Demanda Contínua

Recepção: 10 Janeiro 2017
Aprovação: 10 Março 2017
DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201731223p.127-136
Resumo: O artigo propõe-se a uma reflexão sobre o conceito de racismo institucional no contexto das desigualdades étnico-raciais. Encarar o debate sobre desigualdades raciais historicamente acumuladas e socialmente reproduzidas no Brasil se apresenta, ainda, como um desafio de grandes proporções, pois significa examinar a fundo o próprio projeto de nação que vem sendo construído desde tempos remotos. A discussão sobre o racismo institucional permite uma melhor percepção acerca dos mecanismos de produção e reprodução das desigualdades étnico-raciais. Aponta-se que, para sua desconstrução, é necessário à implementação de políticas públicas, bem como seu monitoramento e avaliação.
Palavras-chave: Racismo institucional, Políticas públicas, Desigualdades raciais.
Abstract: The article proposes a reflection on the concept of institutional racism in the context of ethnic-racial inequalities. Addressing the debate on historically accumulated and socially reproduced racial inequalities in Brazil is still a major challenge, as it means to examine in depth the very project of nation that has been built since ancient times. The discussion about institutional racism allows a better perception about the mechanisms of production and reproduction of ethnic-racial inequalities. It is pointed out that for its deconstruction, it is necessary to implement public policies, as well as their monitoring and evaluation.
Keywords: Institutional racism, Public policy, Racial inequalities.
Resumen: El artículo propone una reflexión sobre el concepto de racismo institucional en el contexto de las desigualdades étnicas y raciales. Encarar el debate sobre las desigualdades raciales históricamente acumuladas y socialmente reproducidas en Brasil se presenta, aún, como un desafío de grandes proporciones, lo que significa examinar a fondo el propio proyecto nacional que se ha construido desde tiempos remotos. La discusión sobre el racismo institucional permite una mejor percepción de los mecanismos de producción y reproducción de las desigualdades étnicas y raciales. Para su deconstrucción, es necesario implementar políticas públicas, pero también monitorearlas y evaluarlas.
Palabras clave: Racismo institucional, Políticas públicas, Desigualdad racial.
Introdução
Esse artigo trata de uma revisão de literatura sobre racismo institucional em conexão com políticas públicas e desigualdades étnico-raciais. O Brasil tem uma população de aproximadamente de 206,08 milhões de habitantes, segundo dados divulgados, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com uma população de negra que representa mais de 53%. O Brasil é o maior país do mundo em população negra fora do continente africano, e o último país a abolir a escravidão negra. O Brasil também foi o país que mais importou africanos para serem escravizados.
Somos um país racista, a possibilidade dessa afirmação é relativamente recente e resulta, por um lado, de conquista histórica de movimentos sociais brasileiros (Movimento Negro), bem como de outros institutos: Instituto da Mulher Negra (GELEDÉS) pelo ativismo político. Outros/as pela produção de dados/informações, como por exemplo: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IPEA; Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatística das Relações Raciais (LAESER); outros (as) mais na formulação política em nível governamental (contextos nacional, regional, internacional), a saber: Organização Internacional do Trabalho (OIT); ONU Mulheres; Secretaria de Promoção de Igualdade Racial (SEPIR); Secretaria de Política para as Mulheres (SPM). Por outro, da ampliação e do aprofundamento de pesquisas e estudos em diversos campos a respeito do racismo institucional, de suas manifestações e impactos (TAVARES, et al, , 2013). Estes grupos, instituições, organizações e pesquisas contribuíram para a visibilidade do Brasil como um país racista.
Outros estudos (CUNHA, 1997; OLIVEIRA, 2002; LOPES, 2004; MAIO, 2005; SILVA, 2005; WERNECK, 2005; SILVA, 2009) também evidenciam essas desigualdades e destacam a importância do Movimento Social Negro e feminista na luta pela visibilidade às questões de saúde da população negra e da mulher negra, de forma específica (TAVARES, et al,2013, p.581).
Nas últimas décadas, o Estado brasileiro vem implementando políticas públicas, com vistas à superação das desigualdades étnico-raciais no país (RIBEIRO, 2011). Os estudos sobre relações raciais no Brasil contemporâneo têm se desenvolvido, nas últimas décadas, devido ao impulso de uma série de iniciativas nacionais e internacionais, com o objetivo de definir estratégias de combate ao racismo e à discriminação. No plano nacional, ressalta-se Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pela Presidência da República, em 2013, na forma da Lei nº 12.288/2010.
No que se refere ao combate das desigualdades sociais na sociedade brasileira, nota-se por um lado, as mudanças introduzidas nas condições de vida da população negra no Brasil verificada nos últimos anos, que são resultado do efeito combinado de iniciativas governamentais que sustentam a política de promoção da igualdade racial e sociedade civil, a partir de: políticas socioeconômicas gerais que impulsionam a inclusão da população negra; através de ações para o atendimento a direitos básicos da população negra, por meio da incorporação da perspectiva racial na execução de políticas setoriais, como previsto no Programa Brasil Quilombola e no Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana; ações afirmativas para a promoção da igualdade de oportunidades, como é o caso do estabelecimento de cotas para negros no acesso ao ensino superior público e no Programa Universidade para Todos (Prouni), voltado para instituições privadas. Por outro, é de fundamental importância à prática de ações no cotidiano do governo e da sociedade brasileira, afim de que possam aperfeiçoar a política de promoção da igualdade racial, de natureza essencialmente. Assim frisamos a importância do monitoramento de indicadores que deem visibilidade à dinâmica das desigualdades raciais, bem como de e subsidiar as tomadas de decisões por parte de diversos agentes públicos e privados.
Políticas públicas, segundo Saraiva (2006, p. 28- 29) podem ser consideradas “[...] como estratégias que apontam para diversos fins, todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos grupos que participam do processo decisório”. Para uma melhor compreensão desse processo, tendo em vista a busca por referenciais analíticos, se fez necessária a troca teórica entre as diversas áreas do conhecimento, da História à Administração Pública, passando pelas ciências Política; Sociais; Educacionais. Henriques (2001), no texto publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90” assinala, num relato, as diversas dimensões da desigualdade racial no Brasil e reconhece o peso que o pertencimento racial exerce na explicação das desigualdades socioeconômicas no país. Henriques (2001) frisa a necessidade de se desenvolverem políticas públicas de inclusão social e econômica com preferência racial explícita, de ação afirmativa, que contribuam para romper com a excessiva desigualdade.
Contudo, uma política pública não vem a existir pela simples vontade das autoridades competentes. Ao contrário, uma política pública está envolvida em um processo mais amplo, que envolve diversas etapas, desde a inclusão de determinado problema ou necessidade social na agenda de prioridades do poder público, até sua implementação, acompanhamento e avaliação (SARAVIA, 2006). As prioridades não são determinadas pela razão técnica, “[...] o poder político dos diferentes setores da vida social e sua capacidade de articulação dentro do sistema político são os que realmente determinam as prioridades” (SARAVIA, 2006, p. 35). Com Ribeiro (2011), apreendemos que o Estado só age na resolução de problemas que façam parte de sua agenda formal. Vale ainda ressaltar que uma questão só entra para a agenda formal dos governantes quando ela é considerada um problema.
Vale ressaltar que segundo o “Boletim de Análise Político-Institucional- 4” (IPEA, 2013) encontramos novos temas para o debate ou novas formas de enxergar questões já consolidadas. O Boletim cita como exemplo a temática da segurança pública e o racismo institucional que trata da organização policial, entendida como uma das formas de atuação do Estado mais presentes no cotidiano da população. Partindo do pressuposto de que há grande desigualdade de acesso à segurança entre brancos e negros, e que se expressa por normas, práticas e comportamentos discriminatórios motivados por preconceitos ou estereótipos racistas (IPEA, 2013).
Para Waiselfisz (2011) há grande desigualdade entre brancos e negros no que diz respeito à distribuição da segurança. Essa desigualdade pode ser explicitada pelas maiores taxas de vitimização da população negra. Pode-se tomar como referência a taxa de homicídios. Se, devido à situação de insegurança no país, a exposição da população como um todo quanto à possibilidade de morte violenta já é grande, ser negro corresponde a pertencer a uma população de risco: a cada três assassinatos, dois são de negros. Reconhecer a existência dessa dimensão da desigualdade que tão profundamente estrutura nossa sociedade e nosso Estado, é essencial, para enfrentá-la, e reconhecer que ela se manifesta e se expressa em diferentes níveis, a partir de diferentes mecanismos, também é fundamental para avançarmos em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
Entende-se que o racismo pode se expressar nos níveis pessoal e internalizado, determinando sentimentos e condutas; no nível interpessoal, produzindo ações e omissões; e também no nível institucional, resultando na indisponibilidade e no acesso à informação; na menor participação e controle social; e na escassez generalizada de recursos. Aponta-se que o caminho de enfrentamento ao racismo iniciado há alguns anos pelo Estado brasileiro está apenas começando a ser trilhado. Confiante na decisão e no compromisso do Estado e da sociedade brasileira com o combate a todas as formas de racismo e ao racismo institucional, em particular, propõe-se para este estudo essa discussão. Espera-se que este trabalho produza consciência sobre o problema do racismo/institucional e dê a dimensão da urgência das respostas e soluções necessárias.
Racismo
O racismo tem sido fartamente explicitado na literatura sobre as relações raciais (ESSED, 1991; MUNANGA, 2003; ROSEMBERG et al, 2003; GUIMARÃES, 2005). Em sociedades como a brasileira, o racismo se desenvolve estabelecendo uma separação que é feita a partir da cor/raça das pessoas, permitindo aos brancos ocuparem posições superiores na hierarquia social, enquanto os negros são mantidos nas posições inferiores, independentemente de sua condição socioeconômica ou quaisquer outros privilégios. Entende-se que, nas disputas cotidianas e gerais, o fato de ser negro cria barreiras para ocupar as melhores posições na hierarquia social. Entende-se que qualquer análise do racismo brasileiro deve considerar de início três grandes processos históricos: primeiro, o processo de formação da nação brasileira e seu desdobramento atual; segundo, o intercruzamento discursivo e ideológico da ideia de raça com outros conceitos de hierarquia (como classe, gênero e idade); terceiro, as transformações da ordem socioeconômica e seus efeitos regionais.
Aprofundando essa discussão sobre racismo, encontramos autores como Essed (1991), Rosemberg et al (2003) e Guimarães (2005), que adotam uma concepção de racismo que integra as dimensões estruturais e simbólicas (ideológicas) na compreensão das desigualdades raciais. Segundo esses autores, no plano simbólico, o racismo se manifesta via adoção da crença (ou ideologia) da superioridade “natural” (geralmente mediada por uma noção, mesmo que vaga, de transmissão pelo sangue ou pela hereditariedade) de um grupo racial sobre outro (do branco sobre o negro). No plano estrutural, o racismo consiste no sistemático acesso desigual a bens materiais entre os diferentes segmentos raciais.
Esta conceituação considera o preconceito interpessoal como apenas uma das possíveis manifestações do racismo. Nesse sentido, enfatiza-se, sobretudo relações sociais e não apenas tendências individuais de pessoas. Esta pesquisa compartilha com as reflexões desses autores sobre as desigualdades observadas entre negros e brancos no acesso a bens materiais e simbólicos, em razão do racismo constitutivo de nossa sociedade. Entende-se que, a presença do racismo, do preconceito e da discriminação racial como práticas sociais, representa obstáculo à redução das desigualdades raciais, obstáculo que só pode ser vencido com a mobilização de esforços de cunho específico. Assim, a implementação de políticas públicas localizadas, capazes de dar respostas mais eficientes frente ao grave quadro de desigualdades raciais existente em nossa sociedade, apresenta-se como uma exigência na construção de um país com maior justiça social.
Racismo institucional
Segundo o “Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional” (2013), O conceito de Racismo Institucional foi definido pelos ativistas integrantes do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967, para especificar como se manifesta o racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições. Isto é, trata-se da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Ainda, segundo o “Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional” (2013), no Brasil, o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI) implementado no Brasil em 2005, Projeto de uma parceria que contou com: a SEPPIR, o Ministério Público Federal, o Ministério da Saúde, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), e o Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza (DFID), como agente financiador, e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e teve como foco principal a saúde.
Este Programa definiu o racismo institucional como o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. Werneck (2013) conceituou racismo institucional como um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, fazendo com que os primeiros inexistam ou existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação desse último. Seu impacto na vida da população negra no Brasil pode ser percebido tanto na sua relação direta com os serviços e as instituições que deveriam garantir seus direitos fundamentais.
Nas palavras de Werneck (2013), a ausência reiterada do Estado, em alguns casos, e a baixa qualidade dos serviços e dos atendimentos prestados pelas instituições à população negra em geral, são sinais explícitos do racismo institucional a partir do qual essas instituições operam historicamente. Assim, reconhecer a existência dessa dimensão da desigualdade que tão profundamente estrutura nossa sociedade e nosso Estado é essencial para enfrentá-la. Reconhecer que ela se manifesta e se expressa em diferentes níveis, a partir de diferentes mecanismos, também é fundamental para avançarmos em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
Segundo Santos (2012), o racismo institucional é “velado” por meio de mecanismos e estratégias presentes nas instituições públicas, explícitos ou não, que dificultam a presença do negro nestes espaços ou a presença do Estado onde há maior concentração da população negra. O acesso é dificultado não por normas e regras escritas e visíveis, mas por obstáculos formais, presentes nas relações sociais que se reproduzem nos espaços institucionais e públicos e/ou na formação dos agentes do Estado.
Hasenbalg (1979, p. 73) assinala que o preconceito e a discriminação racial aparecem no Brasil como consequências inevitáveis do escravismo. A persistência do preconceito e discriminação após a abolição não é ligada ao dinamismo social do período pós-abolição, “[...] mas é interpretada como um fenômeno de atraso cultural, devido ao ritmo desigual de mudança das várias dimensões dos sistemas econômico, social e cultural”. Ao descrever com propriedade a trajetória do preconceito e racismo no Brasil, Hasenbalg (1979) assinala que, embora a escravidão tenha deixado marcas profundas na sociedade brasileira como um todo e nos grupos raciais negros em particular, a persistência e a continuidade do preconceito de cor e do racismo são consequências do modelo econômico e social adotado pelo poder público, que internaliza uma íntima ligação com o racismo institucional. Nas palavras de Pace e Lima (2011):
Dada a composição social estabelecida desde o Brasil colônia, pode-se verificar a presença do racismo institucional na sociedade brasileira, que é eminentemente burocrática, em que o desenvolvimento econômico do Brasil, nos moldes do regime escravocrata, pode ser identificado como a origem das hierarquias sociais ligadas ao pertencimento racial (PACE e LIMA, 2011, p. 1).
Para os autores, a partir daí constrói-se um modelo social permeado tanto de desigualdades econômicas quanto discriminação racial, legitimado pelo próprio Estado, ao longo dos tempos, o que constitui um entrave ao exercício pleno da cidadania para os negros. O conceito de racismo institucional permite uma melhor percepção acerca dos mecanismos de produção e reprodução das desigualdades raciais, inclusive no que tange às políticas públicas. Sua utilização amplia as possibilidades de compreensão sobre o tratamento desigual, assim como permite identificar um novo terreno de enfrentamento das iniquidades no acesso e no atendimento de diferentes grupos raciais dentro das políticas públicas, abrindo novas frentes de combate ao preconceito e à discriminação, assim como novos instrumentos de promoção da igualdade racial. Sua abordagem permite com que se identifique o racismo não apenas pela sua declaração, mas pelas desvantagens que causa a determinados grupos, independentemente de sua manifestação ser consciente ou ostensiva (CRI, 2006). Nesse aspecto, o racismo institucional se instaura no cotidiano organizacional, inclusive na implementação efetiva de Políticas Públicas, gerando de forma ampla mesmo que difusa: desigualdades e iniquidades. Como o enfoque nessa abordagem refere-se a uma prática organizacional, o racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das organizações e instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas em razão da sua cor, cultura, origem racial ou étnica (CRI 2006).
Ancorada em um esquema interpretativo que reconhece a existência de fenômenos sociais irredutíveis às pessoas, e apontando a reprodução de práticas discriminatórias que se assentam não apenas em atitudes inspiradas em preconceitos individuais, mas na própria operação das instituições e do sistema social, o enfoque do racismo institucional oferece uma nova abordagem analítica e uma nova proposta de ação pública. O emprego do conceito de discriminação indireta ou racismo institucional para a promoção de políticas de equidade racial já é utilizado desde o final dos anos 1960 em diversos países. Nos EUA, por exemplo, o conceito inicia no contexto da luta pelos direitos civis e com a implementação de políticas de ações afirmativas. Na Inglaterra, o conceito passa a ser incluído como instrumento para a proposição de políticas públicas na década de 1980, como resultado do crescimento da população não branca e das dificuldades observadas pelo poder judiciário em responder às demandas daquela população (PACE; LIMA, 2011).
No Brasil, a partir de meados dos anos 1990, esse conceito começa a ser apropriado para a formulação de programas e políticas de promoção da equidade racial. É na área da saúde que se dá a experiência mais relevante nesse campo, desenvolvida no âmbito do Ministério da Saúde e de algumas prefeituras, entre 2004 e 2006, pelo chamado Programa de Combate ao Racismo Institucional (CRI 2006).
Esse programa resgata o debate de como o setor público poderia desenvolver atividades efetivas de combate ao racismo e à discriminação racial de uma forma inovadora. Parte do pressuposto de que os tratamentos desiguais têm como base as práticas dos corpos funcionais das instituições, e essas práticas devem ser tornadas visíveis, combatidas e prevenidas por meio de novas normas, procedimentos e cultura institucional (CRI, 2006). Previsto para funcionar por um período de dois anos, o PCRI passou a ser implementado em 2005, por meio de uma parceria entre várias organizações e terminou oficialmente no final de 2006. O programa teve dois grandes objetivos: fortalecer a capacidade do setor público de identificar e prevenir o racismo institucional e fomentar a participação das organizações da sociedade civil organizada no diálogo sobre Políticas Públicas.
No âmbito federal, o programa foi desenvolvido pelo Ministério da Saúde e pretendia contribuir para a redução das iniquidades raciais em saúde, colaborando na formulação, implementação, avaliação e monitoramento de políticas que promovessem a igualdade racial no Sistema Único de Saúde (SUS). O programa adotou como definição de racismo institucional “[...] o fracasso coletivo de uma organização ou instituição em prover um serviço profissional e adequado às pessoas devido a sua cor, cultura, origem racial ou étnica” (CRI, 2006, p. 6). Com o fim do programa e da parceria institucional que o mantinha, o Ministério da Saúde passou a desenvolver a chamada Campanha de Combate ao Racismo Institucional, que tem como objetivo principal sensibilizar e capacitar os gestores e profissionais da área de saúde para o tratamento do tema. O enfrentamento do racismo institucional é um compromisso do Estado brasileiro, incorporado no Plano Plurianual (2012-2015). O reconhecimento do problema, bem como o compromisso com a construção de soluções está, portanto, explicitamente assumido pelo Estado. Resta, agora, a construção de caminhos e instrumentos que facilitem e impulsionem a condução desse processo.
Nessa trajetória histórica sobre o racismo institucional, encontra-se na literatura sobre relações raciais o estudo “Racismo institucional: uma abordagem conceitual” de Werneck (2013). Esse trabalho aponta três momentos de incidência do racismo institucional ao destacar, portanto, três diferentes níveis ou oportunidades de agir segundo os princípios estabelecidos na legislação para sua eliminação, quais sejam: a) acesso e utilização; b) processos institucionais internos; c) resultados das ações e políticas públicas. Nessa direção, destaca-se como exemplo, a situação da mulher negra e o racismo institucional. No que se refere ao acesso e utilização, os indicadores propostos para medir as ações de eliminação do racismo institucional nesse nível, para ampliação do acesso e da utilização das políticas públicas de proteção social pelas mulheres negras, devem permitir a verificação da adequação das ações adotadas para a aproximação física e cultural entre instituições públicas e as mulheres negras.
Quanto aos processos institucionais internos, os indicadores voltados para essa etapa devem realçar alterações nos processos institucionais. Ou seja, trabalhar os modos e os movimentos organizativos internos para responder às necessidades expressas ou coletadas e disponibilizar ações e serviços capazes de atender adequadamente às diferentes mulheres negras, diminuindo e eliminando as diferenças na prestação de serviços e em seus resultados. Por fim, os indicadores de resultados das ações e políticas públicas, nesse nível, devem ser capazes de realçar o desenvolvimento de ações que atestem a mudança institucional, vista como adoção de práticas capazes de aproximar os objetivos institucionais das necessidades das mulheres negras. Assim, tais indicadores buscarão traduzir os esforços institucionais de eliminação do racismo institucional a partir da análise do resultado das políticas públicas.
Cabe ressaltar, que o monitoramento e avaliação dos processos necessários à eliminação do racismo institucional nos três níveis apontados, por um lado, requer a constituição de sistemas intra e interinstitucionais com autonomia, capacidade operacional e competência gerencial, adequadas ao desenvolvimento contínuo e sustentável das ações necessárias ao cumprimento de seu mandato. Tais atribuições requerem também, transparência de diálogo permanente com a sociedade civil, especialmente, com as diferentes mulheres negras e suas representações. Por outro, é fundamental que, no lado da sociedade civil, se constituam múltiplos observatórios, articulados entre si, a “replicabilidade” e a sustentabilidade das ações ao longo do tempo, que aprofundem seu alcance de mudança do Estado e suas relações (WERNECK, 2013). Entretanto, as desigualdades raciais no Brasil configuram-se como um fenômeno complexo, constituindo-se em um enorme desafio para governos e para a sociedade em geral. Enfrentar as dificuldades que se colocam face à consolidação da temática da desigualdade e da discriminação, na agenda pública e no espaço de governo e integrar e ampliar as iniciativas em curso parece ser, hoje, os grandes desafios no campo das Políticas Públicas para igualdade racial (JACCOUD, 2008).
Visto o debate sobre as políticas de ação afirmativa para autodeclarados negros, notadamente no campo da educação pública superior brasileira, as chamadas cotas. Ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário concebidas com vistas à promoção de populações historicamente discriminadas e ao combate à discriminação. Cotas são só uma delas. As políticas de ação afirmativa têm como objetivo corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, concretizando o ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais e direitos de cidadania plena, e que recolocaram na pauta dos debates públicos do Brasil contemporâneo a situação do negro e da discriminação racial, e que têm suscitado divergências no Judiciário, na academia e na sociedade de uma forma geral. O fato é que essas políticas estabeleceram reserva de vagas para estudantes negros nas universidades, mas esta opção política em favor desses não foi satisfatoriamente acolhida por alguns setores da sociedade, que decidiram demonstrar publicamente seu descontentamento perante o Judiciário, gerando intensos debates no ambiente acadêmico, político e na mídia.
Ao participar dessa discussão, Silva Júnior (2012) assinala que diferentemente da discriminação, o preconceito está situado no campo da subjetividade, referenciado a ideias preconcebidas e estereótipos, insuscetíveis de punição enquanto não exteriorizados por meio de condutas. Em paralelo às ações jurídicas que visam à repressão e à mudança da prática dos atores sociais no campo do tratamento desigual, as ações públicas que visam ao enfrentamento da desigualdade racial começaram a avançar no sentido do combate não apenas à discriminação racial direta, como também ao preconceito.
Vale ressaltar, que em 20 de julho de 2010 foi sancionado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Estatuto da Igualdade Racial – Lei n° 12.288/2010. Este dispositivo legal foi instituído com o principal objetivo de garantir à população negra a efetiva igualdade de oportunidades na sociedade brasileira, a defesa dos seus direitos individuais e coletivos, além do combate à discriminação e às demais formas de intolerância. Em seu capítulo IV, o Estatuto da Igualdade Racial doutrina sobre as instituições responsáveis pelo acolhimento de denúncias de discriminação racial e orienta cada pessoa sobre os mecanismos institucionais existentes que têm como finalidade assegurar a aplicação efetiva dos dispositivos previstos em lei. É, portanto, em “termos legais” hoje, a principal referência para enfrentamento ao racismo e a promoção da igualdade racial.
Na revisão de literatura para este trabalho, pudemos encontrar também estudos que discutem a temática do racismo institucional na área da saúde (WERNECK et al, 2012), esse estudo apresenta a identificação do racismo no contexto da formação em enfermagem e aponta como que se tem mantido essa ideologia na formação com implicações aos cuidados de saúde direcionados à população negra. Para esses autores, o racismo presente na formação em enfermagem tem provido incoerências na forma que os profissionais docentes enfermeiros e enfermeiras avaliam o binômio saúde/doença e, assim, tem repercutido desfavoravelmente ao ensinar-cuidar de membros da população negra. É preciso ressignificar e constituir outras bases epistemológicas para formação de profissionais da área da enfermagem.
Instituições como o Ministério da Saúde passaram a desenvolver a chamada campanha de combate ao racismo institucional, que tem como objetivo sensibilizar e capacitar os gestores e profissionais da área de saúde para o tratamento do tema. Ao revisitarmos o site do Ministério da Saúde em busca de maiores informações sobre o assunto em questão, nos deparamos com a informação de que em 25 de novembro de 2014 o Ministério da Saúde e a Secretaria dos Direitos Humanos lançaram uma campanha chamada “SUS sem Racismo”, com o objetivo de alertar para o racismo institucional no âmbito da saúde pública. A Ação do Ministério da Saúde e da Secretaria de Direitos Humanos teve início no mês da Consciência Negra e marcaram os dez anos da Política de Saúde da População Negra.
O governo federal colocou no ar a primeira campanha publicitária que buscou envolver usuários e profissionais da rede pública de saúde na luta contra o racismo. De acordo com informações no portal do Ministério da Saúde, por meio do Disque Saúde 136 é possível denunciar qualquer situação de racismo ou obter informações sobre doenças mais comuns entre a população negra, podemos citar como exemplo o caso do diabetes mellitus (tipo II), cuja taxa de mortalidade, a cada 100 mil habitantes, afeta na população negra 63,2 habitantes e, entre a branca, 22,7. A anemia falciforme, doença grave que deve ser diagnosticada precocemente por meio do teste do pezinho, é encontrada em maior escala entre a população negra, com incidência que varia de 6% a 10%, enquanto no conjunto da população oscila entre 2% e 6% (BRASIL, 2014). O Ministério da Saúde firmou compromisso para a construção da equidade racial em saúde para a população negra ao instituir, pela Portaria 992/2009 (BRASIL, 2009), a Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra, cuja marca é o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais e condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde.
Após nossa leitura sobre esse assunto, entramos em contato com o Disque Saúde 136 e pude dialogar com a atendente sobre o funcionamento desse setor. Ao perguntar sobre a estatística de pessoas que utilizam o serviço, fomos orientados a entrar em contato com outro setor do Ministério da Saúde. Devido ao tempo para elaboração desta tese e pelo foco proposto deste estudo, achamos por bem sugerir que esta busca continue em futuras pesquisas no campo das relações raciais (disque saúde). Assim pode-se concluir que esta ação do Ministério da Saúde é uma estratégia importante de combate às desigualdades sociais no Brasil.
Considerações finais
Entendemos que a presença do racismo, como prática social, representa obstáculo à redução das desigualdades raciais, obstáculo que só pode ser vencido com a mobilização de esforços de cunho específico. Assim, a implementação de políticas públicas localizadas, capazes de dar respostas mais eficientes frente ao grave quadro de desigualdades raciais existente em nossa sociedade, apresenta-se como uma exigência na construção de um país com maior justiça social.
A ausência reiterada do Estado, em alguns casos, e a baixa qualidade dos serviços e dos atendimentos prestados pelas instituições à população negra em geral, são sinais explícitos do racismo institucional a partir do qual essas instituições operam historicamente. A constante exigência por dados desagregados e por indicadores capazes de expressar aquilo que cotidianamente vivencia a população negra brasileira não é recente; já percorreu um longo caminho e já se sofisticou ao extremo.
Um aspecto deste artigo está em apontar o racismo como determinante para as desigualdades étnico-raciais. O Brasil passou por transformações importantes que, de certa forma, têm reformulado as agendas, tanto dos estudos sobre as desigualdades em geral como das desigualdades raciais. Tais transformações estão associadas a mudanças de caráter estrutural, assim como às formas de enfrentamento das desigualdades via políticas de inclusão social.
Referências
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Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/223/472 (pdf)
Artigo relacionado
[Artigo corrigido , vol1. 3, 127-136] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/223/472