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Siete Instantes (Diana Cardozo, 2008): a militância sob lentes intimistas
Siete Instantes (Diana Cardozo, 2008): the militancy under intimate lens
Siete Instantes (Diana Cardozo, 2008): la militancia bajo lentes intimistas
Revista História : Debates e Tendências (Online), vol. 19, núm. 3, pp. 513-530, 2019
Universidade de Passo Fundo, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História

Dossiê


Recepção: 12 Junho 2019

Aprovação: 07 Julho 2019

Publicado: 02 Setembro 2019

DOI: https://doi.org/10.5335/hdtv.3n.19.9871

Resumo: Nesse artigo analisamos o documentário uruguaio-mexicano Siete Instantes (Diana Cardozo, 2008), realizado a partir de entrevistas a ex-militantes políticos uruguaios, especialmente mulheres, que relatam suas experiências no contexto autoritário e ditatorial daquele país. Procuramos ressaltar seu caráter de documento histórico, focando o momento político de sua produção, no qual eclodem políticas de memórias. Levantamos ainda algumas questões sobre a especificidade do olhar feminino que constrói por meio dos elementos fílmicos e o diálogo que estabelece com alguns debates presentes na historiografia sobre o período.

Palavras chaves: Cinema uruguaio, Ditadura uruguaia, Memórias de mulheres.

Abstract: In this article we analyze the Uruguayan-Mexican documentary Siete Instantes (Diana Cardozo, 2008), based on interviews with ex-Uruguayan political activists, especially women, who report their experiences in the authoritarian and dictatorial context of that country. We seek to emphasize its character as a historical document, focusing on the political moment of its production, in which politics of memories hatch. We also raise some questions about the specificity of the female vision that builds through the film elements and the dialogue that establishes with some debates present in the historiography about the period.

Keywords: Uruguayan cinema, Uruguayan dictatorship, Women's memories.

Resumen: En ese artículo analizamos el documental uruguayo-mexicano Siete Instantes (Diana Cardozo, 2008), realizado a partir de entrevistas a ex militantes políticos uruguayos, especialmente mujeres, que relatan sus experiencias en el contexto autoritario y dictatorial de aquel país. Buscamos resaltar su carácter de documento histórico, enfocando el momento político de su producción, en el que eclosionan políticas de memorias. Levantamos también algunas cuestiones sobre la especificidad de la mirada femenina que construye por medio de los elementos fílmicos y el diálogo que establece con algunos debates presentes en la historiografía sobre el período.

Palabras claves: Cine uruguayo, Dictadura uruguaya, Memórias de mujeres.

Neste artigo propomos fazer uma breve análise do documentário Siete Instantes, filme que registra depoimentos contundentes de ex-militantes tupamaros, principalmente mulheres, que sofreram a repressão durante a ditadura civil-militar uruguaia. Procuramos perceber a obra como um documento histórico que constrói uma dada memória da militância de esquerda no Uruguai e nos permite refletir sobre os efeitos traumáticos da ditadura, o papel dos testemunhos nas batalhas de memórias e o diálogo que o filme estabelece com alguns debates presentes na historiografia período.

Pretendemos apresentar sinteticamente o filme (ainda pouco conhecido no Brasil) e iluminar alguns temas e aspectos ressaltados nos depoimentos, latentes na seleção do material de arquivo e na narrativa proposta pela montagem, de modo a compreender o discurso que a linguagem fílmica constrói, em termos estéticos e ideológicos. Nossa análise procura também perceber o diálogo do filme com a construção de uma dada memória sobre os Tupamaros e com o debate historiográfico voltado à atuação da esquerda armada nesse país.

Siete Instantes é um documentário realizado em esquema de coprodução entre México e Uruguai, por uma diretora uruguaia2, a partir de depoimentos de vários entrevistados, a maioria deles ex-militantes tupamaros que passaram por detenção e sofreram tortura durante a ditadura civil-militar (1973-1985). Os principais entrevistados são cinco mulheres: Adriana Castera, Alba Antúnez, Gloria Echeveste, Lia Maciel, Celi Moraes; e três homens: Samuel Blixen, Abel Barboza “Pancho” e Julio Marenales. Os testemunhos, em geral são precedidos de subtítulos com os nomes dos entrevistados e há diversas inserções textuais, com breves textos explicativos e excertos de documentos de época, que pontuam o que poderíamos identificar como pequenos blocos narrativos, separados por temas.

Dentre os documentos de época citados no filme há principalmente fotografias de manchetes de jornais, imagens audiovisuais de manifestações populares e confrontos policiais (muitas delas televisivas), além de diversos trechos de documentários produzidos em tom de denúncia do “pachecato” (governo autoritário de Pacheco Areco, entre 1967-72) e da ditadura. Ao longo do filme vemos trechos de duas produções documentais icônicas do “cinema de combate” que inspirou a criação da Cinemateca del Tercer Mundo, em Montevidéu, nos anos 1960, por realizadores simpatizantes do Tupamaros (VILLAÇA, 2012): os curtas-metragens Me gustan los Estudiantes (Mario Handler, 1968) e Liber Arce, liberarse (Mario Handler, Mario Jacob, Marcos Blanchero, 1969). Há também cenas de uma filmagem do chamado Cárcel del Pueblo presentes no documentário Tupamaros! (Jan Lindqvist, 1972) e tomadas do momento da libertação dos presos políticos, em 1985, que formam o documentário Trece años y un dia (Jorge Denti, 1985). Há assim, em Siete instantes a revisitação e a revalorização de um repertório visual já conhecido sobre a ditadura uruguaia e que contribui para legitimar a narrativa ali construída. Além desse material de arquivo, há imagens atuais de prisões desativadas (como a fachada de Punta Carretas, presídio transformado em shopping center), transeuntes nas ruas de Montevidéu e outras, tanto em preto e branco como em cores, que procuram demarcar a passagem do tempo de forma lírica, sensação corroborada pela trilha musical instrumental, intimista, que se destaca nos momentos de início e fechamento dos blocos narrativos que integram o filme. Essas imagens também oferecem momentos de “respiro” no encadeamento dos testemunhos e são um recurso comum no documentarismo latino-americano sobre os passados traumáticos3.

Este documentário foi realizado em um contexto de intensa produção de trabalhos acadêmicos e obras artísticas calcados nas memórias sobre a ditadura, no âmbito do governo de Tabaré Vázquez (2005-2010), que marcou a primeira vitória de uma força política de esquerda, a Frente Ampla, nas disputas presidenciais uruguaias. Nesse período, o país assiste um grande impulso da produção cinematográfica, sendo 2008 um ano especialmente produtivo4. Há também a eclosão de políticas de memória5 e, dentre essas políticas, projetos envolvendo particularmente memórias de mulheres6.

O título do filme pode sugerir uma impressão de mosaico, de conjunto de experiências, narrativas ou momentos efêmeros a serem apresentados ao espectador como uma reunião de fragmentos de histórias de vida. Na sinopse que acompanha a ficha técnica, afirma-se que o filme “gira en torno a los momentos de decisión y las encrucijadas personales que conllevan”. A síntese convida, portanto, o espectador a conhecer as decisões assumidas pelos entrevistados em determinados momentos que mudaram sua vida7. A diretora Diana Cardozo enfatiza sua intenção de expor encruzilhadas e impasses que se apresentaram a essas pessoas, nos anos de autoritarismo e ditadura no Uruguai:

El filme recorre desde la ilusión de cambiar el mundo al espanto de la tortura, la delación y la vergüenza. Cuenta un encierro de 13 años y la capacidad de reconstruirse en condiciones límite. A la película le interesa el individuo en rebeldía ante su destino e intenta desentrañar de qué dilemas, de qué tensiones están cargados los momentos que después pasan a ‘la Historia’. Para ello se detiene en las encrucijadas personales, en los conflictos éticos y emocionales. Lo que quiero es que el espectador se haga la pregunta: ¿Y yo qué hubiera hecho? (DE DIOS VALLEJO, 2012, p. 3).

Não são claros os “sete” instantes explícitos no título, e o número não faz referência à quantidade de entrevistados. Esse número pode ter um sentido simbólico, remetendo a ideia das “sete vidas”. Em uma interpretação pessoal, após a decupagem do filme, identificamos sete principais temas que talvez possam ser considerados eixos organizadores dos depoimentos: 1- o engajamento (narrativas sobre as motivações dos militantes sobre sua decisão de se dedicarem à luta armada); 2- as implicações da militância (a reação da família, o envolvimento e o comprometimento dos parentes nos riscos assumidos); 3- as ações que protagonizaram e a experiência inicial da prisão; 4- os efeitos e sofrimentos causados pela tortura, como a delação forçada; 5- as fugas vitoriosas e outros momentos de heroísmo; 6- os dramas da clandestinidade e do isolamento; 7- a reconstrução da vida depois da libertação, balanços pessoais e acertos de contas.

O tom geral é o de rememoração do passado: os entrevistados contam sobre motivações de juventude que os levaram à luta armada, episódios curiosos que revelam algo de despreparo ou ingenuidade naqueles anos, momentos de fraqueza e de hesitação. O filme toca, inclusive, em temas difíceis de ponto de vista moral e humano, quando se trata da história da militância de esquerda, como a questão da delação, o arrependimento ou a decisão pela execução de um colega ou cidadão comum. Se uma parte considerável do filme (cerca de 33 minutos, de um total de 80) é voltada aos relatos sobre a tortura, os sofrimentos na prisão, as duras consequências que incidem sobre as famílias, uma parte maior é dedicada a temáticas menos presentes em documentários sobre a militância: referimo-nos a aspectos mais “pueris” do comportamento de juventude, às impressões sobre como esses jovens pensavam, dúvidas e decisões difíceis que enfrentaram, bem como a descrição de momentos nos quais, a despeito da tragédia individual e coletiva que se vivia, prevaleceu a esperança ou algumas manifestações de solidariedade.

Assim, o documentário se insere num conjunto de filmes que operam com a rememoração do passado ressaltando a subjetividade dos relatos, em um tom mais introspectivo e de viés humanitário. Segundo o historiador Fernando Seliprandy, essa produção, identificada por parte da bibliografia como parte de uma “guinada subjetiva” - terminologia criticada pelo autor, principalmente no tocante ao termo “guinada” - procura evitar a monumentalização da militância e da resistência, buscando fazer uma nova reflexão sobre a experiência histórica vivida pelos sujeitos (SELIPRANDY, 2018, p. 12 -19; 25-30).

Neste filme temos uma maioria feminina de entrevistados, além da presença de uma realizadora, também uruguaia, de uma geração um pouco mais nova que as protagonistas. Diana Cardozo estabelece com suas entrevistadas uma relação de empatia e cumplicidade, mais intensa do que a estabelecida com os entrevistados homens (ainda que esses elementos também estejam presentes na relação com os três militantes). Revela-se assim, de forma intencional ou não, certa identificação de gênero ao focar a resistência feminina. Essa relação favorece a expressão de uma “memória íntima” que realça a “subjetividade reflexiva” (SELIPRANDY, 2018, p. 25-30; 102). Isso não impede que o filme, como veremos, também tangencie questões e temas fulcrais presentes na historiografia, mais amplos, dialogando com seu próprio tempo histórico.

Ainda que não apareça diante das câmeras, a presença de Diana, mesmo fora de campo, é sentida em todo o filme. Em alguns momentos percebemos sua interação com os entrevistados nas expressões faciais destes, no tom das respostas, caracterizando o “modo participativo” definido por Bill Nicholls (2005), quando se observa o envolvimento direto entre cineasta, tema e entrevistados, com frequente utilização de imagens de arquivo. A montagem (assinada por três mulheres), junto com outros elementos da linguagem fílmica, como enquadramento, fotografia e trilha sonora, constrõem uma voz fílmica que é predominantemente feminina.

Podemos considerar a estética do documentário como convencional, uma vez que ele é composto predominantemente por entrevistas realizadas em planos fixos, com o enquadramento frontal e closes nos rostos dos entrevistados. No entanto, se há a predominância desse recurso comum das chamadas “cabeças falantes”, não há, por outro lado, o uso da voz off conduzindo a narração, outro lugar comum dos documentários (SELIPRANDY, 2018, p. 192). Ocupa a função do narrador, promovendo também uma contextualização, o uso de intertítulos explicativos, didáticos, aos quais nos referiremos mais adiante. Assim, em termos formais, o documentário adere a certa tradição, dialogando com o estilo de filmes contemporâneos de temática semelhante, mas procura certa originalidade narrativa e dar ênfase ao protagonismo feminino. Além disso destacamos, na contramão das opções convencionais, a presença de um elemento pouco usual em documentários dessa natureza: o humor, a descontração. Nesse sentido, o filme se vale do humor para criar empatia e para fugir da monumentalização do heroísmo ou da vitimização que permeiam algumas obras testemunhais.

Nos testemunhos, os momentos mais emotivos, dramáticos, coincidem com a abordagem de temas comumente sensíveis às mulheres: filhos (maternidade), relação de cumplicidade e afeto com amigas e familiares. Duas pesquisadoras da militância feminina no Uruguai, Jimena Alonso e Carla Larrobla (2013), reportando-se a Elizabeth Jelin (2002), chamam a atenção para o fato de que é mais comum, no campo da memória da ditadura, mencionar-se mulheres como mães, companheiras e viúvas que buscam seus familiares desaparecidos, sendo menos comum a memória das mulheres “militantes”. Nesse sentido, o filme ilumina sujeitos menos expostos pela filmografia.

No tocante à presença do “feminino” no filme, cabe notar que não há destaque aos relacionamentos amorosos e o tema dos abusos sexuais pelos agentes repressores é abordado en passant. Essa última ausência pode estar vinculada à própria dificuldade de as mulheres falarem publicamente sobre isso.8 Um dos depoimentos compilados pelas pesquisadoras acima mencionadas atesta o peso desse trauma: “(...) Toda la parte de la violencia sexual te rebaja más, la tortura es más digna… increíblemente. Lo sexual es la parte más desagradable contigo misma…” (ALONSO; LARROBLA, 2013, p. 10). Ainda que não seja nosso objetivo fazer uma discussão específica sobre a questão de gênero nas memórias sobre a ditadura, deve-se registrar que diversos trabalhos vem sendo publicados com esse viés, nos últimos anos9. Novos olhares cuidadosos para temáticas que envolvem gênero, nas memórias construídas pelo cinema, certamente poderão contribuir para iluminar aspectos peculiares dessa obra e os matizes da “voz feminina” presente neste e em outros documentários.

Quanto às questões ideológicas evocadas pela narrativa histórica presente no filme, percebemos que a obra participa do debate historiográfico de seu tempo, mobilizando aspectos dos debates sobre o papel das esquerdas no Uruguai10. Por um lado, há o reforço de certa memória coletiva e de um discurso historiográfico que enfatizam o protagonismo dos Tupamaros (e não de militantes de outras tendências, como comunistas ou anarquistas, por exemplo) nas principais ações de resistência política. A seleção de certos documentos históricos e o destaque a determinados fatos corroboram essa ênfase. Por outro lado, consideramos que o filme também dialoga com a chamada “teoria dos dois demônios”, uma tese de que a sociedade havia sido vítima igualmente dos “excessos” da repressão de Estado e da violência da esquerda armada, cuja herança é tema ainda muito debatido pela historiografia sobre o período. (DEMASI, 2004; BOUVET; FERRARO, 2016). Esse diálogo pretende atenuar o julgamento dos militantes de esquerda como um dos “demônios” em questão, pois, inegavelmente, prevalece um olhar humanista aos tupamaros, por meio das confissões de suas dúvidas, seus impulsos, seus sofrimentos e, inclusive, a admissão de certos “erros”, como os chamados “justiçamentos”, as normas muito duras da organização ou o amadorismo de algumas ações. Contudo, ao trazer um episódio sobre a solidariedade de um militar em relação a uma presa política (que detalharemos adiante), percebemos que o filme não se isenta de certa perspectiva conciliatória presente na teoria dos dois demônios. Vejamos mais pormenorizadamente os enfoques propostos pela obra.

O humor nas memórias da militância

O filme começa com reproduções de filmes de época, em branco e preto, por meio das quais acompanhamos o contexto uruguaio de 1970: a Copa Libertadores de América, greves de operários, transmissão televisiva da leitura de um comunicado redigido pelos Tupamaros11. Esse documento é o único elaborado diretamente pelos Tupamaros citado no filme12. São constantes as inserções de intertítulos e pequenos textos que introduzem informações históricas ao espectador e organizam, dessa maneira, uma narrativa histórica e cronológica dos fatos. Tais intertítulos surgem, em geral, sobre um fundo difuso, na forma de frases cujas letras aparecem paulatinamente na tela. À medida que uma nova frase aparece, a anterior vai tendo suas letras apagadas de forma errática. Essa construção sugere, a nosso ver, a efemeridade presente na idéia dos “instantes”, a efemeridade da escrita da história, e talvez, um previsível apagamento da memória. Esse tratamento gráfico contrasta com a objetividade das frases curtas, que procuram ressaltar informações precisas e factuais.13 Essa combinação mescla, portanto, a intenção de objetividade de um relato histórico que se pretende propositivo, claro, com a sugestão de sua volatilidade por meio da ação do tempo

Adriana e Lía são as primeiras personagens que aparecem no documentário, e a conhecemos juntas, em uma situação de descontração e cumplicidade, na qual rememoram o momento em que se conheceram, em 1968, quando ainda eram estudantes. Comentam um episódio prosaico, logo que se conheceram: abordaram marinheiros estrangeiros no porto, sob o pretexto de praticar italiano, língua que aprendiam na escola. Dão alegres risadas ao rememorarem suas “travessuras”. A sequência se inicia em preto e branco, com o enquadramento que oscila entre plano americano e o close em meio a uma “entrevista deambulante”, na qual o entrevistado se locomove (SELIPRANDY, 2018, p. 88). As imagens logo ganham cores enquanto as duas caminham e conversam em uma área verde, possivelmente no Parque Rodó, ao qual fazem referência ao contarem de um passeio que fizeram com os marinheiros,

Esse início do filme apela à relação de empatia e cumplicidade entre espectador e personagens. Ambas estão muito à vontade, de braços dados, leveza que destoa do caráter dramático da maioria dos documentários sobre essa temática. Imediatamente após essa breve sequência (de duração de cerca de 2 minutos), cada uma, individualmente e em espaços fechados, narram como pensavam aos 16 anos, quais haviam sido suas motivações para integrar o Movimiento de Liberación Nacional- Tupamaros (MLN-T). A montagem paralela alterna a fala de uma e de outra, sempre enquadradas em primeiro plano, como se a segunda completasse o raciocínio de primeira. Ambas ressaltam que tinham a convicção de que aquela seria uma curta etapa em suas vidas, após a qual retomariam a “normalidade”: estudariam, teriam filhos, profissão, etc. A terceira entrevistada, Alba, surge aos 4 minutos do filme, em clima parecido ao dos depoimentos intimistas de Adriana e Lía. Sentada à mesa de um café, Alba narra como aos 18 anos também pensava que os sacrifícios impostos pela militância seriam muito breves. Todas são assim apresentadas como “pessoas comuns”, jovens que um dia haviam sido tomadas pela utopia.

O deslumbramento da juventude pela militância, permeado de ingenuidade e romantismo revolucionário é uma das problematizações construídas pelo documentário. O tema aparece em vários momentos e destacamos um, aos 20 minutos do filme, quando Alba conta, em tom de humor, como ficou triste quando soube que sairia logo da prisão, quando foi detida pela primeira vez (e foi informada que seus companheiros estavam organizando uma fuga), num contexto em que lá estavam, segundo sabemos por Adriana, suas “ídolas”: as militantes tupamaras “monstros” (termo que utilizam carinhosamente) como Lucia Topolansky, Jessie Macchi, Alicia Rey Morales14. Diz Alba: “Pensei [ao receber a notícia da fuga]: ai que pena, que pouco tempo para estar.... [risos] Poderia ter sido um pouquinho depois pois eu tinha chegado recentemente (...) [E completa, rindo:] Isso não faz sentido!”

Interessa-nos aqui, para além da reiteração da auto-imagem de jovens encantadas com seu próprio protagonismo, como o humor propicia ao espectador o relaxamento da tensão imposta pelos momentos dramáticos, e a percepção dessas ex-militantes sob uma aura de leveza, uma vez que elas, ao rememorar suas histórias, riem de si mesmas. O humor reaparece também em um relato sobre fuga, em que uma delas (Adriana) fica entalada no túnel subterrâneo por causa do traseiro grande. Alba se diverte contando como um companheiro instruía a “entalada” a mover o traseiro para conseguir passar, enquanto ela esperava sua vez de passar. Nesse bloco narrativo, cenas de época, supostamente de televisão, nos remetem a imagens dos interiores de celas femininas após a fuga: a câmera faz um breve “inventário” mostrando as escovas de dente, as paredes (com alguns pôsteres, enfeites singelos e fotos coladas), os cabides com roupas penduradas e as camas das detentas. Todo esse “clima” aproxima cada vez mais o espectador das entrevistadas, sob lentes intimistas.

O heroísmo em perspectiva

Em outra sequência, Adriana procura fazer um balanço crítico das ações dos Tupamaros. Em entrevista realizada dentro de uma tubulação de águas, em referência ao esquema usado na fuga relatada acima, avalia:

Isso deslumbrava. Diziam: olha o que os Tupas fizeram desta vez . Era como um filme de cowboy. Isso não era o que nós buscávamos. Houve um erro aí também, pensar que era isso que nós buscávamos. Muita gente, que depois nos relatou, se sentia deslumbrada. Mas não se sentia comprometida e nem sequer entendia o que nós estávamos tentando fazer. Esse momento tem muita coisa boa, mas muitas coisas que nos levavam a nos confundir... [como] pensar que toda essa energia bastava, para fazer uma revolução [00:28:01].

Em perspectiva semelhante, outro entrevistado, Samuel Blixen narra uma ação provocativa dos Tupamaros ao abordarem policias de Montevidéu todas as sextas-feiras com o objetivo de surpreendê-los, desarmá-los e, dessa forma, desmoralizá-los . Numa dessas ações, conta que ele e um companheiro, disfarçados de entregadores de flores, entraram na casa de um policial mas este logo desconfiou, os encurralou facilmente fechando a porta e atirou em seu amigo. Samuel ressalta, por um lado, a capacidade do pessoal da “inteligência” da organização ao conseguir uma lista de todos os nomes e endereços dos policiais da cidade, mas enfatiza, por outro, a falta de tática, planejamento, resultando em certo improviso e excesso de autoconfiança que acabavam dando o tom de muitas ações. Conclui: “Muitas coisas eram improvisadas. Tudo isso levou a uma falsa concepção de que você podia fazer a guerra com esperteza, habilidade (“ingenio”). E a guerra se faz com tiros” [00:08:52].

Nesse sentido, aos 35 minutos do filme, o depoimento de Gloria sobre a execução, pelos Tupamaros, de um cidadão que sem querer descobriu um importante esconderijo, pondo em risco a segurança da organização, ilumina um tema controverso na história das esquerdas. A questão da morte de inocentes nas ações guerrilheiras foi usada, pelos militares, para embasar a “teoria dos dois demônios” no fim da ditadura uruguaia, ao se pretender mostrar os efeitos nocivos da violência dos guerrilheiros sobre a sociedade. Gloria não “doura a pílula” e conta que votou favoravelmente à execução do camponês que, acidentalmente, se aproximou do esconderijo denominado El Caraguatá, que era também uma espécie de hospital improvisado e lugar de armazenamento de armas e munições. Sem recursos para enviar o camponês ao exterior (alternativa inicialmente cogitada), em um momento em que diversos militantes precisavam ser retirados com urgência do país, o assassinato desse individuo é tratado abertamente por Gloria, com muito pesar mas como algo inevitável naquelas circunstâncias históricas.

Essas sequências ilustram a disposição dos entrevistados em assumir certo distanciamento crítico e rever os erros táticos e posturas assumidas no passado. Junto com os momentos de humor, vemos que essas cenas contribuem para aproximar o filme da disposição mais distanciada assumida pela historiografia que busca compreender os imaginários e a cultura política vigente (DE GIORGI, 2011).

O documentário, mesmo repassando os feitos notórios da historia dos Tupamaros, opta por não evidenciar certos acontecimentos, como a Proclama de Paysandú (firmada pelos Tupamaros em janeiro de 1972) ou ações importantes da história da organização anteriores a 1970, caso da tomada de Pando, em 196915. Busca ajustar o foco a uma quase “micro-história” do movimento, ou melhor, a história dessa militância contada a partir de perspectivas pessoais, nas quais cabem tanto feitos heróicos como autocríticas e balanços. Por meio da maioria dos relatos o espectador toma contato com o impressionismo dos balanços individuais, porém, os documentos de época, os intertítulos e alguns depoimentos reforçam o heroísmo da resistência tupamara.

Esse heroísmo também é latente nos depoimentos sobre as duas grandes fugas bem sucedidas (a das 38 presas, em 30 de julho de 1971, e a dos 111 presos, que estavam no presídio de Punta Carretas, cinco semanas depois, em 6 de setembro de 1971). As duas fugas são descritas em sequência, com riqueza de detalhes, e ocupam cerca de 9 minutos do documentário16. O entrevistado, Julio Marenales, conta sobre sua participação na fuga de Punta Carretas, e o processo de escavação do túnel ao longo de 23 dias. Destaca a tensão provocada por um erro de cálculo na saída do túnel e a alegria ao sair. Conta ainda sobre a relação cordial com as moradoras da casa usada para a saída do túnel, e a orientação que deram a elas, após conseguirem escapar, de dizerem aos policiais que haviam sido maltratadas e forçadas àquilo, para evitar que as acusassem de terem sido cúmplices (ainda que efetivamente não houvessem sido). O depoimento de Julio mostra o cuidado no tratamento dado às pessoas que, forçosamente, foram envolvidas na ação.

Outro bloco importante do filme é o dedicado ao Cárcel del pueblo (Cárcere do povo), prisão clandestina criada pelos Tupamaros assim apresentada textualmente no filme: “O Cárcere do povo foi um dos últimos bastiões a cair nas mãos do exército. Nesse lugar viviam quatro guardas e dois sequestrados. Frick Davies: banqueiro e ex-ministro da Pecuária, sequestrado há um ano. Ulyses Pereyra Reverbel: conselheiro presidencial, ficou cativo um ano e meio” (00:39).

Segundo Carlos Malaguti, esse tipo de prisão foi único entre os grupos de luta armada na América Latina, e sua instauração é reveladora da vontade do grupo de construir uma ideia de que estavam “fazendo justiça” e promovendo “julgamentos justos”. A prisão existiu entre novembro de 1971 e maio de 1972. Além do efeito simbólico que produzia a existência de uma espécie de “poder paralelo” tupamaro, as vidas dos sequestrados era um trunfo importante para se a negociação com o governo, no tocante à libertação de companheiros detidos. As cenas do filme (focando principalmente nas celas) foram realizadas em 1972 pelo cineasta Mario Handler, ao colaborar (então anonimamente) com a realização do documentário Tupamaros! , do cineasta sueco Jan Lindqvist. Essas talvez sejam as únicas cenas desse local, e já foram utilizadas em outros documentários, caso de Decile a Mario que no vuelva (Mario Handler, 2007) e Cinemateca del Tercer Mundo (Lucia Jacob, 2011) (VILLAÇA, 2015).

Acompanhamos o depoimento de um militante que atuou como guarda dos prisioneiros, Pancho (apelido de Abel Barboza), que acabou se tornando amigo do seqüestrado a quem vigiava: o embaixador inglês Geoffrey Jackson, detido no Cárcere entre janeiro e setembro de 1971. Pancho conta que esteve disposto a morrer com ele, uma vez que teria que matá-lo se ele reagisse em algum momento de combate ou invasão, mas, que se mataria na sequência.17 O relato de Pancho ressalta a relação de cumplicidade que se estabeleceu entre os dois e a “responsabilidade moral” que sentia ao ter sua vida nas mãos. Seu depoimento desloca uma possível condenação moral do espectador sobre o ato de seqüestro para a constatação de que havia uma ética e, inclusive, uma postura humanista na atuação dos militantes dentro do Cárcere do povo.

Ao final desse bloco, que também traz depoimentos de Adriana, surge na tela a frase “Em 1972, os tupamaros são derrotados” (00:45). O reconhecimento da derrota e sua datação, em consonância com a historiografia mais recente18, contribui para acentuar que houve um lado reprimido, sendo este mais digno que o do opositor e orientado por valores nobres, como demonstraram os depoimentos de Pancho e Julio.

Memórias do cárcere: tortura, sofrimento, solidariedade

Aos 6 minutos do filme, enquanto Gloria Echeveste conta que quando se tornou tupamara tinha um casal de filhos pequenos (uma menina de 7 e um garoto de 12 anos) e que, a despeito da opinião de seus companheiros de organização, preferiu que eles participassem de sua vida militante, vemos cenas de filmes caseiros, nas quais os filhos aparecem nadando, felizes, ou posando descontraídos para a câmera, junto a um automóvel da família. Essas cenas serão contrastadas por passagens dramáticas de seus depoimentos orais, como o momento em que os torturadores, ao fim de uma sessão, jogam seu filho a seus pés, sem que ela, pendurada, pudesse tocá-lo. De modo semelhante, Adriana conta sua angústia quando, na prisão, soube que sua mãe também havido sido presa (junto ao pai e seus dois irmãos) após alguém ter delatado, de dentro do presídio (quartel Florida), que sua mãe era o “contato” das presas com os militantes da organização ainda livres. A suspeita de que a mãe pudesse desconfiar que a delação havia partido da própria filha (coisa que não aconteceu), a atormentou profundamente, fazendo-lhe sofrer mais do que a prisão propriamente dita, conforme seu relato. Com essa abordagem, o filme realça a força da tortura psicológica, por meio inclusive da dúvida e da culpa, salientando a dor advinda não apenas dos castigos físicos mas também de todo o modus operandi característico do Terror de Estado (PADRÓS, 2005 e 2013).

O que poderíamos chamar de um clímax dramático do documentário é outro depoimento sobre família, envolvendo a relação de Alba com a avó19. Em seu relato, que dura cerca de 4 minutos, um tempo grande se comparado aos demais, Alba nos conta como sua avó de 88 anos, ao visitá-la na prisão no dia de seu aniversário de 22 anos tentou convencer o guarda (de forma ingênua, mas decidida) a deixá-la trocar de lugar com ela, já que a neta ainda precisava viver. A riqueza de detalhes com que narra esse episódio da visita, descrevendo a roupa, o cabelo, os adereços da avó, as atitudes, suas dúvidas em relação ao que esta sabia sobre sua prisão, o momento da despedida, perfazem um momento muito lírico do documentário, coroado pela densidade da descrição quase “literária”. Alba revela a atenção de um olhar feminino nos detalhes mínimos do “figurino” da avó: o laço do vestido, os pequenos saltos dos sapatos, a cor exata do cabelo, bem como sua mise-en-scène diante do guarda.

Esse dado confirma uma percepção sobre o relato feminino identificada em estudos sobre o tema. Ao tratar do projeto “Memória para armar” que, a partir de 2000, compilou depoimentos de ex-presas políticas, a ex-tupamara Isabel Trivellli faz o seguinte balanço: “confirmamos que las mujeres contamos distinto. El relato de los hechos se alimenta de lo vivencial, lo cotidiano. Las mujeres recordamos más los detalles, hablamos de las relaciones personales, tenemos menos reparos en mencionar dudas, culpas o miedos” (ALONSO; LARROBLA, 2013, p. 12).

É de Alba outro depoimento tocante, em que conta sua rotina como uma “refém tupamara” na solitária, e a desumanidade de sua condição: não podia falar com ninguém, dormia acorrentada, ficava restrita ao espaço de um cubículo sem banheiro, e era conduzida sempre encapuzada por um guarda que a fazia correr e se bater contra os obstáculos do caminho. Narra o gesto solidário de um sargento que, apiedado de sua situação enlouquecedora, quebrou o protocolo e lhe arrumou uma bolinha para que se ocupasse jogando, sob sua autorização, quando estava no comando. Conta como um dia jogou com o próprio sargento e o quanto essa bolinha mudou sua rotina, pois lhe dava alguma distração: emocionada, agradece ao sargento, esperando que, caso ele não venha a assistir o documentário, alguém lhe possa fazer chegar seu agradecimento. Esse momento expõe um comportamento mais “humano” por parte de alguns agentes repressores e, nesse sentido, também atenua a visão de que esses agentes configuram um dos “demônios”, como comentamos anteriormente.

O indizível e o não dito: considerações finais

Há alternância entre relatos longos, detalhados, com outros mais breves e duros, nos quais a dificuldade de “se falar sobre” se evidencia. Em uma das entrevistas feitas à Adriana, por exemplo, justamente enquanto esta revela que não suportou a tortura e delatou seus companheiros, ela percebe que sua filha de 13 anos, Florência, havia chegado em casa e, provavelmente, escutava o relato de outro cômodo. A garota não aparece em cena, mas vemos a reação tensa da entrevistada, que faz uma pausa e chama pela filha. Diz em seguida: “Se vai ficar, fique, mas fique quietinha”. A diretora, fora de campo, pergunta à Adriana: “Não te incomoda continuar?”, ao que ela responde negativamente, balançando a cabeça, e depois de um trago no cigarro, prossegue o relato.20 Adriana confessa sua ingenuidade ao acreditar que, delatando, deixariam de interrogá-la . Frisa que, ao delatar, pensava que seu terror diminuiria, coisa que não aconteceu. Ao medo se somou, segundo relata, o peso da vergonha por não ter “agüentado” e entregado seus amigos. Termina com a frase: “Você sente muita insegurança acerca de si mesmo..., “es jodido”, “es mucho jodido....”, e silencia. A câmera ainda fita seu rosto alguns segundo, reforçando o peso dramático desse silêncio e do que é indizível.

Nessa mesma chave temos o depoimento que encerra o filme: Gloria conta que, passados muitos anos de sua prisão, o sujeito que a torturou um dia apareceu em sua chácara, no meio de um grupo de tosadores de ovelha, contratados para esse trabalho. Sem qualquer constrangimento, o sujeito a reconheceu e a cumprimentou normalmente, perguntou por sua filha, enquanto ela demorava minutos para lembrar de quem se tratava aquele homem. Quando finalmente o reconheceu, foi tomada pelo ódio, pela sensação de insegurança e intensa confusão de sentimentos. Refugiou-se na cozinha. Ao fim, depois de cogitar matá-lo com uma faca, se acalmou e decidiu contar a todos do grupo o que ele havia sido, o que havia feito. Gloria termina seu relato acrescentando, numa espécie de vingança simbólica, que no passado, durante uma sessão de tortura na qual ela, seu filho e um companheiro eram vítimas daquele sujeito, havia lhe dito que sua mão ia “secar” por ter provocado tanta dor. E que lhe deu satisfação constatar que o homem, naquele momento em que se reencontraram, tinha um braço paralisado. O filme se encerra com essa narrativa e a reflexão indignada de Gloria sobre a impunidade que predominou no país, após o fim da ditadura.

Se em alguns momentos a imagem “cala” o que não é possível expressar, em outros, podemos notar alguns silêncios deliberados, e estes são igualmente importantes para analisarmos a narrativa histórica construída. Embora comece sua narrativa sobre os Tupamaros em 1970, o documentário não trata de alguns temas candentes da história da organização, caso do assassinato de Dan Mitrione21. Agente norte-americano da CIA encarregado de capacitar soldados uruguaios para a prática da tortura, Daniel Anthony Mitrione foi sequestrado pelos Tupamaros para ser trocado por 150 militantes presos, mas as negociações com o governo não avançaram conforme se previa e ele foi morto em agosto de 1970. Esse caso ganhou enorme cobertura da mídia à época, e o governo, por meio da imprensa, procurou difundir uma imagem do falecido como sujeito íntegro e bom pai de família:

Essa ação foi muito mal vista pela opinião pública e pela sociedade uruguaia de maneira geral, potencializada pelas ações do governo, que enviou o corpo para os Estados Unidos com honras de chefe de Estado e com grande comoção da sociedade estadunidense. Além disso, o dia de sua execução foi declarado dia de luto nacional (...) (MALAGUTI, 2017, p. 97).

O historiador Enrique Padrós considera que os Tupamaros perderam a disputa da interpretação da morte de Mitrione, e Malaguti, baseado nessa interpretação e na pesquisa dos esforços de comunicação empreendidos pela organização, estende essa derrota à “batalha de narrativas” de modo geral. Ainda que os tupas tenham se dedicado, a partir de 1969, a produzir conteúdos para serem divulgados nas mídias, a imagem de “inimigos do povo”, tão veiculada pelos meios de comunicação, parece haver triunfado, à época, exercendo certo peso na memória coletiva. As decisões posteriores, em plebiscitos, da população uruguaia em manter a Lei da Caducidade22, podem ser vistas como um indício, nesse sentido, da vitória da “teoria dos dois demônios”. Se isso é certo, o documentário Siete Instantes assume um lugar nessa “batalha de memórias”, no sentido de aproximar o espectador dos dilemas e dos sofrimentos dos Tupamaros, ressaltando as dificuldades enfrentadas naquele contexto e a disparidade de forças entre esse movimento e o aparato repressivo do Estado.

O filme busca construir uma voz feminina e, por meio dela, responder à teoria dos dois demônios no sentido de mostrar que, além de ser injusto supor uma equidade de forças entre os dois lados (Estado versus guerrilheiros), é também descabido “demonizar” os militantes. Estes, principalmente as mulheres, são mostrados como jovens que tinham suas utopias, valores e motivações, mas também dúvidas, arrependimentos. Ao mesmo tempo, ao expor um caso de comportamento “generoso” por parte dos agentes repressores, o filme acaba correndo o risco de endossar alguns princípios dessa teoria, como a perspectiva conciliatória. De todo modo, a postura dialética presente na narrativa não compromete, a nosso ver, o papel que o filme assume na batalha de representações e nos parece opção acertada da diretora. A conquista da empatia do espectador favorece uma “escuta” privilegiada dessas memórias.

Siete instantes dialoga com a historiografia, evita cair em celebrações fáceis, incorre em reiterações da tradição estética documental, mas não se prende a esta. A obra mostra a complexidade da relação entre memória e história, não esconde os limites de algumas discussões e generosamente, oferece ao historiador e ao público rico material para reflexões sobre o passado uruguaio.

Referências

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Notas

2 Diana Cardozo foi responsável pelo roteiro e pela direção. Participa também da edição com Mariana Rodríguez e Ana García. Fotografia de Daniel Jacob, Paula Grandio e Ricardo Benet. Música de César Lerner e Marcelo Moguilevsky. O Instituto Mexicano de Cinematografia, o Centro de Capacitación Cinematográfica, o IMCINE-Conalculta e a Fundación Rockfeller são os organismos apresentados nos créditos iniciais sobre a produção. O filme recebeu vários prêmios no México, como “Mejor Documental realizado por una mujer” no Festival Internacional de Cine de Morelia (México), em 2008. (DIOS VALLEJO, 2012)
3 Fernando Seliprandy chama a atenção para a recorrência, em documentários sobre a ditadura produzidos no Cone Sul, de imagens de centros de detenção e outros lugares de memória que demarcam uma “cartografia da repressão”. (SELIPRANDY, 2018, p. 196; 230) Nos agradecimentos finais são citados o Museu Archivo de la Palabra, os Archivos de la Memoria e a Cinemateca Uruguaya, dentre outras instituições.
4 Foram produzidos em 2008, além de Siete instantes (Diana Cardozo, 90’), DF /Destino Final (Mateo Gutiérrez, 111’), Hit (Claudia Abend e Adriana Loeff, 86’), Matar a todos (Esteban Schroeder, 97’). (RUFFINELLI, 2013, p. 60-72; MARTINS-JONES e MONTAÑEZ, 2012))
5 Tais políticas englobaram leis de reparação como a de 2006, que garantiu pensões e aposentadorias para exilados e ex-presos políticos) e a oficialização de lugares de memórias como o Museo de la Memória (http://museodelamemoria.org.uy), em 2007. Algumas ações idealizadas nesse período demoraram alguns anos para serem oficializadas, caso do “Día de la Resistencia y Defensa de la Democracia”, comemorado pela primeira vez em 27 de junho de 2014. (ERRANDONEA, 2009; OLIVERA ALFARO, 2016.)
6 Alonso e Larrobla narram que, em 1997, um grupo de cerca de 300 ex-presas políticas se reuniram para trocar suas experiências. Parte delas decidiu constituir grupos de trabalho denominados: “Testimonios”, “Vivencias”, “Género y familia” “Cronología”, “Salud” e “Cine”. Os três primeiros foram os mais profícuos e deles derivou, em 2000, o projeto “Memoria para Armar”,que recebeu recursos do Fundo Ibermerdia para que em 2007, se realizasse um documentário de mesmo nome, dirigido por Luiz González Zaffaroni. Ver: https://www.lampofilms.com/proyectos.html. Acesso em 7 de junho de 2019.
7 “Siete instantes es la historia de mujeres que fueron guerrilleras en Uruguay a principios de los 70. Bajo un enfoque intimista, el filme gira en torno a los momentos de decisión y las encrucijadas personales que conllevan. El documental busca la experiencia y la mirada de individuos comunes en situaciones excepcionales, y ahonda en la carga de tensiones, miedos, contradicciones y costos personales que tienen esos instantes de la historia.” Disponível em: https://moreliafilmfest.com/peliculas/siete-instantes/ Acesso em 19 de abril de 2019.
8 Apenas em 2011 houve uma primeira ação judicial de denúncia de violência sexual sofrida na prisão e em hospitais militares, realizada por 28 ex-presas políticas,que acusaram mais de cem policiais, militares, médicos e outros de tal abuso. (ALONSO e LARROBLA, 2013)
9 As memórias das mulheres (e sobre as mulheres) na ditadura vem sendo objeto de crescente presença no campo editorial e acadêmico: EIDE, Liv. Mujeres, dictadura y resistência em Uruguay (1973-1984). Dissertação em Estudos latino-americanos. Faculdade de História e Filosofia, Universidade de Bergen, Noruega, maio de 2011; JORGE, Graciela et al. Maternidad en prisión política. Uruguay 1970-1980. Montevidéu: Ed. Trilce, 2010; GONZÁLEZ, Soledad e RISSO, Mariana (Comp.). Las Laurencias. Violencia sexual y de género en el terrorismo de Estado uruguayo. Montevidéu: Trilce, 2012.SANSEVIERO, Rafael e RUIZ, Marisa. Las Rehenas. Historia oculta de once presas de la dictadura; Montevideo: Fin de Siglo, 2012.
10 Nos anos 1990 e 2000 surgiram várias publicações de balanço histórico do golpe, da ditadura, da atuação das esquerdas e do processo de transição, a exemplo de MARCHESI, 2005 e REY TRISTÁN, 2006.
11 “Atenção, a seguir se ouvirá um comunicado do MLN-Tupamaros que hoje controla essa emissora. “Com as mãos vazias diante das baionetas, os uruguaios sempre perderão a batalha. O povo uruguaio deve saber que o esperam dias de luta e sacrifício para obter a transformação social do regime atual, por uma sociedade mais justa. Adiante e à luta! Venceremos!”. (Esse trecho do filme e os demais reproduzidos nesse artigo têm tradução nossa)
12 Há vários documentos emitidos pelos próprios Tupamaros ao longo de sua história, alguns de caráter interno, outros direcionados à divulgação na mídia. Exemplos: Documentos II e III de 1968, Documento 4 de 1969, Reglamento de 1969, Manifiesto a la Opinión Pública , datado de 7 de setembro de 1970, ou os sete “boletins” do Correo Tupamaro emitidos entre julho de 1969 e agosto de 1971.(MALAGUTI, 2017).
13 O primeiro texto informa: “O MLN-T é a primeira guerrilha urbana da América Latina. Propõe a revolução socialista no Uruguai. A partir de 1968 a guerrilha cresce com a incorporação de estudantes. Os Tupamaros são derrotados em 1972, um ano antes do golpe militar. A ditadura durou 13 anos”.
14 Alba Antunez e Lía Maciel foram duas das chamadas “reféns” tupamaras, juntamente com Maria Elena Curbelo, Raquel Dupont, Jessie Macchi, Flavia Schilling, Gracia Dry, Cristina Cabrera, Estela Sánchez, , Miriam Montero e Elisa Michelini. (ALONSO e LARROBLA, 2013; PADRÓS, 2012)
15 Cidade localizada a cerca de 30 km de Montevidéu que, em outubro de 1969, teve três bancos assaltados por Tupamaros, num episódio bastante alardeado pela grande imprensa.
16 Sobre a primeira fuga temos depoimentos de Alba, Lía, Adriana, ao longo de 4 minutos. A segunda fuga, de 111 presos, é narrada principalmente por Julio, com participação menor de Adriana. Os intertítulos trazem as seguintes informações ao espectador “Julho, 30, de 1971. 38 mulheres do MLN-Tupamaros escapam da prisão. As mulheres enganam os zeladores colocando bonecos improvisados nas camas onde dormiam e escapam através de um túnel de 17 metros, conectado ao sistema de esgoto da cidade. Cinco semanas depois da fuga das mulheres, também por um túnel, 111 Tupamaros escapam da prisão de Punta Carretas” . (00:23’)
17 O Cárcere do povo foi descoberto em 27 de maio de 1972, por meio da delação do tupamaro Héctor Amodio Pérez. Ver: AZUL CORDO. “Paredes que hablan”. 04 de noviembre de 2014. Disponível em: https://ladiaria.com.uy/articulo/2014/11/paredes-que-hablan/. Ver também: ALMADA, Mauricio. La ultima cárcel del pueblo. Montevideo: Fin de Siglo, 2017.
18 Diferentemente dos primeiros trabalhos sobre o tema, que viam alguma sobrevivência da atuação tupamara até 1975, ainda que apenas por meio de ações individuais. (ALDRIGUI apud MALAGUTI, 2017, p.44)
19 01:07:05 a 01:11:45.
20 O testemunho de Adriana é interrompido e aparece, em tela, o texto: “Florencia, sua filha de 13 anos chega em casa”.
21 Também não é abordada a adesão do movimento à coalizão denominada Frente Ampla (por meio da criação do Movimiento de Independientes “26 de marzo” em 08 de abril de 1971), que disputou as eleições presidenciais desse ano, apoiando a candidatura de Raul Sendic (FERREIRA, 2011). Tal processo envolveu importantes pactos, principalmente o estabelecimento de uma trégua na luta armada (decisão que dividiu opiniões, diga-se) que sinalizam um momento de impasse na história da organização, não explorado no documentário.
22 A Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado, decretada em 22/12/1986, foi inicialmente ratificada por um plebiscito popular em 16/04/1989. Essa lei favoreceu a impunidade ao inviabilizar a investigação de crimes contra os direitos humanos perpetrados por agentes militares e policiais durante a ditadura. Após a vitória da Frente Ampla, em 2005, houve tentativas de se reverter essa lei, com novos momentos de impasse em 2009 e 2011. (BURIANO e DUTRÉNIT, 2017)


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