Apresentação
Internacionalização e geopolítica do conhecimento na América Latina: concepções, contextos e aplicações

O Dossiê que se apresenta submete-se à temática “Internacionalização e Geopolítica do Conhecimento na América Latina: concepções, contextos e aplicações.” Dele participa um conjunto de investigadores ativos de alguns países da América Latina, nomeadamente, Brasil, Chile, Bolívia, Equador e Venezuela, e também da Europa (Portugal e Suíça), com textos que buscam esquadrinhar as influências que as recomendações de internacionalização trazem aos sistemas e às políticas nacionais de educação superior na América Latina, nesse passo pontuando os fios que tecem e reproduzem a geopolítica (desigual) do conhecimento. Esses investigadores se organizam, majoritariamente, no Grupo de Trabalho “Universidade e Políticas de Educação Superior”, aprovado no âmbito do Conselho LatinoAmericano de Ciências Sociais (CLACSO) em agosto de 2016, e possuem, também majoritariamente, experiência de trabalho em redes internacionais de pesquisa sobre educação superior e universidade, a exemplo da Rede Ibero-Americana de Investigação em Políticas Educativas (Programa Alfa III, 2011-2013), com financiamento da União Europeia, ademais de parcela deles atuar no Projeto “Observatório da Universidade Popular do Brasil” (Capes-Obeduc, 2013-2016).
O Dossiê busca promover reflexões sobre os impactos da internacionalização para fins de analisar as tendências de reconfiguração dos sistemas e políticas nacionais e prefigurar a dinâmica tendencial da geopolítica do conhecimento no mundo contemporâneo. A problemática da internacionalização da educação superior está na ordem do dia dos sistemas e das políticas para esse nível de ensino, seja por força das avaliações propostas pelas agências nacionais, seja por recomendação (muitas vezes, exigências) dos organismos multilaterais que disseminam critérios e procedimentos de regulação e pesquisas e análises simbólicas que as justifique, casos do Banco Mundial (BM), da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nesse passo, promovem, mais do que dinâmicas de internacionalização, uma verdadeira transnacionalização, dado o caráter de receita universal para uma educação mundial lastreada nas necessidades do sistema de acumulação.
A bem da verdade, as instituições de educação superior sempre atuaram sob o ânimo da internacionalidade, especialmente no que respeita à pesquisa docente e institucional e ao intercâmbio de estudantes e professores. No entanto, no contexto de uma ordem econômica e política que prima por reafirmar sua universalidade, sob os imperativos do fenômeno da globalização hegemônica conduzida pelos macroprocessos econômicos de natureza transnacional e pautadas nos sistemas classificatórios formatados em rankings, as universidades parece não terem outra saída senão internacionalizar-se. E, assim, tendem a fazê-lo nos padrões hegemônicos advindos da ordem econômica e política mundiais, o que significa transnacionalizar-se. Isso implica o envolvimento dessas instituições em redes transnacionais de pesquisa que congregam uma multiplicidade de países dos diversos continentes ou pela mobilidade de docentes e estudantes, sobretudo de doutorado, num movimento que, para a América Latina, assim como para outras áreas periféricas do sistema, se comporta no sentido Sul-Norte e impele à reprodução de uma já desigual geopolítica do conhecimento. Por outro lado, as exigências de produtividade acadêmica obrigam a que os pesquisadores publiquem os resultados das suas pesquisas em revistas indexadas e com fator de impacto e, de preferência, em língua inglesa, considerada a língua da ciência.
Entre outras questões que se põem nesse processo de internacionalização, essa política pode ser questionada pelo fato de facilmente conduzir ao produtivismo e à superiorização dos países ocidentais relativamente aos chamados países do Sul (metáfora geográfica para uma classificação política), emergentes ou periféricos. Nessa linha de raciocínio, as perspectivas de vigência de um conhecimento produzido no Sul que possa afirmar sua dignidade epistemológica e dialogar com o conhecimento ocidental e com todas as formas de conhecimento são cada vez menores, levando à manutenção de uma geopolítica do conhecimento homogeneizadora, imperial e colonial que concentra a produção do conhecimento nos países do capitalismo desenvolvido e submete os países periféricos do modo de produção – em especial os que foram colonizados – a um processo violento de neocolonização intelectual e acadêmica. No mundo contemporâneo, as significativas transformações econômicas, (geo) políticas, sociais, culturais e institucionais vêm remodelando a base material da sociedade a partir de estratégias de acumulação que contêm em seu cerne processos de geração e de difusão de novos conhecimentos.
Nas tratativas patrocinadas pela Organização Mundial do Comércio, conhecimento se transformou em commodity e educação em produto que se pode ofertar em mercado aberto, vale dizer, mercadoria submetida à mesma lógica que preside às leis agressivas do mercado. Produtores de bens simbólicos como as universidades submetem-se, não só às políticas definidas pelas agências reguladoras e de avaliação, como também ao poder econômico que financia os projetos de pesquisa, contribuindo, assim, para a disseminação de um conhecimento hegemônico de caráter elitista e monocultural. A globalização hegemônica é feita de centros e periferias, o global se complementa com o local, que também se lhe contrapõe por intermédio de suas culturas específicas, em suas divisões socioespaciais. Há construção de identidade cultural por grupos sociais de distintas regiões, nações, classes, crenças; há diferentes fluxos de conexão – línguas e canais de comunicação – que são excluídos do “processo civilizatório” do conhecimento.
A Educação Superior em tempos de mudança na América Latina e na Europa, anotações para uma agenda alternativa, de António Teodoro e Manuela Guilherme, do alto de suas experiências de pesquisa sobre a educação superior em ambiente internacional, é o primeiro artigo. O texto que apresentam os autores portugueses é o resultado do trabalho realizado no âmbito da rede RIAIPE, uma rede que integrou universidades e centros de I&D da Europa e da América Latina e Caribe. O objeto de pesquisa incidiu sobre equidade e inclusão dos grupos sociais mais vulneráveis na Educação Superior, na América Latina. No artigo, apresenta-se o enquadramento político e social realizado sobre as mudanças verificadas nas regiões das equipes de investigação participantes deste projeto nas décadas finais do século XX e na primeira do século XXI. Assume-se que o neoliberalismo falhou completamente como modelo de desenvolvimento económico, mas reconhece-se que, como política de cultura, continua (ainda) em força, fruto de se ter tornado um senso comum que molda a ação dos governos e dos responsáveis pela educação superior.
Josef Estermann, Manuel Tavares e Sandra Gomes promovem, no segundo artigo - Interculturalidade crítica e decolonialidade da educação superior: para uma nova geopolítica do conhecimento -, um debate sobre a decolonialidade da educação superior em estreita relação com a problemática da interculturalidade critica. Consideram que o processo de decolonialidade da educação superior é indissociável da promoção da interculturalidade e da dissolução das estruturas de dominação colonial inerentes às instituições de educação superior, dado que exige um diálogo inter-epistêmico e uma ruptura epistemológica intercultural. A interculturalidade crítica demanda, defendem os autores, a valorização dos saberes silenciados historicamente, conferindo-lhes dignidade epistemológica. Uma educação decolonial implica a consciência dos etnocentrismos, androcentrismos e antropocentrismos que frequentam praticamente todos os sistemas de educação e modelos epistêmicos. Conferir dignidade ontológica aos povos originários e dignidade epistemológica aos seus saberes contribuirá para a construção de uma nova geopolítica do conhecimento.
Eduardo Santos faz, no terceiro artigo, uma reflexão fundamentada sobre a Internacionalização da Educação Superior – a opção geopolítica pela integração regional, nos casos da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e da Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Considera o autor que as agências multilaterais de regulação da educação superior tentam reproduzir nos sistemas e políticas de educação superior das nações periféricas a geopolítica hegemônica por intermédio do processo de internacionalização, impondo os parâmetros e critérios de instauração e avaliação desse processo. Discute duas universidades federais brasileiras que norteiam sua atividade pelos imperativos da internacionalização (UNILA e UNILAB,) mas que, no entanto, estabelecem algumas rupturas com os princípios impostos pelas agências reguladoras multilaterais. Considera, como hipótese, que o governo brasileiro adotou a estratégia de construção de universidades de integração regional em conformidade com os objetivos da política externa brasileira de inserção mais soberana na nova (des) ordem internacional, tomando, dessa forma, as novas instituições universitárias como braços acadêmicos da política de relações exteriores. O texto propõe análises preliminares, pela Sociologia Política, de um conjunto de dados coletados no âmbito do Projeto “Universidade Popular no Brasil”, financiado pela CAPES e realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho (PPGEUninove), de São Paulo, no período 2013-2016, que englobam pesquisa documental e entrevistas com pró-reitores das instituições.
O quarto artigo, de María Cristina Parra-Sandoval, tematiza La reinstitucionalización de la educación superior en Venezuela: ¿Descolonización del conocimiento? A autora refere que, com a aprovação da Constituição de 1999, se iniciou um processo de reestruturação e refundação institucional da República da Venezuela que impactou o sistema universitário do país com a difusão dos discursos de inclusão e igualdade, fundamentados nos princípios da universalização da educação e da descolonização do conhecimento. Todavia, parece que o modelo aprofundou as debilidades e carências do setor, exibindo efeitos perversos tais como: existência de dois sistemas, modificação da plataforma institucional baseada em critérios ideológicos, relações de clientelismo partidário e imposição de um modelo político-ideológico: o socialismo do século XXI. No âmbito acadêmico, assiste-se à diminuição da qualidade do ensino e da produtividade em termos de pesquisa e desenvolvimento dos cursos de pós-graduação. O controle e regulação do setor pela imposição de planos e decretos tem contribuído para a instrumentalização partidária dos processos educativos e para a diminuição da participação acadêmica, pondo em causa a autonomia universitária.
O quinto artigo, do sociólogo boliviano Jorge Viaña - La lucha por rupturas y reconstrucciones ontológicas y epistemológicas profundas y generalizadas como problemática de fondo de las universidades indígenas - é uma reflexão sobre a problemática da interculturalidade crítica como ferramenta de emancipação e como pressuposto teórico e prático da decolonialidade do ser e do saber, das formas de conhecimento, do capital e do patriarcalismo enquanto mecanismos de opressão. É, ainda, uma reflexão sobre os dilemas, desafios e obstáculos enfrentados pelas universidades indígenas. O autor defende, a partir da epistemologia de Thomas Khun, a tese de que a colonialidade do saber e as formas de conhecimento interiorizadas pelos sujeitos operam de forma similar ao que Khun chamou “ciência normal”, para então defender, incisivamente, que o diálogo entre saberes e horizontes civilizatórios diferentes supõe rupturas epistemológicas e ontológicas profundas, anteriores ao diálogo entre saberes.
Kleyton Carlos Ferreira e Paulo Gomes Lima discutem, no sexto artigo - Projeto Tuning europeu para a educação superior: reflexões sobre o seu delineamento – o itinerário do projeto europeu Alfa Tuning, que surge no contexto da reforma da Educação Superior Europeia, no âmbito do Tratado de Bolonha, ampliando-se, posteriormente, para a América Latina. A pesquisa realizada, de caráter exploratório e de dimensão crítica em relação à unidimensionalidade do projeto, suscita algumas reflexões sobre sua visão mercadológica, que tende a submeter as instituições de educação superior e suas funções aos interesses do mercado e do capital, por meio da construção de uma tipologia de profissional para o mercado de trabalho. A uniformização de um espaço europeu de educação superior e sua exportação para a América Latina, orientada por critérios de competitividade e eficácia, sem ter em consideração as peculiaridades das instituições de educação superior e da diversidade cultural, tem por finalidade a criação de um mercado único nesse nível educacional e a manutenção da hegemonia de uma geopolítica do conhecimento ainda dominante. O artigo conclui que a projeção do Tuning, em menor ou maior prazos, consideradas as premissas da ordem democrática e o grau de autonomia das universidades, perderá legitimidade se não colocar na agenda de discussões as demandas e expectativas dos cidadãos para além das solicitações do mercado.
Oscar Espinoza analisa, no sétimo artigo, intitulado Neoliberalismo y Educación Superior en Chile: una mirada crítica al rol desempeñado por el Banco Mundial y los ‘Chicago Boys”, as linhas fundamentais das políticas educacionais propostas pelo neoliberalismo e que tiveram implicações nas políticas de educação superior no Chile. No estudo apresentado, Espinoza identifica as principais limitações da teoria do capital humano e da análise das taxas de retorno utilizadas pelo Banco Mundial. Advoga o autor que as políticas neoliberais tiveram um impacto negativo no desenvolvimento e projeção do setor universitário público chileno, dado que os financiamentos governamentais foram reduzidos, privilegiando-se o setor privado e tomandose a privatização como eixo propulsor da economia e do desenvolvimento do setor educativo terciário. Ele conclui afirmando que o modelo tradicional de universidade, comprometido com o desenvolvimento social, foi substituído por um modelo mercantil de fins estritamente comerciais no sentido de satisfazer as exigências do setor privado.
Celia Maria Haas apresenta, no oitavo artigo – Educação Superior no Brasil e os condicionamentos às Políticas Nacionais: impactos da regulação transnacional na gestão universitária –, os resultados de uma pesquisa sobre avaliação da Educação Superior e suas implicações pragmáticas na gestão institucional, tomando para estudo o caso dos processos avaliativos instituídos pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Do ponto de vista metodológico, a autora apoiou-se na revisão da literatura, na análise da legislação reguladora da avaliação da educação superior expressa em documentos oficiais e em entrevistas com gestores acadêmicos de instituições públicas e privadas. Os resultados apontam que as políticas de avaliação da educação superior brasileira incorporam recomendações e práticas da regulação transnacional, porém, não se trata ainda de apropriação direta, mas de uma reelaboração dessas recomendações às condições institucionais nacionais, sem, contudo, uma percepção crítica das exigências postas.
Finalmente, Angelo del Vecchio aborda a constituição do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, instrumento fundamental de afirmação da soberania nacional, analisando, essencialmente, os aspectos geopolíticos envolvidos não apenas na criação do sistema, mas também nas mudanças que ele sofreu nas últimas quatro décadas. As universidades, como agentes desse sistema, recebem principal atenção, colocando em evidência o percurso contraditório dessas instituições em relação aos fundamentos do SNCTI, voltados à inserção do país como potência regional, num contexto regido por um processo de globalização pautado na via dos mercados. O autor evidencia o papel pró-cíclico da universidade brasileira na atualidade, o que a torna pouco receptiva às principais questões nacionais. Em síntese, o autor considera que as estratégias de pesquisa acadêmica não coincidem com as perspectivas das estratégias nacionais faltando uma visão geopolítica que oriente o país, nesse campo, a uma inserção minimamente qualificada no sistema de relações internacionais. Tal situação acaba por alimentar e reproduzir circuitos hegemônicos de fluxos econômicos globais e a ordem geopolítica mundial das potências, com interferências na produção de conhecimento e efeitos homólogos na geopolítica do conhecimento.
Este Dossiê assume, na nossa perspectiva, grande relevância para o mundo acadêmico, dado que pretende aprofundar o debate em torno da problemática dos impactos da internacionalização competitiva (transnacionalização) na educação superior do Brasil e da América Latina. Escrutinar as concepções que lhe servem de base, os contextos que a promovem - ou a elas se opõem - e suas aplicações às políticas e sistemas dos países da periferia do sistema de poder mundial implica salientar e valorizar os conhecimentos que se produzem nesses territórios, nesse movimento apontando para uma geopolítica decolonial do conhecimento.
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[Artigo corrigido , vol. 3, 3-7] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/398/582