Demanda Contínua

Recepção: 10 Junho 2017
Aprovação: 10 Agosto 2017
DOI: https://doi.org/10.24115/S2446-6220201733397p.200-205
Resumo: Este artigo analisa a formação discente, termo empregado para designar um fenômeno observado em alunos do ensino fundamental durante atividades em um sistema de cooperação universidade-escola. A proposta envolveu alunos do oitavo ano de uma escola pública que receberam alunos de licenciatura em biologia de uma universidade pública, os quais ministraram aulas teóricas e práticas durante um semestre. Todo o planejamento e execução foram acompanhados pela professora e ao final foram produzidos registros escritos pelos alunos. Observações e registros foram fontes de dados. Como resultado notou-se a formação de um senso de responsabilidade e organização a fim de assegurar que licenciados pudessem lecionar e eles, aprender; houve mudança de postura a partir do momento em que os alunos passaram a se sentir importantes e ativos na dinâmica das aulas, que sugere a importância dessas reflexões na prática docente.
Palavras-chave: Formação discente Universidade-escola. Saberes práticos. Formação docente. ABSTRACT.
Abstract: This article analyzes the student training, term used to designate a phenomenon observed in elementary school students during activities in a system of university-school cooperation. The proposal involved eighth grade students from a public school who received undergraduate biology students from a public university, who taught theoretical and practical classes for one semester. All the planning and execution were accompanied by the teacher and at the end were produced records written by the students. Observations and records were data sources. As a result, a sense of responsibility and organization was formed to ensure that graduates could teach and learn; There was a change of attitude from the moment the students began to feel important and active in the dynamics of the classes, which suggests the importance of these reflections in teaching practice.
Keywords: Student training University-school. Practical knowledge. Teacher training..
Resumen: Este trabajo analiza la formación de futuros profesores, durante actividades en un sistema de cooperación universidad-escuela. La propuesta involucró a alumnos del octavo año de una escuela pública que recibieron alumnos de licenciatura en biología de una universidad pública, los cuales ministraron clases teóricas y prácticas durante un semestre. Toda la planificación y ejecución fueron acompañadas por la profesora titular y al final se produjeron registros escritos por los alumnos. Las observaciones y los registros fueron fuentes de datos. Como resultado se notó la formación de un sentido de responsabilidad y organización para asegurar que los licenciados pudieran enseñar y los alumnos, aprender. Se produjo un cambio de postura a partir del momento en que los alumnos pasaron a sentirse importantes y activos en la dinámica de las clases, que sugiere la importancia de esas reflexiones en la práctica docente.
Palabras clave: Formación discente Universidad-escuela. Conocimiento práctico. Entrenamiento de profesor..
Introdução
No campo educacional existe uma preocupação com a formação docente, questões de como, porquê e para quê formar professores são debatidas entre os educadores. Formação inicial e/ou contínua são temáticas bastante discutidas, seja focando no professor a ser formado ou em formação. Isto pode ser notado pelo aumento no número de produções acadêmicas desde a década de 90, cujos conceitos e concepções estão centrados no professor – “professor-reflexivo”; “professor-pesquisador”; “saberes docentes”; “conhecimentos e competências docentes” (ALVES, 2007).
Pensar a formação docente é fundamental e certamente há a necessidade de formar bons professores, contudo ao pensar que “não há docência sem discência” (FREIRE, 1996), convém atentar também para os alunos nesse processo. Nas pesquisas sobre formação pouco se encontra de referências aos alunos. Em uma busca no banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão vinculado ao ministério da Educação, encontram-se 50 trabalhos para o indexador “Formação discente”, destes apenas 3 estão ligados à educação – outros trabalhos são de outras áreas, sendo dois referentes à formação que ocorre dentro do Ensino Superior e um sobre a formação a partir do currículo de um colégio Marista, salientando que o Colégio Marista é uma instituição privada e a formação discente desejada para ricos é diferente para pobres.
Aparentemente, os alunos são considerados uma matéria inerte, passiva, sobre a qual o docente deve atuar: conhecendo seus saberes prévios, a realidade em que vivem, seus anseios e desejos, porém, sem o devido crédito ao papel ativo que eles desempenham no processo educativo.
Considerando que o sentido do trabalho docente não é o professor, e sim o aprendizado do aluno, toda prática pedagógica tem como foco o desenvolvimento desse aluno, como corrobora Teixeira (1969) quando diz que toda a atividade escolar tem como origem e centro o aluno. Contudo, quantos alunos e alunas compreendem seu papel na complexidade do trabalho pedagógico? Quais seriam as implicações para o ensino-aprendizagem quando o aluno compreende seu papel ativo diante deste processo? Essas questões transversalizam a presente pesquisa como segue.
Formação discente e currículo oculto
A formação discente manifestada nos planejamentos dos professores, presente nos projetos pedagógicos das escolas e no currículo do estado de São Paulo, pretende formar um sujeito crítico, consciente e com plenas habilidades e competências para manutenção de sua qualidade de vida (SÃO PAULO, 2012). Esses objetivos explicitados nos documentos oficiais contradizem, o que acontece na prática, onde
[...] as características estruturais da sala de aula e da situação de ensino, mais do que seu conteúdo explícito, 'ensinam' certas coisas: as relações de autoridade, a organização espacial, a distribuição do tempo, os padrões de recompensa e castigo.” (SILVA, 2005 p. 78)
Essas práticas escolares não verbalizadas, que desenvolvem nos alunos princípios de obediências a normas, regras e horários e outras atitudes desejadas pelo sistema vigente, são conhecidas como currículo oculto: “O que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações (relacionadas), em geral, ao conformismo, a obediência, ao individualismo” (SILVA, 2005, p.79). A formação daí advinda corrobora comportamentos passivos e acríticos dos alunos, que acabam aceitando toda e qualquer atividade escolar, fortalecendo a submissão e conformismo discente tanto na escola, como fora dela.
Este estudo tem como objetivo discutir uma concepção de formação que considerou a atuação discente como integrante ativa do processo de ensino-aprendizagem. A pesquisa desenvolveuse atrelada a um processo de formação docente numa licenciatura, numa parceria entre escola pública e universidade. Nessa proposta alunos do primeiro ano de licenciatura em Ciências Biológicas de uma universidade federal planejaram, prepararam, ministraram e avaliaram um semestre de aulas dadas a duas turmas de oitavo ano de uma escola pública do interior do estado de São Paulo/Brasil. Participaram do projeto os licenciandos, os alunos da escola pública, o professor responsável pela disciplina de práticas de ensino e a professora responsável pela disciplina de ciências.
Metodologia
Esta pesquisa se define como qualitativa uma vez que os dados e o contexto onde são produzidos são inextricáveis, a observação e reflexão permitiram compreender e analisar um desdobramento do projeto (LÜDKE E ANDRÉ, 1986); caracteriza-se especificamente como uma pesquisa-ação, pois envolveu a implementação de estratégias as quais foram, sistematicamente, observadas, refletidas e mudadas. (GRUNDY; KEMMIS, 1982)
Considerando o pressuposto do coletivo que moveu essa proposta, todos os participantes colaboradores foram convidados a participar, a partir de um diálogo franco sobre o que se almejava: fazer com que os licenciandos em seu primeiro ano de curso vivenciassem a docência, mas que também se contemplasse o objetivo de melhoria na aprendizagem de ciências dos estudantes da escola básica onde atuariam.
Assim, foi previamente realizada uma conversa para convidar os alunos da escola, com a preocupação de explicar-lhes um pouco sobre o processo de formação de um professor e quais poderiam ser as implicações e as contribuições deles nesse processo; o convite foi aceito com um misto de sentimentos que variou desde a euforia em receber os futuros professores ao receio de causar má impressão a eles. O sentimento de responsabilidade pela formação dos licenciandos desperto nesses alunos logo nesse primeiro momento traduz na fala de um deles: “Dona, e se gente desanimar eles?”
Durante essa conversa inicial, ficou evidente um certo espanto dos alunos diante da ideia que um “professor não nasce professor”, que a constituição docente é um processo contínuo que é afetado tanto por elementos inextricáveis a prática quanto pelos aspectos que permeiam a vida pessoal do indivíduo. “Dona, professor não chega professor na escola? Mas ele já não estudou pra isso?” Houve, como mostra essa fala, um sentimento de descoberta dos alunos ao perceberem a prática de um professor é afetada – em alguns casos até mesmo definida – pela postura dos alunos.
Vale ressaltar que uma versão anterior desse projeto, com as mesmas turmas da escola, porém com outros licenciados, aconteceu em 2015. A expectativa criada sobre a continuidade do projeto em 2016 foi comentada pelos alunos logo no início do ano, sugerindo que a experiência anterior havia sido positiva. Quando foi feito novamente o convite, e explicada a nova versão do projeto, que combinaria aulas teóricas e práticas, a animação tomou conta das turmas.
Também na universidade foi feita uma conversa com os licenciandos sobre a proposta, os conteúdos que poderiam ser trabalhados e como seria o trajeto pedagógico.
Como primeiro passo, o professor da universidade foi junto com os licenciandos conhecer a escola, seu entorno, a equipe gestora, conversar com alguns moradores do bairro e observar o intervalo dos alunos – e iniciar tímidas aproximações. As aulas foram ministradas nas duas turmas de oitavo ano (12-13 anos), semanalmente e em duplas, com uma aula teórica e outra prática de acordo com o planejamento anual e com a participação de ambos os professores supervisores.
Todas as intervenções foram observadas e registradas em vídeo pela professora e aos alunos também foi pedido, ao final do projeto, um texto anônimo sobre o mesmo. Para análise dos dados foram criadas categorias, que emergiram a partir das reincidências encontradas, e que permitiram sistematizar e organizar os registros.
Resultados e discussão
Primeira categoria: responsabilidade pela aula. O movimento de formação aqui analisado, ao criar espaço dialógico e de conscientização da dinâmica de ensino-aprendizagem, permitiu uma formação discente baseada na responsabilidade – tanto para si, quanto para os demais e os professores; a consciência do papel de aluno como importante no processo, desembocando no sentimento orgulhoso de “ser aluno”, avançou no sentido de relacionar a postura de responsabilidade e empoderamento discente, colocando o aluno numa postura ativa diante de sua formação – e, numa inversão inovadora, também na formação do professor.
Desde a primeira conversa inicial, foi notável uma movimentação e organização entre os alunos para que nenhuma variável pudesse impedir ou atrapalhar o projeto; os próprios alunos já começaram a elencar alguns pontos que todos deveriam colaborar:
A a “Quem fica conversando durante a aula vai ter que sentar separado.”
A b “Quem faz bagunça é melhor nem vir ‘pra’ aula!”
A c “Todo mundo tem que fazer a lição que eles pedirem mesmo se não valer nota.”
Ao longo do projeto a organização manteve-se, e antes dos licenciandos entrarem, os próprios alunos já alteravam a configuração da sala separando os grupos que conversavam muito ou que não se identificavam e que podiam causar tumulto. Outro elemento desenvolvido, que resulta na segunda categoria de análise, foi a cooperação entre eles, que se ajudavam ao que realizar alguma atividade proposta ou explicavam aos colegas um conceito de uma outra maneira. Em algumas situações, os alunos percebiam o nervosismo do licenciando e tentavam fazer perguntas a fim de mostrar interesse ou ficavam em silêncio pacientemente esperando que o licenciando prosseguisse e até mesmo faziam brincadeiras no sentido de “quebrar a tensão”. Em nenhum momento a professora teve que intervir por problemas de indisciplina e/ou desrespeito com os colegas ou os professores. Também foi observado e notado pelos próprios alunos a participação de alunos que, geralmente, por timidez ou por desinteresse não participam da aula. Dessas observações deriva a terceira categoria, a de proatividade:
A x “Hoje até os meninos que não fazem nada participaram!”
A y “Eu nunca vi o Felisberto (nome fictício) participar de nada! E olha que eu estudo com ele desde de pequena... Ele até escreveu no caderno!”
Ainda que alguns elementos tenham florescido por conta do projeto, os alunos mantiveram a autenticidade, uma das dúvidas iniciais foi sobre como seriam as aulas, que se manifestou na pergunta: “Dona, vai ser um “teatrinho”? A gente vai ter que fingir?” Os alunos, após o diálogo, compreenderam que deveriam ser eles mesmos, alunos, para que os licenciandos pudessem ter uma experiência realista de uma sala de aula; apenas mudou a concepção desse ser, entendido agora como alguém ativo, responsável, determinante para o andamento das aulas. Essa sensação de importância, derivada da responsabilidade e manifesta na proatividade e cooperação, leva a categoria da autoestima ganha pelos alunos, se mostrou em suas falas:
A z “Pudemos ajudá-los a entender como uma sala de aula é, tanto no aprendizado como na bagunça. Eles puderam sentir como é dar aula.”
A f “Eles (professores) me ajudaram quando eu perguntava e eles respondiam. Eu também ajudei eles para que eles soubessem como é uma sala de aula.”
Uma característica da formação discente, portanto, é a responsabilidade de “ser aluno”, observada nos excertos supracitados: sensação de pertencimento (ser ouvido, receber atenção e contribuir no processo de ensino); compreensão da relação de que os comportamentos afetam – e determinam - a prática docente; e o sentimento de orgulho de contribuir para a formação dos licenciandos. Podemos dizer que o currículo oculto que se desenvolveu a partir dessa dinâmica de ensino de ciências/formação docente não condiz “ao conformismo, a obediência, ao individualismo” (SILVA, 2005, p. 79), mas ao contrário, levou a autonomia, proatividade e coletivismo – verificando-se ainda melhora da autoestima, ao se sentirem importantes no processo.
As características não foram pontuais, mas observadas em quase todos os alunos das duas turmas trabalhadas, uma vez que envolveram o coletivo e se desenvolveram por dois anos; alguns mostraram esses aspectos de forma mais intensa que outros, contudo, o desenvolvimento formativo, considerando os conceitos científicos trabalhados, foi notável para todos, indicando que considerar a formação discente oferece uma possibilidade a ser explorada no processo de ensino-aprendizagem.
Considerações finais
A impossibilidade de desenvolver um aluno ativo e autônomo está atrelada ao currículo oculto atualmente verificado na estrutura escolar, que não permite rompimentos com o modelo de formação pautado nas habilidades desejadas pelo capitalismo, como submissão e obediência (SILVA, 2005). Ao explorarmos a autoconsciência dos alunos, com uma outra proposta pedagógica que toma o aluno como centro do processo de ensino-aprendizagem (TEIXEIRA, 1969) e prioriza o diálogo e o coletivo (FREIRE, 1996) desvelamos um processo de formação discente. Os comportamentos e senso de responsabilidade e empoderamento do papel de aluno (cooperação, proatividade, autoestima) foram resultados desse currículo, também oculto, que indicava aos alunos que todo percurso pedagógico foi pensado para eles.
Um ponto a ser discutido é sobre o currículo oculto que o professor reitera em sua prática, conscientemente ou não. Sugere-se que as formações docentes tenham como início e fim o aluno, para superar um currículo oculto que forma alunos submissos para a formação de alunos conscientes do seu papel dentro do processo pedagógico. Formação discente trata-se, então, do comportamento desenvolvido pelos alunos quando estes se empoderam do seu papel de aluno, sendo ativos ao participar de um processo pedagógico, compreendendo os elementos constituintes de tal processo, em especial o fato que as suas próprias posturas afetam a prática docente e a própria aprendizagem; mas talvez tenha sido mais que isso, o desenvolvimento de todos esses aspectos aconteceu como resultado de, pela primeira vez, eles terem se sentido importantes para o trabalho docente, que finalmente, tiveram vez e voz. E isso fez toda a diferença.
Referências
ALVES, W. F. A formação de professores e as teorias do saber docente: contextos, dúvidas e desafios. (Vol. 33, n,2, p. 263-280) São Paulo: Educação e Pesquisa, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GRUNDY, S. J.; KEMMIS, S. Educational action research in Australia: the state of the art. Geelong: Deakin University Press, 1982.
LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
SÃO PAULO. Currículo do estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas tecnologias/ Secretaria da Educação. 2ª Ed. São Paulo: SE, 2012.
SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias de currículo. 2ª Ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2005.
TEIXEIRA, A. Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola. São Paulo: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. 51. n. 114, p. 239-259, 1969.
Ligação alternative
http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/download/397/610 (pdf)
Artigo relacionado
[Artigo corrigido , vol1. 3, 200-205] http://www.laplageemrevista.ufscar.br/index.php/lpg/article/view/397/610