise, explicita como o projeto literário de Carolina Maria de Jesus captura a materialidade das expressões da Questão Social: “Há algo de curioso na narrativa que talvez seja importante destacar, que é justamente o ato de inventariar itens alimentícios, algo tão semelhante ao que faziam os estatísticos da época e que surgia de forma distorcida nas obras de Carolina Maria de Jesus. Em Pedaços da fome, pão, leite, café, manteiga, açúcar, queijo, frutas, verduras, ossos, miúdos, peixes, pirão, sanduíches, arroz, feijão e carne de frango surgem ao longo da narrativa, alguns com maior ou menor ênfase, alguns preparados e outros não. Mas, ao invés de serem um inventário de quantificação específica por meio do qual se poderia entender a evolução dos preços, o que o romance explicita é justamente a importância da alimentação na hora de constituir a fome. Há, sem dúvida, um paradoxo no fato de que abordar a comida seja justamente uma das formas mais explícitas de tratar da fome, – um recurso muito comum em Quarto de despejo, cujo volume de itens era ainda maior (Pureza, 2017, p. 57, grifos nossos).
12 O livro é assim intitulado em alusão à favela, identificada como quarto de despejo da cidade (Jesus, 2014).
13 No livro Casa de Alvenaria (2023), Carolina registra um desencanto com a literatura e com o que seria seu momento de “glória”, a partir das restrições impostas ao sentir-se como “moeda de troca” (p.11) e as limitações impostas a sua escrita.
14 De acordo com a pesquisadora Elena Pajaro Peres, desde 1990, têm crescido os interesses em torno da obra de Carolina Maria de Jesus, especialmente em algumas áreas do conhecimento no âmbito acadêmico. Essas têm buscado produzir aprofundamentos em torno da literatura carolineana em diálogo com estudos sobre a questão étnico-racial, de gênero e demais discussões sobre movimentos sociais (Peres apud. Prado, 2021).

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