Recepção: 01 Fevereiro 2016
Aprovação: 01 Junho 2016
DOI: https://doi.org/10.26895/geosaberes.v7i13.343
Resumo: A geografia humana se desenvolveu ao fim do século XIX, quando as principais questões abordadas eram referentes às diferenciações culturais da Terra e das tradições populares. A geografia cultural passa por uma trajetória declinante, na qual o campo se encontrou em um momento de desprestígio. É, então, ao relevar a importância das dimensões imateriais da cultura que, no fim da década de 1970, a geografia cultural ressurge. Desse modo, buscou-se traçar e refletir sobre esse processo histórico dos estudos culturais geográficos. Essa reflexão permitiu apresentar novas temáticas que têm se destacado no âmbito dos estudos culturais na geografia.
Palavras-chave: Geografia cultural, Concepções clássicas, Cultural Turn, Perspectivas contemporâneas.
Abstract: The human geography has developed late nineteenth century, when the main issues were related to the Earth's cultural differences and of popular traditions. The cultural geography undergoes a downward trend, in which the field was found in a moment of prestige. It is then to reveal the importance of intangible dimensions of culture that, in the late 1970s, the cultural geography emerges. Thus, it sought to trace and reflect on this historical process of geographic cultural studies. This reflection allowed to present new issues that have been highlighted in the context of cultural studies in geography.
Keywords: Cultural Geography, Classic Conceptions, Cultural Turn, Contemporary Perspectives.
Resumen: La geografía humana ha desarrollado a finales del siglo XIX, cuando los principales temas tratados fueron relacionados con las diferencias culturales de la Tierra y a la diversidad de las tradiciones populares. La geografía cultural experimenta una tendencia de decadencia, en la que se encontró el campo en un momento de desprestigio. Así, es al revelar la importancia de las dimensiones intangibles de la cultura que, a finales de 1970 y principios de los 80, la geografía cultural surge nuevamente. Por lo tanto he buscado rastrear y reflexionar sobre este proceso histórico de los estudios culturales geográficos. Esta reflexión permitió presentar nuevas cuestiones que se han destacado en el contexto de los estudios culturales en la geografía.
Palabras clave: Geografía Cultural, Concepciones clásicas, Cultural Turn, Perspectivas contemporáneas.
INTRODUÇÃO
A geografia humana tem sua origem já no fim do século XIX, quando as principais questões abordadas eram referentes às diferenciações culturais do planeta e às distinções das tradições populares, nas quais o meio ambiente era o ponto central e mediador das relações analisadas. Os estudos eram dominantemente descritivos, sob a perspectiva epistemológica das ideias positivistas. A noção de cultura utilizada do início do século XIX até meados do século XX esteve intrinsecamente vinculada aos comportamentos humanos. É segundo esta visão, e sob o impacto da revolução das ideias evolucionistas darwinianas, que se revelou o interesse sobre as relações entre o homem e o meio no final do século XIX. Esse debate se tornou então mister na geografia.
Com o objetivo de traçar e compreender o processo histórico e de consolidação dos estudos culturais geográficos, buscar-se-á debater as abordagens e concepções acerca da geografia cultural. Para isto, o desenvolvimento do artigo foi divido em 4 partes principais. Em um primeiro instante foi apresentado a geografia cultural sob a luz da geografia tradicional alemã, que foi impulsionada, sobretudo, pela Antropogeographie de Fiedrich Ratzel. Em um segundo momento, foi contemplado a influência da Escola Francesa de geografia, tendo os trabalhos de Paul Vidal de La Blache como base fundamental deste período.
O terceiro ponto procurou elucidar as principais contribuições de Carl Sauer e a da Escola de Berkeley, onde a geografia cultural e a morfologia da paisagem alcançaram o seu auge e se consolidação. Por fim, apresentou-se um debate sobre as perspectivas contemporâneas da geografia cultural advindas da renovação geográfica e dos estudos culturais nas ciências humanas. Esta renovação, reconhecida como Cultural Turn, ocorre em um período de reflexões e questionamentos advindos dos anos de pós-guerra mundial. A partir disto, novas tendências e dinâmicas acompanharam a geografia cultural na contemporaneidade. Deste modo, a discussão exposta permitiu apresentar novas temáticas que têm se destacado no âmbito dos estudos culturais na geografia nas últimas décadas.
A GEOGRAFIA TRADICIONAL ALEMÃ
A disciplina geográfica, de acordo com Horacio Capel, se institucionalizou antecipadamente na Alemanha, o que a levou a receber forte influência do pensamento positivista e das ideias evolucionistas. Estas concepções se revelam notoriamente incorporadas nas obras de Friedrich Ratzel (1844-1904), que foi o primeiro geógrafo a introduzi-las no âmbito da geografia (CAPEL, 1981, p. 277-279). Em 1870, a partir de seu contato com o zoologista darwiniano Moritz Wagner, Ratzel assumiu real interesse pelo domínio e pelas transformações que as migrações produziam nas características dos seres humanos. A partir desta proximidade, Ratzel se interessou pelos estudos de zoologia que, por sua vez, o levaram a estabelecer, desde cedo, especial convívio com as teorias evolucionistas de Darwin, influências que podem ser evidenciadas em muitos trabalhos de Ratzel que focavam as interações entre o meio ambiente e os organismo vivos (CAPEL, 1981, p. 279; CLAVAL, 2012. p. 13-14).
Posteriormente, nos anos de 1874 e 1875, Ratzel se depara e se aproxima da disciplina geográfica, motivado pela sua viagem aos Estados Unidos da América, onde adquiriu inúmeras observações e levantamento de dados de determinados grupos humanos, elevando o seu interesse pelo fenômeno das migrações (CAPEL, 1981, p. 279-280). Dos estudos e apontamentos extraídos desta viagem, Ratzel desenvolveu sua tese de doutorado a respeito das migrações chinesas na Califórnia, o que o estimulou a publicar em 1880 a obra intitulada Culturgeographie der Vereinigten Staaten von Nord-Amerika unter besonderer Berücksichtigung der wirtschaftlichen Verhältnisse (A Geografia Cultural dos Estados Unidos da América do Norte com a ênfase especialmente voltada para as suas condições econômicas). É nesta obra que se verifica o primeiro aparecimento do termo geografia cultural (CLAVAL, 2012, p. 13-14).
No decorrer deste mesmo ano (1880), Ratzel nomeou esta área de pesquisa como Antropogeographie (antropogeografia). No seu entender a antropogeografia buscava, sobretudo, analisar as influências da natureza sobre os indivíduos e descrever as áreas que os homens ocupavam sobre a superfície terrestre. Os seus estudos se desdobraram sob dois eixos: a dependência que homem possui do meio e a mobilidade como fator essencial da vida dos indivíduos e das comunidades. Ratzel (1880, cit. in CLAVAL, 2012, p. 13-14) investigou aqueles que designou como Naturvölker – os povos naturais ou primitivos de raízes antigas e que viviam em contato direto com a natureza – e Kulturvölker – povos de cultura ou de sociedades modernas que possuem e se relacionam a uma diversidade cultural pluralista. Em relação a estes últimos, examinou como dependiam do meio natural, como se moviam, assim como o conjunto de utensílios, técnicas e conhecimentos que utilizavam para modelar o meio ambiente em que viviam. Horacio Capel (1981, p. 279) acredita que o grande mérito de Ratzel foi sua capacidade de superar a noção etnográfica de Völkerkunde (literalmente, Etnologia, de acordo com a obra homônima publicada por Ratzel entre 1885 e 1888), e conseguir alcançar a revelação da Antropogeographie. Contudo, em 1890, Friedrich Ratzel passou a dedicar particular atenção à sua obra Politischen Geographie (Geografia Política) (1897, cit. in CLAVAL, 2012, p. 14) devido ao fato de acreditar que este campo permitia uma melhor compreensão da distribuição e difusão dos povos modernos.
Outro geógrafo alemão que também concebeu relevante contributo para o surgimento e evolução da geografia cultural foi Eduard Hahn (1856-1928). Hahn se preocupou com as problemáticas acerca da origem da agricultura ao apreender as complexidades que a envolvia; seu interesse também se revelou pela história da domesticação de animais. Deste modo, Eduard Hahn desenvolveu importantes trabalhos que abrangiam os aspectos materiais da cultura ligados aos utensílios e técnicas utilizados nas agriculturas cultivadas por grupos distintos. Otto Schlüter (1872-1959) também merece o seu destaque dentre os geógrafos alemães que influenciaram a geografia cultural. Shlüter desenvolveu estudos sobre os estabelecimentos humanos e, em 1907, publicou um pequeno trabalho sobre as transformações das ações humanas no espaço onde vivem, fazendo da paisagem (Landshaft) o objeto da geografia humana. A paisagem foi assumida então enquanto categoria científica, composta por um sistema de fatores naturais e humanos. Neste contexto, a paisagem é modelada, simultaneamente, pela natureza e ações dos homens (SCHIER, 2003, p. 80; 83). Eduard Hahn, por sua vez, propôs a este novo campo de investigação o nome de Landschaftskunde, quer dizer a ciência da paisagem (CLAVAL, 2012).
Posteriormente, no fim da segunda década do século XX, Siegfried Passarge (1866-1958), também geógrafo alemão, desenvolveu alguns trabalhos centrados em estudos de geomorfologia. Todavia, em uma segunda fase, Passarge alargou o seu campo de estudo, tomando a paisagem como objeto primordial de suas investigações. Ao defini-la como tudo aquilo que a visão abarca, Passarge desenvolveu trabalhos nos quais realizou análises comparativas entre determinadas paisagens (CLAVAL, 2012, p. 16). Contudo, enquanto Ratzel e Hahn debruçaram os seus estudos sobre os utensílios e técnicas que os homens utilizavam para se apropriarem do meio, Schltüter e Passarge, tal como a maioria dos geógrafos alemães, se dedicavam às modificações que os homens traçavam nas paisagens. Esta problemática dominou os trabalhos da geografia cultural alemã dos anos de 1920 até 1960.
A geografia cultural, portanto, assumiu como interesse de análise os diferentes modos de vida e as paisagens, cujos trabalhos se desdobravam sobre as dimensões materiais da cultura – focavam as características do habitat, de vestuário, utensílios e técnicas (CLAVAL, 1999, 2012; CORRÊA, 1997, 1999; MITCHELL, 2000). Originariamente europeu, mais tarde este campo geográfico viria a se solidificar nos Estados Unidos da América. A geografia cultural surge, assim, em um bojo teórico e político no qual se sobrepunham questões e estudos relacionados às nações da Europa Ocidental, os quais as identificavam como civilizações culturalmente superiores. Esta apreensão, juntamente com a intensificação da colonização europeia e as explorações que estas projetaram nos países colonizados, conduziu a um forte interesse no século XIX pelos estudos que concebiam prestígio às comunidades tradicionais de origens primitivas. Esta visão estabeleceu uma conexão latente entre a geografia e a etnografia, e influenciou de forma evidente os trabalhos dos geógrafos no decorrer da segunda metade século XIX (CAPEL, 1981, p. 279). Tendo o imperialismo alcançado o seu auge nesta época, este passou então a ser um dos principais temas abordados (MITCHELL, 2000).
A GEOGRAFIA CULTURAL FRANCESA
As transformações na geografia humana na Alemanha exerceram real influência sobre os geógrafos franceses, tendo como principal precursor no país Paul Vidal de La Blache (1845-1918). Suas investigações se desenvolveram sob as teorias elaboradas por Ratzel a respeito das relações entre a sociedade e a natureza. No entanto, Vidal acreditava que a análise dos utensílios e artefatos só tinham sentido se fossem considerados elementos constitutivos dos gêneros de vida dos grupos humanos. A concepção dos gêneros de vida se revelou de notória importância no domínio da Geografia Humana francesa. Se nos primeiros anos do século XX as origens naturalistas dominavam a disciplina, no decorrer das décadas seguintes o aprofundamento das pesquisas sobre os gêneros de vida conduziram a constatações sobre as dimensões sociais e ideológicas que os compunham (CLAVAL, 2012, p. 19).
Jean Brunhes (1869-1930) foi um dos primeiros alunos e seguidores de La Blache. Porém, ao apoiar seus trabalhos sobre os estudos das paisagens, aproximou-se notoriamente da geografia alemã. Desenvolveu suas pesquisas acerca dos tipos de habitat, de materiais e técnicas de construção. Em 1909, Brunhes publicou uma síntese intitulada Géographie Humaine, na qual os fatos culturais foram pouco privilegiados. É somente em 1920, com sua obra Géographie Humaine de la France, que Brunhes atribuiu, de fato, destaque à cultura, ao relevar a importância das realidades étnicas e as formas de habitat existentes no planeta (CLAVAL, 2012, p. 20-21).
Pierre Deffontaines (1894-1978) também exerceu notório domínio sobre a geografia francesa. Desenhista de paisagens, fez alguns levantamentos para Brunhes quando este foi responsável pela organização dos “Archives de la Planète” – coleção de imagens fotográficas que buscou retratar os lugares do mundo e identificar as suas transformações ao longo dos tempos. Deffontaines defendeu o seu doutorado em 1932, intitulado Les Hommes et leurs travaux dans les pays de la Moyenne Garonne ( Os Homens e seus trabalhos nas regiões do médio Garonne), no qual o cerne da problemática eram os gêneros de vida. Neste mesmo ano que Deffontaines foi responsabilizado para coordenar uma nova coleção em geografia humana pelo editor Gallimard. Os temas abrangiam desde aspectos gerais da disciplina – cidades, fronteiras, circulação –, até temáticas sobre os modos de vida e os condicionamentos do meio ambiente (CLAVAL, 2012, p. 21). Em 1948, Deffontaines passou a dedicar os seus estudos às relações existentes entre geografia e religião, publicados na obra Géographie et Religions, o que fez do autor um dos principais precursores do tema dentro do campo da geografia cultural.
CARL O. SAUER E A ESCOLA DE BERKELEY
Imbuídos de cunho critico às ideias positivistas, é possível observar que os geógrafos franceses desenvolveram estudos que tinham como assunto dominante as comunidades tradicionais e os seus modos de vida, motivados, sobretudo, pelas análises de Vidal de La Blache. Já os geógrafos alemães se ocupavam com pesquisas acerca dos utensílios e técnicas utilizadas pelo homem como meio de apropriação e transformações das paisagens. É importante ressaltar ainda que as produções científicas dos alemães sobre as paisagens culturais tiveram relevante difusão nos Estados Unidos, disseminadas pelas investigações engendradas pelo geógrafo Carl Ortwin Sauer (1889-1975) e pelos seus seguidores na “Berkeley School” (Escola de Berkeley).
Isto posto, a partir do contato de Carl Sauer com os geógrafos alemães e com os estudos sobre as paisagens desdobrados por estes, são notáveis essas influências refletidas nas teorias e metodologias desenvolvidas pelo investigador norte americano na década de 1920. Essas produções elaboradas por Sauer vieram contradizer duas abordagens predominantes nos projetos de investigação desempenhados pelos geógrafos europeus: o determinismo ambiental e os estudos que procuravam explicar as raízes culturais da civilização europeia (MITCHELL, 2000).
Foi neste panorama que nasceu a Escola de Berkeley em 1925, tendo como o seu principal protagonista e precursor, como referido, Carl O. Sauer. Através deste a geografia norte-americana começou a estabelecer conexões com a Antropologia e a História (CORRÊA, 1997). Para Sauer, a Geografia deveria se constituir em três estudos: reconstrução da paisagem física antes do homem; reconstrução da paisagem durante a ocupação humana; e as mudanças maiores que se verificam na paisagem cultural, através das marcas que nelas são impressas e as representações que através delas se manifestam. Sauer abandonou a geografia dominada pelo determinismo ambiental, e seguiu aquela que buscava analisar as ações e transformações que se repercutiam no espaço. Desta forma, a geografia cultural definida por Sauer estuda as áreas culturais, analisando-as desde as suas origens e processos, até às características que as diferenciam (CORRÊA, 1997).
Os fundamentos metodológicos desenvolvidos por Sauer entre as décadas de 1920 e 1940 contribuíram para a realização de estudos que exaltavam as áreas culturais, a história da cultura no espaço e as paisagens culturais. Posteriormente, no decorrer das décadas de 1950 e 1960, os seus estudos influenciaram pesquisas que privilegiaram temas a respeito das relações entre ecologia e cultura (CORRÊA, 1999; MITCHELL, 2000). Deste modo, os fundamentos disseminados por Carl Sauer e pela Escola de Berkely se solidificam e passam a servir como guião, principalmente no período entre guerras, prosseguindo até os anos de 1960.
O PÓS-GUERRA: CRISE E RENOVAÇÃO DA GEOGRAFIA CULTURAL
Apesar das diferenças entre as concepções tradicionais alemã, francesa e norte-americana da geografia cultural, os temas que se desenvolveram entre 1890 e a década de 1940 eram semelhantes e compartilhados entre os geógrafos americanos e europeus (CORRÊA, 1999). Os trabalhos possuíam aplicações conectadas às relações entre sociedade e natureza, que destacavam as análises das técnicas, as identificações de instrumentos de trabalho, os estudos das paisagens culturais e dos gêneros de vida. Como é possível observar, há uma ênfase vinculada às dimensões materiais da cultura. Somente o último tema mencionado carrega um olhar direcionado para os aspectos imateriais.
Na década de 1940, a geografia cultural foi submetida a uma considerável perda de prestígio, que se prolongou até 1970. As principais razões ligadas a essa decadência são, de fato, as abordagens imbuídas predominantemente por uma dimensão material da noção de cultura. Logo, isto tornava os estudos pouco relevantes e triviais (DUNCAN; LEY, 1993; CLAVAL, 1999, 2012; CORRÊA, 1997, 1999; MITCHELL, 2000). Ademais, o progresso técnico se intensificou, o que acabou por gerar a redução da heterogeneidade de utensílios e equipamentos, ou seja, o que levou à homogeneização das técnicas. Outra razão, e não menos importante, se deveu à amenização do interesse pelos estudos das comunidades tradicionais e dos modos de vida, em consequência da diversificação das atividades nos centros urbanos e pelos grupos sociais.
Ora, se entre as décadas de 1940 e 1970 a geografia cultural estava em declínio, colocada à margem da disciplina, no fim da década de 1970 e início dos anos 1980 ela reaparece com todo vigor. Este ressurgimento se desdobrou num cenário pós-positivista, imbuído de questionamentos que requisitavam uma renovação temática e metodológica da abordagem cultural na geografia. Com o constatar desta necessidade de inovação, a geografia cultural renasce como um campo relevante da disciplina. Consequentemente, esta retomada traz à tona debates a respeito de suas origens, das características dos temas e metodologias abordados, o que acaba por desencadear alguns questionamentos e discussões. Os debates se articulam, assim, no âmbito de assuntos relacionados com as diversidades dos grupos sociais e, principalmente, com reflexões que indagam sobre os impasses epistemológicos dos princípios positivistas. A partir dos anos 1990, a geografia cultural e os seus respectivos investigadores presenciam uma considerável proliferação de novos estudos e temas, que se repercutem no campo das ciências sociais como um todo. Este processo ficou reconhecido como o “Cultural Turn”, a renovação cultural.
A regeneração da geografia cultural conduziu a novas perspectivas no cerne do tratamento das abordagens temáticas e das metodologias adotadas. As dimensões imateriais da cultura assumiram caráter relevante perante as reiterações sucedidas. Os temas se ampliaram e passaram a contemplar estudos sobre os modos de vida, a produção e manutenção dos significados sociais, as manifestações religiosas no espaço, as percepções e os discursos de povos e indivíduos, e as representações que os codificam (CLAVAL, 1997; MITCHELL, 2000). Isto se deu pelo fato dos geógrafos sociais radicais e humanistas apreenderem que, desenvolver estudos que abrangiam somente os aspectos materiais da cultura, acabava por tornar os trabalhos triviais, particularistas e socialmente irrelevantes.
Contudo, conforme explica Corrêa (1999, p. 51-52), a renovação geográfica cultural é acompanhada por influências das concepções que a antecediam e, simultaneamente, marcada pelo materialismo histórico e dialético e pelas filosofias de significados características da Geografia Humanista. Esta última é crucial para o desenvolvimento do presente trabalho, pois dá real valor às experiências dos indivíduos, e às percepções coletivas e individuais extraídas dos lugares.
Ainda tomando os pareceres de Corrêa (1999, p. 52) como alicerce, o conceito de cultura também se retifica. O autor expõe as definições de cultura apresentadas pelo Editorial da Revista Géographie et Cultures coordenada por Paul Claval, em seu primeiro volume publicado em 1992, na década em que a disseminação dos novos temas atingiu o seu auge. Deste modo, a cultura passa a ser definida como o conjunto das técnicas, atitudes, ideias e valores, considerando os seus elementos materiais, sociais, intelectuais e simbólicos. Neste sentido, a cultura é transmitida, inventada e vivida individualmente, ao ponto que é assimilada de forma distinta pelos membros de uma sociedade.
Retomando, as argumentações e críticas procedidas pelos novos geógrafos culturais contestam a apreensão que qualifica cultura como coisa. Esta noção, adotada até a década de 1970, constitui a cultura como uma entidade supraorgânica que se revela acima da sociedade. Essa foi a essência das discussões e controvérsias que compreenderam o processo de renovação deste campo disciplinar.
Neste sentido, Don Mitchell (2008) defende a ideia exposta por Marvin Mikesell (1978, p. 13, in MITCHELL, 2008, p. 81) de que os novos geógrafos necessitam pensar em qual concepção de cultura devem fundamentar suas investigações. O conceito adotado então pelos pesquisadores até o ano de 1970 – principalmente pelos da Escola de Berkeley –, concebia-a como algo capaz de determinar e moldar os indivíduos. Assim, Mitchell (2008) sugere o abandono deste caráter de “coisa” determinante para que pudessem assumi-la como um nível, uma ideia. Para o autor, esta reconceitualização permite explicar as diferenças materiais e de ordem social. No entanto, Mitchell (2008) observa que geógrafos como Peter Jackson, James Duncan e Denis Cosgrove, continuam a admitir a noção de cultura como substância causal, ou seja, como categoria ontológica.
Em resposta aos julgamentos de Mitchell, os geógrafos citados acima deram os seus pareceres. Peter Jackson (2008) reagiu às críticas do colega, e concordou com Mitchell ao ponto que os novos geógrafos culturais continuavam a reificar o conceito de cultura. Portanto, Jackson adverte que os investigadores da área deveriam compreendê-la como ideologia e assim explicar o contexto em que os seus estudos foram desenvolvidos. Já os autores James Duncan e Nancy Duncan (2008), rebateram as críticas de Mitchell em um ensaio intitulado “Reconceptualizing the idea of culture in geography: a reply to Don Mitchell”, no qual afirmaram que o próprio autor (Mitchell) instituiu status ontológico ao termo cultura. James Duncan e Nancy Duncan (2008) alegaram, no texto citado, que isto ocorre quando Mitchell defende que a ideia de cultura foi desenvolvida por atores sociais com o intuito de controlar e definir os outros. Denis Cosgrove (2008), por sua vez, assegura que Mitchell ignorou os trabalhos empíricos e monográficos dos geógrafos a quem dirige suas críticas. Cosgrove (2008) concordou com Mitchell ao reconhecer que assumir cultura como uma ideia leva a diferenciações do mundo; porém, não está convicto de que estas distinções se resumem apenas aos eixos conferidos às relações de poder.
Este aspecto paradigmático é uma das principais críticas que se dirigiram à Escola de Berkeley, que confere ao conceito de cultura um caráter reificador. No entanto, mesmo que a renovação geográfica cultural tenha se manifestado em uma corrente de críticas às abordagens tradicionais, as concepções contemporâneas não deixam de conter, segundo Mitchell (2000), as suas raízes nas pesquisas desenvolvidas por Carl Sauer na Escola de Berkeley.
Esta influência significativa é justificada, de fato, por Sauer e seus alunos se evidenciarem suscetíveis às questões de especificidades ecológicas a partir dos anos de 1930. Por considerar a cultura como o conjunto de utensílios e artefatos que as sociedades e os indivíduos utilizam para transformar o meio ambiente, Sauer se preocupou com a forma que os homens efetuam essas modificações. Sauer acreditava que as transformações do meio natural poderiam ser conduzidas imprudentemente, o que acabaria por ameaçar o equilíbrio da natureza e provocar catástrofes ecológicas. Logo, é segundo este ponto de vista, estabelecido por Sauer, que os estudos desenvolvidos na Escola de Berkeley se apresentam influentes nas produções científicas atuais da Geografia Cultural (CLAVAL, 2012).
Contudo, os novos estudos que sucederam, conforme elucidam João Sarmento, Ana Azevedo e José Pimenta (2006, p. 8), se fundam em dimensões que reveem “a ideia de cultura como processo significante”, sistema de construções sociais e simbólicas. Essas construções se dão por meio de relações estabelecidas entre território e indivíduos. Por sua vez, essas relações produzidas se refletem nas experiências e percepções que as pessoas extraem de um determinado local, as quais configuram as identidades e os sentimentos de pertença coletivos e pessoais, ou seja, que concebem o sentido de lugar. Linearmente, as análises e os conceitos envolvem um caráter dialético que se baseiam no espaço como produção, do lugar como vivência e prática, e da paisagem como representação (SARMENTO, AZEVEDO, PIMENTA, 2006).
As abordagens dos estudos abrangidos pela Geografia Cultural seguiram, assim, novos rumos, ao implementar antigos temas ao mesmo tempo em que novos elementos são associados. Os aspectos materiais são revestidos de novas perspectivas – práticas de consumo e produção culinária; culturas populares; e a paisagem cultural e suas representações –, e as novas abordagens de caráter imaterial são efetivamente analisadas e desenvolvidas. Logo, investigações dedicadas às religiões, às percepções, aos sentimentos de pertença, às identidades culturais, às representações e às interpretações de textos, passam a ser trabalhadas e a compor os projetos de pesquisas produzidos a partir dos anos de 1980.
CONCLUSÃO
Os estudos culturais na geografia têm sua origem no final do século XIX na Alemanha e na França. Nesta época os trabalhos que se desenvolviam seguiam a ordem positivista da sociedade e das ciências. Na década de 1920, a geografia cultural adquire atenção e destaque com as investigações de Carl Sauer e da Escola de Berkeley na Califórnia (Estados Unidos). Os principais temas eram relacionados com as influências humanas sobre as morfologias das paisagens. Contudo, as principais questões procuravam analisar os aspectos materiais da cultura, como as ações e trabalhos de comunidades e grupos específicos.
Na década de 1940, perante os conflitos da Segunda Grande Guerra, e com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, grandes mudanças são testemunhadas. Novos questionamentos e visões são atribuídas neste novo cenário, o que gerou um declínio nas abordagens da geografia cultural vigente até então. Mediante a tais reflexões emergentes e urgentes, novos saberes foram incorporados nos trabalhos culturais da disciplina geográfica, dando lugar aos aspectos imateriais da cultura e às questões de identidade e percepção ambiental. Deste modo, na década de 1980 e 1990, a geografia cultural alcança o seu auge nas temáticas e paradigmas geográficos.
Portanto, em um viés de renovações das ciências humanas, a geografia cultural abraçou novos rumos e possibilidades. O pós-guerra trouxe uma nova visão de mundo e o avanço tecnológico irrompeu fronteiras inimagináveis. Novas compreensões foram exigidas, nas quais as vivências e culturas populares ganharam a atenção dos pesquisadores. Logo, aspectos relacionados com às identidades culturais, percepções, representações, às memórias e heranças dos indivíduos e grupos passaram a compor o novo corpo de preocupações dos novos estudos. Assim, temas como literatura, cinema, música, gênero e religião encontram-se no cerne dos debates e trabalhos científicos deste campo renovado.
REFERÊNCIAS
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