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Culturas digitais: diálogos e reflexões para a formação docente
Digital Cultures: dialogues and reflections for teacher education
Culturas digitales: diálogos y reflexiones para la formación del professorado
Revista Tempos e Espaços em Educação, vol. 15, núm. 34, e17744, 2022
Universidade Federal de Sergipe

Publicação Contínua

Revista Tempos e Espaços em Educação 2022

Recepción: 13 Marzo 2022

Aprobación: 28 Mayo 2022

Publicación: 02 Julio 2022

DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17744

Resumo: Este estudo tem como objetivo refletir sobre as culturas digitais e suas implicações para se pensar a formação de professores em uma contemporaneidade marcada pelo digital em rede. A partir deste objetivo, tem-se uma pesquisa de cunho bibliográfico que, em sua tessitura, traz compreensões acerca dos processos realizados pelos atores sociais os quais, por meio de suas práticas cotidianas com as tecnologias digitais, constituem múltiplas culturas. Como resultado, este trabalho nos ajuda a pensar na cultura contemporânea em uma perspectiva plural, tendo em vista o entendimento de que os atores sociais atribuem aos artefatos sentidos próprios em meio aos usos e apropriações, marcando uma imersão de criação e autoria que, no contexto educacional, tem nos provocado a instituir formações docentes que acolham fazeressaberes outros com o digital.

Palavras-chave: Culturas Digitais, Educação, Formação Docente, Tecnologias Digitais.

Abstract: This study aims to reflect on digital cultures and their implications for thinking about teacher education in a contemporary world marked by the digital network. From this objective, we have a bibliographical research that, in its weaving, brings understandings about the processes carried out by social actors who, through their daily practices with digital technologies, constitute multiple cultures. As a result, this work helps us to think about contemporary culture in a plural perspective, in view of the understanding that social actors attribute to the artifacts their own meanings in the means of use and appropriation, marking an immersion of creation and authorship that, in the educational context, has provoked us to institute teacher training that welcomes other know-how with the digital.

Keywords: Digital Cultures, Education, Teacher Education, Digital Technologes.

Resumen: Este estúdio pretende reflexionar sobre las culturas digitales y sus implicaciones para pensar la formación del profesorado en un mundo contemporáneo marcado por la red digital. A partir de este objetivo, contamos con una investigación bibliográfica que, en su tesitura, aporta comprensiones sobre los procesos llevados a cabo por los actores sociales que, a través de sus prácticas cotidianas con las tecnologías digitales, constituyen múltiples culturas. Como resultado, este trabajo nos ayuda a pensar la cultura contemporánea en una perspectiva plural, ante la comprensión de que los actores sociales atribuyen a los artefactos significados propios en medio de usos y apropiaciones, marcando una inmersión de creación y autoría que, en el contexto educativo, ha provocado que instituyamos una formación docente que acoja otros saberes-haceres con lo digital.

Palabras clave: Culturas digitales, La educación, Formación del profesorado, Tecnologías Digitales.

INTRODUÇÃO

A partir da década de 70, as tecnologias digitais (TD), marcadas pela convergência das tecnologias da informática e das telecomunicações, influenciam nos processos de agenciamentos socioculturais dos sujeitos, de modo a ressignificar as inúmeras práticas cotidianas, bem como ampliar suas inter-relações. A constante utilização das tecnologias móveis conectadas à rede, por exemplo, tais como tablets e smartphones, propicia aos seus usuários convergências de lugares e espaços, a partir da ubiquidade, um fenômeno que possibilita as pessoas a estarem em dois lugares ao mesmo tempo, ambos atuantes em um segundo plano, favorecendo um terceiro lugar, referente ao espaço comunicacional (Santaella, 2010). Assim, os sujeitos se encontram em situação de presença ausente, de modo que estejam presentes e, ao mesmo tempo, não estejam.

Nesse contexto, através dos processos de digitalização e ubiquidade decorrentes do crescente uso das tecnologias móveis e do surgimento da web 2.0, denominada como nova forma de conectar-se à rede (Lucena & Oliveira, 2014), culturas digitais são potencializadas, uma vez que as possibilidades de produção, acesso e compartilhamento de informações são ampliadas e as práticas com o digital ressignificadas. Assim sendo, através das TD, crianças, jovens e adultos partilham sonhos, desejos, criam e dão sentidos às suas práticas cotidianas, produzem e socializam suas próprias culturas. Considerar que a cultura se ressignifica continuamente, cultiva e é cultivada por multiplicidades e heterogeneidades, é o primeiro passo para compreender o digital como disparador de culturas no plural.

Nessa direção, importantes autores defendem que concepções de cultura são criadas, atualizadas e ressignificadas em detrimento das mudanças e significações das práticas cotidianas dos atores sociais. No tocante aos avanços das TD em contexto educacional e às relações estabelecidas por diferentes gerações nas sociedades contemporâneas, essas transformações se tornam cada vez mais aceleradas. A partir desse posicionamento, esse estudo trata da concepção de culturas digitais, gestada pelo uso das tecnologias on-line e off-line, em contexto amplo e com sentidos plurais. Essa realidade nos levou a refletir sobre as culturas digitais e suas implicações para se pensar a formação de professores em uma contemporaneidade marcada pelo digital em rede.

Trata-se de um estudo bibliográfico, cujo processo se deu a partir do levantamento teórico acerca das culturas digitais. Para a produção deste estudo, recorremos a autores que nos auxiliaram na compreensão da cultura contemporânea, a qual é marcada pela pluralidade de artefatos, pela dinamicidade de seus usos e pelas formas de apropriação. Em um mergulho implicado com as concepções encontradas, foi possível produzir reflexões iniciais, mas fecundas, no tocante às culturas digitais, estendendo-a ao contexto educacional para promover diálogos com a realidade e sinalizar possíveis caminhos para a formação docente com as tecnologias digitais. Em sua tessitura, o presente artigo traz compreensões acerca dos processos realizados pelos atores sociais que, por meio de suas práticas com as tecnologias, constituem culturas no plural, bem como suas contribuições nos processos formativos de professores na contemporaneidade.

Diante das diversas transformações que ocorreram na sociedade ao longo do tempo, é quase impossível imaginar a nossa vida sem a dinamicidade e mobilidade que as tecnologias digitais nos proporcionam atualmente. Do mesmo modo, é importante salientar que os processos e usos desenvolvidos por essas tecnologias ocorreram em consonância com as próprias transformações sociais e culturais, o que nos levou a constituir, sobretudo a partir da internet e, portanto, do digital em rede, múltiplas culturas. Sendo assim, na próxima seção abordaremos sobre as invenções, transformações e ressignificações no uso das TD, além de sua (in)tensa presença nas relações e práticas cotidianas.

DO TECNOLÓGICO À SOCIABILIDADE

Desde sua fase primitiva, o ser humano desenvolve formas de superar os desafios e obstáculos que se materializam em seu caminho. Dentre essas formas, encontram-se as diversas tecnologias, comumente classificadas como ferramentas que facilitam a (sobre)vivência em sociedade. Entretanto, devido ao processamento das informações e as formas de se comunicar se tornarem mais intensas e se ressignificarem, rompe-se com a ideia instrumental e passa-se a entendê-las como um produto social e cultural (Lévy, 2010).

Isto posto, é importante trazer para essa discussão tecnologias que são consideradas, até os dias atuais, enquanto importantes dispositivos para o compartilhamento de informações como, por exemplo, o rádio, a televisão, o computador, a internet e, posteriormente, o smartphone. Entretanto, embora todos esses dispositivos se configurem como grandes meios de acesso ao que acontece ao redor do mundo, é possível identificar dois movimentos inerentes aos seus praticantes. No primeiro, há um ouvinte/leitor considerado receptor de informação; no segundo, esse mesmo ouvinte/leitor, com o avanço do digital, configura-se enquanto emissor e receptor ao mesmo tempo, em um processo mais ativo e fluido, uma vez que o usuário conectado à internet e, portanto, ao ciberespaço, passa a ser além de receptor também um produtor de informação. No entanto, para chegarmos até o estágio atual, passamos por um processo adaptativo desde a chegada da conexão de rede para a população na década de 1990.

Nesse contexto, Santos (2019) argumenta que, a partir do surgimento da web, uma rede aberta a conexões fez com que o computador se diferenciasse da televisão analógica, considerada pela autora como uma máquina rígida, restritiva e centralizadora, à medida que ao falar para “as massas” tanto a televisão quanto o rádio não permitiam uma interatividade com quem recebia a informação. Castells (1999) destaca que foi a partir da invenção do microprocessador, em 1971, e do aperfeiçoamento dos recursos técnicos, que se promoveu o aumento da capacidade de armazenamento e processamento de informações. Em vista disso, a microeletrônica caminhou para, com a conexão mundial em rede, mudar decisivamente a era dos computadores nos anos 1990 e, consequentemente, as relações tanto com esses artefatos quanto entre os atores sociais.

Para entendermos melhor como as mudanças ocorreram na denominada sociedade em rede (Castells, 1999), é preciso entender o conceito da digitalização da informação que, na visão de Lévy (2010), consiste em traduzir em números que podem ser expressos em linguagem binária (0 e 1). A partir daí, tudo pode ser codificado digitalmente, sejam textos escritos, sejam sons e/ou imagens, um processo técnico que acelerou o compartilhamento da informação, gerando na rede de computadores uma maior circulação dos hipertextos, definidos pelo autor como informações multimodais, os quais pressupõem diversas formas de comunicação como sons, textos e imagens. (Lévy, 2010).

Foi a partir da digitalização e da virtualização da informação que se configurou a realidade em potência (Lévy, 2010) por meio das tecnologias digitais e seus diversos modos de uso. Além disso, com a conexão à internet, encontramo-nos diante de uma “nova morfologia social” (Castells, 1999), pois ao transformar o armazenamento e processamento de dados, que antes era centralizado em um sistema interativo e compartilhado de computadores em redes, temos como pano de fundo não só o espaço físico, mas também o ciberespaço, que “[...] é a internet habitada por seres humanos, que produzem, autorizam-se e constituem comunidades e redes sociais por e com as mediações das tecnologias digitais em rede.” (Santos, 2019, p. 30).

Nesse sentido, concordamos que o ciberespaço, ao se caracterizar como um conjunto virtual de espaços mediados por interfaces digitais entre o mundo físico e suas manifestações individuais e coletivas (Santos, 2019), tem o potencial para a disseminação das produções que acontecem na nossa sociedade, agora de forma mais rápida e em rede. Esse compartilhar em rede se insere dentro do contexto da cibercultura que, na nossa concepção se difere do conceito de culturas digitais, uma vez que, segundo Lévy (2010) as práticas, as atitudes, os materiais e as técnicas inerentes à cibercultura se desenvolvem conjuntamente com o ciberespaço, o que pressupõe o compartilhamento em rede. Em nossa concepção, tratamos as culturas digitais enquanto usos e apropriações do digital, tanto on-line quanto off-line, uma vez que há práticas adaptativas a uma realidade cujo ciberespaço, em algumas situações, não pode ser acessado.

Seguindo essa linha de pensamento, Santos (2019) destaca que, no ciberespaço, em um primeiro momento denominado de web 1.0, os sites eram como grandes repositórios de conteúdos criados por especialistas em informática para que os internautas apenas "navegassem", ou seja, as práticas realizadas pela sociedade em geral se limitavam a um acesso “somente leitura”, já que eram necessários conhecimentos mais avançados em linguagem de programação para poder produzir e compartilhar conteúdos na web. A partir do surgimento dos blogs e das redes sociais e, portanto, do desenvolvimento da web 2.0, o compartilhamento de práticas, informações e conteúdos por cada sujeito imerso no ciberespaço, bem como a interatividade, potencializou a autoria em rede, o que nos faz compreender que “[...] a web 2.0 é resultado da interseção de mudanças tecnológicas, econômicas e sociais.”(Santos, 2019, p. 32).

Pensando nisso, entendemos que o desenvolvimento e as transformações ocorridas na/com as tecnologias digitais estão associados à inter-relação que existe entre os contextos social, econômico, político e cultural (Santaella, 2003), sendo que essas inter-relações “conjuntamente, expressa que o que realmente motiva as pessoas a se envolverem em redes de contato na mídia social é a liberdade de expressão das autorias, de interlocução e de colaboração, quando os indivíduos estão entregues a si mesmos [...]” (Santos, 2019, p. 32). Essa discussão se embasa também na afirmação de Castells (1999, p. 354), quando ao discutir sobre cultura, argumenta que “A cultura é mediada e determinada pela comunicação, às próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo”.

Em um cenário cada vez mais tecnológico, é fato que os próprios usuários da rede promovem mudanças e transformações à medida que usam e se apropriam das interfaces e dispositivos digitais, produzindo e experienciando novas formas de uso e de forma colaborativa. Pensando nisso, no intuito de descrever os avanços culturais da convivência à convergência das mídias no âmbito dos meios de comunicação e informação, Santaella (2003) define seis formações culturais que, na visão da autora, foram se integrando uma a outra, provocando reajustamentos e refuncionalizações: a cultura oral, a cultura escrita, a cultura impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital.

Diante do processo de transformação sociotécnica das tecnologias digitais, prosseguiremos com a discussão, na próxima seção, sobre as culturas digitais, demarcadas por nós em uma perspectiva plural, bem como a relevância de se refletir sobre a formação docente com as tecnologias digitais enquanto dispositivo pedagógico. Por compreendermos que existem inúmeras definições de cultura e, por cada indivíduo manifestar de diferentes formas seus usos, apropriações, desejos e autorias, entendemos que é possível criar e produzir formas diferentes de se manifestar culturalmente no mundo digital. Portanto, o termo culturas digitais, que será aprofundado mais adiante, é visto por nós como algo mais amplo, que abarca não só as formas de uso no ciberespaço, mas também fora dele, levando em consideração que envolve as maneiras de fazer (Certeau, 2012) de cada praticante cultural com as tecnologias digitais, haja vista, na concepção de Lucena (2016), a ampliação e redimensionamento dos processos já vivenciados pelos seres humanos, antes mesmo do desenvolvimento de tais tecnologias.

CULTURAS DIGITAIS: UM OLHAR PARA A FORMAÇÃO DOCENTE

As tecnologias digitais provocaram alterações das mais simples às mais complexas em nossas relações e práticas cotidianas, sejam no âmbito pessoal, social, profissional ou acadêmico, dentre outros. Com elas, forjamos práticas culturais que transversalizam os vários contextos vividos, cuja amplitude permite construirmos dinâmicas sociais que vão sendo tecidas no fluxo das relações, na criação de redes, na emergência das situações e na (re)configuração dos comportamentos.

Com o digital, portanto, é possível adotar significativamente a multiplicidade cultural tecida pelos atores sociais, bem como a sua condição transformadora. Assim, a cultura, por se tratar de um fenômeno social em que há a possibilidade de alterações acontecimentais, modifica-se continuamente, sendo que “[...] De um lado, ela é aquilo que ‘permanece’; do outro, aquilo que se inventa. Há, por um lado, as lentidões, as latências, os atrasos que se acumulam [...]. Por outro, as irrupções, os desvios [...]” (Certeau, 2010, p. 239). Ou seja, não se trata de um fenômeno estável e imutável, suas “oscilações”, ou mesmo mistura ou hibridismo, como apontado por Canclini (2011), acontecem porque o homem ordinário confere sentido às suas habilidades e práticas cotidianas (Certeau, 2010), as quais dialogam com o tempo vivido. Esses sentidos vão tomando forma e compreensões outras, conforme se instituem as novas dinâmicas socioculturais, como vêm ocorrendo com os artefatos digitais. Assim, esse homem, ou melhor, o praticante cultural produz suas culturas, caracterizando-se enquanto aquele que, ao tempo em que convive com permanências e mudanças, constrói um fenômeno complexo e multifacetado.

Neste mundo digital em que nos encontramos, essas alterações ocorrem de forma cada vez mais (in)tensa e acelerada, tendo em vista as tecnologias digitais criadas, recriadas e renovadas continuamente, sobretudo com acesso à rede mundial de computadores. Na interação com o meio e com outros praticantes, os atores sociais constroem com/no uso das tecnologias modos de vida distintos, uma vez que cada praticante vai atribuindo operações e sentidos outros realizados em um mundo que permite ressignificar-se e reinventar-se a todo tempo (Certeau, 2010). Mediante esse entendimento, cada artefato construído pode ser ressignificado, forjando práticas distintas para os quais foram inventados, metamorfoseando-se. Até porque, na invenção cotidiana, os atores sociais instituem redes de criações anônimas e práticas significantes (Ferraço; Alves & Soares, 2016).

Pensar nessas redes nos ajuda a entender que os praticantes não apenas consomem os artefatos, eles também os tecem individual ou em conjunto. Pretto (2017) nos acrescenta dizendo que a saída da condição de meros consumidores para a de produtores de informação e de conhecimento, que vivenciamos no mundo digital, sinaliza a formação de outras culturas, já que a produção ocorre por meio de pluralidades de artefatos, linguagens, mídias, inter-relações, oportunizando hábitos distintos com as TD. Nesse processo, há apropriação, criação, recriação individual e/ou coletiva. Contudo, na educação, esse movimento de (re)criar com o outro, a partir das tecnologias atuais, ainda se apresenta com significativas lacunas. Para Pretto (2017, p. 47),

O fato é que continuamos a observar a escola pensando as tecnologias digitais como recursos auxiliares ou animadores da educação, ao contrário da maneira como as compreendemos. Para nós, essas tecnologias precisam se constituir em obstáculos construtivos e desafiadores para a criação. Insistimos que as políticas públicas que buscam introduzir as TIC nas escolas não podem continuar com essa perspectiva e, muito menos, referir-se a elas a modo de tecnologias educativas.

A educação precisa entender que essas tecnologias não são fixas e homogêneas, pois estão abertas à dinâmica da vida social, em que pensamentos e ações convivem com as heterogeneidades próprias dos espaçotempos vividos. Os artefatos que foram (são e serão) criados pela própria humanidade passam a fazer parte desses espaçostempos, invadindo nossas práticas cotidianas, inter-relações, comportamentos, ou seja, nossas maneiras de ser e de agir no mundo.

Como dito anteriormente, a partir da década de 70, os atores sociais passaram a se apropriar cada vez mais do digital, provocando rupturas na concepção das tecnologias enquanto ferramentas (Manevy, 2009). Ao adentrarem na dinâmica da vida social, tais artefatos passam a assumir sua condição cultural, sobretudo pelo modo como acontecem as relações, pelo sentido plural que os permeiam e pelas transformações impulsionadas, tanto das pessoas quanto dos próprios artefatos. Do mesmo modo, Dowbor (2009, p. 70-71) sinaliza que é com a chegada do digital que se expande não só a ideia de rede, mas também se potencializa a pluralidade cultural. Assim, tem-se

[...] uma fusão de culturas, uma diversidade cultural que nós não tínhamos possibilidade de conhecer antes. As culturas tinham mais dificuldade de se movimentar, mais dificuldade de se recombinar. A rede facilita isso. E a ideia de que uma cultura ela está sempre em movimento, porque ela sempre está em movimento, ela sempre busca a criação, ela tem uma dinâmica interessante e essa dinâmica se junta, no caso da rede, com uma diversidade impressionante.

A ideia plural do termo “culturas” também é assumida e defendida por Certeau (2010), colocando a cultura em sua multiplicidade e diferença, sempre em ato que se renova, ressignifica e pluraliza. Assim, para este teórico, na tessitura cultural, há o encontro de múltiplas referências e, portanto, a constituição de significados heterogêneos que cada um vai atribuindo, modificando, reinventando, não sendo, portanto, imutável e hegemônico. A cada época, culturas são transformadas pelo próprio movimento cotidiano, como extensão da vida social, cujos referenciais são múltiplos e, portanto, não pode ser acolhida como homogênea. Para ele,

[...] a cultura no singular tornou-se uma mistificação política. Mais do que isso, ela é mortífera. Ameaça a própria criatividade. Sem dúvida, é atualmente um problema novo encontrar-se diante da hipótese de uma pluralidade de culturas, isto é, de sistemas de referência e de significados heterogêneos entre si.” (Certeau, 2010, p. 142)

Assim, a noção de culturas, por sua dimensão heterogênea, legitima falar em culturas digitais, pois o que é vivido na contemporaneidade com os artefatos desse tempo potencializa manifestações e tessituras múltiplas nos modos de vida e com características distintas que, ao mesmo tempo em que algumas vão se enfraquecendo, outras vão se firmando, ressignificando, criando formatos outros não só de usos, mas de sentidos atribuídos por cada um, a partir de sua bacia semântica (Macedo, 2010). Com o olhar para a educação, Pretto (2017, p. 61) pontua que, na escola, não só as pessoas, alunos e professores, mas também os materiais, mídias, tudo são potencialmente carregados de culturas, pois cada um desses elementos traz suas marcas culturais que, quando a escola acolhe, estimula reflexões e promove “educações”, valorando os saberes que cada um traz consigo.

Outrossim, quando tratamos a cultura contemporânea, permeada pelas TD, enquanto culturas digitais, buscamos romper com a ideia de uma única cultura, acreditando, pois, que é preciso compreendê-la em sua complexidade de concepção, o que permite múltiplos olhares e o reconhecimento de que atores sociais não são “idiotas culturais” (Macedo, 2013). Para Santaella (2003), a cultura é aprendida e, portanto, passível de modificação pelos atores sociais nas relações estabelecidas e que se manifestam em instituições, padrões de pensamento e objetos materiais. Ou seja, não se pensa a cultura como uma representação imutável dos pensamentos e comportamentos humanos, mas de uma construção contínua que, ao aceitar a diferença, (in)tensifica a mudança. Contemporaneamente, há coexistência de culturas, pois a presença de singularidades e pluralidades é marcante, seja pela junção, seja pela hibridização, entendida por Canclini (2011, p. 17) como “[...] processos socioculturais nos quais estruturas e práticas discretas, que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas". E ainda, para esse autor, "[...] a hibridação surge na criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico”. (p. 22).

Essa concepção nos acrescenta a importância de rompermos com ideia de que somos apenas agentes de cultura e nos assumirmos enquanto praticantes que (re)constroem e, portanto, somos a(u)tores de nossa própria dinâmica social. Desse modo, precisamos compreender que as culturas digitais não surgem apenas pelo desenvolvimento das tecnologias, mas pela apropriação e pelos modos de usos desses dispositivos. Para Lucena & Oliveira (2014, p. 39), o acelerado uso dos smartphones, por exemplo, por meio de seus aplicativos, possibilitou que

[...] cada vez mais as pessoas possam interagir utilizando diferentes linguagens escrita, oral e a hipermídia. Esta outra forma de se expressar, de comunicar e de produzir que mistura e remixa diferentes linguagens é a maneira utilizada pela atual geração nascidos sob égide das tecnologias digitais.

Em continuidade a essa discussão, os autores reforçam que as políticas educacionais ainda apresentam um hiato quanto à formação de professores, no contexto das tecnologias digitais, haja vista a persistência de um “processo determinado e padronizado que impossibilita uma postura de criação do professor, pois proporciona um domínio imediatista do dispositivo” (Santos, 2021). Assim, embora os professores já façam parte das culturas digitais, ao acessar os aplicativos ou as suas redes sociais, por exemplo, na sala de aula a criação e a autoria potencializadas por tais dispositivos não é uma realidade. A dinâmica mais recorrente é pautada na transmissão, demarcando que na escola “[...] todo o potencial inovador, interativo e colaborativo que as tecnologias digitais possibilitam não é considerado, pois elas acabam sendo utilizadas de forma reducionista e reprodutivista” (Lucena & Oliveira, 2014, p. 41).

Essa postura antagônica aponta para a dificuldade docente de romper com as maneiras de fazer em sala de aula. Enquanto no social professores vivem as culturas digitais, na escola fazem uso do mesmo digital em uma perspectiva que não cria, apenas perpetua uma tessitura de ensino pautada no uso instrumental, possivelmente pela inexistência de formações que os provoquem a enredamentos outros em sala de aula. Esse fato nos leva a inferir que, na escola, há uma cultura digital no singular, tanto pelo recorrente uso instrumental das tecnologias no exercício de sua profissão, quanto nas formações que lhes são ofertadas, isso porque

[...] os programas governamentais resumem a formação continuada de professores em pequenos cursos ou oficinas com carga horária insuficientes para reflexão crítica sobre o uso das tecnologias digitais. O que se percebe é que as políticas públicas educacionais de formação para o uso das tecnologias digitais, na maioria das vezes, são pautadas numa perspectiva de incluir o professor num modelo instrumental preparando-o apenas para utilizar aplicativos operacionais onde não se considera a sua autoria na produção dos materiais pedagógicos. (Lucena & Oliveira, 2014, p. 41).

Com as culturas digitais as pessoas passaram a produzir, compartilhar, socializar culturas, textos, sons, imagens com ou sem movimento, bem como combiná-los; passaram a participar mais intensamente da vida política, econômica, artística, e a influenciar e ser influenciado pelas mídias, em múltiplos espaçostempos (Lucena & Oliveira, 2014). O problema é que, nas escolas públicas brasileiras, em especial, ainda permanece o equívoco de se considerar digital apenas por adquirir equipamentos para uso em seus espaçostempos e/ou utilizar produções digitais disponibilizadas na rede (Lucena; Santos & Pereira, 2020). É necessário instituir outros processos, como a produção e compartilhamento de textos, vídeos, sons, imagens, animações, jogos, dentre tantas possibilidades que o mundo digital possibilita. Assim, é possível fomentar a autoria docente e discente, desenvolver a criticidade sobre o próprio digital e, sobretudo, potencializar fazeressaberes plurais em uma rede instituída na sala de aula e que também se amplia por outros espaçostempos.

CONCLUSÃO

Assumir as culturas digitais como denominação da cultura contemporânea, permeada pelas tecnologias digitais, parte do reconhecimento de que, contemporaneamente, vive-se (e convive-se) com uma multiplicidade cultural tecida pelos próprios atores sociais e instituída nos distintos usos e apropriações dos artefatos digitais dentro e fora do ciberespaço, cujas práticas intensificam, sobretudo, interatividade, colaboração e autoria em rede. Quando trazemos a ideia de rede, destacamos o estar com outro criando e ressignificando suas práticas cotidianas nos mais variados contextos. Contudo, embora essa assertiva possa aparentar um olhar auspicioso diante dos artefatos, é possível considerar que compreendê-las em seu movimento sociocultural permite despertar a criticidade a respeito dos processos desenvolvidos pelos praticantes culturais, o que não implica apenas reconhecer suas potencialidades, mas também as latentes problemáticas que determinados usos provocam, seja no contexto educacional, seja fora dele.

Não obstante, as discussões neste artigo se propuseram a trazer as compreensões sobre as culturas digitais, reconhecendo que são culturas que constantemente se modificam, especialmente pela construção de redes interativas e colaborativas, a partir das quais há um contato contínuo entre pessoas e suas culturas. Esse contato, cada vez mais acelerado, (in)tensifica relações, produções de textos, vídeos, som, bem como seu compartilhamento, debates e co-construções. Neste cenário, construímos também o entendimento de que assumir as culturas digitais não só acolhe a compreensão de cultura no plural, mas também a possibilidade de deslocamentos entre o on-line e o off-line, seja pelas escolhas que cada ator social realiza, seja pela não possibilidade de navegar pelo ciberespaço, o que não é possível com a cibercultura. Quando adentramos no contexto educacional, esses deslocamentos e as táticas docentes se tornam ainda mais presentes, uma vez que a realidade das escolas, no Brasil, apresenta-se fragilizada em relação ao acesso à internet. Talvez por isso muitas práticas pedagógicas com o digital permanecem em uma tessitura estática e perpetuadora do ensino transmissivo.

Nas escolas brasileiras, em especial as públicas, é possível encontrar a ausência de dinâmicas outras com esses artefatos. Se na prática cotidiana há apropriações, criações e recriações, nas práticas de sala de aula de muitas escolas há uma restrita apropriação: as tecnologias enquanto ferramenta de ensino. Refletir sobre essa realidade provoca-nos a pensar sobre a formação de professores, principalmente sobre quais tessituras uma formação docente com as TD precisa contemplar para que sejam construídos novos enredamentos junto aos alunos e potencializado criações e autorias. Esse fato nos encaminha para novas leituras e pesquisas que apontem caminhos mais plurais e significativos para a formação de professores em contexto digital. Por ora, tal provocação deixa em evidência a necessidade de instituirmos formatos outros de formação docente, os quais não devem se pautar exclusivamente no domínio técnico, mas sobretudo promover a convergência de fazeressaberes outros, cuja inspiração se dá nas relações cotidianas e em seu movimento plural e (trans)formador.

Agradecimentos

As autoras agradecem à Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica (FAPITEC) de Sergipe, vinculada à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico, da Ciência e Tecnologia (SEDETEC), pelo apoio financeiro ao projeto “Práticas pedagógicas e gestão educacional: um estudo sobre as (trans)formações digitais a partir do currículo de Sergipe, aprovado pelo edital nº 09/2021, e que tem fomentado, neste processo inicial da pesquisa, aprofundamento teórico acerca das culturas digitais, trazendo contribuições significativas para a formação dos pesquisadores.

REFERÊNCIAS

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Notas de autor

1 Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.
1 Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.
1 Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Sergipe, Brasil.

Información adicional

Como citar: Santos, S. V. C. A., Silva, C. G. S., & Carvalho, T. S. (2022). Digital Cultures: dialogues and reflections for teacher education. Revista Tempos e Espaços em Educação, 15(34), e17744. http://dx.doi.org/10.20952/revtee.v15i34.17744

Contribuição das Autoras: Santos, S. V. C. A.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, e revisão crítica de conteúdo intelectual importante. Silva, C. G. S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, e revisão crítica de conteúdo intelectual importante. Carvalho, T. dos S.: concepção e desenho, aquisição de dados, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, e revisão crítica de conteúdo intelectual importante. As autoras leram e aprovaram a versão final do manuscrito.



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