Dossiê Temático

Recepção: 10 Janeiro 2017
Aprovação: 10 Março 2017
DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201731241p.29-43
Resumo: O artigo parte dos pressupostos de que as crianças têm direito e são competentes para falar sobre as suas experiências e de que conhecer suas perspectivas sobre suas experiências educacionais enriquece e amplia o nosso conhecimento sobre elas. As falas produzidas em várias pesquisas que ouviram crianças no Brasil informam, dentre muitas outras coisas que: fazer amigos e brincar é o que mais apreciam; uma alimentação saborosa é muito importante; a boa professora é sensível às suas demandas e não grita nem castiga; não gostam das tarefas que lhes tomam tanto tempo da rotina; e, no caso das crianças negras, enfrentam problemas para construir uma boa imagem de si. São indicações fundamentais para políticas voltadas a essa etapa da educação, como políticas de formação inicial e continuada de professores, de currículo, de construção e reforma de prédios escolares, aquisição de brinquedos e livros infantis.
Palavras-chave: Pesquisa com crianças, Política de Educação Infantil, Professora de educação Infantil, Currículo na Educação Infantil, Identidade étnico-racial.
Abstract: The present article is based on the assumption that children have the right and are capable of talking about their experiences, and that knowing their perspectives about their educational experiences enriches and expands our knowledge about them. The statements produced in several researches that have heard children in Brazil informed, among many other things that: making friends and playing is what they appreciate the most; a tasty alimentation is very important; a good teacher is sensitive to their demands and doesn’t yell or punishes; they don’t like assignments that take much time in the routine; and, in the case of black children, they face problems in building a good image of themselves. These are fundamental indications for policies aimed at this stage of education, such as initial and continued teacher formation policies, curriculum, school building’s construction and renovation, the purchase of toys and children's books.
Keywords: Researches with children, Child education policy, Teacher of early childhood education, Curriculum in Early Childhood Education, Ethnic-racial identity.
Resumen: Este artículo parte de los presupuestos que los niños tienen derecho y son capaces de hablar sobre sus experiencias y que conocer sus perspectivas sobre sus experiencias educativas enriquece y amplia nuestro conocimiento sobre ellos. Las alocuciones producidas en varias investigaciones que escucharon a niños en Brasil informan, entre muchas otras cosas que: hacer amigos y jugar es lo que más valorizan; una alimentación sabrosa es muy importante; la buena profesora es sensible a sus demandas y no grita ni castiga; no les gustan las tareas que les demandan mucho tiempo de su rutina; y, en el caso de niños negros, enfrentan problemas para construir una buena imagen de sí mismos. Estas son indicaciones fundamentales para políticas orientadas a esa etapa de la educación, como políticas de formación inicial y continuada de profesores, de currículo, de construcción y reforma de edificios escolares, adquisición de juguetes y libros infantiles.
Palabras clave: Investigación con niños, Política de educación infantil, Profesora de educación infantil, Currículo en la educación infantil, Identidad étnico-racial.
Introdução: políticas públicas e a escuta de crianças
A ainda breve trajetória da Educação Infantil no Brasil tem sido construída com muita luta dos movimentos sociais, pesquisadores, professores e demais profissionais que nela atuam, o que tem resultado em conquistas importantes no plano legal, a começar pela inclusão de sua oferta como um dever do Estado, e das políticas públicas, como a criação de programas formação inicial e continuada, de construção de novas unidades e de compra de livros de literatura infantil, entre outros. No entanto, a cada dia somos demandados a nos empenhar para que algum retrocesso não se efetive, caso da avaliação em grande escala das crianças por meio de instrumentos padronizados e da volta das chamadas creches domiciliares.
Esse percurso também tem evidenciado grandes desigualdades decorrentes de vários fatores, especialmente a origem socioeconômica, o pertencimento étnico-racial e o local de moradia das crianças. Apesar de, no seu conjunto, ter havido aumento significativo no número de vagas, tais desigualdades se mantêm. Assim, o fato das estatísticas oficiais apontarem que chega a 23% o número de crianças com acesso à creche e 80% o de crianças matriculadas na pré-escola (IBGE, 2010), o número daquelas que realmente têm esse direito garantido varia muito se elas são brancas ou negras, pertencente às camadas mais altas ou mais empobrecidas da população, moradoras de uma zona urbana do sudeste brasileiro ou da zona rural da região Norte.
As desigualdades de oportunidades educacionais a que as nossas crianças têm acesso também se expressam, via de regra, na qualidade das experiências que elas vivem no interior das instituições. Assim, tanto pesquisas locais como as de abrangência nacional indicam a tenacidade com que problemas relativos a várias dimensões (como proposta pedagógica, formação dos professores, estrutura física, materiais e brinquedos) se mantêm, em especial nos contextos frequentados por crianças pobres, que muitas vezes também são negras (pretas e pardas).
Assumindo o pressuposto de que as prioridades elegidas pelas políticas públicas são fruto de um processo composto de confrontos, atritos, coalizações, pressões e contrapressões no qual são muitas as forças envolvidas, consideramos que os conhecimentos gerados pelos pesquisadores sociais podem, como afirma Lauglo (1997, p. 28, apud ROSEMBERG, 2001, p. 21), “trazer muitas contribuições importantes para a formulação de políticas: pode colocar em evidência problemas que têm sido ignorados, ajudar a diagnosticar problemas sociais, colocar novas questões, colocar os temas em perspectiva mais ampla”. Dessa forma, o conhecimento científico deve instrumentar os atores que participam da definição das políticas públicas, além de contribuir para o monitoramento da implantação das alternativas eleitas.
A produção científica no campo da Educação Infantil já é relevante desde a década de oitenta e tem aumentado cada vez mais. Ao longo dos anos, várias pesquisas têm procurado conhecer melhor as condições em que acontece a educação de bebês, crianças bem pequenas e pequenas, os processos em curso, as interações que acontecem, os currículos, as rotinas etc. Sem dúvida, essa produção tem possibilitado aumentar o nosso conhecimento sobre as creches e pré-escolas brasileiras. Contudo, apenas nas últimas décadas um novo olhar vem se incorporando a esse conhecimento: a perspectiva das próprias crianças sobre as suas experiências educativas. Esse novo interesse é decorrente, basicamente, de três elementos que se articulam: uma nova imagem de criança, a consideração da sua fala como legítima e como direito; o reconhecimento da contribuição dessa fala para ampliar o conhecimento sobre a educação destinada às crianças.
A nova imagem da criança que vem se consolidando, ressalta as suas competências, em especial as múltiplas linguagens que sustentam sua vigorosa interação social desde o nascimento. Destaca também as influências de fatores como classe social, gênero, pertencimento étnico-racial, crença religiosa etc. na vivência da infância de cada criança, mas, ao mesmo tempo, lhes atribui agência no processo de apropriação da cultura, processo que Corsaro (2011) denominou de reprodução interpretativa, concluindo que as crianças não só se apropriam, mas produzem cultura.
O reconhecimento de que as crianças devem ser ouvidas é um dos direitos assegurados pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989: o seu artigo 12º afirma que uma das suas prerrogativas é exprimir livremente a sua opinião sobre questões que as afetam e de ver essa opinião sendo tomada em consideração. Assim, ouvir a criança já não é uma concessão (tendo em vista a ainda forte ideia na nossa sociedade de que ela “não sabe o que diz”), mas o atendimento a esse direito que elas possuem.
Mas, por que lhe foi reconhecido esse direito? Um dos motivos é esclarecido pela Save the Children (2003): assegurar que aqueles que diretamente vivenciam a situação focada tenham as suas vozes ouvidas aumenta a possibilidade de que as decisões sejam relevantes e apropriadas. Também vários autores (como ROCHA, 2008 e LEITE, 2008) chamam a atenção para o fato de que a escuta das crianças traz dados novos e relevantes, que ampliam o conhecimento que é possível se ter apenas a partir do âmbito do mundo social de pertença dos adultos. Em relação às políticas públicas, não tem sido prática a escuta dos estudantes pelos gestores, o que já era denunciado na Europa pelo pediatra e pedagogo polonês Janusz Korczac, em meados da década de 20:
Os políticos e legisladores experimentam soluções cuidadosamente elaboradas, mas a toda hora acabam se equivocando. Entre outras coisas, deliberam e decidem sobre o destino das crianças. Mas a ninguém ocorreria perguntar à própria criança o que ela acha, se está de acordo. Afinal, o que ela teria a dizer? (1986, 71)
Também nas pesquisas que se debruçam sobre as políticas educacionais, não é comum tentar apreender o que dizem sobre elas as crianças, como afirma Viégas (2010). No entanto, acreditamos que várias das pesquisas que trazem as perspectivas de crianças sobre diversos aspectos da sua vivência em creches e pré-escolas oferecem subsídios importantes para se pensar as políticas públicas para essa etapa da educação. Assim, no presente artigo, propomos trazer uma breve síntese do que tem sido possível apreender do ponto de vista de crianças que frequentam a Educação Infantil no nosso país acerca de temas que são (ou deveriam ser) enfocados pelas políticas públicas voltadas para essa etapa da educação.
As pesquisas com crianças incluídas neste trabalho
Com raras exceções, as pesquisas com crianças começaram a ser realizadas no Brasil a partir do atual milênio. Desde então, cada vez mais pesquisadores têm se empenhado em trabalhos que, “a partir de procedimentos metodológicos que, mesmo sendo definidos e utilizados por adultos, direcionam-se a colher das crianças – por meio de suas vozes – o material empírico necessário às suas análises” (BARBOSA e MARTINS FILHO, 2010, p. 10). Em tais trabalhos, o interesse até então dominante de conhecer características e processos próprios da criança se desloca para a tentativa de apreender, em primeira mão, o que elas pensam/sentem acerca de temas que lhes dizem respeito
Trata-se de um grande desafio, no qual várias dificuldades precisam ser enfrentadas. Entre elas, estão lidar com uma relação entre sujeitos que ocupam posições desiguais; superar o adultocentrismo dominante; propiciar a expressão das crianças através das suas múltiplas linguagens; considerar com o necessário respeito a autonomia das crianças e as decorrências da sua situação legal de dependência dos seus responsáveis; estabelecer relações de confiança que permitam às crianças fazer pedidos e esclarecimentos e expressar desejos, inclusive o de interromper a sua participação na pesquisa (CRUZ, 2004 e 2010; DELGADO e MÜLLER, 2005; KRAMER, 2002; MARTINS, 2006). Tais dificuldades são decorrentes tanto das características constitutivas da nossa sociedade quanto do estágio do acúmulo de conhecimentos teórico-metodológico no qual nos encontramos.
Nos trabalhos realizados, as estratégias metodológicas mais frequentes são a observação e a entrevista. As observações focam não apenas as crianças, mas se estendem aos contextos educativos frequentados por elas, como decorrência da compreensão de que o que a criança expressa é influenciado pelas interações que estabelece com o mundo físico e social. As entrevistas realizadas têm peculiaridades que respondem àquelas que são próprias dos interlocutores, as crianças, procurando lidar com os desafios já referidos: geralmente acontecem após um período de permanência em campo, com um grupo de crianças e mediadas por elementos como pequenas histórias (caso das histórias para completar), desenhos ou fotografias feitas pelas crianças etc. Várias outras estratégias são criadas, de acordo com o tema abordado nas diferentes pesquisas, o que tem possibilitado uma ampliação das possibilidades existentes.
As pesquisas que procuraram apreender o ponto de vista das crianças através de algum tipo de entrevista enfocam, via de regra, crianças que frequentam a pré-escola. O fato dos bebês e crianças bem pequenas não dominarem ou dominarem precariamente a linguagem oral tem sido a justificativa mais comum para isso. Portanto, trata-se de uma limitação das nossas atuais possibilidades teórico-metodológicas, isto é, por ainda estarmos desenvolvendo formas de escuta adequadas para esses sujeitos.
No presente trabalho, procuramos localizar pesquisas que incluíram entre os seus objetivos a escuta de crianças sobre a sua experiência educacional e, para tanto, utilizaram como estratégias alguma forma de entrevista. Portanto, não levamos em conta as pesquisas que usaram apenas observações, embora reconheçamos a grande importância das observações de bebês, crianças bem pequenas e pequenas, realizadas em creches e pré-escolas, como forma de tentar perceber o que elas falam acerca de algum tema tratado.
Para localizar as pesquisas aqui incluídas, foram consultados os sítios eletrônicos da Scientific Electronic Library Online - SciELO, da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações – BDTD, o Banco de Teses e Dissertações da CAPES e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa – ANPEd (nesse caso, especificamente, o GT 07, Educação de Crianças de 0 a 6 anos). Para localizar os trabalhos pretendidos, foram usadas as seguintes palavras-chave: pesquisa com criança, perspectiva da criança e escuta da criança. No caso de uma dissertação ou tese ter gerado algum artigo, optamos pela referência o trabalho original. Vale informar ainda que, tendo em vista as limitações do presente artigo, foram priorizadas as produções que cujos temas abordados foram tratados por um grupo maior de autores; assim, temas como inclusão, saúde, pertencimento etário e queixa escolar não serão enfocados.
O que as crianças dizem sobre as suas experiências em creches e pré-escolas?
Traremos nesta seção os artigos, dissertações e teses encontrados nas bases de dados citadas que atendiam às características já mencionadas. Para tanto, agrupamos os trabalhos quanto ao tema tratado, procurando sintetizar os seus principais achados quanto à perspectiva das crianças que foram ouvidas. No entanto, optamos por tratar em primeiro lugar das concepções mais gerais das crianças acerca das instituições por elas frequentados e a seguir trazer as suas opiniões e sentimentos acerca de temas específicos.
Ao tentar apreender a perspectiva de crianças de cinco e seis anos acerca das suas experiências em creche comunitária1 de Fortaleza, Cruz (2002) identificou que, para elas, ir à creche era uma necessidade decorrente do fato da mãe trabalharem; elas prefeririam ficar em casa (especialmente quando aí tinham acesso a brinquedos e companhia para as brincadeiras), sendo que o maior atrativo da creche era a possibilidade de brincar. As crianças de cinco anos, residentes em São Carlos (SP) ouvidas por Silveira (2005) expressaram a percepção da brincadeira e da possibilidade de criar laços de amizade e vivenciar outros afetos e encontros como um ingrediente importante para tornar o novo ambiente agradável para elas; por exemplo: “porque eu gosto de brincar com as minhas amiguinhas”; “porque tem muita criança e dá pra brincar” (p. 61 e 59, respectivamente). João (2007), constatou que o sentido de qualidade da instituição educativa para crianças de Florianópolis, com idades entre três a treze anos, está relacionado ao prazer de aprender, estar junto e brincar com os colegas, além de ter uma boa alimentação no quotidiano escolar.
As crianças de cinco anos ouvidas por Marques (2011) acerca da escola de Educação Infantil de modo semelhante destacaram as possibilidades de brincadeiras, mas também as atividades específicas realizadas, o espaço físico, os professores e as regras. Em investigação realizada com crianças da região de Ribeirão Preto (SP) que estavam concluindo a Educação Infantil, Correa e Bucci (2012) buscaram compreender sua percepção a respeito dessa etapa da educação e o que esperavam do Ensino Fundamental; constataram o mesmo desejo de encontrar brinquedos e ter a possibilidade de brincar com colegas, sendo esses os momentos mais prazerosos para elas. Cruz e Cruz (2015), em pesquisa que procurou apreender a perspectiva de crianças de três e quatro anos que frequentavam uma creche da rede municipal de Fortaleza sobre esse equipamento, evidenciaram mais uma vez o papel central da brincadeira para que esse contexto se tornasse agradável para esses sujeitos; as crianças revelaram também a importância que atribuíam à alimentação oferecida na creche e que não tinham uma boa imagem da professora.
No seu conjunto, as produções evidenciam o grande valor que a brincadeira, os brinquedos e as relações de amizade assumem para as crianças. O mesmo foi expresso fortemente na Consulta sobre qualidade na Educação Infantil (CAMPOS e CRUZ, 2006), uma ampla pesquisa envolvendo quatro estados brasileiros (Ceará, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul), que teve como objetivo conhecer as concepções de diferentes segmentos da comunidade escolar sobre qualidade na Educação Infantil. Na oportunidade, as crianças também expressaram valorizar a alimentação a que têm acesso ou gostariam de ter nas creches e pré-escolas que frequentam, assim como foi constatado em alguns dos trabalhos citados. É possível identificar também nos trabalhos mencionados um descontentamento em relação à indisciplina e agressões sofridas por parte de colegas nesse contexto e a presença da professora “ruim”, aspectos igualmente presentes nas falas das crianças ouvidas na referida Consulta.
Com relação à importância da brincadeira para a criança, é interessante destacar que, em pesquisa que buscou compreender o conceito de criança para meninos e meninas de seis anos da cidade de Fortaleza, o gosto pela brincadeira foi apontado como a principal característica da criança e o trabalho como a especificidade do adulto (MARTINS, 2000). Buscando compreender a participação da criança na constituição da brincadeira na Educação Infantil, a mesma autora (MARTINS, 2009), em pesquisa realizada com crianças de cinco anos de uma escola da rede municipal de Fortaleza, identificou que, enquanto a brincadeira valorizada pela professora é aquela planejada e dirigida por ela com o objetivo de promover a aprendizagem e o treino de habilidades, as crianças valorizam a brincadeira livre (que ela vê como “bagunça”) e tentam encontrar formas de brincar clandestinamente em sala.
Correia (2015), em pesquisa realizada em instituição de Educação Infantil de Natal e que teve como objetivo analisar os sentidos da brincadeira para crianças de cinco anos de idade, evidenciou que a brincadeira assume os sentidos de atividade inerente à vida, sendo uma experiência estética, que se caracteriza pela interação eu-outro e por proporcionar diversão.
A valorização da brincadeira como experiência que possibilita a interação com o outro também foi identificada em investigação que buscou compreender como as crianças se relacionam com as mídias eletrônicas na contemporaneidade e como estas participam da configuração dos modos de viver a infância: Ferreira (2014), por meio de um estudo realizado numa instituição de Palhoça (SC), concluiu que os meninos e meninas de cinco e seis anos já têm suas experiências lúdicas com as tecnologias digitais, mas ainda buscam por brincadeiras tradicionais e por conviver em grupo e entre seus pares.
É importante destacar que, com frequência, as crianças percebem uma dissociação entre escola e brincadeira, afirmando o aprender e fazer tarefa como as verdadeiras atividades da pré-escola e, reconhecendo o recreio como a única oportunidade de brincar livremente na escola (MARTINS, 2009). Assim, elas defendem que o recreio precisaria ser “bem grande! ”, como afirmaram as crianças de cinco anos que frequentavam pré-escolas localizadas na zona rural do Ceará (SOUZA, 2006). Coerentemente, na pesquisa realizada por Santos (2015), com o objetivo de apreender a perspectiva das crianças de cinco e seis anos de uma pré-escola da rede municipal de ensino de Fortaleza sobre o recreio, as crianças afirmaram a existência desse momento da rotina como condição para a frequência à escola; segundo elas, caso ele não existisse, as seguintes soluções seriam adotadas:
As crianças iam mudar de escola! E se essa escola não tivesse mais parquinho, aí eu ia pra outra, e se a outra tivesse eu ficava lá estudando. A gente ia ficar mudando de escola até ficar no segundo ano, até ficar grande! As crianças iam mudar de escola! As crianças iam chorar muito!
Tendo em vista a grande importância que assume a brincadeira para as crianças, era de se esperar que ela tivesse um lugar de destaque na rotina de creches e pré-escolas. Como as crianças percebem o quotidiano que vivem nesses contextos? Em Cruz (2002), as crianças falaram de uma rotina rígida e pobre, com presença marcante de estratégias de submissão exercidas pelos adultos. Andrade (2007), em pesquisa voltada especificamente para conhecer as percepções das professoras da pré-escola, das crianças e de suas famílias acerca da rotina da instituição, também traz uma percepção bastante negativa sobre a rotina para as crianças de uma pré-escola da rede municipal de Fortaleza: para elas, a rotina é marcada pela repetição da mesma atividade (“tarefa”) da qual não gostavam e era motivo de recriminações e castigos, o que gerava sentimentos bastante negativos em relação à professora e tornava o ambiente escolar aversivo para elas, como expressa a passagem a seguir:
Criança: Eu fiz é... a menina no colégio que não gosta de fazer nada.
Aí, ela foi na escola, acendeu uma vela e pegou o lápis. [Ela acendeu a vela]
Pra explodir a escola, depois ela correu.
Pesq.: E as outras crianças que estavam na escola?
Criança: Elas fugiram pra casa.
Pesq.: E esse fogo, que ficou na escola, atingiu alguém?
Criança: Atingiu a professora.
A pesquisa realizada por Almeida (2015), com crianças de cinco anos de idade que frequentavam a rede municipal de Estância (SE), constatou que elas não viam significado nas regras arbitrárias que marcavam a rotina, presidida pelo disciplinamento e preparação para o ensino fundamental.
Vale registrar que nas pesquisas aqui citadas, as crianças não se sentiam participantes ativas das decisões tomadas acerca da organização e execução da rotina. Na pesquisa de Andrade (2007), por exemplo, as crianças se referiam à sala de atividades como a “sala da professora” e não como “nossa sala”. E uma das crianças ouvidas por Almeida (2015) lhe explicou que quem diz o que pode fazer na escola é “a professora...a gente faz o dever na mesinha caladinho, sem brincar” (p. 63). No entanto o prazer pela participação é evidente entre as crianças, como indica um dos participantes da Consulta sobre qualidade na Educação Infantil: para ele, numa pré-escola “legal” a professora “deixa a gente decidir se vai ter recreio” (CAMPOS e CRUZ, 2006).
Como já mencionado, as crianças referem-se com frequência a um elemento da rotina: a realização de tarefas, também denominada de “dever” pelos meninos e meninas nordestinos. As que foram ouvidas por Souza (2006), citaram quase unanimemente o “dever” como o que não gostavam da sua escola, explicando que tinham dificuldade em atender às expectativas da professora: Luana diz que “circular e fazer o alfabeto, é difícil”; Jaime afirma que não gosta de tarefa “das letras, porque eu não aprendi as letras”; e André reclama: “gosto de matemática, mas sou muito pequeno para fazer muita tarefa, eu gosto de desenhar”.
As tarefas parecem ser vistas pelas crianças como algo que tem um fim em si mesmo, não se constituindo numa experiência prazerosa na qual algo interessante é compreendido, realizado, expressado2. Além disso, as dificuldades que enfrentam para realizá-las não são acolhidas, mas tornam-se motivo de repreensões e castigos, como ficar sem recreio. Torna-se, então, compreensível que as crianças apontem a ausência de tarefas como o que precisaria acontecer para a escola se tornar um lugar “legal”, como afirmou o grupo com idade de seis anos que participou de uma investigação numa pré-escola municipal de Fortaleza (SCHRAMM, 2009).
Um assunto ainda pouco estudado, mas que também assume muita importância na forma como as crianças percebem a estadia delas em creches e pré-escolas é a existência de conflitos entre elas, especialmente os que envolvem agressões físicas. Mesmo em pesquisas que não o tinham como foco, esse tema compareceu espontaneamente quando as crianças falaram sobre o que não gostam na sua experiência escolar. Além da Consulta sobre qualidade na Educação Infantil, já citada, isso também aconteceu no desenvolvimento da Consulta sobre discriminação na educação na primeira infância, realizada pela Campaña Latinoamericana por el Derecho a la Educación-CLADE, que teve como objetivo analisar como vem ocorrendo a discriminação nos contextos educativos de crianças entre quatro e oito anos de idade do ponto de vista dos sujeitos que delas participam e incluiu o Brasil entre os países investigados: houve várias menções a crianças baterem em outras, especialmente meninos em meninas e crianças maiores em outras crianças menores.
Pesquisando o que crianças de cinco e seis anos da cidade de São Paulo pensam e falam sobre as relações e conflitos entre elas, Corsi (2010) ampliou bastante o nosso conhecimento acerca desse tema: constatou que, para elas, há conflitos simples, que incomodam menos, e os conflitos “conflitantes”, bem mais sérios. A autora organizou os conflitos identificados como tais pelas crianças em três grupos (os conflitos que podem ocorrer nas relações entre os pares, com/por causa de adultos ou causados por desconfortos pessoais) e constatou que parte significativa dos conflitos trazidos pelas crianças acontecia entre os colegas e envolvia agressões físicas.
De fato, Santos (2015) constatou uma grande preocupação por parte das crianças relacionada à violência que viviam durante o recreio (“puxar o cabelo”, “dar murro no olho”, “empurrar na parede”, etc.). Nesse contexto, expressam a necessidade de adultos “pra ficar olhando as crianças” e “deixar as crianças danada de castigo” (nessa instituição, apenas uma funcionária era designada para observar as crianças durante esse período).
A percepção das crianças sobre a professora ainda não se constituiu como tema central de muitas produções. No entanto, em vários trabalhos ela é expressa claramente. Na já mencionada Consulta sobre qualidade na Educação Infantil, por exemplo, ao indagar às crianças sobre o que precisava ter numa creche ou pré-escola para que ela fosse “bem legal” e sobre o que elas gostavam da instituição que frequentavam, em apenas um, dos 48 grupos de crianças, foi citada uma boa professora (“irada”, na palavra das crianças); ao mesmo tempo, entre as coisas que, na opinião delas, não poderia ter na creche ou pré-escola constou com frequência a professora “ruim”. O que seria uma professora “ruim”? Entre as explicações dadas pelas crianças, várias se concentram em repreensões e castigos que recebem, como nas seguintes falas: [não pode ter] “professora puxar a orelha”, “a professora dar merenda com força, assim” (CAMPOS e CRUZ, 2006); “a Keli [personagem de uma história inventada pela criança] não gosta de ir pro colégio porque não, ela disse que é muito ruim porque a tia dela briga com ela” (ANDRADE, 2007). Aparentemente, um forte motivo para isso são a não realização de tarefas ou algo que seja considerado indisciplina das crianças, como no exemplo a seguir:
Pesquisadora: O que deixa a criança bem contente na escola?
Gabriela: A tia deixando ela brincar todos os dias.
Pesquisadora: E a professora deixa ela brincar todos os dias?
Gabriela: Não, porque ainda vai fazer a tarefa.
Chama a atenção que, em geral, as crianças se referem a um estilo e opção pedagógica em que prevalece a autoridade não democrática, onde o que parece ser importante é manter a disciplina da turma e transmitir conteúdos escolares.
Farias (2013), realizou uma pesquisa com a finalidade de apreender o que crianças de cinco anos de escolas privadas de Fortaleza consideram que é uma boa professora. Além de ser “feliz”, “legal” e “carinhosa”, as crianças também disseram que a professora deveria ser “bonita”, reafirmando pesquisas anteriores em que foram apontadas características relativas ao físico e maneira de se vestir das professoras: devem ser “bonitas demais, arrumadas e chique de doer!”, para as crianças ouvidas por Cruz e Andrade(2009); “bonita” e “charmosa”, afirmaram as que participaram da pesquisa desenvolvida por Correa e Bucci (2012).
Mas a boa professora é descrita principalmente como sensível aos desejos e necessidades das crianças: ela conta histórias e deixa brincar, desenhar, beber água, usar o banheiro e lanchar (chama atenção que necessidades tão básicas como essas últimas estejam também enumeradas, o que significa que, na experiência dessas crianças, podem não ter sido garantidas). Os meninos e meninas enfatizam também que a boa professora “não bota de castigo” e “não grita” (FARIAS, 2013).
Importante destacar que essas crianças incluíram entre as boas qualidades de uma boa professora o fato de que ela “aprende coisas pra ensinar as crianças”, na mesma direção das crianças que afirmaram a Correa e Bucci (2012) que a professora deveria ser “inteligente para fazer lição na lousa e a gente copiar”, isto é, elas também percebem que a professora precisa se apropriar de conhecimentos interessantes para assumir o seu papel de mediadora junto a elas.
Vem atraindo cada vez mais o interesse de pesquisadores que realizam pesquisas com crianças questões relativas ao seu pertencimento étnico-racial. O trabalho pioneiro de Godoy (1996) tratou da identificação étnico-racial entre crianças de cinco e seis anos, que frequentavam uma pré-escola da cidade de Amparo (SP) e constatou que, além de possuírem a capacidade de identificar diferenças entre as pessoas (como a cor da pele), as crianças negras possuíam autoimagem negativa (por exemplo, um menino diz que o garoto que ele desenhou gosta dele mesmo “porque ele é branco”). Trinidad (2011), escutou crianças paulistanas de quatro anos também para entender como elas lidavam com a questão da identificação étnico racial, constatando que já conhecem e empregam categorias étnico-raciais (por exemplo “negra”, “branquinha”, “morena”, “preta”) e criam outras (como “branco escuro”); elas também expressam que gostariam de ter características físicas típicas do fenótipo branco, especialmente a cor da pele e o tipo de cabelo (uma menina, por exemplo, diz que gostaria de ser branca como a sua mãe “e também porque todo mundo dá rizada”). Da mesma forma, muitas das crianças que participaram da Consulta realizada pela Campaña Latinoamericana por el Derecho a la Educación – CLADE (2013) expressaram tanto discriminação contra pessoas negras como contra pessoas com deficiência, mulheres ou qualquer indivíduo considerado estranho, diferente (gordos, loucos etc.), assim como os efeitos da visão preconceituosa que percebem na sociedade, inclusive na própria instituição que frequentam e da qual elas próprias se apropriam (por exemplo, preferem ser chamados de “morenos” a negros). Gaudio (2013) abordou esse tema numa pesquisa com crianças de quatro e cinco anos que frequentavam um centro de Educação Infantil público do município de São José (SC) e igualmente detectou a percepção das diferenças físicas existentes entre elas e o desejo de crianças negras de que sua pele se tornasse branca, pois “é mais bonito”.
Na pesquisa realizada com crianças de dois e três anos de um Centro de Educação Infantil – CEI de numa cidade da região metropolitana de Campinas (SP), Santiago (2014) percebeu preconceitos e discriminações contra crianças negras, os problemas de aceitação de seus cabelos (por exemplo, uma menina afirma que tem “cabelo de bruxa”) e levanta as possíveis consequências subjetivas dessa situação. No entanto, o autor identifica estratégias de resistência e rebeldia diante de situações racistas e castradoras, como esquivar-se de situações que não gostam, transgredir regras e bater num colega.
Cruz (2015), buscou apreender, de maneira exploratória, se e como crianças de três anos que frequentavam uma creche municipal de Fortaleza percebiam as diferenças físicas decorrentes da pertença étnico-racial e constatou que tais características não pareciam ser importantes (as crianças se restringiam a diferenças de gênero e de tamanho). Nesse contexto, levantou a hipótese de que as crianças pequenas distinguem esses traços físicos quando têm para elas algum colorido afetivo, a partir de experiências que tiveram.
De qualquer forma, o conjunto de pesquisas já realizadas apontam um grave problema. A Educação Infantil, cuja finalidade é o desenvolvimento integral de todas as crianças, deveria proporcionar experiências que contribuíssem positivamente no processo de construção da identidade em curso. No entanto, as práticas que aí acontecem têm prejudicado esse processo no caso das crianças negras.
Várias das publicações consultadas buscaram ouvir as crianças sobre as relações de gênero. Arguello (2005), em pesquisa realizada numa instituição privada de Educação Infantil de Porto Alegre, buscou compreender quais os significados de gênero para crianças de 4 a 6 anos. Segundo a pesquisadora, enquanto as meninas expressam ser subjetivadas por discursos hegemônicos sobre o corpo, sexualidade e gênero, sendo possível perceber uma erotização presente nas suas brincadeiras de faz-de-conta, os meninos carregam o discurso da violência, da aventura e da força. Nesse contexto, ultrapassar a fronteira de gênero, para os meninos, é mais que transgredir, significa inferiorizar. A pesquisadora destaca, porém, que as vozes dos meninos e meninas apresentam contradições, uma vez que a adoção de sua identidade de gênero, não é um processo tranquilo, linear e harmônico para as crianças, havendo, no interior dele, complexidades, pluralidades, incompletudes e migrações.
Em investigação realizada em instituição pública de educação infantil da rede municipal de Florianópolis, Buss-Simão (2012) buscou compreender os significados e usos atribuídos à dimensão corporal por crianças entre dois e três anos de idade. Concluiu que o gênero é a categoria central e constitutiva das relações e interações das crianças, porém as crianças não somente aprendem as diferenças “ensinadas” sobre “ser menino” e “ser menina”, mas em alguns momentos as legitimam e em outros as subvertem, ou seja, as ideias sobre gênero não são simplesmente inculcadas nas crianças pelos adultos, mas são construídas pelas crianças nas relações com adultos e com as outras crianças. É o que nos mostra as transcrições a seguir:
Willian disse que usaria batom para a festa junina.
Léo: não, não pode passar batom [passa os dedinhos nos lábios], só menina!
(Registro notas do diário de campo do dia 08.06.2009)
Léo passa o batom de Larissa nos lábios e, em seguida, o devolve para ela. Segue até
o espelho, se olha no espelho e vem até bem perto de mim e diz:
Léo: Óhh, batom!
Nesse momento Willian se dirige até mim, já com o batom da Jenyfer nos lábios e diz:
Willian: Óhh, Batom!
Willian também se olha no espelho, em seguida,
Willian e Léo se olham e voltam a se olhar no espelho.
(Registro notas do diário de campo do dia 23.06.2009)
Ao investigar o tema sexualidade e identidades de gênero em uma escola particular de Porto Alegre, Guerra (2005) percebeu recorrências, rupturas e deslocamentos no que se refere aos discursos hegemônicos quanto à sexualidade e às relações de gênero na infância, principalmente nos momentos de brincadeiras livres, em que não havia interferência direta dos adultos, e nas entrevistas realizadas com as crianças. Segundo a pesquisadora, as crianças, entre quatro e cinco anos de idade, utilizavam estratégias para experimentar e descobrir seus prazeres em torno da sexualidade, apesar do olhar vigilante do adulto em todos os momentos da rotina das crianças. Esse fato nos faz refletir sobre a necessidade das creches e pré-escolas considerarem a sexualidade infantil um dos temas que constituem o currículo, pois, como destaca Guerra (2005), cada vez mais os diversos artefatos culturais promovem, a seu modo, muitos conhecimentos sobre a sexualidade, aguçando ainda mais a curiosidade infantil.
A perspectiva das crianças acerca do ingresso no Ensino Fundamental é o último tema trazido no presente artigo. Investigando esse assunto com crianças paulistanas, Teixeira (2008) percebeu que o ingresso na "escola dos maiores", parece exercer um fascínio sobre as crianças, representando a conquista de outros espaços e conhecimentos socialmente reconhecidos. Correa e Bucci (2012) também ouviram as crianças sobre essa transição e concluíram que elas demonstraram ter noção do que enfrentariam no ensino fundamental (“tarefas maiores” e “mais difíceis”). Estando imersas numa rotina rígida e inadequada, elas desejam um ambiente em que possam ser felizes, tanto na Educação Infantil como no Ensino Fundamental.
Em estudo realizado na cidade de São Paulo com o objetivo de investigar as expectativas das crianças, dos pais, dos professores e da gestão em relação ao processo de implantação do Ensino Fundamental de 9 anos, Rabinovich (2012) igualmente constatou motivações positivas das crianças em relação ao início do Ensino Fundamental: “é legal ir pro 1º. ano”, “pra aprender a escrever”. Nas suas falas, as crianças expressaram também a dimensão afetiva de suas experiências na Educação Infantil, mencionando a “saudades dos colegas e da professora”.
Buscando analisar as estratégias de articulação curricular entre essas duas etapas da Educação Básica, Monteiro (2013) investigou as expectativas das crianças de uma escola municipal de Fortaleza (CE) com relação à essa passagem Segundo a autora, todas as crianças justificaram o desejo de passar para o 1º. ano com base na aquisição da leitura e da escrita: “Eu quero aprender a ler”. Porém, queriam também poder brincar, fazer amizades, estar perto dos amigos prediletos, estar numa escola que possui brinquedos e ter boa sala de aula.
Em investigação realizada em um município no interior do Rio Grande do Sul, Fernandes (2014) investigou a perspectiva das crianças sobre esse assunto. Concluiu que, para elas, a Pré-Escola e o Ensino Fundamental são similares, mas o ingresso nesta etapa significa “ficar grande” e aprender a ler e escrever, o que parece motivar o enfrentamento do sentimento de saudade da Educação Infantil, relatado por elas.
Teixeira (2008) destaca que as crianças parecem ter, nesse momento, uma vontade intensa de fazer dar certo sua experiência como aluno, o que se constitui um fator favorável para que elas iniciem o percurso escolar desenvolvendo vínculos positivos com a escola. Infelizmente, nem sempre essa motivação tem sido bem aproveitada, já que a extrema valorização da apropriação da leitura e da escrita, em detrimento da consideração das múltiplas linguagens e da diversidade de conhecimentos possíveis à criança, continua dominando, via de regra, as práticas mais comuns no primeiro ano do Ensino Fundamental.
Considerações finais
As falas das crianças se constituem, de fato, numa possibilidade muito importante de ampliação do nosso conhecimento sobre a Educação Infantil no nosso país, pois trazem um outro ponto de vista, o daqueles que deveriam estar no centro das preocupações de todos que fazem/pensam essa etapa da educação. Para tanto, é necessário estar aberto ao novo, ao inusitado, pois, como foi constatado em trabalhos nos quais foram ouvidos professores, famílias e crianças (como ANDRADE, 2007; CAMPOS e CRUZ, 2006; e JOÃO, 2007), há bastante semelhança entre pontos de vista dos adultos, mas muitas diferenças destes com o das crianças.
A valorização unânime entre as crianças das amizades e, especialmente, das brincadeiras que acontecem nesse contexto praticamente não é reconhecida pelos adultos – o que é motivo tensão e conflitos nas relações eles e as crianças e muita frustração e raiva por parte delas. Assim, não é incomum que os meninos e meninas expressem o desejo de não permanecer em creches e pré-escolas que parecem não escutar o que elas falam através de suas múltiplas linguagens e não acolhem as suas necessidades e desejos. A conversa a seguir, retirada de Andrade (2007), é exemplar a esse respeito:
Criança: O nome dele é Juninho. Aí, ele não quer ir pra escola, quer ficar no meio da
rua. Aí, a mãe dele bateu nele. Aí, depois ele nunca mais foi pra escola. Aí, a mãe dele
num botou ele mais na escola. Aí, depois ele... [silêncio] Ele fugiu de casa.
Pesq.: É, e por que o Juninho não quer ir pra escola?
Criança: Porque ele num gosta de ir.
Pesq.: É, por que?
Criança: É porque ele quer ficar no meio da rua brincando.
Vale registrar que em várias pesquisas as crianças também relatam castigos e surras recebidos dos seus familiares por não quererem ir para escola, numa inequívoca resposta à falta de sensibilidade desta instituição às suas diferentes demandas. Dantas (2005), afirma que é preciso entender as crianças para atendê-las adequadamente. É evidente que a escuta das crianças não se faz apenas em pesquisas, mas, principalmente, no cotidiano. As professoras que educam/cuidam as crianças cinco dias por semana, e muitas vezes em período integral, precisam desenvolver um olhar e uma escuta que lhes permitam conhecer melhor as crianças sob a sua responsabilidade a fim de desenvolver uma prática pedagógica mais rica e interessante para elas.
Para que isso seja possível, são necessários maiores investimentos na formação inicial e continuada dos professores, superando problemas que já vêm sendo apontados por vários autores, (por exemplo, GATTI e BARRETO, 2009). Tais investimentos são urgentes, pois, como Machado (1998) afirma,
[...] a associação entre qualidade do atendimento, qualidade das interações adulto-criança e formação profissional é um uníssono nas diferentes fontes consultadas, seja quando pretende-se delimitar o próprio conceito de qualidade (BALLEYGUIER, 1992; GHEDINI, 1992, HOWES et al., 1992a; PIERREHUMBERT, 1992), seja para verificar os efeitos da permanência em instituições coletivas no desenvolvimento das crianças (CLARKE-STEWART, 1992; HOWES et al., 1992b; PALMÉRUS, 1992a e b; ANDERSSON, 1992; MELLUISH et al., 1992; BALLEYGUIER et al., 1992), seja para justificar políticas educacionais (CAMPOS, 1997)
A formação dos professores precisa contemplar as especificidades da docência na Educação Infantil, que inclui a educação e cuidado das crianças e uma relação mais estreita com os seus familiares. Essa especificidade tem como ponto central a posição que a criança ocupa em relação ao planejado, vivido e avaliado nessa etapa da educação. Trata-se de um trabalho muito complexo e delicado, tendo em vista o intenso processo de aprendizagem e desenvolvimento em curso e o fato de que a criança está construindo a sua identidade na interação com os ambientes em que vive. Como aqui foi sinteticamente trazido, várias questões estão imbricadas nesse processo, como as referentes à identidade étnico-racial e de gênero, e os professores são personagens importantes, interferindo fortemente nos seus rumos.
A formação de professores precisa possibilitar a problematização do currículo e da rotina praticados nas instituições de Educação Infantil. A alta incidência de reclamações das crianças acerca de repreensões e castigos já indica problemas sérios em relação a isso. Elas dizem que gostam de aprender coisas novas, sua curiosidade é infinita! No entanto, parece que usualmente os seus interesses não estão sendo focados e que as suas formas peculiares de aprender não estão sendo considerados.
As falas das crianças indicam também a necessidade de outros investimentos que favorecem suas aprendizagens e desenvolvimento e aumentam o bem estar delas enquanto permanecem nas instituições de Educação Infantil, além de possibilitar melhores condições de trabalho para os professores. Entre eles, destacam-se a reforma ou construção de prédios que tenham não só espaços internos mas inclua áreas externas utilizáveis para brincadeiras, assim como a garantia de brinquedos e de livros de literatura infantil de boa qualidade e na quantidade necessária para o número de crianças. Outro elemento apontado pelas crianças para a qualidade da Educação Infantil é uma alimentação saudável e saborosa. Além das refeições suprirem suas necessidades biológicas, são ainda fonte de prazer, tanto pelos sabores experimentados como pelo que podem perceber como expressão de afeto. Portanto requerem atenção dobrada dos gestores.
Consideramos necessário concluir esse artigo reafirmando a importância de procurar apreender a perspectiva de crianças acerca de diferentes aspectos da sua experiência escolar e acrescentando que ouvi-las é penas um primeiro passo. Essa escuta só é plenamente justificada e assume realmente valor se for revertida em práticas pedagógicas e políticas que levem essas vozes em consideração.
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Notas
Ligação alternative
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