EDITORIAL
Vigilância Sanitária na América do Sul: perspectivas para integração, cooperação e produção de conhecimento científico
Sanitary Surveillance in South America: perspectives for integration, cooperation and production of scientific knowledge
A América do Sul representa uma região na qual existem muitas semelhanças, pontos comuns que facilitam a sua integração e a cooperação entre os países, no campo da saúde, como também diferenças, assimetrias e desigualdades, o que implica uma série de desafios para os processos de integração.
Não poderia ser diferente quando analisamos a produção e o desenvolvimento da vigilância sanitária, no campo teórico e na prática dos serviços e instituições de saúde.
Inicialmente, é necessário analisar se o conceito de vigilância sanitária possui um significado comum entre os países da região. No Brasil, conforme consta na legislação nacional, o conceito está bem estabelecido e compreende – para órgãos de governo e para a comunidade científica – tanto um conjunto de ações relativas aos riscos à saúde, decorrentes da produção e consumo de bens e serviços, quanto intervenções sobre problemas sanitários. Em outros países, a utilização do termo vigilância sanitária para designar práticas dirigidas aos riscos sanitários, ao controle sanitário ou regulação sanitária está mais presente nos órgãos que detêm competências nesta área, em especial nas agências reguladoras. Nas publicações internacionais de autores desses países, o termo vigilância sanitária é utilizado para designar práticas de vigilância em saúde pública não necessariamente vinculadas ao campo da própria vigilância sanitária.
O segundo elemento a ser analisado diz respeito ao escopo da vigilância sanitária nos países. Embora o conceito adotado, de certa forma, delimite sobre quais objetos as práticas de vigilância sanitária serão desenvolvidas, ou que temas são objetos de estudos e investigações, há uma diversidade também determinada (ou condicionada) por outros fatores, como a sua construção histórica, as diversas instituições do setor saúde que detêm competências nesta área e o próprio papel do Estado no campo da saúde pública.
Na maioria dos países, a vigilância sanitária tem funções e práticas relacionadas à regulação, registro, controle, fiscalização e monitoramento (embora nem todas essas funções estejam bem estabelecidas em todos os países) para os seguintes objetos de atuação: medicamentos de uso em saúde pública, alimentos, dispositivos médicos, serviços de saúde, testes diagnósticos, saneantes, cosméticos, tabaco e derivados, agrotóxicos, vigilância de fronteiras internacionais. Entretanto, existem diferenças em relação ao período de tempo em que alguns objetos foram incorporados às práticas de vigilância sanitária, bem como à abrangência das ações realizadas para cada um desses objetos. Por exemplo, se dispõem de maior capacidade e conhecimento para atuar nas áreas de medicamentos e alimentos – e, consequentemente, oferecer uma maior proteção no consumo desses produtos – do que na área de dispositivos médicos.
Existem espaços de cooperação no campo da vigilância sanitária entre os países da América do Sul, como por exemplo, no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul), constituído por diversas comissões e grupos que tratam de temas prioritários para os países da região. Entretanto, no âmbito sul-americano, nos espaços de atuação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), esses temas não são tratados na mesma abrangência. Embora exista, por exemplo, uma Comissão de Vigilância em Saúde da Unasul, até o momento somente foram tratados temas de vigilância sanitária relacionados ao Regulamento Sanitário Internacional. Entretanto, existem outros espaços de atuação da Unasul, nos quais têm sido tratados temas específicos como rotulagem de alimentos (Conselho de Saúde da Unasul) e banco de preços para aquisições públicas de medicamentos (Grupo Técnico de Acesso Universal a Medicamentos de Unasul).
Assim, existe um amplo espaço para articular a cooperação entre os países sul-americanos no campo da vigilância sanitária, sendo que alguns temas ainda não estão na pauta cotidiana para a região. Em um Seminário sobre Sistemas de Vigilância Sanitária da América do Sul, organizada pelo Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS/UNASUR)1, em 2012, foram considerados como relevantes para a região os seguintes temas: harmonização da regulação, avaliação e incorporação tecnológica, certificação internacional de empresas fabricantes, intercâmbio de informações sobre as inspeções internacionais, controle de qualidade, capacitação de recursos humanos, dispositivos médicos, plantas medicinais, políticas de preços, tecno e farmacovigilância e análise de risco (com ênfase na comunicação de risco).
Podemos destacar dois temas urgentes que emergem para articulação entre os países sul-americanos, pois já constituem pauta comum dos países e a cooperação entre eles irá fortalecer os avanços nessas áreas: a) Resistência Antimicrobiana – a partir de maio deste ano, após a Assembleia Mundial da Saúde, todos os países deverão implementar os Planos de Ação Nacional, que deveriam estar construídos até esta data. Nesses planos, há uma série de ações que correspondem ao campo da vigilância sanitária, de forma integrada com outros setores como agricultura, pecuária e meio ambiente, e que representam uma boa oportunidade de aperfeiçoar ou desenvolver práticas e estratégias específicas, como por exemplo, controle da produção, distribuição, venda e uso dos antimicrobianos de uso humano. b) Avaliação de tecnologias em saúde (medicamentos, equipamentos e produtos para a saúde) – a atuação das agências reguladoras, no registro de produtos, se baseia na verificação e análise de documentos e estudos apresentados pelas empresas, nos quais devem estar evidenciadas segurança e eficácia. A comprovação desses parâmetros e o seu desempenho nas condições normais de prática, quando de seu uso em saúde pública, ou seja, sua efetividade, em geral, não são realizadas pelas agências ou pelos demais órgãos de vigilância sanitária. Com exceção da análise sobre a segurança dos produtos, que é objeto de vigilância, em especial da farmacovigilância e da tecnovigilância. Em alguns países, outros órgãos avaliam o desempenho dos produtos ou com o propósito de definir sobre a incorporação pelos serviços de saúde pública (por exemplo, Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde [SUS] do Brasil) ou para tipos específicos de produtos utilizados no mercado (por exemplo, Instituto de Evaluación Tecnológica en Salud, da Colômbia). Mas o intercâmbio de informações entre os órgãos e setores que executam essas diferentes funções é incipiente, o que pode gerar um grande número de produtos que não tiveram seu desempenho testado ou evidenciado na prática (seja para diagnóstico ou tratamento) e que continuam em utilização nos serviços de saúde. Essas insuficiências se tornam mais críticas ainda para as novas tecnologias (nanotecnologia, organismos geneticamente modificados, biofármacos), representando um desafio adicional para as vigilâncias sanitárias.
Portanto, a partir da definição de áreas prioritárias para análise e atuação conjunta dos países, é possível ampliar e fortalecer o campo da vigilância sanitária na região sul-americana, oferecendo uma maior proteção à sua população. Da mesma forma, os estudos e investigações que identifiquem essas lacunas, bem como apontem soluções para a superação desses desafios, são essenciais.
A existência de publicações sobre o tema na região sul-americana representa uma excelente oportunidade para o estímulo à produção e intercâmbio de conhecimento entre a comunidade científica e os diversos atores da prática de vigilância sanitária. Assim, a revista VISA em Debate, na sua recente iniciativa de internacionalização, com a abertura para adoção de membros do Corpo Editorial de outros países sul-americanos e a recepção de artigos em outros idiomas (com tradução para o idioma inglês), ao mesmo tempo em que será fundamental para o seu crescimento, poderá contribuir para torná-la um espaço de discussão dos temas de vigilância sanitária na América do Sul.
* E-mail: eduardohage@isags-unasur.org