Dossiê Temático

Recepção: 10 Janeiro 2017
Aprovação: 10 Março 2017
DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201731234p.87-100
Resumo: Este artigo analisa a formação de professoras da educação infantil em contexto na Unidade de Atendimento a Criança da UFSCar a partir da sistematização da história registrada em seus arquivos e da realização de entrevistas e relatos de suas docentes. O escopo da análise é a discussão sobre as transformações na carreira das docentes contrabalanceando suas memórias, os arquivos e os efeitos e impactos das mudanças políticas. Observa-se que a formação das professoras é fortemente impactada pelas mudanças legislativas com diferentes exigências às suas profissionais nas últimas três décadas. A trajetória da formação das docentes em contexto, trazida à contra memória, traz inúmeras semelhanças com demais “creches universitárias” promovendo também uma visibilidade das questões que envolvem a consolidação de uma Unidade de Educação Infantil Universitária no âmbito do Ensino, da Pesquisa e da Extensão, aspectos estes exigidos pela Resolução n.1 de março de 2011 do CNE/SEB atualmente vigente.
Palavras-chave: Educação Infantil, Formação de Professores em Contexto, Resolução n.1 de março de 2011 do CNE/SEB, “Creches Universitárias”.
Abstract: This article analyzes the training of preschool teachers in context at UFSCar’s UAC from the systematization of recorded history in its files in addition to interviews and reports of the teachers. The target of the analysis is the discussion about the transformations in the teachers’ career counterbalancing their memories along with the files and the effects and impacts of political changes. It’s possible to observe that the training of the teachers is strongly impacted by legislative changes with different requirements to its professionals over the past three decades. The path of the teachers’ training in context, brought to counter-memory, brings many similarities with other “university day care center”, also promoting the visibility of questions concerning the setting of a Preschool University Unit within the scope of Education, Research and Extension, aspects required by the Resolution n. 1 of march 2011 from the CNE/SEB in force.
Keywords: Preschool, Teachers’ training in context, Resolution n. 1 of march 2011 from CNE/SEB, “University day care center”.
Resumen: Este artículo analiza la formación de maestros de educación infantil en el contexto de la Unidad de Asistencia al Niño de la UFSCar a partir de la sistematización de la historia registrada en archivos, entrevistas e informes de profesores. El alcance del análisis es la discusión sobre las transformaciones en la carrera de los profesores contrabalanceando sus memorias, los archivos, los efectos e impactos de los cambios políticos. Se observa que la formación de los maestros está fuertemente afectada por los cambios legislativos con diferentes exigencias para su desempeño profesional durante las últimas tres décadas. La trayectoria de la formación de los profesores en su contexto, trae muchas similitudes con otras “guarderías universitarias” promoviendo la visibilidad de los temas relativos a la consolidación de la Unidad de Educación Infantil Universitaria en el ámbito en la Enseñanza, Investigación y Extensión, aspectos requeridos por la Resolución n. 1 de marzo de 2011 CNE / SEB actualmente en vigor.
Palabras clave: Educación infantil, Formación docente en su contexto, Resolución n.1 de marzo de 2011 CNE / SEB, “Guarderías universitarias”.
Introdução
Desde 1978 servidores, docentes e alunos da UFSCar1, campus de São Carlos, mobilizaram-se no sentido de solicitar à implantação de uma "creche". Observa-se que história da Unidade de Atendimento a Criança (UAC), tal como é chamada a “creche universitária” da UFSCar, está intimamente ligada à história desta Universidade e reflete os movimentos sociais e políticos que a constituíram. A Unidade de Atendimento à Criança (UAC) é atualmente uma Instituição de Educação Infantil, situada no campus de São Carlos da Universidade Federal da cidade (UFSCar), vinculada atualmente à Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (ProACE). Recebe crianças na faixa etária de 3 meses a 5 anos, filhos (as) de alunos (as) dos cursos de graduação da universidade e comunidade de São Carlos. Com o propósito de aprimorar o trabalho com as crianças e o crescimento profissional das professoras, observa-se a realização de diferentes trabalhos no âmbito da formação continuada e estudos em contexto (FORMOSINHO e KISHIMOTO, 2002).
As ideias exploradas neste artigo estão baseadas na vivência dos quase vinte e cinco anos da realização de um trabalho de Formação Continuada e Estudos em Contexto na Unidade de Atendimento a Criança. Temos compreendido, tal como Formosinho e Kishimoto (2002), que esta formação é em contexto, pois articula-se com as situações de trabalho e com os cotidianos das práticas e suas demandas. Não se trata, portanto, em pensar em uma formação continuada cujos professores são meros passivos, receptores de cursos de formação externos, alheios às suas necessidades. A formação em contexto considera, por estas razões, que seu efeito é imediato na vida e na vivência das crianças que frequentam a instituição. É nesta direção que compreendemos e observamos a formação continuada na Unidade de Atendimento a Criança (UAC).
Esses trabalhos de formação em Contexto na UAC iniciaram em 1996. Entretanto, com as novas demandas postas à UAC no interior da Universidade e de acordo com a exigência da Resolução No. 1 de março de 2011 do CNE/SEB que indica a obrigatoriedade de garantir o direito à formação profissional continuada (RESOLUÇÃO CNE/SEB 1/2011, Artigo 1º., inciso VI), iniciou-se em 2013 a constituição de espaços e momentos mais consolidados e sistematizados de formação.
No âmbito desta Resolução, a formação em contexto se insere também nas novas demandas postas às creches universitárias no que diz respeito à necessidade de se consolidarem como unidades que realizam, não somente o ensino, mas também, a pesquisa e a extensão. Em uma perspectiva de formação em contexto tal como proposta por Formosinho e Kishimoto (2002), a pesquisa e a extensão são partes fundamentais da constituição da proposta de formação e de sua execução. Discutir a formação de professores em contexto em uma creche universitária é, portanto, redimensionar tal discussão de modo a articulá-la às novas demandas políticas que por ela (e por todas às demais creches universitárias) incidi.
Observa-se que as novas exigências políticas postas, por exemplo, por esta Resolução, trazem para a unidade uma demanda de formação muito diferente da que vinha ocorrendo desde a inauguração desta creche, em 1992. A própria denominação inicial “creche” tem sido rediscutida e problematizada, para além do espaço da UAC, uma vez que esta nomenclatura remete a uma prática em que o atendimento de crianças pequenas vinculava-se às legislações trabalhistas e às demandas de assistência às mães trabalhadoras. Desde a promulgação da LDBEN/1996 e de outros dispositivos legais subsequentes, o atendimento de crianças pequenas passou a ser redirecionado no âmbito da educação infantil, como direito legítimo de toda criança.
Não é mais o atendimento, mas a educação, neste caso não são mais cuidadoras, mas professoras. Estas mudanças são resultantes das políticas de educação infantil e afetam diretamente a forma de conceber a formação em contexto das profissionais que neste âmbito atuam.
As análises que trazemos para este artigo são derivadas de um projeto de pesquisa e extensão realizado em 2015, com docentes, estudantes de graduação, técnicos administrativos e coordenação pedagógica da UAC, chamado “Infância e formação profissional”. Este projeto esteve inserido em um Edital Especial da UFSCar cuja proposta foi a recuperação da memória da Universidade; a pesquisa realizada no interior deste edital pela UAC procurou recuperar, sistematizar e analisar todo arquivo da Unidade, além de trazer como proposta a escuta de suas docentes atuais e profissionais já aposentadas. O recorte desta pesquisa que trazemos para este artigo é a análise da formação de professoras da educação infantil em contexto da Unidade de Atendimento a Criança da UFSCar a partir da sistematização da história registrada em seus arquivos e da realização de entrevistas e relatos de suas docentes atuais e aposentadas que nela atuaram.
Procurou-se observar principalmente as transformações na carreira das docentes contrabalanceando suas memórias, os arquivos, os efeitos e impactos das mudanças políticas. A discussão ora trazida reverbera também a situação vivida por demais creches universitárias, colocando nosso artigo em diálogo com demais experiências e extrapolando os limites e as especificidades da Unidade de Atendimento a Criança. Para realizar este debate o artigo está organizado da seguinte maneira: Na primeira parte relacionamos as principais mudanças políticas e dispositivos legais com os processos históricos e políticos de consolidação das creches universitárias. Na segunda parte trazemos a análise dos processos de formação recolhidos pelos registros e arquivos da Unidade de Atendimento a Criança. Na terceira parte trazemos a história à contra-memória, refletindo a maneira pela qual as mudanças políticas surtiram efeito na formação em contexto das professoras que atuam ou atuaram da unidade de atendimento a criança.
As principais mudanças políticas e dispositivos legais
A década de 1970 foi marcada por reivindicações políticas que começaram a ganhar força e voz ativa em decorrência dos movimentos sociais e sindicais. Estes movimentos reivindicavam direitos trabalhistas, entre eles, os que envolviam o atendimento às crianças filhas e filhos de trabalhadores em instituições públicas e gratuitas. Movimentos liderados por mulheres feministas estavam conquistando mais espaço na área trabalhista, resultado do avanço do capitalismo que necessitava agora da mão de obra feminina (HADDAD, 1990). As creches começaram a ser reivindicadas como um direito dessas mulheres de deixar os filhos enquanto trabalhavam, tendo em vista que não era possível cumprir as horas de trabalho e conciliar as atividades domésticas (TELES et. al., 1989).
A criação de creches também se tornou uma bandeira de luta das trabalhadoras das Universidades Federais. A primeira creche universitária foi inaugurada em 1972, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao final da década de 1970 já havia outras quatro em funcionamento. Nas décadas de 1980 e 1990 ocorreu uma expressiva expansão na implantação de creches vinculadas às Universidades Federais, totalizando 15 unidades implantadas nesse período. Essa expansão foi fortemente influenciada pelos avanços na Educação Infantil e porque essa área emergia como um campo de pesquisa. (RAUPP, 2004). Uma conquista trabalhista importante deste período, a lembrar, foi a de que os filhos dos (as) servidores (as) das Universidades Federais deveriam ser atendidos em unidades de educação situadas no campus das Universidades, direito garantido pelo Decreto No. 93.408 de 10/1986.
As creches universitárias foram se expandindo num movimento paralelo e ao mesmo tempo convergente à política nacional. É consensual considerar que o principal marco histórico da Educação Infantil ocorreu ao final da década de 1980, com a Constituição Federal de 1988, que alocou as creches e escolas maternais ou pré-escolas à área da Educação e não mais à Assistência, além de determinar que a educação das crianças nestas instituições deveria ser compreendida e afirmada como um direito da criança e não somente da mãe trabalhadora. A aprovação da nova Constituição abriu caminhos para a criação de outros dispositivos legais que reiteraram a criança enquanto sujeito portador de direitos, tais como a Lei No. 8.069, de 13 de julho de 1990, que discorreu sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e no que se refere à educação, confluiu com a CF/88. O Art. 53- I, por exemplo, dispõe que toda criança e adolescente possui o direito de iguais condições para o acesso e permanência na escola, e para crianças de 0 a 6 anos o direito a frequentar creches e pré-escolas.
A Lei nº 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), apesar de suas inúmeras críticas, alterações e complementações, também reforçou a luta pela Educação Infantil e a consolidou como primeira etapa da Educação Básica, indicando: “Art. 21º. A educação escolar compõe-se de: I - Educação Básica, formada pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino. Médio; II - Educação Superior”. As discussões posteriores à década de 1980, fundamentadas principalmente pela Constituição de 1988, tornaram, portanto, a creche como um direito da criança. Por meio de outras Leis e Decretos, tais discussões influenciaram no redirecionamento do funcionamento de algumas creches universitárias que passaram a atender não apenas os filhos dos respectivos funcionários(as) e alunos(as), mas abriram oportunidade de atendimento à comunidade externa.
A abertura e expansão das creches universitárias foram aliadas às problematizações em torno de sua função mediante sua especificidade e vinculação com as Universidades. Raupp (2002) traz à lembrança de que o objetivo de um dos fóruns realizados em 1987 foi discutir o papel dessas Unidades infantis vinculadas às universidades - se eram meramente assistenciais ou acadêmicas. A identidade da creche universitária já estava em pauta problematizando a forma de atendimento exclusivo ou prioritário aos filhos(as) de servidores(as) e alunos(as) do campus, e o compromisso de agir sobre o Ensino, a Pesquisa e a Extensão.
Em 1993, a aprovação do Decreto No. 977 freou o movimento de expansão e funcionamento das creches universitárias. Este dispositivo valorizou o auxílio pré-escolar indireto, por meio de reembolso das mensalidades no caso dos funcionários que não utilizavam o serviço “creche” e proibiu a criação de novas unidades. Entretanto, se por um lado houve a interrupção no processo de expansão das unidades universitárias de Educação Infantil, por outro lado, eram cada vez mais impulsionados os debates a favor dos direitos das crianças e outras medidas legais continuaram sendo criadas apoiando essa perspectiva.
Os Critérios para um Atendimento que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças (1995, 2009), Os Parâmetros de Qualidade para Educação Infantil (2006), os Parâmetros de Infraestrutura para Educação Infantil (2006), e a Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (2009), são alguns dos exemplos de documentos oficiais que trouxeram novas definições de criança, infância e Educação Infantil e que se pautam na perspectiva do direito da criança e na necessidade de uma educação de qualidade.
Uma vez inscrita e expandida a noção de que a Educação Infantil é um direito da criança e isso significa compreender que é um direito de toda criança, como ressalta as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (2009), “[...] sem requisito de seleção”, a meta da universalização do atendimento, se expressa e se consolida na Resolução CNE/CEB nº 1, de 10 de março de 2011, que reitera o direito da criança à Educação Infantil e obriga a universalização do atendimento nas creches universitárias, caso contrário, essas unidades não seriam mais mantidas pela União. Esta Resolução também reforça a necessidade destas instituições se comprometerem, de forma indissociável, a realizar a Pesquisa e Extensão além do Ensino, justamente por serem parte de Universidades Federais, e a necessidade de apresentarem uma proposta pedagógica que seja coerente e de acordo com os conceitos e os parâmetros atuais para Educação Infantil.
A Resolução CNE/CEB nº 1, de 10 de março de 2011, publicada pelo Conselho Nacional de Educação e pela Secretaria de Educação Básica no Diário Oficial da União de 11 de março de 20112 fixa as normas e as diretrizes para o funcionamento das Unidades de Educação Infantil vinculadas às Universidades Federais brasileiras. Esta Resolução foi organizada em 10 artigos que orientam processos de adequação para todas as creches universitárias em diferentes âmbitos, tais como: nas formas de ingresso e universalização de atendimento (o que quer dizer formas igualitárias no ingresso e permanência); na garantia do quadro de profissional formado e de programas de formação continuada; na estruturação do Projeto Político Pedagógico que seja compatível com as DCNEI (2009) e com especificações de seus recursos humanos e estruturais; no estabelecimento de critérios para organização das jornadas; no estabelecimento de princípios que se articulem a especificidade da prática pedagógica da educação infantil, envolvendo o cuidado, a higiene, a segurança, a acessibilidade, etc.; na adequação de seus espaços físicos; nos critérios e requisitos para atuação como docente e/ou gestor da Unidade; na vinculação administrativa e pedagógica no interior da Universidade (a necessidade de se vincular a Centros ou Departamentos de Educação) e por fim, o prazo indicado para tais adequações, que se encerrou em 2012.
A respeito desta medida política que impacta mais especificamente sobre as creches universitárias, pode-se compreendê-la como o resultado de um processo histórico de discussões e de mudanças legislativas que estruturam a Educação Infantil. As diretrizes postas por esta Resolução estão presentes de maneira detalhada em outros documentos governamentais que tratam da Educação Infantil no âmbito da política nacional3.
O que esta Resolução faz, a rigor, é colocar para as Unidades de Educação Infantil universitárias a necessidade de se adequarem a esta política nacional vigente compreendendo-as como parte de um sistema nacional, que devem, portanto, serem institucionalizadas. Ao mesmo tempo, coloca-se para estas creches/unidades de Educação Infantil a necessidade de se constituírem como Unidades acadêmicas. Em outras palavras, duas demandas que se abrem com especificações, não distintas, mas de naturezas distintas: se normalizarem de acordo com toda política nacional vigente para educação infantil e se diferenciarem ao passo de se constituírem como Unidades de Ensino, Pesquisa e Extensão. Sobre esta demanda é que alocamos a discussão sobre a formação em contexto e para tanto, procuramos registrar e analisar o processo de formação de professores desta Unidade que completa em 2017 vinte e cinco anos.
Formação de professores em contexto na unidade de atendimento a criança – a história pelos arquivos
A Unidade de Atendimento a Criança recebe seu primeiro quadro de professoras em 1992. São professoras de 1º e 2º Graus, moradoras do antigo território de Rondônia e que foram redistribuídas para UFSCar devido à mudança de território para Estado. As docentes na época não tinham nenhuma formação específica para trabalhar com crianças pequenas. Os arquivos registram a história de que, dada à ausência de formação específica destas primeiras professoras da UAC, foi proporcionado o primeiro curso em contexto, chamado “O desenvolvimento da criança nos primeiros anos de vida”, na ocasião ministrado por uma professora do Departamento de Psicologia e duas doutorandas da educação, com formação acadêmica em pedagogia e psicologia. O curso foi desenvolvido em cinco módulos: Módulo I: Analisando o Desenvolvimento Infantil na Creche; Módulo II: A Função da Brincadeira no Desenvolvimento da Criança; Módulo III: A Construção de um Ambiente Alfabetizador; Módulo IV: Desenvolvendo um Projeto Pedagógico para Creche; Módulo V: O Papel da Interação entre parceiros, Adultos e Crianças.
O curso acontecia no início do primeiro e do segundo semestre de cada ano, com duração de 32 horas semanais, num período de não atendimento às crianças (janeiro e julho). Participaram destes encontros as professoras, as auxiliares de creche e a enfermeira. As principais referências teóricas registradas nos arquivos são o construtivismo genético de Jean Piaget e a teoria de Vygotsky. A demanda formativa desta primeira formação foi a análise do desenvolvimento da criança de zero a seis anos, com a intenção de compreender a função da brincadeira no desenvolvimento infantil e a construção de um ambiente alfabetizador. Nota-se, por estes registros, a influência teórica da época com forte perspectiva da psicologia do desenvolvimento, a ênfase no desenvolvimento cognitivo, as referências à brincadeira como metodologia e a intencionalidade alfabetizadora. As principais referências teóricas encontradas em seus arquivos são, além de Vygostsky e Piaget, Kamii (1990), especialmente o livro “A Criança e o número” e “Jogos em Grupo na educação infantil”, Macedo (1996), especialmente “O Desenvolvimento Moral da Criança”, bem como Bee (1984) e Mukina (1996), referências que eram utilizadas para explicar as fases do desenvolvimento da criança.
No ano de 1995 a unidade inclui em seu quadro de funcionário o cargo de Pedagogo. A profissional concursada que ocupa este cargo passa a realizar a coordenação pedagógica da UAC e a acompanhar o curso mencionado acima, que estava em andamento. O acompanhamento pedagógico mensal ocorria da seguinte maneira: as professoras tinham uma jornada de quarenta horas semanais em sala de aula trabalhando com as crianças; uma vez por semana, em um dos períodos da jornada, elas se ausentavam da sala de aula para o estudo em horário de serviço.
No ano de 1996, durante uma semana, houve um encontro de formação promovido para UAC pelo Centro Brasileiro de Investigação sobre o Desenvolvimento e Educação Infantil (CINDEDI) do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP - USP). Nesta formação foi utilizado o documento do Ministério da Educação e do Desporto, “Critérios para um atendimento em creches, que respeite os direitos fundamentais das crianças” publicados em 1995. A utilização deste documento revela a preocupação das professoras em atender e garantir os direitos fundamentais das crianças. Há também registros de participação de outras creches universitárias neste encontro, como a Carochinha4, creche da USP de Ribeirão Preto.
O curso “O desenvolvimento da criança nos primeiros anos de vida” se encerrou em 1997 e se iniciou uma longa jornada de mobilização para constituição do Projeto Político Pedagógico da Unidade. Vale ressaltar que nesta ocasião já estava em vigor a Lei 9394/96 que alocou creches e pré-escolas para Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica. Os arquivos trazem registros sobre as problematizações da época que mobilizavam o olhar e as reflexões para se constituir o projeto político pedagógico. Questionavam-se: onde a unidade se insere? O que ela significa? E em que tipo de resultado ela quer chegar? Estes questionamentos tipificam um processo de constituição de identidade e que era também efeito de uma política que pensava o atendimento de crianças pequenas como parte de uma proposta pedagógica e não mais assistencialista.
Há também registros de que a Unidade buscou a participação das famílias na elaboração do Projeto político Pedagógico. O documento em elaboração foi entregue aos pais e a partir da revisão coletiva elegeram-se alguns temas para compor as próximas formações das professoras. Os temas que surgiram no ano de 1997 após esta revisão coletiva foram: a) Sexualidade na pré-escola: uma questão para a formação de educadores; b) Direitos humanos e combate ao racismo; c) Inclusão. A formação no interior destes temas ocorreu entre os anos de 1997 e 1998 com a participação de diferentes departamentos e grupos de pesquisa da Universidade.
Nota-se a atualidade dos temas indicados, fato este que revela a percepção antecipada da Unidade para assuntos tão presentes nas práticas pedagógicas mesmo antes dos dispositivos legais que garantem a discussão destas esferas, tais como a Lei 11.639/2003 e Lei 13.146/2015, entre outras. Esta percepção é também uma referência à característica típica de uma creche universitária. Ao estar inserida no contexto universitário, as creches podem usufruir do debate que ocorre no âmbito acadêmico, realizando parcerias e diálogos com diferentes pesquisadores, grupos de pesquisa, centros, departamentos de educação ou outros. A extensão e a pesquisa, portanto, fazem parte da constituição destas creches.
Há ainda outra especificidade que envolve as creches universitárias. Trata-se da carreira na qual se inserem suas(seus) docentes, a carreira de EBTT – docentes que abrangem o Ensino Básico Técnico e Tecnológico. A carreira era assegurada pelo Plano Único de Classificação e Redistribuição de Cargos e Empregos (PUCRE). Este plano não era reconhecido no interior das universidades, que exigiam em contrapartida, uma regimentação própria para a carreira, uma vez que os demais docentes que compunham o quadro de servidores da universidade não se enquadravam neste perfil. Após anos de intensas reivindicações internas, as docentes da creche da UFSCar conseguiram aprovar a proposta de jornada de trabalho que garantia horas de formação e planejamento, direito este conquistado em 2002. Desde então, a jornada se distribui em vinte e cinco horas em sala de aula e quinze horas de estudo, planejamento e formação em contexto.
Neste mesmo ano a Unidade teve como chefe uma pesquisadora da área da educação infantil que tinha como perspectiva teórica a interface com a Sociologia da Infância. Esta chefia propôs um novo curso de formação cuja proposta, segundo os arquivos, era provocar nos profissionais a revisão de suas posturas pedagógicas, até então predominantemente focadas em perspectivas da psicologia. Foram envolvidos nesse trabalho de formação continuada em contexto o Departamento de Recursos Humanos, professoras do Departamento de Artes, de Psicologia e de Metodologia de Ensino da Universidade. As áreas de formação foram: legislação, meio ambiente, música, ciências, desenvolvimento e aprendizagem da criança pequena, matemática, multiculturalismo, movimento e brincar, leitura e escrita e pesquisa em educação.
Outro registro é de uma formação que ocorreu em 2009. Foi ministrado por dois professores das áreas de física e matemática e foi desenvolvida por meio de uma ACIEPE – Atividade Curricular de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão. O título desta ACIEPE foi “Ciência Lúdica para Crianças: pressupostos, atividades e vivencias”. A UAC participou como parceira e os objetivos centrais deste trabalho foram: 1. Contribuir para o aprimoramento da divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Matemática na educação infantil, por meio da formação continuada de professores que atuam nesse nível de ensino, incentivando-os à elaboração de atividades lúdico-didáticas; 2. Articular a divulgação científica à educação praticada nas pré-escolas, levando em conta a exploração das potencialidades cognitivas, afetivas e o espírito curioso da criança.
Os registros enfatizam que esta formação foi bastante viável e pertinente; que as docentes se mostraram dispostas a vivenciarem as atividades propostas e contribuíram para o aprimoramento das mesmas, apontando possíveis dificuldades que poderiam ser enfrentadas com as crianças. Foi muito enfatizado que a divulgação científica para o público infantil não pode estar baseada numa transmissão precoce de informações e numa organização excessivamente estruturada da ação da criança. Ao contrário, indicava-se que era importante investir e valorizar a produção infantil, estar atento ao gesto espontâneo e a intencionalidade da criança e aproveitá-los enquanto manifestação no diálogo que se faz necessária manter com este público.
Entre 2009 e 2010 há novos registros de formação em contexto sobre a temática da educação das relações étnico raciais. Esta formação foi coordenada por uma das docentes da Unidade. Paralelo a este registro há documentos que indicam o estudo em serviço de duas obras, nestes mesmos anos: “As Cem Linguagens da Criança” (1999) e o “Manual de Educação Infantil: de 0 a 3 anos”, que são referentes à abordagem de Reggio Emília na educação da primeira infância. Importante destacar que os arquivos registram também outros momentos de formação, entretanto, que ocorreram em períodos mais curtos e que foram mais passageiros do que estes acima registrados. Observa-se que a Unidade esteve sempre preocupada em realizar espaços e tempos de formação considerando que este era um investimento que refletia diretamente na prática pedagógica com as crianças.
O grande entrave para a continuidade e para a constituição mais sólida destes momentos formativos foi o desmonte do quadro de professores efetivos da Unidade. Ao longo de vinte e cinco anos de existência a UAC recebeu professores concursados apenas em 2004 e, dez anos mais tarde, em 2014. As professoras que chegaram na Unidade em 1992, transferidas de Rondônia foram, pouco a pouco, se aposentando, e o quadro de professores não foi reposto, fato este também vivenciado por demais creches universitárias e que se insere na problemática da liberação de vagas no banco de equivalentes e a forma pela qual as políticas públicas foram conduzindo o desmonte das creches universitárias. Em 2013, a Unidade tinha apenas duas professoras efetivas e o atendimento das crianças foi subsidiado, por anos, por professoras substitutas.
Vale destacar que a UAC possui seis salas no período da manhã e seis salas no período da tarde, ou seja, para cobrir todas as salas a unidade necessita de pelo menos doze docentes. A formação continuada das docentes, por estas razões, foi em muitos momentos proposta por pessoas, departamentos ou grupos externos a UAC, ainda que tendo como foco o atendimento das demandas internas desta Unidade. Além disso, o fato de ter como docentes a condição de professores temporários prejudicou a continuidade dos processos de formação em contexto, bem como, a consolidação de práticas entretidas no Ensino, na Pesquisa e na Extensão.
De acordo com a exigência da Resolução No. 1 de março de 2011, responsável por normatizar o atendimento às crianças em Unidades de Educação Infantil vinculadas às Universidades Federais do Brasil, a UAC iniciou em 2013 a constituição de espaços mais consolidados e sistematizados de formação visando o atendimento do tripé acima mencionado. Observa-se o incentivo para que as professoras efetivas da carreira do Ensino Básico Técnico e Tecnológico sejam ministrantes de cursos ou atividades de extensão como parte da proposta de formação em contexto na Unidade. Inserido neste processo de adequação da unidade à esta recente Resolução observa-se a mobilização de diferentes momentos de formação. Destaca-se a atividade registrada como Tutoria de Estágio.
Esta atividade vem a reforçar uma das justificativas em favor da continuidade das creches universitárias. Deriva do fato de que estas unidades atuam nas universidades como fortes campos de estágio. Observa-se que UAC, por exemplo, recebe estagiários de diferentes cursos, tais como Educação Física, Educação Especial, Pedagogia, Música, Enfermagem, Terapia Ocupacional, Psicologia, etc. Além dos estágios curriculares, a Unidade recebe estagiários remunerados da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas. Com a finalidade sistematizar e acompanhar estes estudantes no seu exercício de aprendizagem da docente é que a atividade de formação em contexto Tutoria de Estágio foi pensada e planejada, sendo ainda ativa na Unidade.
A história à contra memória
Nos inspiramos no trabalho desenvolvido por Catani et al (1997) ao trazer a “contra memória” como uma perspectiva que procura visibilizar e analisar histórias de vida e de práticas docentes a partir da reconstrução individual ou coletiva da memória. A memória individual é reconstruída no trabalho reflexivo dos sujeitos e imediatamente submetida à reconstrução da memória coletiva que irá trazer aspectos que caracterizam a vida profissional do grupo de docentes. Há uma potencialidade intrínseca na perspectiva da contra memória, uma vez que ela atua:
[...] no modo como os professores concebem a relação teoria e prática no seu trabalho. À medida em que vão demolindo as ideias que lhes foram impostas pela memória oficial e pelos próprios manuais e livros didáticos, eles reconstroem uma nova concepção sobre sua prática e o modo como esta se delineia e se estrutura, incorporando não apenas elementos das teorias como outros que procedem da experiência pessoal e social que tem lugar dentro e fora da escola (CATANI et Al, 1997, p. 33)
A pesquisa na qual se insere o presente artigo procurou trazer à tona também a história da vida profissional das professoras que pertenceram ou pertencem ao quando de docentes da Unidade de Atendimento a Criança. As docentes foram organizadas em grupos de três gerações correspondentes à década em que chegaram na Unidade. O quadro abaixo detalha a relação quantitativa de docentes em cada período5. As linhas sublinhadas correspondem às professoras novas em cada década.

Observamos pelo quadro que as professoras identificadas pelos códigos A1, A2, A3, C1, C2, E1, F1, I1, M2, N2, Q1, S1, e T1 se aposentaram no decorrer da década de 2000 e nem todas as vagas foram repostas para a Unidade. Destas 13 vagas disponibilizadas com a aposentadoria das docentes, apenas oito tiveram seus códigos de vagas mantidos, o que possibilitou a entrada das professoras identificadas pelos códigos C3, E3, G1, P1, P2, T1, D1 e N3, entre os anos de 2014 e 2015. Todas as professoras da primeira década (1990) foram transferidas do território de Rondônia. As professoras identificadas pelos códigos A4, J2, e M1 foram as primeiras docentes concursadas, efetivadas na Unidade em 2004. Em 2014 mais oito docentes foram chamadas da lista de classificadas do segundo concurso para docentes da Unidade.
A proposta de trazer à tona a contra memória a partir da história da vida profissional destas professoras foi feita a partir de uma roda de conversa coletiva de modo a reunir, em uma mesma ocasião, docentes de uma mesma geração. Procuramos deixar o relato das docentes fluir a partir de alguns questionamentos iniciais, tais como: Quando iniciou o seu trabalho na UAC? Qual é sua formação profissional no início da carreira e atualmente? Como era a UAC quando você chegou e o que mudou no de correr do tempo? O que você considera importante para que o trabalho da UAC seja realizado com qualidade?
Participaram da roda de relatos duas docentes da primeira geração (E2 e A1), duas docentes da segunda geração (M1 e J2), e cinco docentes da terceira geração (E3, C3, P1, P2 e T1). No momento em que ocorreu esta pesquisa as docentes D1 e N3 não haviam sido chamadas ainda da lista de classificadas do segundo concurso da UAC. Trazemos abaixo um breve mapeamento da formação das docentes que participaram da pesquisa:

Observa-se por estes dados que a formação das docentes da primeira geração era bastante inicial. A falta de especificidade do trabalho com crianças pequenas na formação inicial destes docentes justifica a presença dos primeiros cursos de formação continuada em contexto apresentada neste presente artigo. Havia uma demanda emergencial em relação ao conhecimento julgado necessário na época para se trabalhar com crianças pequenas. A área da psicologia, por anos, predominou na educação por trazer conhecimentos específicos sobre a criança e seu desenvolvimento. O espanto, a dificuldade e os desafios de se trabalhar com crianças pequenas esteve muito presente na primeira geração de professores “Minha formação não tem nada a ver com a educação infantil. Em Rondônia atuei no ensino de 5 a 8ª série, então não imaginava como seria minha atuação com as crianças na educação infantil”. (Relato docente E2).
As docentes da primeira geração também revelam os efeitos dos primeiros cursos de formação. “Não era só pegar e jogar brinquedos como nós fazíamos quando chegamos aqui. ” (Relato docente A1). Destaca-se também a mudança de percepção em relação a participação da família, efeito do primeiro curso de formação em que se intensificou a discussão sobre a relação entre parceiros adultos e crianças. A professora E1 afirma “Considero importante a troca com a família, as interações família escola, elas devem ficar mais estreitas e verdadeiras...” (Relato docente E1). Esta mesma docente finaliza seu relato com a seguinte percepção:
Quando a gente chegou, hoje, olhando para traz, o que eu posso perceber é que havia um caráter bem assistencialista, uma preocupação higienista e tínhamos que entregar as crianças bem limpinhas. Depois com a nossa formação com os módulos e em serviço com a Pedagoga a gente foi ampliando os horizontes e mudou-se mais a concepção em relação a antiga assistência” (relato da E1 ...)
Na roda de conversa com as professoras da segunda geração destaca-se a percepção sobre a rotatividade das professoras em período em que a Unidade ainda mantinha um quadro de professoras efetivas:
Trabalhei como professora substituta de 2000 a 2002 então minha formação na UAC começou como professora substituta. Como era a UAC quando cheguei? A maioria dos professores eram efetivas e éramos só cinco substitutas, então não era um quadro que era muito rotativo (Relato da Docente.J2...)
Também destacamos a percepção de formação presente no relato de uma das professoras da segunda geração, que afirma: “Formação é uma coisa muito mais ampla, ela é permanente, é continua”. (Relato da docente J2). Outra docente da mesma geração complementa: “A formação é como algo decorrente do nosso trabalho não é que você busca uma formação para fazer alguma coisa. Não! A formação é concomitante, é ao mesmo tempo. Você vai se formando também enquanto professor nessa prática com criança em sala de aula”. (Relato da docente M1).
A percepção destas duas docentes releva ao menos dois aspectos importantes: primeiro a concepção de que a formação é continua e que ela se faz também na prática com as crianças. Segundo a visão de que a busca pela formação se faz a partir de algo decorrente do próprio trabalho, ou seja, da demanda da prática, convergindo com a ideia de formação em contexto.
A UAC está vivenciando um grande processo de mudança com a Resolução No. 1 de março de 2011, responsável por normatizar o atendimento às crianças em Unidades de Educação Infantil vinculadas às Universidades Federais do Brasil e transformá-la em espaço de pesquisa e extensão, essa é uma das exigências desta Resolução em vigor e que aparece no depoimento de todas as docentes da terceira geração. A docente E3 relata:
O que eu achei muito interessante ao prestar o concurso foi a diferença da formação: da extensão e pesquisa. É muito importante porque as vezes a gente vai para o campo para o trabalho e se restringe aquilo, não tem aquela continuidade, aquela formação. Muitas pessoas, muitos professores se acomodam. Minha expectativa é dessa continuidade da pesquisa e da extensão que a UAC, assim com essa abertura tem proporcionado.
Na mesma direção a professora T1 relata: “Quando eu vi o edital eu achei muito interessante porque proporcionava a pesquisa e a extensão que eu queria continuar. Que eu quero continuar. E P2 complementa:
Tenho muita leitura sobre o desenvolvimento da criança por conta da psicologia, por conta até da linguística, de como a criança vai se apropriando da língua materna, essa coisa do letramento. Falei assim, é uma oportunidade. É uma oportunidade também para eu me dedicar aos estudos de pesquisa porque a sala de aula viraria meu espaço de pesquisa.
P 1 faz as seguintes observações:
Tinha o propósito de fazer uma formação continuada com perspectiva de grupo colaborativo, uma coisa que seja permanente e que não seja pontual...De repente surgiu aqui! E eu falei: Nossa!! Existe concurso para educação infantil que valoriza uma pessoa que tem titulação, né? Eu sempre pesquisei na educação infantil, eu acho que seria um bom caminho para eu percorrer e, ai claro, pensei…. E ai fui prestar o concurso.
O depoimento destas professoras de gerações tão distintas e inseridas em momentos políticos tão divergentes revela a transformação na carreira destas docentes. De modo genérico e considerando as três gerações de docentes, observa-se que no contexto da creche universitária a transformação ocorre principalmente no âmbito da formação exigida, na valorização da carreira docente e na configuração de uma docência que deve se constituir no interior das demandas específicas da Universidade, coadunando o Ensino, a Pesquisa e a Extensão. Estas últimas demandas não estavam presentes nos relatos das professoras da primeira, nem da segunda geração. O aspecto que mais chamaram atenção nos relatos da primeira geração foi a transformação no que diz respeito à concepção, de assistencialista à educação, e às novas exigências formativas referentes à esta mudança. No que diz respeito à segunda geração o destaque é a concepção de formação continuada e a compreensão de que a formação se dá na prática e pela prática. Trata-se de uma geração que compreendeu a formação na perspectiva da formação em contexto. É no relato da terceira geração de docentes que a demanda pelo Ensino articulado à Pesquisa e à Extensão surge de forma impactante. Podemos considerar esta transformação como efeito imediato da Resolução No.1 do CNE/SEB de março de 2011, política vigente para as creches universitárias.
Em outro relato feito pela docente C3 observamos também os efeitos das políticas públicas que têm como escopo a garantia do atendimento aos direitos fundamentais das crianças e a concepção de que a educação infantil deve buscar sua identidade a partir de propostas pedagógicas que não sejam alfabetizadoras, escolarizantes e adultocêntricas:
Eu queria entrar para produzir para criança porque você começa a pensar o conteúdo escolhido para criança é assustador né, e material de qualidade é muito difícil porque é uma coisa tão pedagogizante, tão escolarizante que esquece assim a criança.
Esta percepção não foi expressa por todas as professoras que participaram da pesquisa e estas também não correspondem à toda Unidade. Entretanto, este é um movimento que temos percebido também no interior das políticas públicas atuais que têm proposto a ressignificação de conceitos como o de criança, de infância e de educação infantil. As crianças nas políticas atuais são compreendidas como sujeitos portadores de direitos; a infância como construção social que varia pelos atravessamentos da cultura e da história; a educação infantil como espaço coletivo promotor de experiências de interação e brincadeiras. (DCNEI, 2009)
Considerações finais
O presente artigo discorreu sobre a formação de professores da educação infantil tendo como lócus uma creche universitária, a Unidade de Atendimento a Criança (UAC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Esta creche completa vinte e cinco anos em 2017 e procurou, desde sua inauguração, promover momentos de formação em serviço, para suas professoras e demais funcionárias. A proposta deste artigo foi dar visibilidade à história desta formação em contexto a partir do estudo e análise dos arquivos da unidade e de entrevistas/roda de relatos coletivos com as docentes aposentadas e com as atuais professoras. O escopo da análise consistiu em articular a formação em contexto com as políticas públicas vigentes em cada momento histórico investigado, a lembrar, as últimas três décadas em que foram contratadas as docentes da Unidade – década de 1990 (1ª. Geração de docentes), década de 2000 (2ª. Geração de docentes), e década de 2010 (3ª. Geração de docentes).
Observamos que a história registrada em arquivos e a história contada pelo movimento de recuperação da memória das professoras de diferentes gerações da Unidade nos mostram que em 1992 nem todas as professoras que compunham o quadro da Unidade tinham formação específica para atuar na Educação infantil e, mesmo assim, já compunham o quadro de professoras efetivas. Esta configuração estava diretamente relacionada à legislação da época, ainda inconsistente no que diz respeito às exigências formativas para se trabalhar com crianças pequenas. A principal demanda formativa para esta geração era a aprendizagem de aspectos relativos ao desenvolvimento e a aprendizagem das crianças pequenas. Havia uma forte influência das teorias de Piaget e Vygostky, bem como de seus contemporâneos. A própria identidade da educação infantil era instável, não havendo uma política vigente que direcionasse o trabalho nas instituições que atendiam crianças pequenas, tal como a Unidade de Atendimento a Criança, e predominava ainda uma visão assistencialista de atendimento.
A segunda geração pôde perceber a contribuição da formação em contexto, problematizando a forma pela qual a prática desenha e direciona as necessidades formativas. A terceira geração já carrega efeitos mais marcantes das políticas atuais que fixam normas para as unidades de Educação Infantil universitária e problematizam aspectos relacionados à identidade da creche universitária e à necessidade da articulação entre Ensino, Pesquisa e Extensão. Consideramos que o presente texto pôde trazer, além deste debate, diferentes discussões que são específicas da educação infantil no âmbito das universidades federais e mobilizam nosso olhar para duas demandas que não são distintas, mas que se abrem em frentes de trabalho separadas: a adequação destas unidades às políticas nacionais vigentes para educação infantil e, ao mesmo tempo, a consolidação das especificidades daquilo que as caracterizam – serem unidades acadêmicas que atuam no âmbito do Ensino, da Pesquisa e da Extensão, bem como, serem locais que atuam como campo de estágio e pesquisa em diferentes áreas.
Referências
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BRASIL, Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação e Secretaria de Educação Básica. Parâmetros de Qualidade na Educação Infantil. Brasília: MEC, 2006.
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EDWARDS, C. GANDINI, L; FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emília na educação da primeira infância. trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda., 1999.
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Notas
Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/234/469 (pdf)
Artigo relacionado
[Artigo corrigido , vol1. 3, 87-100] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/234/469