Resumo: Pretende-se analisar neste texto algumas peculiaridades na trajetória histórica do desenvolvimento da administração pública brasileira, visando iluminar aspectos relevantes para a reflexão sobre instituições escolares que sejam complementares ao pensamento educacional, em uma perspectiva teórica weberiana sobre a burocracia e suas implicações no caso brasileiro.
Palavras-chave:Modernização do EstadoModernização do Estado, Instituições públicas escolares Instituições públicas escolares,CorporativismoCorporativismo.
Abstract: The aim is to analyze on this text some peculiarities in the historical trajectory of the brazilian public administration development, aiming to illuminate relevant aspects in consideration about educational institutions which are complementary to educational thought, in a weberiana theoretical perspective about bureaucracy and its implications in the case of Brazil.
Keywords: Modernization of the State, Public institutions, Corporatism.
Resumen: El objetivo es analizar en este texto algunas peculiaridades de la trayectoria histórica del desarrollo de la administración pública brasileña, en vistas a iluminar aspectos pertinentes para la reflexión sobre aquellas instituciones escolares que son complementarias al pensamiento educacional, en una perspectiva teórica webberiana sobre la burocracia y sus implicaciones en el caso brasileño.
Palabras clave: Modernización del Estado, Instituciones de la educación pública, Corporativismo.
Dossiê Temático
Reflexões históricas sobre administração pública e a escola no Brasil
Historical reflections about public administration and the school in Brazil
Reflexiones históricas sobre administración pública y la escuela en Brasil

Recepção: 21 Novembro 2015
Aprovação: 22 Dezembro 2015
Atrás de todas as discussões atuais sobre os fundamentos do sistema educacional encontra-se, em algum ponto decisivo, sempre a luta, condicionada pelo avanço irrefreável da burocratização de todas as relações de dominação públicas e privadas e pela importância cada vez maior do conhecimento especial, entre o tipo do "homem especializado" e a antiga ideia do "homem culto". (Weber)
O móvel central que anima a escrita da história do presente é responder às demandas por explicações das complexidades da vida social contemporânea. Nesse sentido, buscar compreender as relações entre aspectos estruturais e superestruturais da sociedade brasileira nas suas modificações históricas recentes aparece como uma via dotada de muitas possibilidades de interpretação para o historiador, na perspectiva do desenvolvimento das contradições histórico-materialistas e dos conflitos de classe entre os diversos agentes sociais.
O desenvolvimento das relações econômicas capitalistas no Brasil, em paralelo com o espraiamento da globalização dos mercados e suas muitas crises que vem se sucedendo hodiernamente geraram repercussões nas configurações do Estado e da sociedade nacional, envolvendo dimensões políticas, administrativas e mesmo culturais.
Se por um lado o pensamento de Marx ilumina aqui as reflexões sobre as características estruturais da economia e da sociedade em seu desenrolar temporal (MARX, 2011), por outro é em Weber, na sociologia compreensiva e na teorização sobre o poder e as organizações sociais (estudo sobre as formas de dominação) que pode-se encontrar análises bastante fecundas (TRAGTENBERG, 2006) para o entendimento das relações superestruturais (níveis simbólicos e culturais).
A teoria weberiana da ação significativa parte da noção de indivíduo e da tomada de decisões (CORTINA, 1994), estabelecendo os níveis da ação em três tipos básicos: a ação frente a uma situação concreta; a ação obrigatória com base em regras determinadas; ação apoiada no entendimento informal de normas. Depois de desenvolver o conceito de ação social significativa, estendeu o mesmo às formas institucionais, tais como associações, empresas, instituições de ensino e o Estado, os quais funcionam como arenas nas quais se desenvolvem estas ações.
De forma complementar, a elaboração dos tipos ideais em Weber funciona como uma ideia reguladora, sem materialidade histórica. Cumpre lembrar que para Weber a história não se identifica com o processo da razão triunfante (o que representaria um retorno ao positivismo), mas é antes um estudo das tensões geradas pela oposição racional-irracional em suas configurações ao longo do tempo. Revela-se aí a influência de Dilthey, pois se defende uma razão histórica, cujo pressuposto busca recuperar o sentido sempre vinculado à questão do tempo e indissociada de uma visão de mundo, isto é, tributária de um ponto de vista.
Relembrando alguns dos pontos de convergência com as análises de Marx, a teoria weberiana debruçou-se sobre o capitalismo ocidental1, visando aferir a capacidade de produzir explicações adequadas à história social nos termos do materialismo histórico; buscou, assim, investigar as relações entre infraestrutura e superestrutura. Acusando uma influência nietzschiana (MACRAE, 1985), Weber assume que a vontade de poder, sendo expressa na luta entre valores e ideias antagônicas, constituiria uma chave para a compreensão da realidade sócio-política e econômica. Ao procurar uma resposta para o problema da legitimidade das relações sociais, ou seja, sobre qual seria sua base e por quais mecanismos se manteria, elabora também uma tipologia ideal a respeito das formas de dominação: trata-se de entender a questão do poder segundo a organização social e seus mecanismos de dominação.
Desta maneira, se o conceito de poder em si mesmo não é restringido por qualquer contingência social determinada concretamente, o de dominação se apresenta segundo configurações subsumidas em dois tipos de representação ideal, quais sejam, A) através da autoridade, isto é, de uma relação em que aparece o poder de coação e a obrigação de obediência, e.g. poder exercido pelo governante; B) em situações de monopólio, intermediando interesses diversos, por exemplo, no mercado monopolista(WEBER, 1999).
Dentre as formas pelas quais a dominação se afirma, ou seja, as razões segundo se dá a submissão2, estão presentes princípios de autoridade; nesta tipologia inclui-se a dominação burocrática. Sua definição é dada pelo poder que se fundamenta no direito, o que significa que a luta pelo domínio ocorre no âmbito da capacidade de decidir sobre a institucionalização de normas com validade legal.
Portanto, levando em conta que Weber assume ser a racionalização da vida social uma tendência irreversível das sociedades, a dominação burocrática seria a forma específica pela qual isto se materializa em formas administrativas, no mundo ocidental. Assim, em todas as instituições sociais, quaisquer que sejam suas finalidades, encontra-se a burocracia como um instrumento dotado de universalidade e eficácia no exercício da dominação; a análise weberiana sinalizou que o desenvolvimento do tipo ideal da burocracia não conduziria necessariamente a uma democratização, pois poderia servir interesses de dominação autoritários, demandando estudos complementares que pudessem iluminar os sentidos da burocratização (ainda que o autor tenha revelado certo pessimismo quando admitiu ser inevitável3 o uso da burocracia para o governo em um Estado de massas).
Tendo as considerações teóricas expostas acima como arcabouço para o estudo que se propõe, isto é, lançar luz sobre alguns condicionantes do ensino público no Brasil como uma parte integrante da administração pública, perpassada por seu caráter específico e lógicas de dominação, importa em primeiro lugar situá-lo no contexto político e social, deslindando suas etapas históricas e conjunturais. Propõe-se, assim, considerar duas linhas de abordagem, pelo menos: 1) aquela que enxerga o ensino superior (independente de suas características intrínsecas, i.e., se público ou particular, confessional, etc.) como um tema próprio da História da Educação, e subsume as hipóteses explicativas de seu desenvolvimento no país a considerações de ordem pedagógica, em suas diversas vertentes; 2) aquela que compreende as instituições de ensino pelo prisma de sua lógica e configurações organizacionais, entendendo que se trata de um caso especial da administração pública e, portanto, merecedor de estudos que levem em conta teorias sócio-administrativas gerais e de poder referido ao Estado.
Todavia, estas linhas de análise não estariam dissociadas, pois em diversos textos de administradores, sociólogos e cientistas políticos despontam argumentos de caráter específico, mas que buscam também lançar mão de estudos do viés complementar, quer seja educativo, quer de gestão. Destarte, empreender-se-á na sequência uma análise sobre aspectos históricos da evolução da estrutura do Estado brasileiro, com atenção aos elementos que contribuem para pensar inserções do poder em instituições públicas, o que inclui o ensino público enquanto tarefa política-administrativa.
Como às vezes aparece em discussões de caráter menos especializado, a instituição sócio-histórica do Estado pode ser definida, simplificadamente, como uma organização que detém a prerrogativa de fazer leis e cobrar impostos da população ocupante de um determinado espaço físico, que é o território sobre o qual esta organização detém o domínio4. Tal simplificação é enganosa, pois há aspectos políticos, históricos e estruturais que precisam ser mencionados para compreender a relevância do conceito, o que inclui considerar a evolução das visões sobre o Estado referidas às teorias sociológicas e políticas; veja-se o que ponderava no final da década de 1970 o sociólogo Frank Parkin:
(...) A questão que surge naturalmente é se a introdução do conceito do Estado pode harmonizar-se com as teorias de classe existentes, ou se algumas modificações se fazem necessárias. (...) A resposta oferecida pelo marxismo contemporâneo é que o modelo ortodoxo de classe da sociedade burguesa é demasiado simplista, dado o caráter intervencionista do Estado na fase monopolista do capitalismo. (...) Embora todos os marxistas contemporâneos endossem a interpretação do Estado como uma agência que serve aos interesses de uns poucos exploradores sobre os muitos explorados, a maneira pela qual isso se realiza é considerada como diferente de um comitê executivo. O conceito organizador do atual debate é o da "autonomia relativa" do Estado em relação à classe a que, em última análise, serve. (PARKIN, 1980)
Esta avaliação, que data de mais de trinta anos no presente, é suficiente para apontar duas constatações que balizaram o debate desde então; a primeira seria o reconhecimento da historicidade que as formas de organização estatal revestem (instituições públicas de ensino entre elas) e a outra diria respeito aos traços permanentes que estas mesmas formas trazem em seu bojo.
Em termos gerais, no aparato estatal de nossos dias encontra-se presente uma cúpula governante (da qual tomam parte integrantes de primeiro escalão dos três Poderes), as forças militares e policiais e o corpo de funcionários civis. A administração pública compreende basicamente o exercício das funções e cargos de todos estes atores, de acordo com as fontes do direito constitucional e do direito administrativo.
Ora, para entender qual é a questão da administração pública no Brasil, é conveniente passar pela trajetória de seu desenvolvimento histórico; nesta esteira, parece notório que o patrimonialismo5 constitui uma espécie de "caráter subjacente" às práticas administrativas nas instituições estatais brasileiras até hoje.
Suas raízes, originadas no período de formação do país, explicam-se pelos mecanismos adotados para gerir as exigências que a máquina de dominação colonial portuguesa demandava ao governo da Metrópole. Um exemplo contundente destas práticas patrimonialistas pode-se ver no sistema cartorial brasileiro6; a tradição da promiscuidade entre a res publica e a res principis, procedente do Ancien Regime7 constitui um dos pilares da desigualdade social no Brasil:
(...) no século XVII, no Rio de Janeiro, a economia passava pela política. O domínio dos postos de comando da República pela nobreza da terra lhe garantia o controle sobre mecanismos de enriquecimento e a ascendência sobre o mercado. Nesse cenário, as redes de alianças que essa nobreza mantinha com outros grupos sociais eram fundamentais, e tal fenômeno assegurava a sua legitimidade social e, portanto, os seus privilégios. Em contrapartida, o mesmo fenômeno criava reciprocidades entre a elite e aqueles grupos. Para tanto, basta lembrar algumas práticas, como o fornecimento de serventias de cargos da administração civil e a distribuição de postos militares entre integrantes das clientelas da nobreza da terra. (FRAGOSO, 2002).
Ainda conforme Fragoso, na gênese da desigualdade e da exclusão social estaria a capacidade das elites brasileiras de se apropriarem de partes da máquina administrativa por meio de relações políticas patrimonialistas:
(...) encontramos uma nobreza da terra que, por meio de “expedientes” políticos retirados do Antigo Regime português, adquire a hegemonia sobre a sociedade. Essa nobreza, através da conquista de terras e de homens (guerras justas, ou não, contra o “gentio da terra”), do sistema de mercês e domínio da Câmara Municipal, conseguiu se apropriar de parte do excedente de sociedade colonial. Tratava-se de um conjunto de mecanismos de acumulação cuja base era o comando político sobre uma sociedade em formação; esse comando assumia a forma de cargos administrativos nomeados pela Coroa (provedores da fazenda, capitães de fortaleza etc.) e postos na “Câmara Municipal” (Fragoso: 2000). (...) O sistema de mercês consistia numa tradição medieval portuguesa, pela qual a coroa concedia benesses (terras, comendas, cargos militares e civis etc.), recompensando os seus leais vassalos. A posse de tais mercês, particularmente na forma de cargos, representava o exercício do poder sobre a sociedade. (FRAGOSO, 2002)
Com a mudança da sede do poder português em 1808 para o Brasil, ocorreram alterações na estrutura administrativa do Estado, como por exemplo a iniciativa de D. João de constituir os Ministérios de Negócios do Reino, de Negócios Estrangeiros e da Guerra e de Negócios da Marinha e Ultramar. O caráter institucional da máquina administrativa estatal era marcado pela existência de poucos órgãos, que, entretanto, tinham grande abrangência de atuação; prevaleciam as apropriações de cargos públicos e recursos do Estado por interesses particulares e indivíduos e a centralização das decisões era uma característica fundamental no período.
No período do Segundo Império, as alternâncias de liberais e conservadores frente à administração dos ministérios e as razões das quedas de gabinetes8 são exemplos em alguma medida da mentalidade patrimonialista e sua renitente permanência entre os homens públicos brasileiros; o advento da República tampouco foi capaz de extinguir a lógica da apropriação dos bens públicos para fins particulares no seio da gestão governamental.
Observe-se que foi na vigência do Varguismo que ocorreu uma expressiva ação de modernização na estrutura de governança: Getúlio Vargas buscou implantar um novo modelo de funcionamento para a “res publica”, pautado pelo controle detalhado das atividades do aparato estatal; para tanto, valeu-se da burocracia como princípio estruturador de uma reforma administrativa do Estado. Com os mecanismos burocráticos visava-se atingir uma padronização para o sistema da administração pública que eliminasse o nepotismo, a corrupção e outras mazelas que moldavam a realidade e o imaginário da sociedade sobre o funcionário público9.
Assume-se, pois, que houve uma tentativa de propor-se estrutura administrativa não-patrimonialista para o Estado brasileiro, na conjuntura política da década de 3010; isto, naturalmente, implica em considerar aspectos da ideologia nacionalista, autoritária e fascista que caracterizou o Estado Novo e sua ofensiva no controle dos trabalhadores brasileiros e dos sindicatos; ainda que haja outras leituras sobre os significados das mudanças nas leis trabalhistas, a carteira profissional no momento de sua criação – 1932 - era entendida como um instrumento que retirava dos sindicatos o controle sobre o mercado de trabalho e o transferia às mãos do governo11.
Todo um conjunto de ações – por meio de decretos, propaganda, cerceamento de associações sindicais, etc. – que visava uma adequação das relações trabalhistas ao pensamento autoritário que dominou o Estado brasileiro repercutia sobre os funcionários públicos, que também deveriam ter o exercício de suas funções ajustadas a este objetivo maior da política de modernização almejada pelo governo Vargas12.
Do ponto de vista da administração pública, a busca pelo controle mais eficaz do aparelho do Estado conduziu a um modelo que pudesse transcender as tradições patrimonialistas no Brasil - caracterizadas pela corrupção e pela desconfiança em relação aos agentes públicos.
Tendo em mente o caráter ideológico centralizador do período Vargas, compreende-se porque foi adotado o modelo de administração burocrática para remodelar as práticas de gestão estatal. Esta escolha explica-se em função da necessidade de sanar os problemas ocasionados pelo ethos patrimonialista, que se em seu viés político-econômico acabava por entravar o desenvolvimento do capital monopolista no país, pelo lado ideológico constituía fator de desmoralização do aparelho administrativo estatal.
Desta forma, um pressuposto de base do modelo burocrático para a administração pública é a suspeita, a desconfiança, quase a criminalização, quer seja dos agentes do Estado, quer do público que demanda serviços a estes. A papelada, os formulários, as cadeias de processos visam tornar racional a irracionalidade que predomina no patrimonialismo. Portanto, os princípios burocráticos por excelência serão: o formalismo (são necessários meios que controlem o fluxo das vontades e desejos individuais, ou no mínimo as reduzam a uma pré-formatação racionalizada); a impessoalidade (busca-se o pólo oposto da lógica patrimonialista, na qual as relações pessoais são o fundamento das ações do Estado); a hierarquia funcional, (pela qual cada nível de cargos encontra-se subalterno a outro e há controle superior); a profissionalização e a existência de carreiras (como forma de eliminação do nepotismo e do clientelismo de cargos).
Tendo à frente as figuras de Maurício Nabuco e Luís Simões Lopes13, iniciou-se na década de 1930 a reforma administrativa do Estado, entendida naquele momento como necessária frente ao interesse em acelerar a industrialização brasileira, como consequência da atuação do capitalismo monopolista no Brasil.
Assim, para realizar a reforma administrativa que modernizava a máquina estatal criou-se oficialmente o DASP/Departamento Administrativo do Serviço Público, em 30 de julho de 1938, como um dos órgãos centrais do Estado Novo. Integravam o DASP as seguintes divisões de competências: Empregados Públicos, Materiais, Extranumerários, Seleção e Treinamento e Organização e Coordenação. Seria o centro organizador no novo serviço público, tendo como atribuições: A) Auxiliar a Presidência da República em assuntos administrativos; B) responder pela seleção (por concurso) de candidatos aos cargos públicos federais; C) padronizar o setor de compras do governo; D) fiscalizar e avaliar o serviço público e E) prover meios de adequar os servidores públicos às novas normas administrativas (treinamento). Ainda em 1942 entraria em funcionamento a divisão de Finanças, encarregada de elaborar o orçamento da União.
Nesse momento, as tendências exibidas pelas ações que foram implantadas sinalizavam claramente na direção da padronização de procedimentos, na racionalização para adquirir materiais e bens, na simplificação de processos, buscando rever a estruturação do Estado e propor novos métodos ao estabelecer rotinas procedimentais. Evidenciava-se uma influência taylorista (TRAGTENBERG, 2006), e foi também a partir destas mudanças que o tratamento dado ao orçamento se formalizou, passando desde então a ser vinculado aos aspectos do planejamento.
Quanto ao tratamento dispensado às questões de pessoal, o corpo funcional do serviço público foi pensado pelo DASP na concepção weberiana de burocracia, propondo-se o princípio do mérito e da profissionalização como sua pedra angular.
Embora estas mudanças tenham concretizado práticas e instrumentos importantes, e.g., o concurso público para acesso os cargos e mesmo o treinamento, não chegaram a se converter em uma política que atendesse às questões que o Estado visava. A tradição patrimonialista, antagônica aos princípios burocráticos, resistia a partir das configurações peculiares existentes no âmbito político brasileiro; dessa maneira, a permanência de práticas patrimonialistas já bem estudadas em suas singularidades (como é o caso do coronelismo14), se pluralizaram e manifestaram-se no clientelismo e no fisiologismo15 inseridos também no funcionamento da administração pública. Segundo Martins:
Até o final da década de 30, além dos militares que seguem os seus próprios princípios de organização, somente dois órgãos do governo federal (o Itamaraty e o Banco do Brasil) eram bem-estruturados, tinham instituído normas para ingresso no serviço público, tinham criado planos de carreira, regras para promoção baseadas no mérito, e tinham alimentado uma burocracia profissional com um ethos de serviço público.(...) Na verdade, um padrão duplo foi estabelecido. Os altos escalões da administração pública seguiram essas normas e tornaram-se a melhor burocracia estatal da América Latina; os escalões inferiores (incluindo os órgãos encarregados dos serviços de saúde e de assistência social então criados) foram deixados ao critério clientelista de recrutamento de pessoal por indicação e à manipulação populista dos recursos públicos. (MARTINS, 1997).
Apesar de serem criados os DAEs - Departamentos Administrativos dos Estados (apelidados de “Daspinhos”) em 1939, objetivando um alcance regional das atribuições do órgão central federal, avalia-se que a reforma de caráter burocrático não alcançou as metas que a motivaram, embora tenha promovido uma centralização do Estado sem precedentes.
Inventariando as mudanças ocorridas na estruturação da administração do Estado que se deu desde a ascensão de Vargas até o momento do desenvolvimentismo da década de 1950, pode-se compreender que na evolução das condições históricas deste período as adaptações que a sociedade brasileira, seus representantes e o Estado foram capazes de realizar configuram-se como uma dança dialética de contrários.
Ao pretender substituir a lógica personalista que pautou desde o período colonial os compromissos políticos em diversos níveis de poder por uma racionalidade técnico-instrumental intrinsecamente impessoal, o Estado Novo abriu caminho para que se rearticulassem redes sócio-políticas segundo a dinâmica da expansão do capitalismo industrial no país. Importa matizar aqui os movimentos que demarcam conflitos no interior das relações entre o aparato burocrático e o caráter clientelista que caracteriza desde então o formato das demandas dos agentes sociais ao poder central.
Neste sentido é pertinente levar em conta uma classificação para as diferentes formas deste relacionamento entre a burocracia estatal e a sociedade brasileira. Assumindo que o traço de maior antagonismo que o modelo weberiano de dominação burocrática apresenta em relação ao clientelismo seja exatamente a impessoalidade, é a partir da tensão entre estas duas características que vertebram modelos de arranjos políticos e técnicos que se poderia explicar as variantes que se desenvolveram na administração pública brasileira após 1945.
Conforme Nunes (2003), para a gestão pública, se no nível procedimental tivesse triunfado uma proposta administrativa suportada pelo trinômio partidos políticos/economia de mercado/governo democrático, não haveria porque não vingar o princípio da igualdade (compreendida como dispositivo) entre os indivíduos membros da sociedade; entretanto, o corolário de tal combinação seria a adoção do universalismo nos processos de tratamento da sociedade pelo Estado, algo que não interessava ao governo autoritário e centralizador de Vargas. O que ocorreu, durante este período, foi uma adoção sistemática de ações que estimularam o corporativismo, i.é., a intermediação necessária do Estado nas relações entre os atores sociais; neste sentido, o caso da legislação sobre os sindicatos é exemplar e insere-se nos propósitos disciplinadores do Estado Novo em relação às massas. Também deve-se ter em mente que a noção de cidadão no contexto do pós-1930 passaria forçosamente pela tutela do Estado, sendo coerente com as ideologias fascistas naquela conjuntura histórica.
Em resposta a estas modificações no caráter técnico-administrativo estatal, observa-se os interesses e “gramáticas políticas” (NUNES, 2003) se instalando no interior do aparelho burocrático, provocando o desvirtuamento da lógica capitalista da despersonalização das relações. Assim, haveria no locus administrativo burocratizado dois pólos opostos interagindo: 1) o da universalidade e padronização dos procedimentos, orientado pela impessoalidade e, 2) o das trocas pessoais de caráter político, representando a resistência das práticas patrimonialistas às mudanças exigidas pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
O resultado desta interação é a emergência do “insulamento burocrático” já no primeiro mandato de Getúlio Vargas, mas com mais ênfase em seu segundo governo e em franca ampliação na gestão de Juscelino Kubistchek e na administração pública pós-1964 – o qual se caracteriza como uma estratégia de ação das elites favoráveis ao projeto de modernização capitalista, no sentido de converter uma matriz de pensamento racional/instrumental inspirada no modelo weberiano em um projeto ideológico no qual os meios de racionalização das atividades do Estado se metamorfosearam nos únicos fins entendidos como desejáveis para a administração pública brasileira.
Em suma, insulamento burocrático seria a maneira pela qual elites empresariais e os setores técnico-burocráticos objetivam se esquivar aos controles democráticos e responsabilidade por suas ações perante a sociedade, visando obter eficiência econômica e facultando aos atores sociais a que se aliam a possibilidade de auferir benefícios pela privatização de privilégios advindos do controle técnico que exercem sobre partes significativas de setores produtivos estatais, para tanto qualificados como "área estratégica". Tem-se assim o mecanismo pelo qual agências governamentais dominadas por núcleos técnicos de especialistas (onde o principal instrumento da dominação é o sigilo sobre as informações que detém), aliadas às elites industriais vêm impulsionando os movimentos do capitalismo no país por mais de meio século.
Entretanto, ainda que a intenção aqui seja apenas retomar aspectos estruturadores da administração pública, para que não fique a explanação padecendo de esquematismos lacônicos, necessário se faz rememorar a existência de outros fatores que originaram o peculiar funcionamento da burocracia brasileira, mesmo quando não se efetive análise detalhada dos mesmos. Entre estes, contam-se o populismo e a existência de mecanismos de administração indireta para as atividades do Estado; os investimentos externos diretos, associados à inflação e aos gastos públicos, além dos incentivos econômicos; por fim, a ideologia nacional-desenvolvimentista e a industrialização, ao lado das “ilhas de excelência” no seio do aparato administrativo estatal.
Este conjunto de fatores produziu uma mistura entre o clientelismo, o corporativismo, o universalismo de princípios e o insulamento burocrático que caracteriza o sistema de relações entre sociedade e Estado, por meio da qual a administração pública brasileira se orienta, recebe críticas e resiste às mudanças; neste escopo, cabe retomar a classificação pelo viés de quem são os agentes sociais beneficiados pela existência das oscilações entre os pólos pessoal e impessoal no cerne da racionalização burocrática.
No caso do clientelismo, que é o extremo do pólo da personalização, tanto partidos políticos quanto parcelas sociais de baixa extração e mesmo partes das camadas sociais denominadas “classes médias” se valem deste modelo de relação em suas práticas de interação social e lutas políticas; como exemplo, a reportagem publicada pela BBC Brasil em 2002, sobre os pedidos de favores da população interiorana aos candidatos em épocas de eleição no interior do Pará, de Alagoas e em Pernambuco (CABRAL, 2002).
Para o corporativismo, que estaria a meio caminho entre o clientelismo e o insulamento burocrático, haveria uma adoção de sua lógica pelas organizações sociais civis (profissionais liberais, professores universitários, movimentos sociais, etc.) e militares, pelo Estado (funcionalismo e tecnocratas) e também por partidos políticos.
Já o universalismo de procedimentos (pólo extremo da impessoalidade) teria suas práticas adotadas tanto pelo Estado quanto pelos agentes do mercado (empresas, grupos financeiros, associações comerciais e industriais). Os partidos políticos incluem-se aqui em parte pelos mecanismos democráticos de escolha política implicarem no sufrágio universal para participação dos cidadãos.
Por fim, o insulamento burocrático (próximo ao pólo impessoal), é estratégia ideológica e de ação da qual se beneficiariam apenas agências governamentais (tecnocracia) em aliança com as elites industriais e militares. Os políticos comparecem à medida que representam estes dois grupos.
Outra perspectiva interessante surge da introdução da noção de participação dos cidadãos na administração pública. Ocorre que, quanto mais cresce o grau de impessoalidade, mais aumenta o número de indivíduos incluídos na possibilidade dessa participação de forma igualitária (daí a afirmação de que a democracia implica em burocracia), mas também aumenta o predomínio dos interesses do mercado, favorecendo a exacerbação das relações econômicas capitalistas. Disto se extrai que embora a lógica de Universalidade de Procedimentos seja necessária aos mecanismos democráticos, nem por isto é garantia de correção de desigualdades sociais e assimetrias políticas.
Contudo, a conclusão mais inquietante está na constatação de que o Insulamento Burocrático, apontado como modelo que no Brasil tem orientado hegemonicamente as decisões da administração pública pós-1945 é responsável pela maior acumulação de poder e recursos econômicos nas mãos de uma elite tecnocrática e industrial, a qual utiliza o binômio saber/poder escorando-se nas justificativas da racionalidade técnica/instrumental. O órgão ou instância administrativa pública “insulado” pode, assim, realizar suas metas programáticas à revelia de peias políticas – pois se encontra respaldado por uma configuração de poder superior, que determina quais são os campos da administração que se disponibilizam aos embates políticos.
Com isto, percebe-se que para responder quem avaliza o insulamento burocrático na administração pública brasileira é preciso assumir que, como foi explicitado acima, clientelismo e universalidade de procedimentos concorrem o tempo todo na capacidade dos núcleos tecnocráticos se articularem seguindo interesses gerais do governo e os seus próprios. Ou seja, pressupõe-se um acordo político mais amplo que antecede ao insulamento burocrático e garante a existência de áreas “a salvo” do campo geral e aberto das disputas políticas e motivações oriundas de outros atores sociais.
Portanto, é possível pensar o insulamento burocrático na administração pública brasileira como o corolário das transformações históricas que as relações patrimonialistas em suas muitas faces e singularidades históricas (fisiologismo, personalismo, clientelismo) atravessaram em uma dialética de poder diante do avanço das formas capitalistas no país. As instituições escolares públicas, desta forma, são capturadas nesta lógica de desempenho administrativo do poder.
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/97/382 (pdf)
[Artigo corrigido , vol. 1, 7-19] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/97/382
“Acertei no milhar”, obra na qual
Mattos;1982