RESUMO
Introdução: O registro sanitário de medicamentos é instrumento essencial na avaliação da qualidade, segurança e eficácia. O marco regulatório vigente veda a incorporação de novas tecnologias sem registro no Sistema Único de Saúde (SUS), cabendo à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) assessorar o Ministério da Saúde nessas decisões.
Objetivo: Foram estudadas as recomendações de incorporação de medicamentos sem registro sanitário realizadas pela Comissão entre janeiro/2012 e junho/2016, e suas compras pelos órgãos federais nacionais.
Método: Utilizaram-se informações presentes no website da Conitec e as compras registradas no SIASG.
Resultados: Seis dos 93 medicamentos incorporados pelo SUS no período não possuíam registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Somente duas das decisões foram submetidas à consulta pública. As principais justificativas associadas às recomendações foram a gravidade da doença, presença de menores eventos adversos, e o baixo impacto orçamentário. Metade dos fármacos na situação estudada já se encontravam presentes no SUS, mas em apresentações que dificultavam seu uso pediátrico ou em situações de maior gravidade. Foram gastos R$ 3.159.085,96 com a compra desses medicamentos.
Conclusões: A recomendação de incorporação de medicamentos não registrados pela Anvisa contraria a legislação relativa à Conitec e às aquisições públicas de medicamentos. Por outro lado, ressalta-se a importância da incorporação de medicamentos que atendem a relevantes lacunas terapêuticas.
Palavras chave: Medicamentos, Registro de Medicamentos, Avaliação de Tecnologias em Saúde, Tomada de Decisão, Sistema Único de Saúde.
ABSTRACT
Introduction: Drug registration is an essential tool for assessing quality, safety, and efficacy. In Brazil, the current regulatory framework prohibits the incorporation of any technology into the Brazilian Public Health System (SUS) without prior registration with the Brazilian regulatory institution, the Brazilian Health Regulatory Agency (Anvisa). The National Committee for Health Technology Incorporation (Conitec) advises the Ministry of Health on which health technologies should be incorporated.
Objective: Conitec’s recommendations to incorporate non-registered medicines and their federal procurement between January 2012 and June 2016 were studied.
Method: The study was based on the information available on Conitec’s website and on purchases registered in the Integrated General Services Management System database. Results: Six out of the 93 drugs incorporated into SUS during the examined period were not registered with Anvisa. The main reasons for incorporation of non-registered medicines were severity of the disease, minor adverse events, and low budgetary impact. In 50% of the cases, medicines had already been made available at SUS for the approved indications, but in presentations that made it difficult for them to be used in pediatric patients or situations of greater severity. R$ 3,159,085.96 were spent on the purchase of these drugs.
Conclusions: The recommendation of incorporation of medicines not registered with Anvisa contravenes the legislation related to Conitec and to the public acquisition of medicines. However, it is important to highlight the importance of drug incorporations that meet relevant therapeutic gaps.
Keywords: Medicines, Drug Registration, Health Technology Assessment, Decision-making, Brazilian Unified Health System.
ARTIGO
Incorporação de medicamentos sem registro sanitário no SUS: um estudo das recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no período 2012–2016
Incorporation of non-registered medicines in the Brazilian Unified Health System (SUS): a study of the recommendations of the National Committee for Health Technology Incorporation, 2012–2016
Recepção: 27 Setembro 2017
Aprovação: 27 Junho 2018
Em todo mundo, o registro de medicamentos é uma ferramenta regulatória utilizada pelas autoridades sanitárias na avaliação da qualidade, eficácia e segurança dos produtos candidatos à comercialização ou consumo. O registro inicial de medicamentos e suas revalidações propiciam a qualidade dos produtos que estão no mercado e visam proteger a saúde individual e coletiva frente aos riscos associados a esses produtos, ao mesmo tempo em que garantem uma utilização mais racional dos recursos1.
A Lei n° 6.360, de 23 de setembro de 1976, é uma das principais normativas sobre registro sanitário de medicamentos no país, dispondo sobre variados aspectos do registro e fiscalização de serviços e produtos sujeitos ao controle sanitário2. Desde 1998, a Política Nacional de Medicamentos definiu o registro de medicamentos como ato privativo do órgão competente do Ministério da Saúde (MS)3. Esta atividade compete à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), criada em 1999 e responsável pela regulamentação e controle do mercado quanto aos riscos passíveis da comercialização e consumo de medicamentos no mercado nacional4.
A Lei n° 12.401, de 28 de abril de 2011, que dispõe sobre a assistência terapêutica e incorporação de tecnologias em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), estabeleceu a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), com a função de assessorar o MS nas decisões relativas à incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como na constituição/alteração de protocolo clínico ou diretriz terapêutica. Esta Lei veda, em todas as esferas de gestão do SUS, o pagamento, ressarcimento ou reembolso de medicamento, produto, procedimento clínico ou cirúrgico experimental ou de uso não autorizado ou sem registro na Anvisa5.
Subsequentemente, o Decreto n° 7.646, de 21 de dezembro de 2011, regulamentou a composição, competências e funcionamento dessa Comissão, definindo os fluxos e prazos para a avaliação e incorporação das tecnologias no sistema público de saúde, bem como um conjunto de exigências legais para que um medicamento seja apreciado para eventual incorporação à tabela de pagamentos de procedimentos do SUS. Fazem parte desses requisitos a serem cumpridos, a necessidade de informações sobre o número e validade do registro da tecnologia em saúde na Anvisa, a apresentação de evidências científicas sobre eficácia, efetividade e segurança das tecnologias, e de avaliações econômicas completas, examinando custos e benefícios, em relação àquelas já incorporadas no SUS, e impacto financeiro-orçamentário previsto para o SUS. Finalmente, medicamentos devem ter ainda seu preço fixado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos informado6.
Por outro lado, a legislação brasileira também impede a aquisição, dispensa e financiamento de medicamentos não registrados em todos os níveis do sistema público de saúde, exceto nos casos previstos por lei2,5,7.
Mesmo assim, o fenômeno crescente da judicialização de procedimentos propedêuticos ou terapêuticos tem levado a demandas judiciais e à compra de medicamentos sem registro sanitário no país, por vezes sem benefícios comprovados e pondo em risco a saúde dos pacientes que os recebem8,9,10.
Desse modo, o trabalho objetivou estudar as recomendações de incorporação de medicamentos sem registro sanitário ativo no país pela Conitec, realizadas no período de janeiro de 2012 a junho de 2016, e suas compras pelos órgãos federais nacionais, antes e depois das recomendações.
Trata-se de estudo descritivo, retrospectivo, de abordagem quali-quantitativa, que teve por foco as recomendações de incorporação da Conitec relativas a medicamentos no país, ocorridas de janeiro de 2012, data de início de seu funcionamento, até 30 de junho de 2016. Parte de uma pesquisa mais ampla10, este manuscrito concentrou-se apenas no exame das recomendações de incorporação de medicamentos para uso humano sem registro sanitário ativo no país.
Três fontes principais de dados foram utilizadas. Para verificação das demandas e das recomendações da Conitec, foram examinadas as informações presentes no website da Comissão (http://conitec.gov.br/). Quatro tipos de informações foram extraídas: a) os registros das demandas de tecnologias em saúde submetidas no período estudado; b) os relatórios técnicos de recomendação da Conitec; c) as portarias de decisão do secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) publicadas no Diário Oficial da União (DOU); e d) as contribuições às consultas públicas.
Foram considerados medicamentos sem registro sanitário ativo aqueles que não possuíam registro na data da portaria publicada no DOU que tornou pública a decisão de incorporação ao SUS. A situação de registro do medicamento foi verificada junto à Consulta de Medicamentos na página da Anvisa, tomando por base o nome do fármaco e sua apresentação farmacêutica (https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/). Pela disponibilidade de dados presentes no site da Anvisa, não é possível saber se a ausência de registro se dá pelo indeferimento da petição ou mesmo pela sua não solicitação pelo fabricante. A existência de registro ativo foi novamente verificada em agosto/2017, época de finalização da pesquisa, para identificar medicamentos que porventura tivessem obtido da Anvisa, aprovação para comercialização em data posterior à decisão da Comissão.
A presença de compras públicas dos medicamentos incorporados sem registro vigente realizadas até 31 de dezembro de 2016 foi verificada junto ao Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG), de responsabilidade do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão. Este Sistema contém informação de todos os bens e serviços comprados pela administração pública federal11, e o acesso aos dados é público, em conformidade com a Lei de Acesso à Informação12.
Para fins das análises, os demandantes dos pedidos de incorporação foram registrados e posteriormente categorizados como demandas de origem (i) interna, quando procedentes das secretarias do MS, de suas agências reguladoras (Anvisa e Agência Nacional de Saúde Suplementar) e das secretarias estaduais e municipais de saúde; e (ii) externa, quando oriundas de outros órgãos do governo federal, indústria, poder judiciário, instituição de saúde, instituição de ensino e pesquisa, sociedades médicas e profissionais, associação de pacientes e outras organizações não governamentais, profissional de saúde, paciente ou seu familiar/cuidador.
Os medicamentos sem registro sanitário foram examinados segundo o ano da recomendação da Conitec; a condição clínica de indicação presente na demanda, utilizando-se a 10ª versão da Classificação Internacional da Doença (CID), e a Classificação Anatômico-Terapêutica-Química (ATC) até o quinto nível (substância ativa), usando a WHO Collaborating Centre for Drug Statistics Methodology13.
Foi ainda verificada a presença de registro desses medicamentos junto às agências reguladoras sanitárias americana Food and Drug Administration (FDA) e europeia European Medicines Agency (EMA), a partir dos seus endereços eletrônicos14,15.
Para cada um dos medicamentos na situação em tela, foram verificados a realização de consulta pública e o número total de contribuições recebidas, bem como se a recomendação da Conitec foi acatada pelo secretário da SCTIE e teve sua decisão final publicada no DOU.
Finalmente, foram identificadas todas as justificativas presentes nos relatórios como motivando a recomendação de incorporação pela Conitec, assim como eventuais condicionantes relacionados às decisões.
No SIASG, foi levantada a presença de registros de compra nos cinco anos anteriores a data de recomendação de incorporação dos medicamentos estudados e em todos os anos subsequentes disponíveis após esta aprovação, até 31 de dezembro de 2016. Foram coletadas informações sobre as quantidades compradas, órgão público responsável pela compra, modalidade de aquisição, justificativas de compra, fornecedor contratado e preços unitários.
Para permitir a comparabilidade entre os anos, os preços unitários de aquisição extraídos do SIASG foram corrigidos para dezembro/2016, empregando-se a variação anual do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), obtida diretamente no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Os preços corrigidos de cada uma das compras foram posteriormente multiplicados pelas quantidades adquiridas para determinar os gastos contratados com cada medicamento.
Os dados obtidos das várias fontes foram compilados para um banco especificamente construído para esse fim no aplicativo Epidata®. O software Stata® versão 12 foi utilizado para tabulação e análise dos dados.
Os dados sobre as demandas, relatórios de recomendação técnica e contribuições às consultas públicas são de acesso livre nas diversas páginas da Conitec. Da mesma forma, as informações obtidas na página da Anvisa e as relativas às compras registradas no SIASG, dispensando a apreciação e aprovação prévia do estudo por Comitê de Ética em Pesquisa.
No período examinado, a Conitec recebeu 485 submissões, sendo 267 (55,1%) correspondentes a pedidos de incorporação de novos medicamentos no SUS. Dezessete submissões (3,5% do total de demandas) ainda estavam sem decisão final em 30 de junho de 2016 e 148 (30,5%) tinham sido encerradas precocemente, por não conformidade documental ou a pedido do demandante ou da própria Comissão.
Das 201 demandas relacionadas a medicamentos que foram levadas a Plenário, 93 medicamentos, incluindo seis vacinas e dois imunobiológicos, receberam recomendação favorável de incorporação (30,9%). Houve recomendação de incorporação de seis medicamentos não registrados na Anvisa (6,5% do total de medicamentos incorporados), em oito diferentes apresentações: biotina 10 mg e 10 mg/mL, cipionato de hidrocortisona 10 e 20 mg, palmitato de cloranfenicol 125 mg/5mL, cloridrato de hidroxocobalamina 5 mg, doxiciclina 100 mg e hidroxiureia 100 mg.
A Tabela 1 apresenta o perfil dos medicamentos não registrados pela Anvisa com recomendação de incorporação pela Conitec. Estes medicamentos estão distribuídos em quatro diferentes subgrupos terapêuticos (A11 – vitaminas, H02 – corticosteroides para uso sistêmico, J01 – antibacterianos, L01 –antineoplásicos). Dois deles — palmitato de cloranfenicol 125 mg/5 mL e doxiciclina 100 mg — foram recomendados para uma mesma indicação: febre maculosa. Quanto à presença de registro nas agências sanitárias internacionais, somente o medicamento hidroxocobalamina 5 g é registrado tanto pela FDA quanto pela EMA, para a mesma indicação aprovada no Brasil. A biotina (10 mg e 10 mg/mL) não é registrada por qualquer das agências reguladoras.
Houve recomendações favoráveis à aprovação de medicamentos sem registro ativo em todos os anos de funcionamento da Conitec. As indicações de uso aceitas pela Conitec para os medicamentos foram as mesmas das agências sanitárias internacionais estudadas, para aqueles que nestas possuíam registro. Todas as demandas foram internas e oriundas de Secretarias do próprio MS. Apenas dois medicamentos tiveram sua recomendação de incorporação submetida à consulta pública, em ambos os casos obedecendo ao período estabelecido em lei, uma das quais não recebendo qualquer contribuição; os demais casos foram objeto de processo simplificado. Os medicamentos com maior impacto orçamentário estimado foram o cloridrato de hidroxocobalamina 5 g, hidroxiureia 100 mg e biotina 10 mg e 10 mg/mL, respectivamente (Tabela 2). Todas as recomendações da Conitec de incorporação foram acatadas pelo secretário da SCTIE.
No que se refere às justificativas para as recomendações de incorporação presentes nos relatórios, predominaram motivos relacionados à gravidade/letalidade da doença de base, presença de menores eventos adversos, e menor custo ou baixo impacto orçamentário (Tabela 3).
A Tabela 4 apresenta as compras de medicamentos sem registro ativo na Anvisa registradas no banco SIASG. Foram realizadas 17 compras de medicamento sem registro, predominando as aquisições de palmitato de cloranfenicol 25 mg/mL e biotina 10 mg, ambos com seis compras. Não foram identificadas compras de doxiciclina ou hidroxiureia. Metade das compras ocorreu antes dos medicamentos terem sua recomendação de incorporação aprovada pela Conitec e 47% foram realizadas nos dois últimos anos. O Ministério da Educação foi responsável por 41% das aquisições, predominantemente solicitadas por hospitais universitários, e o MS por apenas 29%. A modalidade de compra predominante foi pregão (78%). Apenas duas compras tiveram como justificativa o atendimento de demanda judicial, ambas aquisições de hidrocortisona 10 mg pelo MS, em 2011 e 2013, totalizando 700 comprimidos e R$ 3.152,15 em valores corrigidos para dezembro de 2016.
Autorizar a comercialização de um medicamento no país ou sua distribuição no sistema público é uma grande responsabilidade sanitária e social. A Lei no 12.401/2011, que instituiu a Conitec, deixa bem claro em seu artigo 19-T, inciso II, que são vedados, em todas as esferas de gestão do SUS, “a dispensação, pagamento, ressarcimento ou reembolso de medicamento nacional ou importado sem registro na Anvisa”5.
Em desacordo ao definido pelo arcabouço regulatório que instituiu a Conitec e os procedimentos para submissão de demandas, houve recomendação de incorporação por essa Comissão de seis medicamentos sem registro ativo na agência sanitária nacional.
Não foi averiguado se havia petição do registro desses medicamentos à Agência, que possuía elevado tempo médio de análise do pedido, à época do estudo16. Entretanto, informação da situação do registro e de seu número na Agência são documentos exigidos para a submissão dos pedidos de incorporação, que devem ser verificados na análise inicial de conformidade, e sem o que o pedido sequer deveria ter sido levado a análise5. Além disso, novo exame da situação do registro, mais de um ano depois de finalizado o período de estudo, não mostrou a presença de registro ativo para qualquer dos medicamentos com recomendação de incorporação pela Conitec.
Metade das situações referiram-se a medicamentos já presentes no SUS para as mesmas indicações, mas em apresentações diferentes, com as recomendações visando facilitar seus usos por populações pediátricas ou em situações de elevada gravidade.
Os medicamentos doxiciclina 100 mg solução injetável e cloranfenicol 25 mg/mL suspensão oral, demandados pela Secretaria de Vigilância em Saúde para tratamento da febre maculosa, são um exemplo dessa situação. Essa doença infecciosa multissistêmica, causada por riquétsias e transmitida por carrapatos, foi responsável por 17.117 casos suspeitos e 1.245 confirmados entre 2007 e 201517. Alguns casos cursam com elevada gravidade e letalidade que pode chegar a 85%, quando não tratada adequadamente18. O antimicrobiano de escolha para terapêutica dos casos suspeitos de infecção, independentemente da faixa etária e da gravidade da doença, é a doxiciclina, oral ou injetável; cloranfenicol apresenta-se como alternativa, na impossibilidade de seu uso. Desde 2009, o Guia de Vigilância Epidemiológica do MS recomendava estes antibióticos nas apresentações novas recomendadas para o tratamento da febre maculosa, mas estas não se encontravam disponíveis no Brasil, por desinteresse comercial de laboratórios produtores e indisponibilidade de registro19. O impacto financeiro da compra por importação para um ano de tratamento com as duas novas apresentações foi orçado em US$ 126.000,00. A Conitec manifestou-se favoravelmente às duas incorporações, que passariam a ser adquiridas de forma centralizada pelo MS e destinados às áreas endêmicas do país20.
Outro medicamento que preenche as características citadas é a hidroxiureia de 100 mg, para tratamento da doença falciforme em crianças, uma doença genética caracterizada pela alteração estrutural na cadeia da beta globina levando à produção de uma hemoglobina anormal denominada HbS. Possui uma elevada prevalência no Brasil: segundo o Programa Nacional de Triagem Neonatal nascem por ano no país 3.500 crianças com doença falciforme (aproximadamente 1:1.000 nascidos vivos) e 200.000 com traço falciforme, com grande variação entre os estados em função da proporção de indivíduos afrodescendentes21. Existem evidências que confirmam a eficácia do medicamento em reduzir as crises vaso-oclusivas, hospitalizações, número de transfusões e síndrome torácica aguda, com impactos na sobrevida e melhoria da qualidade de vida22, com indicação a partir dos dois anos de idade. Embora a cápsula de 500 mg para uso adulto se encontrasse presente na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), a apresentação infantil inexistia no mercado, obrigando a diluição em água para administração da dose proporcional, implicando manipulação do medicamento em domicílio e desperdício do restante da dose, favorecendo erros na dose administrada. Existe a apresentação de 100 mg fora do país, o que possibilitaria sua importação via organismo internacional. O relatório da Conitec menciona também que o Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde do MS estava avaliando a produção da apresentação infantil pelo laboratório da Aeronáutica à época da aprovação23, mas tal não parece estar ocorrendo até o presente.
A incorporação de três medicamentos — biotina 10 mg, hidroxocobalamina 5 g e do cipionato de hidrocortisona 10 mg e 20 mg — foi recomendada para indicações que, até então, não eram cobertas pelas alternativas terapêuticas existentes no SUS ou que obrigavam, para atendimentos dos pacientes que necessitavam dos tratamentos, de formulações magistrais.
Cipionato de hidrocortisona de 10 e 20 mg foi incorporado ao SUS para tratamento de hiperplasia adrenal congênita de recém-nascidos, distúrbio hereditário autossômico recessivo da síntese de esteroides adrenais, cuja incidência no Brasil oscila entre 1:7.500 a 1:20.000 nascidos vivos24,25. Mais de 90% dos casos decorrem da deficiência da enzima 21-hidroxilase, impedindo a correta produção de cortisol e aldosterona, e desvio dos intermediários metabólicos acumulados para a síntese excessiva de androgênios. Está associada à significante morbidade e mortalidade em crianças e adultos afetados25. A inclusão da triagem para essa condição no Programa Nacional de Triagem Neonatal só ocorreu com a Portaria nº 2.829, de 14 de dezembro de 201226, mas desde 2010 existe protocolo clínico publicado pelo MS que inclui a administração injetável de hidrocortisona de 100 ou 500 mg em casos de deficiências de glicocorticoides e mineralocorticoides e sintomas da hiperandrogenemia. A recomendação de incorporação do cipionato de hidrocortisona para uso em recém-nascidos foi justificada por sua meia vida curta, que não interferiria no desenvolvimento infantil, como ocorre com a utilização de prednisona24.
A biotina, outro medicamento sem registro cuja incorporação foi recomendada, é indicada no tratamento da deficiência de biotinidase (DB), um erro inato do metabolismo de herança autossômica recessiva e expressão fenotípica variada. O relatório de recomendação refere existirem aproximadamente 3.200 pacientes com DB no Brasil em 201227, mas o exame de 225.136 recém-nascidos de várias regiões brasileiras, em 2004, mostrou prevalência de 1:9.000 de deficiência de biotidinase de algum grau28. Casos com deficiência profunda usualmente se manifestam precocemente, com distúrbios neurológicos e cutâneos, como crises epiléticas, hipotonia, microcefalia e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor. Nos casos menos graves e com diagnóstico tardio, são frequentes distúrbios visuais, auditivos, atraso motor e de linguagem29. Como no caso da hiperplasia adrenal congênita, a triagem para DB só foi incluída no Programa Nacional de Triagem Neonatal em 201226. Todos os indivíduos com a deficiência, mesmo aqueles com alguma atividade enzimática residual, devem ser tratados por meio da suplementação com biotina oral em sua forma não conjugada. O tratamento é simples, de baixo custo, e baseado na reposição de biotina nas doses de 5 mg/dia e 10 mg/dia, respectivamente, para pacientes com diagnóstico de DB parcial e de DB total, por toda a vida, por via oral e independente do peso corporal. Embora existissem medicamentos contendo biotina em associação de polivitamínicos disponíveis no Brasil, em doses abaixo das recomendadas para o tratamento de biotinidase, não existia registro pela Anvisa da forma isolada, obtida somente em farmácias de manipulação. Mesmo limitado a evidências de estudos observacionais com pequenos quantitativos de pacientes, considerando a ausência de alternativas de tratamento para a doença e o custo acessível da terapia, com baixo impacto orçamentário para o SUS, o medicamento foi recomendado para incorporação pela Conitec em julho/201227.
Hidroxocobalamina foi recomendada para incorporação em janeiro de 2016, para uso no tratamento da intoxicação por cianeto, condição relativamente rara mas de grande gravidade e letalidade, pois o cianeto de hidrogênio produz hipóxia grave, com efeitos tóxicos sistêmicos e colapso cardiovascular de instalação rápida. Inalação de fumaça decorrente de incêndios domésticos e industriais é a fonte mais comum de exposição ao cianeto, mas existem casos de intoxicação crônica decorrentes de exposições ocupacionais. Considerada um antídoto de primeira linha, age por quelação do cianeto para forma de cianocobalamina (vitamina B12), excretada pela via renal. A administração deve ser a mais precoce possível, ainda em ambiente pré-hospitalar. Cada 5 g de hidroxocobalamina neutraliza aproximadamente 40 micromol de cianeto por litro de sangue, podendo ser necessária a administração de 10 a 15 g30,31. Outros antídotos, como nitritos de amila e de sódio, e tiossulfato de sódio, também não estão disponíveis para comercialização no país32.
A tragédia de janeiro/2013, por ocasião do incêndio da boate Kiss em Santa Maria-RS onde ocorreram 242 óbitos, deixou clara a necessidade de o país ter pronta disponibilidade de produtos para enfrentamento de sinistros não previsíveis como este. A hidroxocobalamina foi incluída na lista de medicamentos sem registro autorizados pela Anvisa para importação em caráter excepcional, destinados a uso hospitalar. Esse procedimento simplificado viabiliza o fornecimento de medicamentos pelo SUS em situações de “grave risco à saúde” e indisponibilidade de alternativas terapêuticas aprovadas33.
O Decreto n° 8.077, de 14 de agosto de 2013, permite o fornecimento pelo SUS de medicamentos com indicações distintas das aprovadas pela Anvisa, se solicitadas pela Conitec, a qual deverá apresentar evidências científicas que comprovem a necessidade do novo uso pretendido7. Ressalta-se que, em alguns casos, as evidências de eficácia e segurança apresentadas nos relatórios de recomendação foram restritas a estudos de caráter observacional e mesmo séries de casos, usualmente consideradas de menor qualidade. Pelo menos em parte, isso pode estar relacionado às características intrínsecas das indicações clínicas relacionadas, muitas vezes referentes a doenças órfãs, que possuem dificuldades específicas no tocante à avaliação de tecnologias em saúde34, ou a situações onde não se aplicava a possibilidade de ensaios clínicos randomizados.
Todas as demandas por incorporação de medicamentos não registrados pela Anvisa partiram de secretarias do próprio MS, o que talvez guarde relação como fato de não terem sido recusadas na avaliação de conformidade documental. Além disso, a maioria delas foi avaliada de forma simplificada, não sendo submetida à consulta pública.
As consultas públicas objetivam ampliar a discussão sobre o assunto, a partir de contribuições, opiniões e críticas da sociedade, e embasar as decisões sobre a formulação e definição de políticas públicas. O Decreto nº 7.646/2011, que normatizou a Lei no 12.401/2011, traz a possibilidade desse tipo de processo administrativo simplificado, nos casos de “relevante interesse público” (Art. 29), sem explicitar, contudo, os critérios que caracterizam esse interesse6. Relatórios relacionados a processos simplificados se referem a propostas que tratam de ampliação de uso de tecnologias, nova apresentação de medicamentos ou incorporação de medicamentos com tradicionalidade de uso, envolvendo tecnologias de baixo custo e baixo impacto orçamentário para o SUS, estando relacionadas à elaboração/atualização de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.
Todos os medicamentos estudados preencheram essas condições. Nos dois únicos casos submetidos à consulta pública, hidroxocobalamina e biotina, o número de contribuições foi pequeno (sete contribuições)32 ou sequer houve contribuições27 no período definido por lei.
Estudos de avaliação econômica, um critério exigido no exame da incorporação de novas tecnologias, só foram realizados para a hidroxocobalamina. A análise de custo-efetividade executada mostrou que seu uso corresponderia a uma razão de custo-efetividade incremental de R$ 62.474,34 por vida adicional salva e de R$ 2.126,45/QALY. O impacto orçamentário, da ordem de R$ 3.334.135,20, decorreu do elevado custo de aquisição do kit de infusão venosa – R$ 2.064,48, à época da estimativa – e da necessidade de disponibilização de dois kits para cada uma das 600 unidades de suporte avançado do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, bem como 405 kits a serem distribuídos para as Secretarias Estaduais de Saúde e um estoque estratégico de 10 kits para o MS32.
Nenhum dos medicamentos identificados neste estudo estava registrado na Anvisa até setembro de 2017. A biotina obteve registro em janeiro de 2016, mas para apresentação diferente: cápsula gelatinosa de 2,5 mg. Nesse sentido, todas as compras desses medicamentos após a recomendação continuam sendo realizadas sem registro.
Na Rename 2016, publicada em agosto/2017, são encontrados alguns dos medicamentos sem registro estudados – palmitato de cloranfenicol, doxiciclina e hidroxocobalamina, todos pertencentes ao Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica – mas não os demais35. Essa ausência causa ainda maior estranheza quando se sabe que, a partir da Rename 2012, esta deixou de ser uma relação clássica de medicamentos de fato essenciais para se tornar uma lista positiva de financiamento, que lista os itens de provimento público36.
O volume de compras, em termos de quantitativos adquiridos como de dispêndios, não foi muito expressivo. Biotina e hidroxocobalamina destacam-se em termos de unidades farmacotécnicas adquiridas. Todas as 3.165 unidades da biotina foram adquiridas como apresentações magistrais junto a farmácias de manipulação nacionais, mesmo após sua incorporação pelo SUS. No caso da hidroxocobalamina, que representou 98% do total de gastos, foi realizada uma única aquisição pelo MS de 1.615 unidades do produto liofilizado, via importação, ao valor unitário do kit para infusão de R$ 1.810,55 em valores correntes de 2015. Foi prevista a aquisição por importação, a partir da compra centralizada pelo MS, tomando por base o disposto no Decreto n° 8.077/2013, em que a Anvisa pode dispensar de registro imunobiológicos, inseticidas, medicamentos e outros insumos estratégicos quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso em programas de saúde pública pelo Ministério e suas entidades vinculadas7. Como a empresa Merck® era única produtora, sua aquisição ocorreu mediante inexigibilidade de licitação, o que em certas situações pode tender a elevar de forma significativa os custos, dada a situação de monopólio comercial37.
O Ministério da Educação apresentou-se como principal comprador de medicamentos não registrados, através predominantemente de seus hospitais universitários, o que pode ser explicado pelo perfil de indicações dos fármacos e da utilização de novas tecnologias em suas atividades de ensino e pesquisa.
Em relação às compras públicas desses medicamentos, chama atenção a proporção muito pequena de aquisições motivadas por demanda judicial. Teodoro et al. analisaram compras federais de medicamentos sem registro sanitário ativo no país entre 2004 e 2013 e verificaram que 51,0% delas foram de produtos que obtiveram registro sanitário após a aquisição, o que representaria tensão para a concessão do registro e sua posterior incorporação pelo SUS. Evidenciaram ainda que demandas judiciais responderam por 81,9% das compras, com tendência crescente nos últimos anos estudados9. A imposição constitucional ao Estado acerca do direito à saúde, ocasionando rotineiramente intervenção judicial, explicita o quanto as necessidades da população estão atreladas muitas vezes aos interesses comerciais de registro das empresas produtoras. Ademais, o registro também pode ser compreendido como expressão da garantia do direito à saúde aos usuários, que visa trazer proteção e segurança sanitária8.
A legislação que regulamenta a Conitec estabelece prazo de 180 dias para o SUS ofertar novas tecnologias incorporadas, devendo essa disponibilização estar apoiada em PCDT. O protocolo de uso da hidroxocobalamina foi publicado em 2015, estabelecendo critérios diagnósticos e de inclusão no tratamento, doses e esquema de administração, aspectos do monitoramento, da disponibilidade e modos de implementação de seu uso no SUS38. O PCDT relacionado à biotidinase foi à consulta pública em maio de 2017, recomendando o uso de cápsula gelatinosa 2,5 mg, já aprovada para comercialização pela Anvisa, mas seguia sem publicação até a época de finalização desse artigo39. Por fim, a última versão do Guia Epidemiológico de 2016 já sinaliza para a disponibilidade das apresentações de doxiciclina injetável e cloranfenicol suspensão oral nas diretrizes para o tratamento da febre maculosa no país40. Quanto aos demais medicamentos, não foi identificada atualização dos protocolos já existentes relativos à doença falciforme e à hiperplasia congênita da adrenal, ambos de janeiro de 2010.
Finalmente, cabe perguntar o porquê de alternativas terapêuticas consideradas eficazes não terem sido disponibilizadas há mais tempo. A maioria dos medicamentos na situação em tela se referem a produtos “antigos”, já sem proteção patentária, em sua maioria de baixo custo, o que resulta em pequeno interesse comercial para seu registro e produção pela indústria farmacêutica. Santana et al., estudando aspectos relacionados ao registro sanitário e à incorporação de tecnologias no SUS para chamadas “doenças da pobreza”, identificaram que dos 132 medicamentos elencados na Rename 2014 para atendimento específico dessas condições, mais de um terço tinham apenas um produtor nacional e outros 24 (18,2%) não possuíam registro no país41. Aponta-se, assim, a necessidade de investimento do Estado brasileiro para a oferta de medicamentos de baixo interesse mercadológico, viabilizando uma produção nacional via laboratórios públicos ou estabelecimento de parcerias de desenvolvimento produtivo.
O registro sanitário de medicamentos configura-se como instrumento fundamental na avaliação das tecnologias novas candidatas à entrada no mercado ou a permanência das já disponíveis, objetivando a proteção da saúde dos indivíduos.
A Conitec tem a função definida por lei de assessorar o MS nas decisões relativas, em especial, à incorporação de novos medicamentos ao SUS para disponibilização aos seus usuários. Não cabe à Comissão a avaliação de medicamentos candidatos à entrada no mercado brasileiro, papel reconhecidamente da Anvisa, com a autorização de financiamento pelo SUS se constituindo em passo posterior. Entretanto, a incorporação de medicamentos nas listas de pagamento representa efetivamente uma forma de entrada no mercado, dado o caráter universal do sistema público brasileiro.
Embora a legislação vigente vede a aquisição e financiamento de medicamentos não registrados em todos os níveis do sistema público de saúde, exceto em casos previstos, esta ocorreu na situação estudada, antes e depois da recomendação da Conitec.
Reconhece-se a importância da incorporação de medicamentos que atendam a relevantes lacunas terapêuticas, como é o caso, por exemplo, da hidroxocobalamina. Entretanto, considerando-se o arcabouço regulatório sobre registro, incorporação de medicamentos ao SUS e compras públicas vigente no Brasil, não deveria ter ocorrido sequer avaliação, e menos ainda incorporação, de medicamentos sem registro sanitário.
A atuação do Estado é imprescindível para garantir o interesse público e acesso aos tratamentos demandados pelas necessidades da população, garantindo, por um lado, a segurança e eficácia dos produtos aos quais os usuários são expostos e, por outro, formulando e executando políticas econômicas e sociais que possam facilitar sua produção, reduzir as iniquidades e cumprir os preceitos constitucionais estabelecidos.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: caetano.r@gmail.com