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Trabalho e educação no contexto de transformações da agroindústria canavieira no final do século xx*
Labor and education in the context of the changes in sugarcane industry at the end of the Twentieth century
Trabajo y educación en el contexto de transformaciones de la industria de la caña de azúcar al final del siglo XX
Laplage em Revista, vol. 1, núm. 3, pp. 82-97, 2015
Universidade Federal de São Carlos

Dossiê Temático

Copyright © 2015 Laplage em Revista. Todos os direitos reservados.

Recepção: 21 Novembro 2015

Aprovação: 22 Dezembro 2015

DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201513103p.82-97

Resumo: O artigo analisa a relação trabalho-educação no contexto das transformações econômicas, políticas e sociais das últimas décadas do século XX, com recorte na agroindústria canavieira. Essas transformações produziram mudanças rápidas e radicais na produção, nos processos de trabalho, hábitos de consumo, poderes e prática do Estado, com desdobramentos para todas as instâncias da sociedade em todo o planeta. A reestruturação da produção ampliou significativamente a divisão do trabalho, com as novas tecnologias e novas formas de gestão, com consequências de grandes reduções no número de postos de trabalho, elevando o número de trabalhadores desempregados, assim como vem ocorrendo um processo de precarização do trabalho. Desta forma, o capital tem ampliado a exploração do trabalhador, exigindo que seja polivalente, flexível, possuidor de múltiplas competências, apto para cumprir múltiplas funções. Neste contexto, as ações educativas escolares e não-escolares se transformaram em resposta aos novos requisitos impostos para o trabalho.

Palavras-chave: Trabalho e educação, Reestruturação produtiva, Educação profissional, Agroindústria canavieira.

Abstract: The article analyzes the work-education relation in the context of economic, political and social changes of the last decades of the twentieth century, aiming the sugar cane industry. These changes produced rapid and radical changes in production, work processes, consumption habits, powers and practice of the state, with consequences for all sectors of society across the globe. The restructuring of production increased significantly the division of labor, with new technologies and new forms of management, consequences of major reductions in jobs, increasing the number of unemployed workers, and there has been a precarization process of work. Thus, the capital has increased the exploitation of workers, demanding to be versatile, flexible, possessing multiple skills, able to perform multiple functions. In this context, school educational activities and non-school became response to the new tax requirements for the job.

Keywords: Labor and education, Production restructuring, Professional education, Sugar industry.

Resumen: El artículo analiza la relación trabajo-educación en el contexto de las transformaciones económicas, políticas y sociales de las últimas décadas del siglo XX, con un corte en la industria de la caña de azúcar. Esas transformaciones producieron cambios rápidos y radicales en la producción, en los procesos de trabajo, en los hábitos de consumo, en los poderes y en la práctica del Estado, con despliegues a todos los sectores de la sociedad en todo el mundo. La reestructuración de la producción amplió significativamente la división del trabajo, con las nuevas tecnologías y nuevas formas de gestión, y con la consecuencia de grandes reducciones en el número de puestos de trabajo, un elevando el número de trabajadores desempleados, y, como viene ocurriendo, un proceso de precarización del trabajo. De esta manera, el capital ha ampliado la explotación del trabajador, exigiendo que sea polivalente, flexible, poseedor de múltiples competencias y apto para cumplir múltiples funciones. En este contexto, las actividades educativas escolares y no-escolares se transformaron en respuesta a los nuevos requisitos impuestos para el trabajo.

Palabras clave: Trabajo y educación, Reestructuración productiva, La educación profesional, agroindustria de caña de azúcar.

Introdução

A partir do final da década de 1960, a economia e a política dos países centrais do mundo capitalista sofreram transformações profundas decorrentes do esgotamento da chamada ”era de ouro”. Após o longo período de expansão pós-guerra, baseada no controle do trabalho, em tecnologias, hábitos de consumo e configuração de poder político-econômico e, também, caracterizada pelo modelo fordista de acumulação e regulação social, e pelo “Estado de Bem-Estar-Social”, esgotou seu ciclo de desenvolvimento,

Na década de 1980 e início da de 1990, o mundo capitalista viu-se novamente às voltas com problemas da época do entreguerras que era de Ouro parecia ter eliminado: desemprego em massa, depressões cíclicas severas, contraposição cada vez mais espetacular de mendigos sem teto ao luxo abundante, em meio a rendas limitadas de Estado e despesas ilimitadas de Estado. Os países socialistas, agora com suas economias desabando, vulneráveis, foram impelidos a realizar rupturas igualmente – ou até mais – radicais com seu passado e, como sabemos, rumaram para o colapso. (HOBSBAWM, 2000, p. l9).

Os mecanismos adotados para solucionar a crise econômica da década de 1930, após a quebra da bolsa de New York, promoveram um período significativo de desenvolvimento baseado em políticas econômicas e sociais patrocinadas com recursos públicos. No período de trinta anos, que iniciou após a Segunda Guerra Mundial (1945-1975), os países centrais experimentaram uma grande expansão econômica e viram consolidar o fordismo como padrão de organização da produção, mantendo a ilusão, no campo político, de que era possível dominar o capital, regulando-o e estabelecendo o “Estado de Bem-Estar-Social”, isto é, o pleno emprego e o livre consumo a todos os cantos do mundo. Na análise de Harvey (2000, p. 140),

A profunda recessão de 1973, exacerbada pela crise do petróleo, evidentemente retirou o mundo capitalista do sufocante torpor do “estagflação” (estagnação da produção de bens com alta inflação de preços) e pôs em movimento um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista. Em consequência, as décadas de 70 e 80 foram um conturbado período de reconstrução econômica e reajustamento social e político. No espaço social criado por todas as oscilações e incertezas, uma série de novas experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política começou a tomar forma. Essas experiências podem representar os primeiros ímpetos da passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinto.

A expansão do capitalismo no pós-guerra, baseada no modelo fordista-taylorista de produção, caracterizava-se pela rigidez das longas linhas de produção, do trabalho altamente especializado e fragmentado, da manutenção de grandes estoques e produtos padronizados, e da articulação do Estado e o grande Capital. Esse modelo foi superado por novos modelos de produção, que têm como principais características a flexibilidade para atender com rapidez as variações e exigências do mercado e a adoção do mercado como auto-regulador dos interesses da sociedade. A partir desse contexto, o presente artigo objetiva discutir o trabalho e educação no contexto de transformações da agroindústria canavieira no final do século XX.

As transformações econômicas, políticas e sociais do final do século XX

Para a superação da crise do capitalismo a partir de meados da década dos anos de 1970, foram apropriados os avanços dos conhecimentos científicos e tecnológicos, que, aplicados no sistema produtivo provocaram profundas transformações na gestão da produção e da distribuição. O uso intensivo de novas tecnologias permitiu a descentralização dos processos de produção e a eliminação das grandes unidades e linhas de produção, que passaram a ser redistribuídas por unidades de produção especializada localizadas em diversos pontos do planeta, de acordo com a conveniência dos custos. Estas mudanças determinaram uma nova divisão internacional da produção, que inverteu a ordem temporal de produção, deixando de manter grandes estoques de mercadorias para posterior venda, para produzir as mercadorias de acordo com o volume do consumo, isto é, de encomendas. A nova ordem da produção parte da venda do produto para o pedido de compra de insumos para a produção e a imediata entrega ao comprador (just-in-time). Nesta nova ordem, o tempo de vida dos produtos foi reduzido, aumentando o ciclo de produção e consumo.

Tendo como principal objetivo a elevação das taxas de lucratividade para a superação da crise do capitalismo no final do século XX, a reestruturação foi realizada com a adoção de um novo padrão de organização da produção, baseado em novas tecnologias, novos métodos de gestão da produção de mercadorias, novas formas de utilização da força de trabalho e novas regras de atuação do Estado, constituindo, desta forma, uma nova hegemonia do capital. Harvey (2000) denominou este modelo de “acumulação flexível”, um modo novo de organização e de gestão da produção, que:

[...] se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (p.140).

Estas transformações do sistema produtivo produziram mudanças significativas nas relações de trabalho e no perfil de trabalhador. O novo contexto de produção passou a valorizar o trabalhador com formação geral e com capacidades e habilidades para desenvolver diversas tarefas e autonomia para tomar decisões durante o processo de produção (flexibilidade). Estas mudanças têm se manifestado nas relações de trabalho em:

· desemprego “estrutural”, devido à rápida destruição e reconstrução de habilidades, redução dos salários e retrocesso no poder sindical nos países centrais e periféricos. Contribui, também, para a elevação do nível de desemprego a distribuição geográfica da produção, em escala mundial, tendo como condição básica o custo reduzido da mão-de-obra, que tem criado pólos especializados e tem cortado o número de empregos.

· imposição de um novo tipo de trabalhador, caracterizado pela capacidade para desempenhar múltiplas tarefas, isto é, amplia os requisitos de capacidades e habilidades, o que permite ao capital ampliar a exploração do trabalhador;

· precarização das relações de trabalho através das novas práticas de flexibilização da produção, como a terceirização de parte ou de toda a produção. Esta prática disseminada nas empresas nacionais e transnacionais elimina empregos na busca de redução de custos e elevação dos índices de lucratividade, via a terceirização de parte de seu trabalho ou a transferência de operações para regiões com mão-de-obra mais barata.

· desestruturação das organizações trabalhistas, que passaram a ter grandes dificuldades na luta pela garantia dos direitos trabalhistas adquiridos, dada à desagregação do trabalho coletivo pelo desmonte dos processos de produção, bem como de setores ou unidades inteiras de produção, e pelo deslocamento para outras localidades sem tradição na defesa dos interesses dos trabalhadores.

A reestruturação do capitalismo, implementada pela intensiva aplicação de novas tecnologias, adoção de novas formas de gestão da produção e de novas formas de controle do trabalho, impôs o redimensionamento da atuação do Estado, no sentido de redução da interferência nas políticas econômicas, assim como, na redução das políticas de proteção social. São regras novas que preconizam o estabelecimento de políticas de redução da participação do Estado na economia e de redução das políticas sociais. No bojo dessas mudanças, os líderes da Inglaterra e dos Estados Unidos, a Primeira Ministra Margaret Thatcher e o Presidente Ronald Reagan, iniciaram a implementação de um conjunto de políticas neoliberais no plano econômico, cultural e educacional. Neste sentido, em 1989, um novo cenário internacional foi planejado pelos países ricos, divulgado no documento que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, com base na organização e no estabelecimento de uma agenda para manter a posição hegemônica.

O Consenso de Washington impôs medidas e regras aos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades e traçou um programa ultraconservador monetarista de ajuste mediante reformas que permitissem a desregulamentação da atividade econômica, privatização do patrimônio público e a abertura, sem restrições, das economias nacionais (periféricas e semiperiféricas) ao mercado e competição internacional. (FRIGOTTO, 2006); (GENTILI, 1998). Durante a década de 1980, os processos de reestruturação do capitalismo e de redimensionamento da atuação do Estado tiveram baixa repercussão no Brasil, devido à fase de transição da ditadura militar à redemocratização da sociedade brasileira, com os:

[...] embates entre as frações de classe da burguesia brasileira (industrial, agrária e financeira) e seus vínculos com a burguesia mundial e destas em confronto com a heterogênea classe trabalhadora e os movimentos sociais que se desenvolverem em seu interior. A questão democrática assume centralidade nos debates e nas lutas em todos os âmbitos da sociedade ao longo dessa década. ” (FRIGOTTO, 2006, p. 34).

Os primeiros movimentos de reestruturação produtiva no Brasil surgiram quando algumas empresas introduziram novas formas de organização da produção, inovações tecnológicas e mudanças nas relações de trabalho. Através da implantação de modelos oriundos de experiências desenvolvidas nos países centrais do capitalismo, que já estavam em estágio avançado da acumulação flexível, iniciou-se a informatização da produção, a utilização da microeletrônica e foram introduzidas algumas técnicas de gerenciamento1 como: just-in-time, kanban, administração participativa, círculos de controle de qualidade (CCQ) e outros. Em decorrência desses processos de reestruturação da produção e da gestão do trabalho, ocorreu uma crescente redução da força de trabalho, em especial, na segunda metade da década de 1990.

De modo sintético pode-se dizer que a necessidade de elevação da produtividade ocorreu através de reorganização da produção, redução do número de trabalhadores, intensificação da jornada de trabalho dos empregados, surgimento dos CCQ’s (Círculos de Controle de Qualidade) e dos sistemas de produção just-in-time e kanban, dentre os principais elementos. (ANTUNES, 2003)

Além do aumento do número de desempregados, ocorreu a precarização das relações de trabalho, porque grande número de ex-assalariados foram reinseridos no sistema produtivo em empresas “terceirizadas”, subcontratados, de firmas criadas para prestar o serviço terceirizado, que antes eram assalariados ou integrantes de falsas cooperativas, que isentavam os contratantes de pagamento dos direitos trabalhistas. (SINGER, 2001, p. 115). Desta forma, as relações de trabalho, instituídas no Brasil no final do século XIX e consolidadas no decorrer do século XX, passaram a vivenciar nas últimas décadas desse século o seu desmonte. Neste novo contexto produtivo, a escola é, mais uma vez, convocada a cumprir o papel de realizar a adequação dos trabalhadores às novas demandas do capital.

Reestruturação produtiva e formação do trabalhador flexível

A reestruturação produtiva se desenvolveu no Brasil de forma efetiva somente a partir de 1990, com as reformas econômicas e políticas, de caráter neoliberal, iniciadas pelo governo de Fernando Collor, e teve como consequência o escancaramento da economia brasileira ao capital internacional. A abertura total do mercado brasileiro permitiu a imediata instalação no Brasil de muitas empresas multinacionais, resultando em mudanças nas relações de produção e no mundo do trabalho. Em muitos setores da economia brasileira, ocorreram mudanças rápidas, passando do modelo de produção taylorista/fordista para modelos novos de produção, caracterizados pela flexibilidade, denominados por alguns estudiosos como neofordismo, toyotismo, dentre outros.

As rápidas mudanças produzidas pela reestruturação da produção e pela globalização da economia brasileira introduziram novas relações de trabalho e um novo perfil de trabalhador adaptado às demandas de uma produção flexível, que passou a requisitar um trabalhador polivalente2, dotado de conhecimentos e habilidades capazes de acompanhar o ritmo da produção e responder às variadas situações presentes na produção. Como desdobramento dessas transformações, a educação foi diretamente afetada, em especial a educação profissional, devido às mudanças dos processos de trabalho e das formas de sua organização e gestão, que tornaram superadas as formas tradicionais de educação profissional calcadas em moldes rígidos do regime de produção taylorista / fordista. Na análise de Kuenzer (1999, p.168):

Estas formas eram adequadas à educação profissional de um trabalhador que executava ao longo de sua vida produtiva, com pequenas variações, as mesmas tarefas exigidas por um processo técnico de base rígida, para o que era suficiente alguma escolaridade, muitas vezes dispensável, treinamento e experiência, que combinavam o desenvolvimento de habilidades psicofísicas e comportamentos com algum conhecimento, apenas o necessário para o exercício da ocupação, predominantemente instrumental e mecânica..

À medida que ocorreu a passagem dos processos de produção de base rígida das formas do taylorismo/fordismo para os de base flexível, muitas empresas em todos os setores da economia brasileira, passaram a requerer um trabalhador com formação adequada ao novo padrão de produção. Segundo Kuenzer (1998, p. 120), esse novo trabalhador deveria ter as seguintes características:

[...] a capacidade de comunicar-se adequadamente através do domínio dos códigos e linguagens incorporando, além da língua portuguesa, a língua estrangeira, e as novas formas trazidas pela semiótica; a autonomia intelectual, para resolver problemas práticos utilizando os conhecimentos científicos, buscando aperfeiçoar-se continuamente; a autonomia moral, através da capacidade de enfrentar as novas situações que exigem posicionamento ético; finalmente, a capacidade de comprometer-se com o trabalho, entendido em sua forma mais ampla de construção do homem e de sociedade, através da responsabilidade da crítica, da criatividade.

Cabe ressaltar que a forma como se descreve o perfil do trabalhador requisitado pelo modelo de produção flexível possibilita o entendimento que o novo contexto produtivo criou as condições e oportunidades para a educação integral dos trabalhadores nessa nova fase do capitalismo. No entanto, historicamente, a educação integral não é garantida para todos, porque na prática confirma-se a tese da polarização das competências, por manter, na maioria das empresas, um grupo pequeno de trabalhadores responsáveis pelas atividades de criação e gerência, com acesso aos conhecimentos científicos e tecnológicos adquiridos em universidades conceituadas, para os quais há a ampliação da exigência de maior qualificação. Para a grande massa dos trabalhadores, que continua a ser explorada pelo capital de forma predatória em trabalhos precarizados de diversas formas e níveis, há pouquíssimas exigências de formação escolarizada, por se exigir, em geral, apenas a formação básica. O capital, ao ampliar a exploração da força de trabalho, requisitando um tipo de trabalhador polivalente, possuidor de múltiplas competências, está estabelecendo formas de exclusão e inclusão dos trabalhadores de acordo com os seus interesses, isto é, de acordo com a lógica da acumulação. Segundo Kuenzer (2008, p. 492), no regime de acumulação flexível,

[...] ocorre um processo de exclusão da força de trabalho dos postos reestruturados, para incluí-la de forma precarizada em outros pontos da cadeia produtiva. Já do ponto de vista da educação, se estabelece um movimento contrário, dialeticamente integrado ao primeiro: por força de políticas públicas ‘professadas’ na direção da democratização, aumenta-se a inclusão em todos os pontos da cadeia, mas se precarizam os processos educativos, que resultam em mera oportunidade de certificação, os quais não asseguram nem inclusão nem permanência.

Enquanto, no regime taylorismo/fordismo, as ocupações eram definidas e estáveis, no regime de produção flexível, há o “[...] o consumo flexível de competências diferenciadas, que se articulam ao longo das cadeias produtivas”. (KUENZER, 2008, p. 493). O consumo flexível de competências diferenciadas verifica-se, também, na lavoura de cana-de-açúcar quando os trabalhadores chegam ao local de trabalho sem saber quais serão as suas atividades laborais naquele dia.

A preferência pelo trabalhador polivalente não é de agora na lavoura canavieira e, considerando‑se a diferencialidade com que se territorializa, suas atividades são redimensionadas em função da mecanização do corte. Dessa forma, é muito comum os trabalhadores saírem para o trabalho sem saber, antecipadamente o que vão fazer, se cortar cana, plantar ou qualquer outra atividade. Sob controle direto dos gerentes agrícolas e seus subordinados, pautados pelas determinações da planta fabril, realiza‑se o planejamento de todas as atividades do canavial por setores específicos: colheita, plantio, limpa, tratos culturais, irrigação, pesquisas laboratoriais, defensivos agrícolas, manutenção etc., com o propósito de montar as escalas de trabalho. Isso é facilitado com a diminuição da rotatividade da força de trabalho, em consonância com a demanda, de tal forma que todos façam de tudo ‑ até um certo limite ‑, facilitando a fiscalização e o controle do trabalho. (THOMAZ Jr., 2002, p. 205).

Desta forma, no modelo da acumulação flexível, o trabalhador não tem garantias de inclusão nas diversas formas de organização do trabalho, porque a utilização de sua força de trabalho é determinada pelas necessidades da produção. Assim, devido à utilização flexível da força de trabalho, não é relevante para a produção o nível de qualificação do trabalhador e sim a sua capacidade de responder exigências variadas da produção, isto é, prefere-se o trabalhador polivalente, dotado de múltiplas competências. Ainda que o consumo flexível das competências ocorra de acordo com as necessidades da produção, tem sido recorrente o discurso da necessidade de ampliação dos níveis de escolaridade dos trabalhadores. Esse discurso, apesar de ter se generalizado na sociedade, não deixa de ser mais uma forma do capital providenciar a reprodução do exército de reserva da força de trabalho com

[...] qualificações desiguais e diferenciadas que, combinadas em células, equipes, ou mesmo linhas, atendendo a diferentes formas de contratação, sub-contratação e outros acordos precários, assegurem os níveis desejados de produtividade, por meio de processos de extração de mais-valia que combinam as dimensões relativa e absoluta (KUENZER, 2007, p. 1168).

O discurso ideológico e hegemônico da necessidade de ampliação da escolaridade dos trabalhadores é criticado por Castro (2004, p. 85), observando que

[...] a tendência geral ao aumento do tempo médio de escolarização não se explica apenas, nem principalmente, pelo hipotético aumento das exigências de qualificação dos empregos disponíveis; deve-se, talvez em maior grau, ao crescimento das demandas de escolaridade como instrumento competitivo entre os próprios trabalhadores e também às demandas “extra-econômicas”. [Assim, como ] a gradativa expansão da escolaridade obrigatória não pode ser atribuída exclusivamente às crescentes exigências de escolaridade dos empregadores; depende também do aumento das exigências humanas de conhecimento do seu entorno natural e social, assim como das estratégias oficiais de enquadramento de crianças e jovens e da necessidade oficial de dissimulação das elevadas taxas de desemprego, em particular do escandaloso desemprego juvenil.

Para Frigotto (2008, p. 523), o que determina a formação do trabalhador flexível é o fetiche e o determinismo tecnológico3 que busca dotá-lo de “[...] competências que se enquadram na lógica do ‘cidadão produtivo’ prontamente adaptável e que produz em tempo mínimo, qualidade máxima e cuja mercadoria ou serviço se realizem no mercado imediatamente”. Neste sentido, observa que a formação do trabalhador flexível é incompatível com a educação omnilateral e politécnica e com a escola unitária e centra-se na concepção de formação polivalente em cursos de curta duração, com conteúdos mais restritos (tecnicista) e mais barato. Essas formas aligeiradas de formação profissional têm o objetivo declarado de atender aos interesses do capital, para o qual:

[...] o sistema de ensino é convocado a fornecer formação continuada ou educação permanente de novas “competências”. Trata-se, a rigor, de pacotes de formação profissionalizante sob encomenda, isto é, formação acelerada e utilitária para o desempenho de postos de trabalho, continuamente redesenhados pelas empresas, em função da sua estratégia competitiva variável (CASTRO, 2004, p. 82).

Para Castro (2004), trata-se de um processo de empresarialização da educação pública, que atribui à escola a função de

[...] produzir operadores com “competências” variáveis, isto é, um “novo tipo de trabalhador”: multifuncional, intercambiável e descartável, segundo o modelo de fast food, utilizável na quantidade, no lugar e pelo tempo desejado pelo comprador (CASTRO, 2004, p. 82).

No contexto produtivo atual, a educação básica se tornou fundamental para a formação do trabalhador em geral, pela função que cumpre de fornecer conhecimentos básicos e competências cognitivas mais simples e por integrar o trabalhador à vida social e produtiva. Para Acácia Kuenzer (2007, p. 1169)

[...] a educação geral, assegurada pelos níveis que compõem a educação básica, tem como finalidade dar acesso aos conhecimentos fundamentais e às competências cognitivas mais simples, que permitam a integração à vida social e produtiva em uma organização social com forte perfil científico-tecnológico, um dos pilares a sustentar o capitalismo tardio, na perspectiva do disciplinamento do produtor/consumidor; e, por isso, a burguesia não só a disponibiliza, mas a defende para os que vivem do trabalho.

Historicamente, a burguesia tem defendido a educação básica para os trabalhadores como forma de disciplinamento do cidadão produtor e consumidor. No sentido oposto, para os trabalhadores executores do trabalho intelectual e de atividades complexas na ponta qualificada das cadeias produtivas, a educação básica é rito de passagem para a educação científico-tecnológica e sócio-histórica de alto nível, “[...] de modo a assegurar que a posse do que é estratégico, nesse caso o conhecimento que permite inovação, permaneça com o capital. (KUENZER, 2008, p. 495/6). No taylorismo/fordismo, a competência é predominantemente psicofísica e fragmentada, advinda antes da experiência do que da relação com o conhecimento sistematizado. No modelo da produção flexível, o conhecimento tácito4 não desaparece, mas muda de qualidade, passando a exigir maior aporte de conhecimentos científicos, que não podem ser obtidos somente por meio da prática, senão por meio de cursos sistematizados. Apesar da valorização do conhecimento tácito, contraditoriamente os trabalhadores têm maior dependência de conhecimentos científicos a serem obtidos por meio de processos formativos escolares e não-escolares, o que indica um cenário de dualidade da educação profissional.

Poucos trabalhadores conseguem obter esses conhecimentos, devido às dificuldades da maioria em realizar uma qualificação intelectualizada, em decorrência da precarização cultural derivada da origem de classe. Estes trabalhadores tendem ou à exclusão ou à inclusão nos setores mais precarizados nos arranjos flexíveis de força de trabalho. (KUENZER, 2008).

As transformações do trabalho na agroindústria canavieira

Na lavoura canavieira, a mecanização é responsável pela maior parte da redução dos postos de trabalho, em particular no corte da cana-de-açúcar, em que uma máquina colheitadeira provoca a redução de 80 a 100 postos de trabalho, enquanto emprega apenas um ou dois trabalhadores para operá-la. Na usina e na destilaria, o processo avançado de automação de todas as fases operacionais tem reduzido a quantidade de operários, sendo que, no novo ambiente automatizado de produção, o aproveitamento dos trabalhadores é mínimo. Segundo o estudo de José Marangoni Camargo, professor de economia da UNESP (Marília), em 30 anos, no Estado de São Paulo, aproximadamente 700 mil pessoas perderam o emprego, sendo que a maioria não conseguiu voltar ao mercado de trabalho por causa da mecanização da agricultura (ANDRIOTTI, 2007). A crescente introdução de tecnologia na produção canavieira tem provocado mudanças quantitativa e qualitativa na demanda por trabalhadores, uma vez que têm surgido novas funções, que requerem maior grau de qualificação, como: tratoristas, motoristas, operadores de máquinas.

Em São Paulo, conforme informação dos sindicatos patronais, atualmente o carregamento, transporte e cultivo da cana-de-açúcar são 100% mecanizados, sendo a colheita aproximadamente 35% mecanizada. Portanto, a colheita, que em média representa 30% do custo de produção da cana-de-açúcar, ainda utiliza um grande contingente de homens e máquinas (guinchos, caminhões). (MORAES, 2007)

No contexto atual, a agroindústria canavieira tem como principal característica a bipolaridade, por depender, por um lado, que a produção da cana-de-açúcar, do açúcar e do álcool utilize tecnologias avançadíssimas, enquanto as relações e as condições de trabalho, em particular na lavoura canavieira, são consideradas desumanas, num nível de exploração semelhante à escravidão. De um lado, há a utilização dos sofisticados e complexos sistemas de produção tanto na lavoura quanto na fábrica e, de outro lado, o trabalho bruto semelhante à escravidão, que ainda existe nas lavouras canavieiras, explorando as energias vitais dos trabalhadores, em geral, migrantes originários das regiões mais pobres do país.

A mecanização das lavouras tem alterado o perfil dos cortadores de cana-de-açúcar e a lógica da produção. Enquanto as máquinas não substituem completamente o corte manual, os bóias-frias, cada vez mais jovens, se veem obrigados a duplicar – ou triplicar - a própria produtividade para competir com as inovações tecnológicas, manter o emprego e garantir uma boa remuneração no fim do mês. Este ritmo de trabalho alucinante tem aumentado a incidência de lesões e doenças laborais e, eventualmente, levado até à morte5. A ameaça de mecanização imediata da colheita da cana-de-açúcar é utilizada para pressionar os trabalhadores braçais a cortar ao menos 10 toneladas de cana por dia. As marcas médias variam de 12 a 15 toneladas, que são o dobro de 30 anos atrás. Como o salário está atrelado à produtividade, os cortadores trabalham no limite da capacidade física.

[...] as usinas estimulam essa prática, com técnicas de motivação psicológica e premiação para quem atinge as metas da empresa. Os “campeões de produtividade” ganham bicicletas, geladeiras, fogões. A rotina é árdua, mas os empregados agradecem a Deus por ter trabalho. (MARTINS, 2007)

Os estudos de Alves (2006, p. 96) detalham bem as atividades em excesso dos trabalhadores no corte da cana, que têm provocado casos de mortes nos canaviais

Um trabalhador que corta 12 toneladas de cana, em média, por dia de trabalho realiza as seguintes atividades no dia: • Caminha 8.800 metros; • Despende 133.332 golpes de podão; • Carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 kg; em média; portanto, faz 800 trajetos e 800 flexões, levando 15 kg nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros; • Faz aproximadamente 36.630 flexões e entorses torácicos para golpear a cana; • Perde, em média, 8 litros de água por dia, por realizar toda esta atividade sob sol forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada, trajando uma indumentária que o protege da cana, mas aumenta sua temperatura corporal. Com todo este detalhamento da atividade do corte de cana, fica fácil entender por que morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em São Paulo: por causa do excesso de trabalho.

Além do excesso de esforço físico, que pode causar paradas respiratória e cardiovascular, a inalação de gás cancerígeno liberado quando se corta a cana queimada é outro fator que contribui para os óbitos. O corte manual é muito barato porque o lucro dos empresários é resultado, entre outros fatores, da exploração do trabalhador. Como lembra a professora Maria Aparecida de Moraes Silva (2004, p. 49), “[...] muitas vidas foram ceifadas em função das longas jornadas e das péssimas condições de trabalho. Na expressão marxiana, o capital era o vampiro que se alimentava do sangue dos trabalhadores”.

Educação e qualificação profissional da força de trabalho

As ações efetivas do Estado com o objetivo de reformar a educação profissional nos moldes da acumulação flexível foram acionadas nos primeiros anos da década de 1990. Neste sentido, pode-se assumir como marco inicial desse processo a criação do Sistema Nacional de Educação Tecnológica, que foi instituído pela Lei 8.948, de 08 de dezembro de 1994, que teve o efeito imediato de transformar as Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de Educação Tecnológica. Em 1996, o Governo de Fernando Henrique Cardoso enviou o projeto de lei nº 1603/96 com a proposta de reformar a educação profissional para atender às novas demandas da produção. Este projeto de lei encampava a proposta empresarial de educação profissional. (SOUZA, 2002, p. 85). O projeto de lei foi objeto de intensas discussões no âmbito do Congresso por parlamentares e representantes da sociedade civil, em especial as entidades representativas dos profissionais ligados diretamente com a educação profissional. Ocorreram muitos protestos devido às significativas mudanças que produziria nas redes de ensino profissional, particularmente na rede federal de educação profissional.

A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases em dezembro de 1996, com um caráter minimalista, permitiu ao governo a oportunidade de retirar o projeto de lei nº 1603/96 e no ano seguinte impor, na forma de Decreto-Lei a reforma da educação profissional com o mesmo conteúdo encaminhado no projeto de lei sem considerar as reclamações da sociedade em geral. Assim, o Decreto-Lei nº 2.208/97, de 17 de abril de 1997, reformou a educação profissional no sentido de incorporar as demandas da nova fase do capital, provocando o retorno à dualidade estrutural do ensino médio, com a diferenciação dos cursos de caráter propedêutico e profissional, assim como adaptou a organização e o currículo da educação profissional às exigências impostas pelo setor produtivo (BRASIL, 1997b). O decreto-lei nº 2.208/97 promoveu a reforma estrutural da educação profissional, mas coube ao Conselho Nacional de Educação estabelecer as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - Parecer CEB/CNE n. 15/98 (BRASIL, 1998) e para a Educação Profissional de Nível Técnico - Parecer CEB/CNE n. 16/99 (BRASIL, 1999).

Com o Decreto-Lei nº 2208/97, a educação profissional ficou organizada da seguinte forma: - o nível básico para os trabalhadores jovens e adultos, independente da escolarização anterior, com o objetivo expresso de qualificar e requalificar. Os cursos dados neste nível estão sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho, para o qual foram instituídos o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT e o Plano Nacional de Educação Profissional - PLANFOR, tendo em vista promover a qualificação e a requalificação de jovens e adultos com risco de desemprego ou desempregados. Estes cursos compõem-se de “[...] atividades pontuais, tópicas, dentro de uma perspectiva compensatória de assistência e de caráter descontínuo. ” (FRIGOTTO, 1998, p. 233). - O nível técnico destina-se para os alunos matriculados ou egressos do ensino médio, com uma organização curricular específica e independente do ensino médio. - O nível tecnológico, de nível superior, tem a finalidade de formar tecnólogos em diferentes especialidades e oferecido aos alunos que concluíram o ensino médio e técnico (FRIGOTTO, 1998).

Ainda em 1997, o Decreto n. 2.406 consolidou a transformação de todas as Escolas Técnicas Federais em CEFETs e sob esse molde, os cursos superiores de tecnologia passaram a cumprir a mesma função dos antigos cursos técnicos de nível médio, enquanto o nível técnico forma operários qualificados.

Na verdade, com as mudanças da base técnica da produção e com os novos modelos de gestão do trabalho, os níveis técnico e tecnológico da educação profissional formariam, respectivamente, operários (com o título de técnicos) e técnicos (com o título de tecnólogos) para o trabalho complexo, enquanto no nível básico seriam formados os operários para o trabalho simples. Um processo resultante da necessidade de se elevar a base de escolaridade mínima de todos os trabalhadores. (FRIGOTTO, 2005)

Além do Decreto-Lei nº 2.208/97, a reforma da educação profissional foi complementada com outros instrumentos legais emitidos pelo governo, como a Portaria SEMTEC/MEC n. 646/97, que regulamentou a implantação do disposto nos artigos 39 a 42 da Lei Federal nº 9.394/96 - (LDB) (BRASIL, 1997a) e no Decreto Federal nº 2.208/97 e tratou da implantação da rede federal de educação tecnológica. (BRASIL, 1997b). A política de educação profissional do governo Fernando Henrique Cardoso, além de reformar o ensino técnico, promoveu outras ações com o objetivo de qualificar e requalificar os trabalhadores, num processo de transferência da responsabilidade para os próprios trabalhadores por estarem desempregados ou sujeitos a perderem o emprego. Desta forma, o governo se esquivou de discutir com a sociedade e tomar medidas para atacar as verdadeiras causas dos altos índices de desemprego.

Esse ideário teve nas noções de “empregabilidade” e “competências” um importante aporte ideológico, justificando, dentre outras iniciativas, projetos fragmentados e aligeirados de formação profissional, associados aos princípios de flexibilidade dos currículos e da própria formação. [...] Essa e outras avaliações demonstravam que o procedimento do MEC e do MTE, o primeiro pela reforma da educação profissional e incentivos do PROEP e o segundo pelo PLANFOR, visava atender a demandas por qualificação e (re) qualificação profissional da população adulta de baixa escolaridade através de uma rede específica de cursos de qualificação profissional de curta duração (educação profissional básica) completamente dissociados da educação básica e de um plano de formação continuada. (FRIGOTTO, 2005).

Neste sentido, o governo implementou o Programa de Reforma da Educação Profissional – PROEP, por meio da Portaria do MEC nº 1.005, de 10 de setembro de 1997. O PROEP é um programa do Ministério da Educação em parceria com o Ministério do Trabalho e Emprego e com o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID que visa à expansão, modernização, melhoria de qualidade educacional e à permanente atualização profissional no País, através da ampliação e diversificação da oferta de vagas; da adequação de currículos e cursos às necessidades do mundo do trabalho; da qualificação, reciclagem e re-profissionalização de trabalhadores, independente do nível de escolaridade e da formação e habilitação de jovens e adultos nos níveis médio (técnico) e superior (tecnológico). No tocante às políticas de qualificação profissional dos anos 1990, o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT e o Plano Nacional de educação Profissional – PLANFOR se tornaram a principal linha de atuação do governo. O PLANFOR foi implementado a partir de 1996 pelo Ministério do Trabalho e de Emprego (MTE), com recursos do FAT, tendo o objetivo de mobilizar e articular, gradualmente, toda a capacidade e competência de educação profissional disponível no país. Promovendo, assim, a constituição e articulação de uma ampla rede nacional de instituições públicas e privadas voltadas para a Educação Profissional. A partir de 2003, o PLANFOR passou a se chamar Plano Nacional de Qualificação - PNQ.

Em 23 de julho de 2004, a educação profissional foi novamente reformada através do Decreto nº 5.154/04 pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Esse Decreto restabeleceu o relacionamento entre o Ensino Médio (propedêutico) e a Educação Profissional de nível técnico, de forma a possibilitar a formação profissional subsequente ou concomitante ou ainda a formação integrada. O Decreto 5.154/04, longe de ser um avanço no sentido da educação politécnica, promoveu uma reforma conservadora. Na análise de Rodrigues (2005),

Com efeito, se o decreto 2.208/97 reproduzia, de certa forma, a reforma Gustavo Capanema (também conhecida como “leis” orgânicas do ensino), de 1942, o novíssimo decreto parece inspirar-se na lei 7.044 de 1982. Lei essa que “reformou a reforma” do regime militar (lei 5.692/71). Em síntese, a educação profissional brasileira deu um salto no tempo: deixamos o ano de 1942 e avançamos até 1982.

A qualificação profissional na agroindústria canavieira

Apesar de ainda continuarem baixos em relação a outros setores produtivos do Brasil, o nível educacional dos trabalhadores na agroindústria canavieira teve melhora significativa desde o início da década de 1990, segundo estudo realizado por Márcia Azanha Ferraz Dias de Moraes (2007) e com base nos indicadores do mercado de trabalho no período 1992-2005, fornecidos pelos dados das PNADs (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e dos RAIS (Registros Administrativos do Ministério do Trabalho e Emprego). Os dados do estudo mostram que 14,2% dos empregados permanentes com residência urbana em 2005 tinham escolaridade acima dos oito anos de estudo, enquanto, em 1992, eram apenas 1,5%. Os permanentes rurais eram 5,0% em 2005 com escolaridade acima dos oito anos de estudo contra apenas 1,9% em 1992. Os temporários urbanos eram 9,7% contra 0,2% e os temporários rurais 7,4% contra 0,3%.

Apesar da melhoria nos indicadores educacionais dos trabalhadores da agroindústria canavieira em quase uma década e meia, ainda permanecem condições adversas de trabalho, sobretudo para os empregados temporários ocupados na colheita manual da cana-de-açúcar, que continuam superexplorados pelo capital. Os indicadores de escolaridade indicam a prevalência do grupo de trabalhadores com quatro anos de estudo incompletos (35,2%), seguido pelo grupo de quatro anos completos (18,8%). Nota-se que o índice de analfabetos (11,3%), ainda é alto, apesar das diferenças regionais.

A análise das principais regiões produtoras de forma separada mostra que o perfil educacional dos trabalhadores se altera de forma significativa, apresentando um grande contraste entre as regiões Norte-Nordeste e Centro-Sul. A região Norte-Nordeste tem o índice de 24,6% de trabalhadores analfabetos, enquanto a região Centro-Sul tem um índice bem menor de trabalhadores analfabetos, 3,5%. Quando se junta o índice de trabalhadores analfabetos com os que têm quatro anos de estudo incompletos (46,9%) da região Norte-Nordeste totaliza-se 71,5% dos trabalhadores, isto é, aproximadamente dois terços dos trabalhadores. A região Centro-Sul apresenta indicadores de educação melhores em relação à região Norte-Nordeste. Na cultura de cana-de-açúcar 4,3% dos trabalhadores são analfabetos e a proporção dos que têm quatro anos de estudo incompletos é de 30,3% (juntos respondendo por 34,6% dos trabalhadores), verifica-se parcela de 25,2% de empregados com quatro anos completos de estudo; na produção de açúcar 2,3% são analfabetos e 17,8% têm quatro anos de estudo incompletos e, na produção de álcool 3,7% são analfabetos e 26,9% têm quatro anos de estudo incompletos. Por fim, observa-se que os trabalhadores na agroindústria canavieira com ensino médio completo ou nível superior não atingem 10% dos trabalhadores do setor.

Assim, com o acelerado crescimento da agroindústria canavieira nos últimos cinco anos, as usinas necessitam cada vez mais de mão-de-obra qualificada aos novos padrões de produção. Para suprir essa demanda por trabalhadores qualificados, algumas instituições escolares públicas e privadas, juntamente com as empresas e as instituições representativas dos empresários e dos trabalhadores têm criado novos cursos profissionalizantes para o setor canavieiro. No nível superior foram criados alguns cursos de graduação em agronomia e em engenharia, que têm uma carga horária ampliada com conteúdos específicos sobre o setor canavieiro. Em nível de pós-graduação foram criados alguns cursos voltados para a formação especializada de profissionais para o setor.

No país, dez instituições oferecem cursos superiores em tecnologia em produção sucroalcooleira, segundo o MEC (Ministério da Educação). Do total, sete surgiram nos últimos dois anos e seis deles estão em São Paulo, Estado responsável por esmagar 59,4% da cana de todo o país. Instituições tradicionais de Bauru e do Interior planejam abrir ao menos cinco novos cursos para a área nos próximos dois anos. (AZEVEDO, 2007b)

Alguns desses cursos de especialização são promovidos por universidades públicas, como a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) que tem o curso de pós-graduação do MTA (Master of Technology Administration) em gestão tecnológica do setor sucroalcooleiro em Araras e Catanduva; a ESALQ (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz) da USP (Universidade de São Paulo) oferece, desde 2002, cinco cursos de especialização para a área – mas, nos últimos dois anos, a procura aumentou superando as vagas oferecidas. (AZEVEDO, 2007b). No nível médio do ensino técnico, há a opção de formação nas Escolas Técnicas Estaduais do Centro Paula Souza no “curso técnico em açúcar e álcool” e no “curso técnico de análise e produção de açúcar e álcool”, que são oferecidos em 13 cidades do interior paulista. As empresas do setor e suas entidades representativas, também oferecem cursos rápidos para a qualificação de mão-de-obra para suprir a necessidade de contratar cada vez mais trabalhadores especializados por conta da mecanização e da automação. Segundo a UNICA (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), nas regiões onde a mecanização está mais avançada, há falta de trabalhadores qualificados para atender à demanda. As usinas têm investido em programas de especialização, treinamento e recolocação da mão-de-obra contratada.

Para solucionar o problema na região, três usinas se reuniram e estão financiando um curso de mecânica de máquinas agrícolas no Senai, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. “Hoje estamos num nível avançado, tem a questão da eletrônica veicular. Esse mecânico abrange toda essa demanda de manutenção, para dar atendimento ao setor”, afirma José Fabri, diretor do Senai. (AZEVEDO, 2007a)

O setor está contratando, particularmente, destiladores, encarregados de moenda, operadores de caldeira e de máquinas em geral, caldeireiros, técnicos em fermentação, filtro e tratamento de caldo, soldadores, motoristas e tratoristas.

Para que uma colheitadeira funcione 24 horas por dia, são necessários três operadores; a cana que ela corta abastece dois tratores, que fazem o transbordo – e são mais seis tratoristas; para que a cana chegue até a usina, são necessários mais três caminhões, e nove motoristas. Ou seja: toda a operação envolve 18 funcionários. (AZEVEDO, 2007a).

Outras iniciativas têm partido dos fabricantes de máquinas, que estão formando parcerias para qualificar funcionários para os novos equipamentos. Os sindicatos dos trabalhadores, também, estão mobilizados na criação de cursos que qualifiquem a mão-de-obra. Essas iniciativas de criação de cursos específicos para o setor canavieiro ilustram bem a concepção de formação do trabalhador na acumulação flexível, que tem, na educação geral, composta pelos níveis da educação básica, a base que possibilita a aquisição posterior de competências diferenciadas. Esses cursos profissionalizantes nos níveis médio e superior qualificam os trabalhadores com algumas competências, dando-lhes a condição de empregabilidade. Desta forma, passam a compor o exército de trabalhadores com competências diferenciadas disponíveis para as empresas consumirem de acordo com as necessidades da produção.

Considerações finais

As transformações nos processos produtivos e na gestão do trabalho vivenciadas nas últimas décadas e caracterizadas pelo padrão da acumulação flexível, têm influenciado todos os setores da sociedade. Os processos educativos escolares e não-escolares foram diretamente afetados por essas transformações, provocando mudanças que superam as formas tradicionais de educação profissional, caracterizadas pelos princípios do taylorismo/fordismo.

Os novos processos educativos para a formação profissional são caracterizados pela flexibilidade, que oferecem a possibilidade do trabalhador adquirir algumas competências (conhecimentos parcelados) de forma que esteja apto a atender ao mercado de trabalho quando e como este tiver necessidade. Nesse contexto de ampliação da divisão e da precarização do trabalho, cada vez mais, torna inviável a perspectiva de se ter uma educação integral para o trabalhador.

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Notas

1 As técnicas de gerenciamento: just-in-time - comprar ou produzir somente a quantidade necessária (nem mais - nem menos) para satisfazer a demanda no momento necessário (nem antes - nem depois) e na qualidade desejada; o kanban é um modo de gestão descentralizada dos fluxos de informação e dos fluxos de produção; administração-participativa e os círculos de controle de qualidade (CCQ) com o objetivo de levantar junto aos operários os problemas de qualidade e propor soluções.
2 “[...] a polivalência nada mais é do que a combinação de várias tarefas simples. Não devemos nos enganar: é no centro técnico da empresa que estão os profissionais altamente capacitados, responsáveis pelo desenvolvimento tecnológico, e não no chão da fábrica [...] [Neste último] o trabalho continua altamente repetitivo”. WATANABE, 1993, apud DELUIZ et. al., 1999, p.55)
3 “O fetiche tecnológico se expressa pela autonomização da tecnologia mascarando as relações sociais de classe que a definem, a produzem e apropriam privadamente. Dele decorre o determinismo tecnológico que, [...] passa a ideia de que os problemas da humanidade hoje podem ser resolvidos apertando um botão. Determinismo esse que encobre o aprofundamento da violência de classe”. (FRIGOTTO, 2008, p. 523),
4 Segundo Nonaka e Takeuchi (1997), o conhecimento tácito refere-se ao conhecimento pessoal, calcado em experiências pessoais com insumos subjetivos. O conhecimento tácito é de mais difícil representação e dependente dos modelos mentais, crenças, valores e experiência. Estes modelos mentais são esquemas, paradigmas, perspectivas, crenças e pontos de vistas que auxiliam os indivíduos a perceberem e entenderem o seu mundo. O conhecimento tácito é adquirido pela prática, está associado às habilidades pessoais, às aptidões profissionais, não sendo transmitido através de manuais ou descrições, mas frequentemente transmitido segundo um modelo “Mestre – Aprendiz”.
5 As consequências desse sistema de exploração-dominação são: - de 2004 a 2007, ocorreram 21 mortes, supostamente por excesso de esforço durante o trabalho, objeto de investigação do Ministério Público; - minhas pesquisas em nível qualitativo na macrorregião de Ribeirão Preto apontam que a vida útil de um cortador de cana é inferior a 15 anos, nível abaixo dos negros em alguns períodos da escravidão (SILVA, 2007).
* Artigo extraído da tese de doutorado intitulada “História, trabalho e educação: relações de produção e qualificação da força de trabalho na agroindústria canavieira ” defendida no PPGE da Faculdade de Educação da UNICAMP em fev. /2009.

Ligação alternative

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[Artigo corrigido , vol1. 1, 82-97] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/103/389



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