Resumo: e São Carlos (UFSCar) – Campus Sorocaba Este artigo visa focalizar a política de Educação em Tempo Integral sob a ótica da ideologia neoliberal. A análise se concentrou primeiramente sobre a experiência de ampliação da jornada escolar levada a termo por Anísio Teixeira no estado da Bahia em meados dos anos 50. Em seguida, são analisados os dispositivos teóricos e legais que sustentam o Programa Mais Educação, política do governo federal de ampliação do tempo na escola. Discute-se que o modo de produção capitalista neoliberal se apropria da educação em tempo integral de duas maneiras: transformando a ETI em política corretiva e convertendo a Educação de Tempo Integral como mercadoria ofertada por meio de parcerias com a sociedade civil. Conclui-se que a política de Educação em Tempo Integral, como qualquer outra política pública no contexto atual, tem sido usada para reafirmar ou reproduzir os princípios básicos do Neoliberalismo.
Palavras-chave:Políticas educacionais Educação em tempo integral. Ideologia neoliberal.Políticas educacionais Educação em tempo integral. Ideologia neoliberal..
Abstract: This article focuses on the full time Educational policy under the perspective of the neoliberal ideology. The analysis has concentrated on the experience of extended school time that Anísio Teixeira carried out in the state of Bahia in the mid-1950s. After that, we analyze legal regulations and theoretical frameworks that sustain the federal full time education program named Programa Mais Educação. We argue that neoliberal capitalism takes on full time education by transforming it into both a corrective policy and a product which is offered through partnership with civil society. We conclude that the policy of full time education, as any other public policy in the present context, has been used to reaffirm and reproduce the basic principles of neoliberalism.
Keywords: Educational policies Full time education. Neoliberal ideology..
Resumen: Este artículo tiene como objetivo enfocar la política de Educación de Tiempo Completo bajo la ideología neoliberal. El análisis se ha concentrado primeramente sobre la experiencia de ampliación de la jornada escolar concretizada por Anísio Teixeira en el estado de Bahía a mediados de los años 50. A seguir, son analizadas las previsiones legales y los aparatos teóricos que sostienen el “Programa Mas Educación”, política del gobierno federal de ampliación del tiempo en la escuela. Discutimos que el modo de producción capitalista neoliberal se apropia de la educación de tiempo completo convirtiéndola en política correctiva y en mercancía ofertada a través de asociaciones con la sociedad civil. Se concluye que la política de Educación de Tiempo Completo, como cualquier otra política pública en el actual contexto, ha sido utilizada para reafirmar o reproducir los principios básicos del Neoliberalismo.
Palabras clave: Políticas educacionales Educación de tiempo completo. Ideología neoliberal..
Demanda Contínua
A política de educação em tempo integral: apropriações do ideário neoliberal
Full time educational policy: neoliberal ideology appropriations
La política de educación de tiempo completo: apropriaciones de la ideologia neoliberal

Recepção: 06 Julho 2017
Aprovação: 10 Agosto 2017
A Educação em Tempo Integral (ETI) constitui-se como meta no Plano Nacional de Educação (PNE), o qual se propõe a “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, cinquenta por cento das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, vinte e cinco por cento dos(as) alunos(as) da educação básica” (BRASIL, p. 58). Em consequência, Cruz e Monteiro (2016) apontam para aumento nacional, nos últimos três anos, do número de escolas que oferecem educação em tempo integral, bem como no número de matrículas. Neste sentido, há diversas pesquisas que destacam iniciativas nos estados do Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, entre outras (FERREIRA, 2007; COELHO, 2011; CASTRO e LOPES, 2011).
Segundo Gallo (2002), há diferentes visões sobre a educação integral e a escola de tempo integral. Distintas concepções acerca do que seja uma formação integral, ou de quais aspectos contemplar nessa integralidade, tendo em vista à formação de um determinado modelo de cidadão, têm conduzido a diferentes configurações de trabalho educacional: segundo a perspectiva anarquista o ideal é o cidadão emancipado, “livre e senhor de suas habilidades (...), consciente de suas diferenças e da importância de sua relação com o social”. Dentro dessa linha de pensamento, educar consiste em “dar condições a cada pessoa para que ela (...) possa perceber a dialética do indivíduo social, a sua liberdade na liberdade do outro” (GALLO, 2002, p. 16-20); já na visão integralista, o cidadão completo é aquele enquadrado na tríade Deus, Pátria e Família, para a formação do qual recorre-se a atividades formativas de caráter físico, moral, cívico, intelectual, artístico e espiritual, tudo permeado por altos níveis de rigor e disciplina (COELHO, 2005).
No que se refere às concepções que embasam os projetos levados a termo na atualidade, Cavaliere (2007) identifica quatro concepções de ETI, que não se excluem, antes se completam e se mesclam: uma visão preponderante, de caráter assistencialista, a qual vê a ETI como uma escola para os desprivilegiados, que deve suprir deficiências gerais da formação dos alunos; um segundo tipo que substitui a família, enfatizando a ocupação do tempo e a socialização em detrimento do conhecimento. Há também uma visão autoritária, a qual por meio de rotinas rígidas e controladoras tem por objetivos manter as crianças afastadas das ruas e da omissão das famílias. Por fim, há uma visão emancipatória, segundo a qual a ampliação do tempo na escola serve para “proporcionar uma educação mais efetiva do ponto de vista cultural, com aprofundamento dos conhecimentos, do espírito crítico e das vivências democráticas”; nesse sentido, o tempo integral pode contribuir para que um melhor desempenho com relação aos saberes escolares possa constituir-se como uma ferramenta para a emancipação.
Além de diferentes concepções de educação integral e de escola, há distintas formas de organizar o trabalho docente nesse contexto. Apenas como forma de ilustrar essa questão, Cavaliere (2009) delimita, sem dicotomizá-los, dois modelos de organização: a escola de tempo integral, no qual mudanças no interior da escola, incluindo a ampliação do tempo de permanência, buscam propiciar a alunos e professores vivências institucionais diferenciadas; e o modelo de aluno em tempo integral, com foco na oferta de atividades diversificadas no contraturno das aulas regulares.
Diante desse cenário, o presente artigo visa abordar, em especial, a política de Educação Integral ou da ampliação do tempo na escola sob a ótica da ideologia neoliberal. A análise se concentrou primeiramente sobre a experiência de ampliação da jornada escolar levada a termo por Anísio Teixeira no estado da Bahia em meados dos anos 50. Em seguida, são analisados os dispositivos teóricos e legais que sustentam o Programa Mais Educação, proposta do governo federal de ampliação do tempo na escola.
O eixo central do qual se construiu a análise é o de que o modo de produção capitalista neoliberal se apropria da educação em tempo integral de duas maneiras: por um lado, na tentativa de amenizar as crises inerentes ao capitalismo e sua lei de autovaloração1, transformando a ETI em política corretiva; por outro lado, avalizado pelos princípios da Carta das Cidades Educadoras, converte a Educação de tempo Integral ofertada por meio de parcerias com a sociedade civil como um serviço ou mercadoria. Tais reflexões são apresentadas a seguir.
No atual modo neoliberal de organização do capitalismo, o Estado tem um papel periférico com relação ao mercado: suas ações devem tão somente garantir os pré-requisitos estruturais para o funcionamento do sistema. Nessa organização, as políticas sociais, entendidas como estratégias promovidas a partir do nível político com o objetivo de desenvolver um determinado modelo social, compostas pelos planos, projetos e diretrizes específicas de cada área de ação social cumprem papel importante na viabilização de ações estatais cujo objetivo é corrigir as inconveniências do sistema, sem comprometer seu funcionamento (BIANCHETTI, 2001).
Essa ideia de remediar os problemas causados pelo modo de produção capitalista neoliberal constitui-se como um dos fundamentos da retomada de propostas de ampliação do tempo na escola no Brasil. Vinculadas à concepção difundida pelo Banco Mundial de educação como combate à fome e a pobreza, essas propostas procuram minimizar os problemas sociais e dissimular as contradições do sistema capitalista (BERTOLDO, 2015). Em outras palavras, o neoliberalismo se apropria da educação escolar, de uma forma geral, convertendo-a em mercadoria e em possibilidade de integração de seus egressos ao mercado de trabalho, e especificamente da educação escolar em tempo integral como ação corretiva tópica.
A estratégia de utilizar-se da escola para realização de políticas sociais não necessariamente educacionais (com o consequente aumento das funções atribuídas à escola) é recorrente ao longo da história. Saviani (1999, 2011a), ainda na década de 80, referia-se a esses fenômenos por meio dos termos “educação compensatória” e “hipertrofia”. De fato, o caráter assistencialista de educação como forma de combate à pobreza já se encontrava na proposta de educação em tempo integral levada a termo por Anísio Teixeira na década de 1950. Cavaliere (2010) observa, a partir do estudo das obras de Teixeira, que o mesmo propunha uma educação escolar pública, laica e gratuita, com jornada discente ampliada nos diferentes níveis de ensino, que alcançasse uma maior abrangência nas esferas da cultura, da socialização primária, da preparação para o trabalho e do exercício da cidadania. Teixeira se opunha às políticas públicas dos anos 20 e 30 de redução da carga horária escolar diária e anual, com consequentemente diminuição da qualidade do ensino em prol da expansão do atendimento; tratava-se de uma visão utilitária de educação pública, circunscrita à alfabetização das massas, que viesse a transformar as pessoas marginalizadas em cidadãs por meio do simples acesso à leitura e à escrita. Na tentativa de superar essa concepção, Teixeira pleiteava uma educação integral como direito do indivíduo, caracterizada como um processo contínuo de crescimento e desenvolvimento, que alcançasse diversas dimensões de sua formação.
Ainda nessa perspectiva, Teixeira entendia que os avanços técnico-científicos experimentados em meados dos anos 30, cada vez mais rápidos e impactantes, levaram as diferentes instâncias sociais a perder parte considerável de sua capacidade educacional. Destarte, segundo ele caberia à escola ampliar suas responsabilidades, assumindo para si funções outrora concernentes apenas à família ou à sociedade. Nesta visão, a incapacidade social em impartir uma educação integral gerava a necessidade de diversificar as experiências escolares e de ampliar seu tempo de funcionamento. Para ele a escola deveria
fazer as vezes da casa, da família, da classe social e por fim da escola, propriamente dita, oferecendo à criança oportunidades completas de vida, compreendendo atividades de estudos, de trabalho, de vida social e de recreação e jogos (TEIXEIRA, apud CAVALIERE, 2010, p. 256)
Para o autor, tal educação não poderia ser levada a termo em uma escola de tempo parcial, visto que não deveria ser uma escola somente de alfabetização, mas de “formação de hábitos de pensar e fazer, de conviver e participar em uma sociedade democrática” (ibidem, p. 255). Assim pensada, a escola careceria então de um tempo integral, com um programa enriquecido de atividades práticas, com amplas oportunidades de formação de hábitos da vida real, organizada como “miniatura da comunidade, com toda a gama de suas atividades de trabalho, de estudo, de recreação e de arte” (TEIXEIRA, apud CAVALIERE, loc. cit.). Teixeira materializou essa forma de organização da escola pautada pela diversificação das experiências e pela ampliação do tempo em 1950 no Centro Educacional Carneiro Ribeiro, na cidade de Salvador, no estado da Bahia. Esse complexo educacional
[...] constava de quatro escolas-classe com capacidade para mil alunos cada, em dois turnos de quinhentos alunos, e uma escola-parque composta dos seguintes setores: (a) pavilhão de trabalho; (b) setor socializante; (c) pavilhão de educação física, jogos e recreação; (d) biblioteca; (e) setor administrativo e almoxarifado; (f) teatro de arena ao ar livre e (g) setor artístico. A escola-parque complementava de forma alternada o horário das escolas-classe, e assim o aluno passava o dia inteiro no complexo, onde também se alimentava e tomava banho. O Centro abrigava crianças dos sete aos 15 anos, divididas por grupos a princípio organizados pela idade cronológica. Previa-se a construção de residências para 5% do total das crianças da escola, que fossem reconhecidamente abandonadas, e que ali viveriam (CAVALIERE, loc.cit.).
Em que pese a importância das ideias de Anísio Teixeira e da experiência do Centro Educacional Carneiro Ribeiro para a implementação das políticas de ampliação do tempo escolar que o sucederam (COELHO, 2009), o trabalho de Anísio Teixeira permitiu vislumbrar os traços de uma educação funcionalista e reguladora da sociedade, a qual contribuía para preparar e distribuir as pessoas pelas diversas ocupações da vida humana de acordo com suas capacidades tidas como naturais, ou mesmo uma educação moralista e civilizatória que elevaria a condição de seus educandos por meio da aquisição de hábitos de organização, higiene, empenho, esforço, etc.; sua obra carregou os ecos do pensamento que tentou superar (CAVALIERE, 2009). Esses mesmos traços podem ser encontrados nas diferentes iniciativas posteriores: segundo Spíndola (2015), a escola de tempo integral brasileira tem sido historicamente pensada pela burguesia para pobres, elaborada para domesticar as crianças provenientes da classe operária e para promover a manutenção de uma miríade de mão de obra potencial. Isto posto, cabe agora destacar as políticas educacionais mais recentes relativas ao tema, dando destaque aos marcos ideológicos e legais que as balizam e suas finalidades.
É importante destacar o fato de que até os anos 90 dois dos mais relevantes programas de educação em tempo integral elaborados no Brasil haviam vinculado a ampliação do tempo na escola, e das experiências por ela proporcionadas, à construção de prédios projetados para a permanência de estudantes e docentes durante todo o dia, e construídos em áreas que privilegiassem o atendimento de crianças e jovens em situação de risco: foi esse o caso do já citado Carneiro Ribeiro, na Bahia, (NUNES, 2009; CAVALIERE, 2010), e dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no estado do Rio de Janeiro (COELHO, 2009; MONTEIRO, 2009).
A partir dessa década, intensifica-se a promoção de estratégias ideológicas, políticas e legais com o objetivo de desenvolver um novo modelo social; as ideias neoliberais passam a ganhar cada vez mais força, apropriando-se das políticas sociais (entre elas a Educação) e das políticas de educação em tempo integral, especificamente. Nessa apropriação, mantém-se o enfoque sobre o atendimento em tempo integral prioritariamente para a população em situação de risco, mas os altos investimentos em infraestrutura e corpo de profissionais da educação cedem progressivo espaço ao estabelecimento de parcerias entre as escolas e entidades da sociedade civil, as quais oferecem atividades no contraturno escolar, em espaços diversos, sob a supervisão de educadores voluntários ou contratados. Percebe-se uma tendência para a manutenção do caráter de política compensatória tópica atribuído à ETI, e para o recrudescimento da possibilidade de mercantilização dessa modalidade educativa (MAURÍCIO, 2015; CAVALIERE, 2014).
No âmbito legal, o marco inicial para essa ascensão da oferta de ETI foi a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996), segundo a qual a jornada escolar no ensino fundamental deve incluir pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola com a consequente adoção do tempo integral a critério dos sistemas de ensino. Em 2001, com a promulgação da lei nº 10172, o então vigente Plano Nacional de Educação (PNE), determinou como meta para a primeira década do século a progressiva adoção do atendimento em tempo integral às crianças na educação infantil e no ensino fundamental, com prioridade para crianças de famílias de menor renda (BRASIL, 2001).
Em 2007, consolidou-se o Movimento Todos pela Educação, o qual incentivou a criação do decreto 6094 que implementou o Plano de Metas Todos pela Educação (BRASIL, 2007 e), lançando as bases para o Programa Mais Educação (PME), que será discutido logo adiante. Como forma de reforçar a determinação do PNE em vigência, a lei 11494/2007 estabelece a destinação dos recursos financeiros específicos para as matrículas em tempo integral nas diferentes modalidades da educação básica (BRASIL, 2007 b); o decreto nº 6253/2007, por sua vez, para fins de destinação dessa verba, define educação básica em tempo integral como “a jornada escolar com duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período letivo, compreendendo o tempo total que um mesmo aluno permanece na escola ou em atividades escolares” (BRASIL, 2007 a). Em 2010, o documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) propôs que, até o final do plano nacional de educação que sucedesse o então vigente, a educação em tempo integral fosse ofertada em pelo menos 50% das escolas públicas, atendendo a pelo menos 25% dos estudantes da educação básica; com efeito, essa proposta foi incorporada ao PNE na forma de meta (BRASIL, 2014) e ratificada pelo documento referência da CONAE de 2014 (CONAE, 2014).
Ao mesmo tempo que as políticas de ampliação do tempo na escola se fortaleciam em âmbito legal, ganhava relevo também o movimento das Cidades Educadoras, por meio da adesão de diversos municípios brasileiros à Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE). Para a Carta das Cidades Educadoras (AICE, 2004), texto que embasa o movimento, as cidades educadoras são um espaço urbano integrado e interdependente de seu entorno, um sistema complexo e ao mesmo tempo um agente educativo permanente e plural, que exercita e desenvolve essa função educativa de forma paralela as suas funções tradicionais (econômicas, sociais, políticas e de prestação de serviços), objetivando o enriquecimento de seus habitantes e assegurando-lhes o direito de usufruir, em condições de liberdade e igualdade, dos meios e oportunidades de formação e desenvolvimento pessoal por ela ofertados (CABEZUDO, 2004).
Partindo-se dessa linha de pensamento, assume-se que a cidade dispõe de incontáveis possibilidades educadoras, das quais a escola é somente uma delas; a escola serve, nesse contexto, para articular e integrar esses novos espaços de formação criados pela sociedade da informação (eufemismo para a sociedade neoliberal). Deste modo, ela deixa de ser a instância socializadora do conhecimento historicamente sistematizado (lembrando, transformado pelo capitalismo em modo de produção e alienado à classe trabalhadora) para assumir um papel social consideravelmente ampliado de equipamento urbano agregador, articulador e dirigente da comunidade, da cultura, dos movimentos, das organizações e das instituições. (GADOTTI, 2004).
Baseadas nessas ideias de cidade com múltiplas possibilidades educadoras e de escola como elemento agregador dessas possibilidades, além de incentivadas pelo arcabouço legal em construção (especialmente pela citada lei 11494/2007, que destina porcentagem adicional do FUNDEB para matrículas em período integral), começam a surgir em meados dos anos 2000 iniciativas de ETI que tendem a articular a assim chamada escola regular a instituições multisetoriais, organizações, projetos ou afins. O intento dessa articulação é que essas entidades parceiras ofereçam atividades diversificadas, múltiplas e não padronizadas a estudantes considerados carentes, no contraturno das aulas, utilizando espaços (praças, clubes, igrejas, etc.) e agentes (membros da comunidade, oficineiros, voluntários, etc.) que não necessariamente os da própria escola (MAURÍCIO, 2015).
Cavaliere (2009) chama esse modelo de “aluno em tempo integral”, em oposição ao modelo de “escola em tempo integral”, o qual tende a investir em mudanças quantitativas e qualitativas na estrutura das próprias escolas e de seus equipamentos, atribuindo o trabalho pedagógico a docentes e a profissionais com formação diversificada, enfatizando o fortalecimento da unidade escolar e oferecendo condições adequadas para a ampliação do tempo na escola para estudantes e docentes. A autora também observa que os investimentos no aumento do horário escolar feitos pelas grandes capitais brasileiras a partir de meados dos anos 2000 se inclinavam para o modelo de “aluno em tempo integral”. Ela cita as experiências de Belo Horizonte e São Paulo, ambas filiadas à AICE e, portanto, tributárias de seus princípios, cujos programas de ETI tinham em comum a utilização de espaços extraescolares e o emprego de agentes comunitários ou monitores para a oferta de atividades no contraturno escolar.
Como forma de efetivar o cumprimento das determinações legais e fomentar a ampliação da jornada escolar nas escolas públicas em consonância com os princípios do movimento das cidades educadoras, o governo federal lançou mão no ano de 2007 do Programa Mais Educação (PME), que se configura como uma apropriação neoliberal da educação escolar em tempo integral.
Ao analisar os documentos oficiais que lhe dão sustentação legal e teórica, Silva e Silva (2013; 2014) observam que o PME, na forma de ação articulada entre os ministérios da educação, do desenvolvimento social e combate à fome, do esporte e da cultura, traz como pressuposto básico a concepção de educação como eixo estruturante em torno do qual são implementadas pelo Estado ações para a “erradicação da pobreza e da marginalização” (BRASIL, 2007c, p. 6). Sua proposta de ampliar tanto o tempo de permanência discente na escola quanto a abrangência de suas ações vem vinculada à ampliação das funções escolares: a escola tem o dever de ampliar o tempo e o espaço educativo e a extensão do seu ambiente, de contribuir para a redução da evasão, da reprovação e da distorção idade-série e de oferecer atendimento educacional especializado para crianças com necessidades educacionais especiais. Como se isso não bastasse, a escola deve ainda prevenir e combater o trabalho infantil, a exploração sexual e outras formas de violência, estimular interações efetivas com práticas esportivas, promover a aproximação entre a escola, as famílias e a comunidade e, finalmente, prestar assistência técnica e conceitual aos entes federados, de forma a operacionalizar a implementação do programa (BRASIL, 2007d).
Toda essa amplitude de responsabilidades que inclui tarefas de “proteção” pode ser caracterizada ao mesmo tempo como uma forma de redução da ação Estatal na esfera pública e como uma tendência de secundarizar a escola. No primeiro aspecto, a escola é convertida em uma espécie de “posto avançado” por meio do qual são garantidas certas condições de controle social, desobrigando-se o Estado de políticas sociais mais pontuais (SILVA; SILVA, 2014); no segundo aspecto, esvazia-se a escola de sua função específica (qual seja a socialização do saber historicamente elaborado), transformando-se em uma agência de assistência social, cuja função passa a ser a de amenizar as contradições da sociedade capitalista (SAVIANI, 2011a).
A apropriação neoliberal do tempo integral na escola operacionalizada pelo PME se faz notar não somente na hipertrofia das funções escolares, mas também nos dois conceitos básicos que, de acordo com Silva e Silva (ibidem) o suportam: o de educação integral intercultural e o de gestão intersetorial e sistêmica. O primeiro desses conceitos, partidário da pedagogia da existência2, busca legitimar as diferenças entre as pessoas; ao fazê-lo, converte-se em uma forma de legitimar também as desigualdades e a dominação (SAVIANI, 1999): a ideia é veicular por meio do PME a afirmação das diferenças (e não o desvelamento e a discussão de seus determinantes, de forma a superá-los) articulada a políticas de redução das desigualdades; nesse contexto, as contradições inerentes ao capitalismo são acriticamente relativizadas na forma de multiplicidade de verdades, o que termina por desqualificar a escola e o trabalho docente de suas possibilidades históricas e críticas.
Além disso, o conceito de educação integral intercultural do PME resgata o lema escolanovista do “aprender a aprender”; este, dentro do contexto de incerteza criado pelas políticas neoliberais de redução da ação estatal e de reestruturação rumo à flexibilização das relações de trabalho, diz respeito à necessidade de constante atualização individual com vistas à ampliação da empregabilidade. Enfim, a educação intercultural que legitima as diferenças e proporciona a atualização individual se dá, segundo o documento “Programa Mais Educação: gestão intersetorial no território”, por meio da aquisição de habilidades relacionadas ao domínio da língua portuguesa e da matemática, aferidas por meio da Prova Brasil (BRASIL, 2009). Em termos gerais, espera-se que essa educação integral intercultural contribua para que as crianças a ela submetidas sejam dotadas de comportamentos suficientemente flexíveis que lhe permitam adaptar-se à uma sociedade na qual não estão garantidas condições mínimas de sobrevivência (SAVIANI, 2011b).
Já o conceito de gestão intersetorial e sistêmica diz respeito à forma através da qual as escolas devem ser administradas. Esse modelo se diz sistêmico pois busca reconhecer as múltiplas relações existentes entre as diversas modalidades de ensino (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação superior, ensino profissionalizante, etc.); afirma-se também intersetorial porque pretende aperfeiçoar o regime de colaboração entre os diversos entes da federação, compartilhando competências políticas, técnicas e financeiras. Desse modo, atribui-se às escolas relativa autonomia na gestão de questões operacionais ou de seus recursos financeiros e humanos. Nesse caso específico, e em total acordo com os princípios da cidade educadora, o PME prevê a possibilidade de empregar o trabalho voluntário na escola para a oferta de atividades diversificadas no contraturno escolar. De acordo com um dos documentos que o suportam, fica aberto o espaço para
[...] o trabalho dos profissionais da educação, dos educadores populares, estudantes e agentes culturais (monitores, estudantes universitários com formação específica nos macrocampos), observando-se a Lei nº 9.608/1998, que dispõe sobre o serviço voluntário. Trata-se de uma dinâmica instituidora de relações de solidariedade e confiança para construir redes de aprendizagem, capazes de influenciar favoravelmente o desenvolvimento dos estudantes (BRASIL, 2008).
A suposta autonomia atribuída à escola é, na verdade, relativa: esse modelo gerencial, alegadamente descentralizado, não prescinde de controle central exercido pelo governo federal por meio da distribuição de recursos (cuja liberação é condicionada à adesão ao ‘Plano de Metas Todos pela Educação”, vinculado aos interesses de grandes grupos econômicos), da definição das estratégias de controle e verificação dos resultados (focada na aquisição de habilidades estudantis em língua portuguesa e matemática, todas aferidas pela Prova Brasil) e dos padrões gerais de funcionamento das escolas: por sua importância estratégica na formação de mão de obra e por seu potencial como forma de obtenção de lucros, a escola deve permanecer sob controle e seus gastos devem ser otimizados. Percebe-se assim que a gestão intersetorial e sistêmica proposta pelo PME é mais uma forma de privatização velada endógena (BALL; YOUDELL, 2008), uma tentativa de transplantar o modelo de organização empresarial para o âmbito do sistema educacional. Com base em valores como produtividade, eficiência e racionalidade, busca-se reduzir custos e investimentos no setor público, transferindo-os total ou parcialmente para o setor privado (SILVA; SILVA, 2014).
Junte-se a tudo isso o fato de que a necessária ampliação dos espaços escolares é encarada pelo PME na perspectiva do estabelecimento de parcerias entre a escola e a sua comunidade (BRASIL, 2009), mais uma vez com base no conceito de cidade educadora; empunhando a bandeira da valorização da diversidade e de abertura da escola para a sociedade civil, o Estado se desobriga dos investimentos também na ampliação predial e arquitetônica, que historicamente tem sido uma marca da educação em tempo integral no Brasil. Não é debalde que o referido Plano de Metas Todos pela Educação propõe que as possibilidades de permanência dos estudantes sob a responsabilidade da escola (repita-se e perceba-se, sob a responsabilidade da escola, mas não necessariamente dentro dela) para além do período regular se dê por meio de “parcerias externas à comunidade escolar, visando a melhoria da infraestrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais e ações educativas” (BRASIL, 2007 e). Considerando que em muitas localidades brasileiras a escola é o único equipamento público existente (sendo exatamente essas as unidades que devem ser privilegiadas para implementação do PME), de forma a não haver possibilidades de estabelecer qualquer tipo de regime de colaboração, os resultados são, basicamente, dois: o uso de espaços precários para uma educação precária, ou o estabelecimento de parcerias
[...] com organizações de grande porte, de origem empresarial, com ou sem fins lucrativos, que prestam consultorias aos órgãos do governo (ministérios e secretarias) para a formulação política, elaboração de documentos e materiais de orientação aos professores (CAVALIERE, 2014).
Destarte, é possível afirmar que conjugados os dispositivos legais que fundamentam a ampliação do tempo discente na escola e os princípios da carta das cidades educadoras, são criadas as condições para que a parceria público-privada
[...] assuma o protagonismo das ações voltadas para a educação integral, no contraturno escolar, de crianças em situação de vulnerabilidade social, através de organizações não-governamentais” (MAURÍCIO, 2015, p. 87-8).
Tendo sido implementado justamente nesses moldes, o Programa Mais Educação e suas estratégias – ampliação do tempo de permanência discente vinculada à ampliação das funções da escola e dos docentes, visão de educação integral que legitima desigualdades e prepara as crianças para adaptar-se à sociedade neoliberal, modelo de gestão empresarial para a escola, terceirização do trabalho docente pela contratação de voluntários ou educadores genéricos, desinvestimentos em formação de professores e ampliações prediais, gerando oportunidades de lucro para organizações não governamentais que venham a instaurar parcerias com as escolas – tudo isso configura um quadro de duplo enfraquecimento: da escola pública, que passa a depender quase que exclusivamente dos esforços da equipe docente, da competência da gestão escolar ou dos municípios para a obtenção de algum êxito, e de docentes, alienados dos saberes relativos à preparação do currículo e das aulas, da escolha das formas de avaliação e dos modos de conduzir e organizar seu trabalho.
Trabaho esse que, por sua vez, é levado a termo em condições de precariedade e agraciado com auxílio pecuniário proveniente de um financiamento governamental que está condicionado à observância de diretrizes alinhadas aos interesses dos grandes grupos financeiros (SPÍNDOLA, 2015).
Em síntese, pode-se dizer que a política de Educação em Tempo Integral, como qualquer outra política pública no contexto atual, tem sido usada para reafirmar ou reproduzir os princípios básicos do Neoliberalismo. Neste sentido, a partir da concepção de um "Estado mínimo" (ANDERSON, 1995), o neoliberalismo tem visado à supressão ou minimização de direitos sociais, num processo progressivo de privatizações e de atribuição de suas responsabilidades à sociedade civil, envolvendo também profundas transformações no mundo do trabalho, inclusive na área educacional, ao criar regimes e contratos de trabalho mais flexíveis, bem como num sistema em que a Educação é predominantemente vista como mercadoria.
De uma forma geral, concordamos com Cavaliere (2007) ao afirmar que a ampliação do tempo na escola só se justifica como possibilidade de proporcionar, para crianças e docentes, transformações nas experiências escolares, no sentido de aprofundar certos aspectos da vida na escola; uma escola na qual as mais corriqueiras atividades, como alimentar-se ou fazer uma leitura na biblioteca, sejam potencializadas e adquiram uma dimensão educativa, contribuindo para aprofundar conhecimentos, a criticidade e vivências democráticas.
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/393/594 (pdf)
[Artigo corrigido , vol. 3, 178-189] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/393/594