Demanda Contínua

Recepção: 20 Agosto 2014
Aprovação: 25 Agosto 2015
DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-622020151226p.132-140
Resumo: Este trabalho tem como foco a análise da proposta curricular do estado de São Paulo criada em 2007 e implementada em 2008 e como esta trabalha a serviço do sistema neoliberal, formando indivíduos que sejam capazes de aceitar este sistema sem questioná-lo ou percebê-lo. As principais características da proposta curricular para as escolas são apontadas aqui a fim de relacioná-las com a baixa qualidade do ensino do estado de São Paulo, fato esse que sinaliza para o descompasso entre a realidade da escola pública e o discurso da Secretaria de Educação de empenho desta em oferecer uma educação à altura dos desafios contemporâneos, eliminando quaisquer formas de exclusão. Finaliza apresentando aspectos sobre o capital humano subjacente a essas propostas curriculares e como a educação serve para tais fins.
Palavras-chave: Proposta curricular, Neoliberalismo, Desempenho escolar, Ensino Público, Capital Humano .
Abstract: This work aims to analyze the curriculum proposal of São Paulo state created in 2007 and implemented in 2008 and how this works in service of the neoliberalism system, training individuals that are capable of accepting this system without questioning it or noticing it. The main characteristics of the curriculum proposal for the schools are pointed out here in order to relate them with the low quality of learning in São Paulo state, fact that indicates for the mismatch between the public school reality and the effort speech of the Education Secretary in offering an education compatible to nowadays challenges, eliminating any exclusion ways. It finalizes presenting some aspects about human capital underlying the curriculum proposal and how education fits that purpose.
Keywords: Curriculum proposal, Neoliberalism, School performance, Public Teaching, Human Capital.
Resumen: Este trabajo se centra en el análisis de la propuesta curricular del Estado de São Paulo creada en 2007 e implementado en 2008 y su funcionamiento para dar servicio al sistema neoliberal, formando individuos que son capaces de aceptar este sistema sin cuestionarla o lo perciben. Las principales características de la propuesta curricular para las escuelas se observan aquí con el fin de relacionarlos a la baja calidad de la educación en el estado de São Paulo, un hecho que apunta a la brecha entre la realidad de la escuela pública y el discurso del Secretario de Educación este compromiso de proporcionar una educación a los desafíos actuales mediante la eliminación de todas las formas de exclusión. Termina la presentación de los aspectos del capital humano subyacente a estas propuestas curriculares y cómo la educación sirve para tales fines.
Palabras clave: Propuesta curricular, Neoliberalismo, Rendimiento escolar, Educácion Pública, Capital humano.
Introdução
As quatro paredes que delimitam o espaço da sala de aula não são capazes de impedir os fatores externos que influenciam – ou determinam – a qualidade da prática pedagógica. Políticas educacionais e sociais, o currículo definido pela Secretaria de Ensino, a estrutura econômica, a ideologia difundida, os valores éticos e morais pregados pela sociedade são exemplos desses fatores, todos estes pautados pela vertente ideológica neoliberal a qual alinham-se as políticas educacionais do estado de São Paulo. Antes de avançarmos na discussão do contexto escolar, nos deteremos brevemente na busca de compreender alguns aspectos do neoliberalismo e como este define o campo educacional. Marrach (1996) pontua as principais características do surgimento assim como algumas divergências com o liberalismo:
O neoliberalismo torna-se ideologia dominante numa época em que os EUA detêm a hegemonia exclusiva no planeta. É uma ideologia que procura responder à crise do estado nacional ocasionada de interligação crescente das economias das nações industrializadas por meio do comércio e das novas tecnologias. Enquanto o liberalismo clássico, da época da burguesia nascente, propôs os direitos do homem e do cidadão, entre os quais, o direito à educação, o neoliberalismo enfatiza mais os direitos do consumidor do que as liberdades públicas e democráticas e contesta a participação do estado no amparo aos direitos sociais. Representa uma regressão do campo social e político e corresponde a um mundo em que o senso social e a solidariedade atravessam uma grande crise. [...] A liberdade que postula é a liberdade econômica das grandes organizações, desprovida do conteúdo político democrático proposto pelo liberalismo clássico.
É evidente aqui, a inversão dos papéis sociais, enquanto que no liberalismo a preocupação era o direito do indíviduo, social e cidadão, no neoliberalismo o indíviduo passa a ser parte (nada essencial) do sistema, estimula-se a competição individual assim como visões de meritocracia e que o sucesso ou fracasso dependem, única e exclusivamente, do esforço empregado individualmente. Também se estimula a exclusão social e alienação para que o sistema continue funcionando. Este mantém a estrutura do neoliberalismo pois ao excluir e alienar a ideologia utilizada consegue ser difundida, inquestionável, nutrindo os grupos de interesse através dos bens produzidos pela mão de obra silenciada. Azevedo (1997) sustenta a tese de que uma das vertentes da ideologia neoliberalista é justamente convencer que não há alternativas para a organização e as práticas sociais que não o neoliberalismo. Ou seja, não se deve questionar se é bom ou mau, mas aceitar por ser inexorável. O neoliberalismo possui algumas ferramentas que endossam a sua ideologia - a seleção de conteúdos e o aparato midiático, os acordos trabalhistas assim como os direitos e, a grande difusora, a escola. A função social da escola é ignorada a fim de que esta sirva ao mercado, Marrach (1996) complementa:
No discurso neoliberal a educação deixa de ser parte do campo social e político para ingressar no mercado e funcionar a sua semelhança. Conforme Albert Hirschman, este discurso apoia-se na "tese da ameaça", isto é, num artifício retórico da reação, que enfatiza os riscos de estagnação que o Estado do Bem-Estar Social representa para a livre iniciativa: para a produção de bens de consumo, maquinário, para o mercado, para a nova ordem mundial". No Brasil, embora não haja Estado do Bem-Estar Social, a retórica neoliberal é basicamente a mesma. Atribui à participação do Estado em políticas sociais a fonte de todos os males da situação econômica e social, tais como a inflação, a corrupção, o desperdício, a ineficiência dos serviços, os privilégios dos funcionários. Defende uma reforma administrativa, fala em reengenharia do Estado para criar um "Estado mínimo", afirmando que sem
Esta citação corrobora o pensamento de Azevedo de que o neoliberalismo é inevitável para a manutenção da qualidade de vida de todos e que a escola se torna o território de preparação do indivíduo para que ao final do ciclo escolar este seja inserido nas engrenagens incansáveis do sistema capitalista. Ainda com as ideias de Marrach (1996), o neoliberalismo determina três objetivos a serem alcançados única e exclusivamente utilizando da Educação. São eles: a) utilizar a escola como meio de preparação para o trabalho e, em menor escala, para a pesquisa acadêmica, sendo estes determinados pelo mercado. A mão de obra qualificada estimula competição nacional e internacional e a pesquisa acadêmica é definida pelos interesses das grandes empresas assim como por buscas de patentes, Michael Apple explica que na sociedade contemporânea a ciência se transforma em capital técnico-científico; b) transformar a escola em um meio de transmissão da ideologia dominante mais eficiente que os meios midiáticos, ou seja, a hegemonia seria transmitida em um espaço formal caracterizando-a como a ideologia oficial; c) a escola torna-se um mercado promissor para produtos da indústria cultural e informática ainda que isso se contraponha com a ideia neoliberal de menos Estado, já que aproveitam de subsídios estatais para divulgação destes produtos citados.
Outros aspectos que não podem ser ignorados quando se trata da visão neoliberal. A ideia que as políticas sejam “orientadas pela perspectiva do Estado fraco e assim o que é o privado é necessariamente bom e o que é público é necessariamente ruim” (RODRIGUES, 2004). No entanto, a escola pública hodierna é uma instituição que não apresenta resultados condizentes com a quantidade de dinheiro que lhes é investido, isto se traduz, na racionalidade econômica, ou seja, a análise de custo-benefício. Assim, a educação é vista como um produto que pode ter seus resultados quantificados. Os estudantes são vistos como capital humano que logo entrarão no mundo competitivo e que, portanto, devem desenvolver habilidades que o mercado necessita. Dando ao mercado a possibilidade de expandir o capital privatizando a educação pública limita-se o acesso dos estudantes, escancara-se a visão de aluno-cliente – aquele que possui um maior poder de compra pode “comprar” uma escola de “melhor qualidade” – e a escola deixa o seu papel social para, de fato, atender as demandas do mercado. Nesse cenário, fica evidente a importância do papel da educação para o capitalismo contemporâneo. O discurso sobre a educação ocupa atualmente um lugar se destaque no plano ideológico, que se assenta na necessidade de
[...] limitar as expectativas dos trabalhadores em termos de socialização do conhecimento pela escola, difundindo a ideia de que o mais importante a ser adquirido por meio da educação não é o conhecimento, mas sim a capacidade de constante adaptação às mudanças no sistema produtivo. (DUARTE, 2006, p. 46)
Com essa breve exposição sobre o neoliberalismo e seus reflexos na educação, pode-se adentrar a uma análise das propostas curriculares do estado de São Paulo a fim de apontar as características que alinhadas a vertente neoliberal, contribuem para a formação de alunos que não questionam o sistema capitalista. Ressalte-se a preocupação deste trabalho, elucidar como aspectos do currículo refletem o baixo desempenho dos alunos em avaliações externas e porque o currículo atual não é capaz de reverter esta situação.
A proposta curricular do estado de São Paulo: o currículo oficial
Durante muito tempo as escolas gozaram de relativa autonomia para guiar os conteúdos que deveriam ser desenvolvidos, mais pela ausência de direcionamentos ou parâmetros curriculares estabelecidos do que descentralização. Assim ficava dificil ter a dimensão exata do que acontecia nas salas de aula. Os livros didáticos direcionavam o curriculo. Em 2007, é apresentada a rede de ensino do estado de São Paulo uma proposta curricular do estado de São Paulo criada a fim de suprir a carência já que o sistema até então vigente mostrou-se “ineficiente”. A implantação ocorreu no ano letivo de 2008. A proposta curricular vem com o intuito de organizar e determinar os conteúdos e as habilidades que deveriam ser desenvolvidas em todas as escolas da rede estadual independentemente da região, público atendido, condições de trabalho e recursos pedagógicos disponíveis na escola. Propõe-se, então, um alinhamento nos conteúdos, nas abordagens e, não seria exagero dizer, nas práticas pedagógicas visto que as habilidades trabalhadas são avaliadas em provas externas e as políticas de responsabilização implicam em supervisão intensiva e cobranças por “melhores resultados” o que pode acarretar alguns benefícios como a bônus financeiro aos profissionais das escolas cujos resultados foram “bons”.
A implementação da proposta curricular tinha em seu bojo a preocupação em oferecer programas de capacitação dos professores e subsídios para o aprimoramento do profissional. Porém, o que é proposto é novamente um alinhamento, o curso oferecido é pensado dentro da Secretaria de Educação sem a participação dos professores na escolha do conteúdo, aquele que vivencia e tem conhecimento das demandas da sala de aula. Não obstante, desconsiderou-se a formação inicial do professor, a sua bagagem pedagógica, suas práticas e, as peculiaridades das unidades escolares. Na verdade, esta é mais uma das formas implícitas e explícitas do currículo estadual que diminui o papel do professor haja vista que todo o processo de desenvolvimento da prática é ignorado a fim de “alinhar os profissionais” curricular e ideologicamente. Kramer (1997 apud GUARNIERI 2005) vem de encontro com esta pontuação:
[...] frequentemente, novas propostas curriculares são entendidas ou confundidas com mudanças para melhor. O novo, quase sempre, é entendido como melhor. Essa é a lógica que vem presidindo nossas reformas curriculares: a lógica da atualização. E, em nome do atual, do moderno, do globalizado, se negam todas as experiências já existentes, duramente construídas no dia a dia de cada uma das escolas” (p.57)
A análise da proposta curricular traz à luz diversas questões para a discussão, é a partir de alguns excertos e pontuações que seguiremos. Sendo professora da rede estadual, o momento da leitura foi permeado por um incômodo pois a proposta curricular não corresponde com o que é exigido e praticado nas escolas. Logo nos primeiros parágrafos da apresentação, a proposta contextualiza a “sociedade do conhecimento” e como esta colabora para uma exclusão de indivíduos que não conseguem ter acesso a sociedade:
A sociedade do século XXI é cada vez mais caracterizada pelo uso intensivo do conhecimento, seja para trabalhar, conviver ou exercer a cidadania, seja para cuidar do ambiente em que se vive. Essa sociedade, produto da revolução tecnológica que se acelerou na segunda metade do século passado e dos processos políticos que redesenharam as relações mundiais, já está gerando um novo tipo de desigualdade, ou exclusão, ligada ao uso das tecnologias de comunicação que hoje mediam o acesso ao conhecimento e aos bens culturais. Na sociedade de hoje, são indesejáveis tanto a exclusão pela falta de acesso a bens materiais quanto a exclusão pela falta de acesso ao conhecimento e aos bens culturais. “(SEE, 2007 p.9)
Fica claro que as questões do capital são determinantes e que o conhecimento está relacionado, prioritariamente, ao trabalho e que a função primordial da escola é habilitar o indíviduo para o mundo competitivo. Interessante analisarmos que a exclusão pela “falta de acesso a bens materiais” se equipara com a exclusão “pela falta de acesso ao conhecimento e aos bens culturais”. Complementando:
No Brasil essa tendência caminha paralelamente à democratização do acesso a níveis educacionais além do ensino obrigatório. Com mais gente estudando, a posse de um diploma de nível superior deixa de ser um diferencial suficiente, e características cognitivas e afetivas são cada vez mais valorizadas, como as capacidades de resolver problemas, trabalhar em grupo, continuar aprendendo e agir de modo cooperativo, pertinente em situações complexas. Em um mundo no qual o conhecimento é usado de forma intensiva, o diferencial será marcado pela qualidade da educação recebida. A qualidade do convívio, assim como dos conhecimentos e das competências constituídas na vida escolar, será o fator determinante para a participação do indivíduo em seu próprio grupo social e para que tome parte de processos de crítica e renovação. (SEE, 2007 p.10)
O processo de democratização do acesso ao ensino, ainda que seja um avanço no sentido de acesso a outros setores da sociedade, não foi pensado de maneira a manter a qualidade de ensino, a necessidade de fazer uma escola para todos implicou na qualidade diluída e assim o processo de ensino aprendizagem foi modificado juntamente com os propósitos da escola:
Nesse quadro ganha importância redobrada a qualidade da educação oferecida nas escolas públicas, pois é para elas que estão acorrendo, em número cada vez mais expressivo, as camadas mais pobres da sociedade brasileira, que antes não tinham acesso à escola. A relevância e a pertinência das aprendizagens escolares nessas instituições são decisivas para que o acesso a elas proporcione uma oportunidade real de aprendizagem para inserção no mundo de modo produtivo e solidário. (SEE, 2007 p. 10)
Estranhamente, a qualidade da educação que recebeu “importância redobrada” não é observada na prática, se a exclusão por falta de acesso é definitiva seria a exclusão por falta de qualidade proposital? Seria esta uma forma do Estado fazer valer a premissa “menos estado, mais mercado”, já que a educação é oferecida e o mercado selecionaria os indivíduos mais capacitados através de uma competição? Seria a Educação para todos, de todos?
Para que a democratização do acesso à educação tenha uma função realmente inclusiva não é suficiente universalizar a escola. É indispensável a universalização da relevância da aprendizagem. Criamos uma civilização que reduz distâncias, que tem instrumentos capazes de aproximar as pessoas ou de distanciá-las, que aumenta o acesso à informação e ao conhecimento, mas que também acentua diferenças culturais, sociais e econômicas. Só uma educação de qualidade para todos pode evitar que essas diferenças constituam mais um fator de exclusão. (SEE, 2007 p.10)
Nesta citação discorre-se sobre a relevância da aprendizagem. Relevância sobre qual aspecto? Relevante para qual fim? Relevante para quem? Relevante para o sujeito que aprende ou o sujeito que “ordena” o que o primeiro deve aprender? Seria a escolha da palavra “relevância” da aprendizagem uma justificativa a qualidade da educação oferecida já que relevante não é sinônimo de qualidade? Seguindo na ideia de “relevância” temos:
Outro fenômeno relevante diz respeito à precocidade da adolescência, ao mesmo tempo em que o ingresso no trabalho se torna cada vez mais tardio. Tais fenômenos ampliam o tempo e a importância da permanência na escola, tornando-a um lugar privilegiado para o desenvolvimento do pensamento autônomo, que é condição para uma cidadania responsável. Ser estudante, nesse mundo que expõe o jovem desde muito cedo às práticas da vida adulta – e, ao mesmo tempo, posterga a sua inserção profissional –, é fazer da experiência escolar uma oportunidade para aprender a ser livre e ao mesmo tempo respeitar as diferenças e as regras de convivência. Hoje, mais do que nunca, aprender na escola é o “ofício de aluno”, a partir do qual ele vai fazer o trânsito para a autonomia da vida adulta e profissional. (SEE, 2007 p.10)
Ainda que não seja o tempo do aluno se inserir profissionalmente, todo o processo é pensado, pautado e trabalhado nesse caminho. O “ofício do aluno” faz parte do treinamento do indíviduo, a ideia de liberdade desde que esta seja limitada pelas normas e regimentos da escola é, na verdade, a “liberdade” que desiste-se pela ordem da sociedade e, consequentemente, do sistema (BEHRING, 2006). O desenvolvimento do aluno também é preocupação da proposta curricular:
O desenvolvimento pessoal é um processo de aprimoramento das capacidades de agir, pensar, atuar sobre o mundo e lidar com a influência do mundo sobre cada um, bem como atribuir significados e ser percebido e significado pelos outros, apreender a diversidade e ser compreendido por ela, situar-se e pertencer. A educação precisa estar a serviço desse desenvolvimento, que coincide com a construção da identidade, da autonomia e da liberdade. Não há liberdade sem possibilidade de escolhas. Elas pressupõem um quadro de referências, um repertório que só pode ser garantido se houver acesso a um amplo conhecimento, dado por uma educação geral, articuladora, que transite entre o local e o mundial. Esse tipo de educação constrói, de forma cooperativa e solidária, uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade, ao longo de sua história e de sua geografia, e dos saberes locais. Tal síntese é uma das condições para o indivíduo acessar o conhecimento necessário ao exercício da cidadania em dimensão mundial.
Construir identidade, agir com autonomia e em relação com o outro, e incorporar a diversidade são as bases para a construção de valores de pertencimento e responsabilidade, essenciais para a inserção cidadã nas dimensões sociais e produtivas. Preparar indivíduos para manter o equilíbrio da produção cultural, num tempo em que a duração se caracteriza não pela permanência, mas pela constante mudança – quando o inusitado, o incerto e o urgente constituem a regra e não a exceção –, é mais um desafio contemporâneo para a educação escolar. (SEE, 2007 p.11) Espera-se, portanto, que o indíviduo desenvolva meios de compreensão de seu lugar no mundo, aceitando todas as possíveis implicações que esta compreensão traz consigo, aceitando as condições de vida, de organização da sociedade, da separação de classes e de exclusões de determinados setores. Não se fala de valores éticos ou críticos apenas de valores de pertencimento e responsabilidade. Dessa maneira, dita-se a função da escola, para quem ela serve ou a quem ela serve?
Outro elemento relevante hoje para pensarmos o conteúdo e o sentido da escola é a complexidade da ambiência cultural, das dimensões sociais, econômicas e políticas, a presença maciça de produtos científicos e tecnológicos e a multiplicidade de linguagens e códigos no cotidiano. Apropriar-se ou não desses conhecimentos pode ser um instrumento da ampliação das liberdades ou mais um fator de exclusão. O currículo que dá conteúdo e sentido à escola precisa levar em conta esses elementos. Por isso, esta Proposta Curricular tem como princípios centrais: a escola que aprende, o currículo como espaço de cultura, as competências como eixo de aprendizagem, a prioridade da competência de leitura e de escrita, a articulação das competências para aprender e a contextualização no mundo do trabalho. (SEE, 2007 p.13)
Esta proposta curricular estrutura-se sob a égide do lema pedagógico “aprender a aprender”, que não deixa de ser uma apropriação neoliberal e pós-moderna da teoria de Lev Vygotsky. Nessa apropriação, quase indébita, o núcleo definidor do lema “aprender a aprender”
Reside na desvalorização da transmissão do saber objetivo, na diluição do papel da escola em transmitir esse saber, na descaracterização do papel do professor como alguém que detém um saber a ser transmitido aos seus alunos, na própria negação do ato de ensinar. (DUARTE, 2006, p.8)
Desenvolve-se, portanto, um currículo que visa as competências, apoiado nos quatro pilares da educação para o século XXI apresentados no conhecido Relatório Jacques Delors, são eles: aprender a ser, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a conhecer”. Todavia, não é objetivo deste currículo o “aprender a saber”, ou seja, os alunos não são capazes, ao terminarem a educação básica, de explicar as leis, fenômenos e situações, só – e quando o são – são capazes de reproduzir um padrão ou comando para a realização de tarefas, não há preocupação com o desenvolvimento crítico e a busca pelo conhecimento como um todo, somente por conhecimentos que podem ser traduzidos em competências, ora mas não seria isto o indíviduo ideal para o sistema neoliberal? Um cidadão que entenda a organização da sociedade e que seja capaz de reproduzir modelos sem questionamentos?
Um currículo que promove competências tem o compromisso de articular as disciplinas e as atividades escolares com aquilo que se espera que os alunos aprendam ao longo dos anos. Logo, a atuação do professor, os conteúdos, as metodologias disciplinares e a aprendizagem requerida dos alunos são aspectos indissociáveis: compõem um sistema ou rede cujas partes têm características e funções específicas que se complementam para formar um todo, sempre maior do que elas. Maior porque se compromete em formar crianças e jovens para que se tornem adultos preparados para exercer suas responsabilidades (trabalho, família, autonomia etc.) e para atuar em uma sociedade que muito precisa deles. (SEE, 2007 p. 13)
Desse modo, o professor se torna um facilitador para o desenvolvimento dessas competências, na verdade, isso é uma forma de diminuir a importância do trabalho docente já que nesse processo o “professor indica o que quer ensinar e não o que quer que o aluno aprenda” (SEE, 2007). Não obstante, há uma consideração a ser feita. Quando se diz formar crianças e jovens para exercer suas responsabilidades, sua cidadania, a própria proposta coloca em pé de igualdade, fatores como: escolhas de alimentos e programas de televisão, o uso de eletricidade e água e a escolha de um candidato político. A aprendizagem deve, então, concentrar-se em ajudar o indivíduo depois de alguns anos na escola a escolher um programa de televisão e na escolha de um candidato político a fim desses tornarem-se “cidadãos plenos” (SEE, 2007):
A aprendizagem é o centro da atividade escolar. Por extensão, o professor caracteriza-se como um profissional da aprendizagem e não tanto do ensino. Isto é, ele apresenta e explica conteúdos, organiza situações para a aprendizagem de conceitos, métodos, formas de agir e pensar, em suma, promove conhecimentos que possam ser mobilizados em competências e habilidades, as quais, por sua vez, instrumentalizam os alunos para enfrentar os problemas do mundo real. Dessa forma, a expressão “educar para a vida” pode ganhar seu sentido mais nobre e verdadeiro na prática do ensino. Se a educação básica é para a vida, a quantidade e a qualidade do conhecimento têm de ser determinadas por sua relevância para a vida de hoje e do futuro, além dos limites da escola. Portanto, mais que os conteúdos isolados, as competências são guias eficazes para educar para a vida. As competências são mais gerais e constantes, e os conteúdos, mais específicos e variáveis. É exatamente a possibilidade de variar os conteúdos no tempo e no espaço que legitima a iniciativa dos diferentes sistemas públicos de ensino para selecionar, organizar e ordenar os saberes disciplinares que servirão como base para a constituição de competências, cuja referência são as diretrizes e orientações nacionais, de um lado, e as demandas do mundo contemporâneo, de outro. (p. 18-19)
O papel do “profissional da aprendizagem” é organizar conceitos, métodos e conteúdos em competências sem se preocupar em aprofundamento, o professor – reduzido a facilitador ou mediador da aprendizagem - bem sucedido é aquele que desenvolve nos alunos as habilidades que lhes serão cobradas no mundo profissional, que trabalhe o “aprender a fazer” ou o saber fazer traduzido nas habilidades, mas não o “aprender a saber” de fato. Muitos professores, talvez, não tenham consciência desse fato, a não reflexão sobre o currículo e a própria prática são terrenos férteis para que a aprendizagem se limite a conteúdos superficiais e a formação de alunos que não desenvolvem quaisquer valores críticos e morais, uma bela combinação para um cidadão que não questiona, apenas segue ordens.
Considerações finais
Uma leitura superficial da proposta curricular do estado de São Paulo pode “convencer” o leitor que se trata de uma proposta séria, com uma preocupação singular com o processo de ensino-aprendizagem, com o desenvolvimento de um ambiente propício para a aprendizagem e do professor igualmente com as condições de trabalho deste, ou seja, “não é suficiente universalizar a escola: é indispensável universalizar a relevância da aprendizagem” (SEE, 2007, p.11). No entanto, a essência do lema “aprender a aprender” é exatamente o esvaziamento do trabalho educativo escolar, transformando-o num processo sem conteúdo (DUARTE, 2006, p.9). A proposta curricular do estado de São Paulo, apresenta os princípios orientadores do currículo para uma escola capaz de promover as competências indispensáveis ao enfrentamento dos desafios sociais, culturais e profissionais do mundo contemporâneo. Mas o que os resultados de avaliações externas mostram é com desempenhos pífios das escolas e sem sinais aparentes de melhora, é que essa proposta é incapaz de garantir o que apregoa.
As características pontuadas neste trabalho dão mostra do nível atual da educação, isso se dá pela diminuição do papel do professor, pela distância do currículo com a realidade escolar específica de cada escola, pelos objetivos, ainda que mascarados, da proposta, pela confirmação escamoteada de uma escola “pobre para pobres” e, principalmente, pelo foco do currículo estar no “aprender a fazer” que formam alunos que não aprendem a fazer, pois para isso é imprescindível o aprender a saber. O Neoliberalismo agradece.
Referências
AZEVEDO, J.M.L de. A educação como poíitica pública. Campinas. Autores associados, 1997
BEHRING, E. R. Fundamentos da política social. Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. OPAS/ABEPSS, julho de 2006
DUARTE, N. Vigotski e o aprender a aprender. Crítica às apropriações Neoliberais e Pós-Modernas da teoria Vigotskiana. 4ª. Ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. (Coleção educação contemporânea)
GUARNIERI, M. R. Aprendendo a Ensinar: o caminho nada suave da docência. 2ª Ed. Campinas, SP – Autores Associados, 2005 (Coleção polêmicas do nosso tempo)
MARRACH, S. A. Infância, educação e neoliberalismo. IN: Celestino A. da S. Jr; Bueno, S. M; Ghiraldelli Jr, P. São Paulo; Cortez Editora. 1996 p. 42-56
RODRIGUES, T. A. Sociologia da Educação. Rio de Janeiro. DP&A, 2004, 5.ed.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Proposta Curricular do Estado de São Paulo. Coordenação, Maria Inês Fini. São Paulo: SEE, 2007
Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/26/376 (pdf)
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[Artigo corrigido , vol1. 1, 132-140] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/26/376