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A educação superior em tempos de mudança na América Latina e na Europa: anotações para uma agenda alternativa
Higher education in times of change in Latin America and Europe: notes for an alternative agenda
La educación superior en tiempos de cambio en América Latina y Europa: anotaciones para una agenda alternativa
Laplage em Revista, vol. 3, núm. 3, pp. 8-16, 2017
Universidade Federal de São Carlos

Dossiê Temático

Atribuição não comercial internacional. Direitos de compartilhar igual e dar crédito aos autores e periódico.

Recepción: 10 Junio 2017

Aprobación: 10 Agosto 2017

DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201733394p.8-16

Resumen: Este artículo es fruto del trabajo realizado en el marco de la red RIAIPE, una red que integra universidades y centros de investigación y desarrollo de Europa y de América Latina y el Caribe. Durante la primera mitad de la década de 2010, la Red desarrolló un proyecto financiado por la Comisión Europea, Programa ALFA, sobre equidad e inclusión de los grupos sociales más vulnerables en la Educación Superior en América Latina. En este artículo se presenta el marco político y social realizado sobre los cambios en las regiones de los equipos de investigación participantes en este proyecto en las décadas finales del siglo XX y en la primera del siglo XXI. Se asume que el neoliberalismo ha fracasado completamente como modelo de desarrollo económico, pero se reconoce que, como política de cultura, continúa em fuerza, fruto de haberse convertido en un sentido común que moldea la acción de los gobiernos y de los responsables educación universitaria.

Palabras clave: Educación Superior América Latina. Europa. Red RIAIPE. Neoliberalismo..

Resumo: O presente artigo é fruto do trabalho realizado no âmbito da rede RIAIPE, uma rede que integra universidades e centros de I&D da Europa e da América Latina e Caribe. Durante a primeira metade da década de 2010, a Rede desenvolveu um projeto financiado pela Comissão Europeia, Programa ALFA, sobre equidade e inclusão dos grupos sociais mais vulneráveis na Educação Superior na América Latina. Neste artigo apresenta-se o enquadramento político e social realizado sobre as mudanças verificadas nas regiões das equipas de investigação participantes neste projecto nas décadas finais do século XX e na primeira do século XXI. Assume-se que o neoliberalismo falhou completamente como modelo de desenvolvimento económico, mas reconhece-se que, como política de cultura, continua (ainda) em força, fruto de se ter tornado um senso comum que molda a ação dos governos e dos responsáveis pela educação superior.

Palavras-chave: Educação Superior América Latina. Europa. Rede RIAIPE. Neoliberalismo..

Abstract: This article comes out of the work accomplished within the scope of the RIAIPE network which encompasses universities and I&D centres in Europe, Latin America and Caribe. During the first half of the 2010s, this network carried out a project, funded by the European Commission, ALFA programme, on equity and inclusion of the most vulnerable social groups in higher education in Latin America. This article accounts for the political and social framework of the changes enacted in the regions of the participating research teams throughout the last decades of the 20th century and the first one in the 21st century. It is here assumed that neoliberalism has failed as an economy development model but we must acknowledge that it (still) remains strong as cultural politics due to the fact that it has become common sense and has framed governments’ action and higher education policies.

Keywords: Higher Education Latin America. Europe. RIAIPE Network. Neoliberalism .

Introdução

Os sistemas de ensino superior passaram por uma intensa transformação e experimentaram, sobretudo na segunda metade do século XX, uma extraordinária expansão. Uma das forças motrizes dessa mudança foi o entendimento crescente de que a ciência, a investigação científica e a qualificação das populações são fatores determinantes na geração de riqueza, da qual depende, em última instância, os sistemas de bem-estar social e de segurança cidadã. A concorrência cada vez mais globalizada tem vindo a exigir um conhecimento novo e rapidamente aplicável, tornando o ciclo de inovação tecnológica cada vez mais breve, em quase todas as áreas da produção e da sociedade. O ensino superior adquiriu uma crescente importância na promoção de mudanças e na resolução de problemas sociais e económicos, passando a integrar o conjunto de temas considerados prioritários e estratégicos para o desenvolvimento das nações e dos povos. Generaliza-se a convicção que o progresso requer o aumento dos níveis de escolaridade das populações e que as necessidades do desenvolvimento exigem flexibilidade, agilidade e alternativas de formação adequadas às expectativas de uma rápida inserção em sistemas produtivos em constante mudança e em permanente competição. (SANTIAGO; TREMBLAY; BASRI; ARNAL, 2008)

Estas novas expectativas de formação pressupõem uma ruptura em relação a padrões e modelos rígidos e, em muitos casos, indiferenciados de ensino superior. O crescimento acentuado e rápido do acesso ao ensino superior tem implicado mudanças no perfil da formação, tanto no domínio do conhecimento quanto na capacidade de aplicação a problemas sociais concretos, ou no desenvolvimento do espírito de liderança e de polivalência funcional. Sobretudo, tem vindo a implicar, com ritmos distintos conforme os países e as regiões, uma composição social das instituições de educação superior consideravelmente diferente, com a entrada de novas camadas sociais e de grupos étnicos e culturais historicamente excluídos da frequência da universidade. O impacto dos novos processos no ensino superior é sentido e questionado de modo diferente nos vários países, devido à sua história e localização no sistema mundial, aos seus sistemas de ensino, à sua organização, ou à sua capacidade de reação, de mobilização de recursos e de implantação de políticas pertinentes. Mas apresenta caraterísticas e problemas que constituem uma agenda global.

Os primórdios da universidade moderna podem ser encontrados nos finais do século XVIII e no século XIX, associados às reformas realizadas na Inglaterra, na Prússia e em França. As instituições de ensino superior do cardeal Newman, de von Humboldt ou do modelo napoleónico, embora com matizes diferentes, tinham em comum o fato de serem modelos modernos, porque advogavam uma fé no Homem, no Conhecimento (enquanto ciência e verdade) e na História (MAGALHÃES, 2006). Para o cardeal Newman, a finalidade estava em fornecer uma educação liberal, ou seja, entender que o conhecimento deve ser procurado como um fim em si mesmo. A concepção humboldtiana expressava um enfoque na ciência moderna e na sua institucionalização, liberta da religião, da igreja ou da autoridade do Estado e das pressões sociais e económicas. Por sua vez, a concepção napoleónica preparava o Homem culto, de modo a que pudesse exercer a sua profissão com maestria e dominar com facilidade qualquer assunto.

Na América Latina, sobretudo nos países de língua espanhola, é normalmente acrescentado um quarto modelo de universidade: o instituído pela revolta de Cordoba, na Argentina, em 1918. Esse modelo valoriza (i) o caráter público e gratuito da educação universitária, em todos os seus níveis, da graduação ao doutoramento, (ii) a autonomia da universidade face ao Estado e aos interesses económicos, com uma gestão participada por professores, estudantes e funcionários, e (iii) a participação política na discussão dos grandes problemas nacionais. (TUNNERMANN, 2008)

A universidade moderna foi um instrumento central na edificação do Estado-nação, sendo assumida como uma construção nacional e uma forma de reforço do aparelho de Estado. Às universidades competia, para além da preparação dos quadros superiores do Estado, certificar a socialização dos estudantes para que pudessem assumir as suas funções na sociedade, promover a mobilidade social dos mais competentes e ser um local de discussão livre e independente das questões críticas da sociedade. (MAGALHÃES, 2006). A universidade tinha também um papel fundamental na formação da cidadania, na transmissão de valores e na defesa e promoção da cultura nacional. Os estudantes eram estimulados a respeitar as ideias, a rever-se no pensamento crítico, a procurar um espírito de cooperação e de responsabilização pelos atos pessoais. Numa perspetiva habermasiana, a universidade, como “comunidade crítica de aprendizagens”, deveria ser o lugar privilegiado de comunicação, de diálogo, de expressão democrática e de participação dos jovens na construção do conhecimento, da autonomia e da liberdade.

Representada como centro de criação, transmissão e difusão de cultura, da ciência e da tecnologia, a universidade assume-se como uma forma superior de cidadania, que não pode continuar a funcionar para a formação de um número diminuto de pessoas. A universidade torna-se um espaço de produção do conhecimento, de resolução de problemas sociais e tecnológicos, de criação de um espírito crítico que permita ao estudante reestruturar os seus percursos de formação na base de valores. Mas, a universidade moderna, com a sua diversidade de modelos, tinha como matriz o seu carácter elitista, tendo como consequência uma “república de académicos”, cujo elitismo cultural e sociológico foi tão bem caracterizado por Pierre Bourdieu em o Homo Academicus. (BOURDIEU, 1984)

Embora se possam encontrar no período posterior à Segunda Guerra Mundial algumas análises e reflexões destinadas a repensar os termos da universidade, estas nunca puseram em causa os seus alicerces epistemológicos. Nas últimas duas décadas do século XX, a par da intensificação das consequências do neoliberalismo na educação superior e na organização das universidades e da profissão académica (OLSSEN; PETERS, 2005), intensificaram-se os estudos e as reflexões sobre a educação superior, e, em particular, sobre as universidades, que apontam para novas epistemologias e outros caminhos, embora sem rumos ainda muito definidos. (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008)

Europa: o processo de Bolonha, a crise das dívidas soberanas e as duras consequências na educação superior

Na Europa, na primeira década do século XXI, as transformações na educação superior estiveram fundamentalmente associadas à implementação do processo de Bolonha. O objetivo era estabelecer um Espaço Europeu de Educação Superior, que permitisse o incremento da competitividade, atratividade e comparabilidade da educação superior europeia. Para isso, foram estabelecidos vários objetivos: a criação de um sistema de fácil comparação e leitura dos graus dos sistemas de ensino; o estabelecimento de um sistema transferível de créditos; a promoção da mobilidade de estudantes, professores e investigadores; e, a construção de sistemas de garantia de qualidade, de acordo com recomendações e orientações europeias. Estas mudanças foram reforçadas pela Estratégia de Lisboa e pela agenda europeia de modernização das universidades.

A avaliação dos resultados e as consequências do processo de Bolonha depende da perspectiva de quem a elabora. A um nível político, é fácil concluir que o processo de Bolonha foi um sucesso, pois permitiu uma maior integração e harmonização entre os diferentes sistemas dos 46 países que nele participaram. Mas, a um nível institucional e local, o que domina é uma resposta prudente, resultante de uma grande diversidade de contextos. Por um lado, o objetivo de uma maior competitividade e atratibilidade das universidades europeias ainda está por comprovar empiricamente. Por outro, diferentes estudos apontam para análises críticas aos processos e consequências verificados em diferentes espaços nacionais. Por exemplo, o European Educational Research Journal titula o seu número especial sobre o Processo de Bolonha como “ajuda ou obstáculo ao desenvolvimento da educação superior europeia? ” (vol. 9,1, 2010), onde os seus editores questionam: “em que medida se pode falar atualmente de uma educação superior europeia?” (URSIN; ZAMORSKI; STIWNE; TEELKEN; WHILBORG, 2010, p. 30). As dinâmicas atuais no Espaço Europeu de Ensino Superior e de Investigação caracterizam-se por uma tendência simultânea para a convergência e para a diversificação, assim como pela tensão entre cooperação e competição.

Vários autores sublinham a lógica neoliberal subjacente ao Processo de Bolonha, assente na redução da responsabilidade social do Estado e na ideia da educação como um bem privado, favorecendo a constituição de um mercado europeu de ensino superior. Amaral e Magalhães (2004) apontam a possível contribuição do Processo de Bolonha para a redução da autonomia das instituições de ensino superior, a mercantilização da educação, o desenvolvimento de uma burocracia europeia centralizada e a diminuição da diversidade nos sistemas de ensino superior.

A importância da dimensão social, visando a igualdade de oportunidades no acesso, participação e conclusão dos estudos, tem vindo a ser reforçada ao nível das políticas educativas para a educação superior no âmbito do Processo de Bolonha. Em 2012, na reunião em Bucareste, os Ministros reiteraram o objetivo de alargar o acesso ao ensino superior, aumentando as taxas de participação e aprovação de grupos sub-representados ou desfavorecidos, de forma a refletir a diversidade das populações dos Estados Membros. Também a Estratégia “Europa 2020” apresenta como um dos objetivos a conclusão de uma formação de nível de ensino superior por pelo menos 40% de adultos entre os 30 e 34 anos. (EUROPEAN COMMISSION, 2010). No entanto, apesar das políticas de promoção da participação persistem importantes desigualdades no acesso, no sucesso e resultados. A crescente competitividade na captação de públicos e recursos financeiros promoveu a estratificação e a desigualdade nos sistemas de ensino superior. Também a lógica neoliberal e meritocrática em que assentam as políticas de alargamento da participação parecem não favorecer o desenvolvimento de um sistema de ensino superior inclusivo comprometido com a justiça social.

Acresce que o final da implementação do processo de Bolonha e os primeiros anos da década de 2010 coincidiram com a crise de endividamento em vários países da Europa do Sul (Grécia, Portugal, Espanha, Itália), mas também da Irlanda, Reino Unido, Eslováquia, Holanda, ou mesmo a França. Essa crise conduziu a políticas financeiras muito austeras, com profundas consequências nas políticas de educação superior. No Reino Unido, o governo conservador Cameron introduziu um grande aumento das mensalidades pagas pelos estudantes, com previsíveis consequências no acesso à educação superior das camadas sociais de menores rendimentos. Na Grécia, a intervenção externa dos credores internacionais, representados pela troika, Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI, obrigou ao despedimento de milhares de professores e investigadores nas universidades e a um orçamento de contingência no âmbito do qual praticamente desapareceram muitas das funções básicas da universidade. Em Portugal e Espanha, os cortes radicais nos orçamentos das universidades puseram em causa o seu funcionamento e conduziram a uma regressão sem precedentes em áreas como a investigação e o desenvolvimento científico.

Em toda a União Europeia, o ideal da construção europeia, de uma Europa unida e solidária, constituída por diferentes povos, ricos na sua diversidade e história, sofreu sérios revezes, imperando novamente os egoísmos nacionais e o diretório dos mais fortes. A Europa tornou-se no laboratório mundial das respostas que o neoliberalismo, na sua versão ordoliberal, está a dar à crise que aquele mesmo provocou em 2008. Contudo, mais recentemente, a decisão do Reino Unido de sair da União Europeia, a eleição de Trump nos EUA e a sua posição abertamente contrária à integração europeia (defesa do Brexit) e de apoio a partidos xenófobos (como a Frente Nacional, em França), a derrota do nacionalismo xenófobo em França, na Holanda e na Áustria, ou mesmo a experiência portuguesa de um Governo à esquerda, mostrando que existem outras vias possíveis nos planos económico e social de resposta à crise das dívidas soberanas, estão a permitir um sobressalto que pode levar a UE a repensar-se e a retomar alguns caminhos que estiveram na origem do seu processo fundador.

América Latina: uma adiada transição para o pós-neoliberalismo

Na América Latina os contextos temporais foram outros. A América Latina foi a primeira região onde as políticas neoliberais foram implementadas, após o golpe militar do general Pinochet no Chile em 1973, que derrubou o governo legítimo de Salvador Allende. Depois, nos anos 1980, em resultado da séria crise das dívidas externas em vários países (Argentina, México, Brasil, entre vários outros países de menor dimensão demográfica e expressão económica), verificouse a intervenção do Banco Mundial e do FMI, através das suas “cartas de intenções”, no sentido de reestruturar as suas economias e de reduzir o défice fiscal, seguindo a tradicional ortodoxia dessas instituições: desvalorização da moeda, privatização das empresas públicas, remoção das barreiras alfandegárias, diminuição acentuada das despesas públicas com educação, saúde e habitação (ESPINOZA, 2002). Na educação, as políticas encetadas significaram privatização do provimento de educação (particularmente na educação superior), descentralização, avaliação e accountability. (ARNOVE; FRANZ; TORRES, 2013; GAZZOLA; DIDRIKSSON, 2008)

O final do século XX foi, para a América Latina, o que diversos autores designam de “décadas perdidas” (DIDRIKSSON, 2008): um longo período de estagnação (e, em alguns casos, de contração) económica, com a diminuição drástica do rendimento per capita, o aumento das desigualdades sociais e o decréscimo acentuado dos recursos públicos para as universidades e outras instituições de ensino superior. Simultaneamente, verificou-se uma mercantilização da oferta de educação de base e secundária para as classes médias e altas, a transnacionalização da oferta de educação superior em muitos países, através da compra de universidades e da multiplicação de programas a distância, e construiu-se um novo senso comum assente na crítica à ineficácia do Estado e na defesa das virtudes da criação de mercados em áreas até aí protegidas, como a educação e a saúde (GINSBURG; ESPINOZA; POPA; TERRANO, 2003). Assim, em muitos países da América Latina, a matrícula na educação superior em instituições privadas ultrapassou os 60%, a maioria de carácter comercial e de muito baixa qualidade científica – conhecidas como universidades “garagem” ou universidades “patito”. (FERNANDEZ LAMARRA, 2010)

O século XXI trouxe importantes mudanças neste panorama. A eleição de governos progressistas e de esquerda em alguns países latino-americanos, ligados em geral a movimentos sociais e étnicos com forte implantação e grandes tradições de luta e resistência às políticas neoliberais, permitiu desenvolver políticas de redistribuição de riqueza e de satisfação de necessidades básicas das populações mais carenciadas. Ao mesmo tempo, em países com fortes comunidades indígenas, houve um reconhecimento das culturas desses povos e o desenvolvimento de políticas interculturais (para o caso da Bolívia, ver TEODORO; MENDIZÁBAL; LOURENÇO; VILLEGAS, 2013). As universidades e a educação em geral voltaram a ter mais recursos públicos, havendo, em diversos países, políticas de ação afirmativa visando populações historicamente afastadas da educação superior (afro-descendentes, comunidades indígenas, estudantes pobres). Não deixa de ter significado que seja na América Latina, onde se fez a primeira experiência neoliberal, que se tenha iniciado a procura de alternativas às políticas neoliberais e a construção de outras racionalidades (ALCÁNTARA; LLOMOVATTE; ROMÃO, 2013; FERNANDEZ LAMARRA, 2010; SADER, 2013).

Algumas políticas de experimentação institucional merecem referência particular. No Brasil, a ação dos governos pós-neoliberais de Lula e Dilma (SADER, 2013) também se centrou na criação de universidades populares (SANTOS; MAFRA; ROMÃO, 2013), apresentando perfis diferenciados e respondendo a objetivos específicos de ação política. Umas, como a Universidade Federal da Fronteira Sul, resultaram de uma forte ligação aos movimentos sociais, em particular aos movimentos do campo. Outras, como a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), ou a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), a opções de natureza geoestratégica da política externa brasileira. Outras ainda, como a Universidade Federal do Sul da Bahia, a profundas mudanças na arquitetura curricular, na organização do tempo letivo e na ligação à escola pública e aos sectores sociais mais pobres e marginalizados da região (quilombolas, populações indígenas, camponeses pobres sem terra).

Apesar destas políticas, na maior parte dos países latino-americanos, incluindo o Brasil, a universidade privada cresce ainda mais que a universidade pública e possui a maioria dos estudantes inscritos, o que quer dizer que, no plano regional, ainda não se conseguiu até agora reverter o processo de privatização e de comercialização da educação superior, iniciado nos anos 1990. Recentemente, a viragem à direita com a eleição de um governo fortemente conservador na Argentina, o impeachment de Dilma Roussef no Brasil, a situação explosiva na Venezuela, que prenuncia o fim do chavismo, mostram que a luta contra as desigualdades sociais, o respeito pelas culturas dos povos e a luta pela justiça social constituem processos bem mais complexos do que muitos intelectuais previram.

O neoliberalismo e a educação superior: uma nova representação social e política de universidade

A ascensão do neoliberalismo nas décadas de 1980 e 1990, associado ao discurso do new public management, produziu uma mudança fundamental no modo como as universidades (e outras instituições de ensino superior) definem e justificam a sua existência institucional. A tradicional cultura profissional universitária, assente na liberdade de inquirição e no debate aberto, tem sido progressivamente substituída pela lógica da performatividade, evidenciada pela emergência da ênfase num conjunto de outputs, como indicadores de performance ou avaliação da qualidade. (OLSSEN; PETERS, 2005). O neoliberalismo, enquanto forma de globalização hegemónica, assumiu o mercado como uma tecnologia disciplinar para o sector público, com fortes consequências em dois planos: (i) na privatização e mercantilização da educação superior, tanto na questão do financiamento e posse como na crescente clientização dos estudantes e das famílias; e, (ii) na comodificação do ensino e da pesquisa, modificando os modos de controlo e avaliação do trabalho dos professores e investigadores.

Nas últimas três décadas, o discurso dominante na educação superior tornou-se uma forma de legitimação de uma nova ordem relacional, sustentada no mercado, nos sectores privados e de produção, na competitividade económica e na gestão centrada no cliente, inscrevendo-se este novo paradigma de empresarialização da educação no movimento que valoriza as dimensões mensuráveis e comparativas, bem como da avaliação e prestação de contas permanentes. É uma educação contábil (LIMA, 2007), que se manifesta por uma obsessão pela eficácia, pela eficiência, pelo sistemático recurso a metáforas produtivas e por um discurso omnipresente da qualidade, da avaliação, dos resultados e do rigor.

Em muitos países, tanto da Europa como da América Latina, assistiu-se a profundas alterações nos modos de governo das universidades, tomando como modelo e aproximando-os dos modos de gestão empresarial. Em consequência direta da aplicação das teorias do new public management, os modos de participação coletiva (de professores, de investigadores, de estudantes) na definição das políticas científicas e de formação foram considerados ineficazes e substituídos pela palavra e influência de stakeholders, por definição exteriores à universidade. Os Reitores passaram a ser escolhidos como os CEO (chief executif officer) das empresas e a atuar segundo os seus padrões de eficácia. Mesmo quando essas mudanças não se realizaram, o que aconteceu em diversos países das duas regiões, assistiu-se à entrada progressiva de novas formas de gestão, assentes sobretudo na contratualização e terciarização de serviços.

A mais importante mudança material que sustenta o neoliberalismo no século XXI é a ascensão da importância do conhecimento como capital (OLSSEN; PETERS, 2005). Isso conduz à universalização de políticas e obscurece as diferenças entre países e regiões, bem como dificulta a capacidade das tradições locais, dos valores e instituições nacionais mediarem, negociarem, reinterpretarem e mudarem o modelo dominante de globalização e a forma emergente do capitalismo do conhecimento em que se baseia. Neste ambiente, o papel da educação superior na competição e concorrência económicas assumiu uma ainda maior importância. As universidades são apresentadas como as principais impulsionadoras do crescimento económico na economia do conhecimento, pelo que são incentivadas a desenvolver estreitos laços com a indústria e os negócios, através de um conjunto diversificado de parcerias. O reconhecimento da importância económica da educação superior tem conduzido à multiplicação de iniciativas destinadas a adaptar o ensino à promoção de competências empresariais e ao desenvolvimento de medidas performativas com esse objectivo explícito. As dimensões humanistas e de livre pensamento e inquirição, características do ethos universitário, são sistematicamente relegadas para um plano secundário no discurso hegemónico.

O neoliberalismo falhou completamente como modelo de desenvolvimento económico, mas, como política de cultura, continua (ainda) em força, fruto de se ter tornado um senso comum que molda a ação dos governos e dos responsáveis pela educação (TORRES, 2011). Construir outras racionalidades, que valorizem a dimensão humana do desenvolvimento, foi um dos propósitos principais da Rede RIAIPE (2006-2013). A Universidade, e as políticas de educação superior, podem ter outro sentido e dar um contributo importante para a construção de sociedades justas, lutando pela igualdade entre os seres humanos, no pleno respeito pelas suas diferenças.

Referências

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[Artículo corregido , vol1. 3, 8-16] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/394/607



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