RESUMO
Introdução: O Projeto de Fortalecimento da Vigilância em Saúde implantado em 2012, em Minas Gerais, visava a descentralização da Vigilância Sanitária, subsidiada no diagnóstico local.
Objetivos: Caracterizar os serviços municipais de Vigilância em Saúde no estado de Minas Gerais em 2014.
Método: Estudo transversal que analisou diagnósticos de 527/853 (62%) municípios do total do estado de MG. As variáveis comuns às áreas da Vigilância em Saúde foram instrumentos de gestão, financiamento, categoria profissional, qualificação e sistema de informação. Aquelas específicas às áreas da Vigilância em Saúde caracterizaram infraestrutura, serviços de referência e ações. Analisaram-se frequências, medianas, diferenças interquartílicas e coeficiente de Spearman (p< 0,05).
Resultados: Observou-se associação entre instrumentos de gestão, disponibilidade de categorias profissionais, sistema de informação e porte populacional (p<0,001). Identificou-se infraestrutura insuficiente nas Vigilâncias Sanitária e Ambiental e predomínio das ações programáticas frente àquelas de monitoramento.
Conclusões: O desafio da Vigilância em Saúde demanda enfrentamentos no campo da gestão, das práticas e do financiamento.
Palavras chave: Vigilância em Saúde, Integralidade, Programas de Saúde, Avaliação de Projetos de Saúde.
ARTIGO
A descentralização da Vigilância em Saúde em Minas Gerais: caracterização dos serviços municipais, 2014
Recepção: 16 Junho 2017
Aprovação: 10 Agosto 2017
O desenvolvimento e a institucionalização da Vigilância em Saúde (VS) no Brasil envolvem um contínuo aperfeiçoamento das políticas formuladas a partir da construção de conhecimentos sobre o tema e das práticas de saúde implementadas1 . O desafio da reorientação da vigilância para além da doença, abordando determinantes e condicionantes da situação de saúde, associa-se à necessária incorporação da Vigilância Ambiental (VA), da Vigilância da Saúde do Trabalhador (Visat), da Promoção da Saúde às tradicionais áreas da Vigilância Epidemiológica (VE) e da Vigilância Sanitária (VISA)2 . A imagem objetivo das políticas da VS perpassa por esse diálogo, sem desconsiderar especificidades, enquanto resposta à complexidade do quadro sanitário brasileiro.
A inclusão de princípios como territorialidade, planejamento e decisões baseadas em evidências é pressuposto para a articulação das ações de promoção, de diagnóstico precoce, de proteção e de assistência na saúde3 , 4 . Assim, a interação entre os processos de trabalho entre as áreas da VS, em interface com a Vigilância da Situação de Saúde, tem por requisito a transformação dos saberes e das práticas de gestão e de atenção5 , 6 .
Em Minas Gerais (MG) a proposta denominada Projeto de Fortalecimento da Vigilância em Saúde (PFVS) objetivou a descentralização das ações e serviços da VS de forma articulada à Atenção Primária à Saúde (APS), sustentando-se na reorganização das Superintendências e Gerências Regionais de Saúde; no repasse de recursos financeiros estaduais aos municípios, conforme tipo de adesão (1, 2 ou 3) a elencos de ações de complexidade crescente em VS e na qualificação de Recursos Humanos (RH) em saúde7 , 8 , 9 .
Os tipos/níveis de adesão referiam-se ao compromisso do gestor municipal em executar conjuntos de ações de VS organizados em função do nível de análise e monitoramento da situação de saúde, dos tipos de diagnósticos laboratoriais ou protocolos clínicos/terapêuticos desenvolvidos e dos tipos de estabelecimento sob responsabilidade da VISA municipal7 , 8 . No nível de adesão 3 inclui-se também o critério populacional, no qual apenas municípios com 100 mil habitantes (hab.) ou mais podiam pleitear este nível.
O estado de MG é composto por 853 municípios, distribuídos em 13 regiões ampliadas de saúde e 75 regiões de saúde, as quais são consideradas a base territorial de planejamento da atenção à saúde10 . Os municípios apresentam distintas realidades demográficas, econômicas, sociais, culturais e sanitárias, com variações no tamanho populacional11 .
Para a operacionalização da política local e o monitoramento da implementação do PFVS foi elaborado um Instrumento de Diagnóstico Local da VS que coletou informações sobre os meios e ferramentas de gestão, a disponibilidade de recursos diversos, a oferta de procedimentos em serviços de referência e a realização de ações segundo área da VS*. Assim, o reconhecimento e a sistematização de normas, processos de trabalho e finalidades da área poderiam subsidiar e orientar a implantação desses serviços em cenários municipais diversos12 . O presente trabalho teve por objetivo caracterizar os serviços municipais de VS no estado de MG em 2014, contribuindo para sua descentralização.
Trata-se de um estudo transversal que analisou aspectos organizacionais da VS municipal, a partir das informações do Diagnóstico Local da VS, realizado em MG, no ano de 2014. O diagnóstico foi o marco inicial da implantação do PFVS que subsidiou a orientação e pactuação de serviços de vigilância municipais.
Para este estudo, os municípios foram distribuídos pelo porte populacional (menos de 20.000 hab.; 20.000–49.999 hab.; mais de 50.000 hab.) e tipo de adesão (1, 2 ou 3) ao PFVS, de acordo com elencos de ações de complexidade crescente assumidas pela gestão municipal.
Foram analisados os dados dos 853 municípios que preencheram o instrumento de diagnóstico de VS, em 2014. A consistência da base de dados foi considerada, verificando-se a incompletude dos campos do formulário quanto à ausência de informações e existência de duplicidades de registros.
As variáveis analisadas referem-se à organização da VS – VE, VA, VISA, Visat, Promoção da Saúde e Vigilância da Situação de Saúde– agrupadas como:
Instrumentos de gestão (presença de regulamentos de serviços da VS instituídos, documentos de planejamento incluindo VS, uso de código sanitário e existência de apoio jurídico);
Financiamento (alocação de recursos conforme Bloco de Financiamento da VS, aplicação de Taxas e Multas);
RH (categorias profissionais presentes, qualificações realizadas, existência de carga horária diária de técnico de VS);
Sistema de informação (presença de computador, presença de internet).
Disponibilidade de infraestrutura (Espaços físicos, Materiais, Equipamentos);
Ações desenvolvidas na Promoção da Saúde, VE, VISA, VA, Visat, Vigilância da Situação de Saúde;
Oferta em serviços de referência (exames diagnósticos, consultas especializadas). Duas variáveis pertinentes à cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e à existência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) também foram consideradas.
Realizou-se a análise descritiva dos dados verificando-se a distribuição das frequências relativas e medidas de posição como mediana e diferença interquartílica. O grau de associação entre as variáveis baseou-se no coeficiente de correlação de Spearman, tomando como resultado estatisticamente significativo, os valores de p < 0,05. As análises incluíram avaliação contínua e estratificada do porte populacional. Utilizou-se o Programa de Análise Estatística R, versão 3.0.0 (2013-04-03).
Este trabalho não apresentou conflito de interesses e foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro de Pesquisas René Rachou/Fundação Oswaldo Cruz/CpQRR, Parecer no 874.775, de 2 de novembro de 2014.
Dos 853 municípios elegíveis, 792 responderam ao instrumento de diagnóstico da VS em 2014. Destes, foram excluídos da análise 265 municípios, com campos não preenchidos, superiores a 20%, considerados de qualidade ruim por comprometer a caracterização dos serviços locais de vigilância13 . Após análise da consistência da base de dados, foram incluídos no estudo, 527 municípios, o que representou 62% do total no estado de MG.
Dentre o total dos municípios selecionados, 417 (79%) apresentaram menos de 20 mil hab., 75 (14%) entre 20.000 e 49.999 hab. e 35 (7%) tinham mais de 50.000 hab. Quanto ao tipo de adesão ao PFVS, observou-se que 511 (97%) tinham adesão tipo 1, 14 (2,5%), adesão tipo 2 e dois (0,5%), adesão tipo 3.
A Tabela 1 mostra o tipo de adesão ao PFVS e aspectos da gestão, do financiamento, da disponibilidade de RH, de computador e de internet, segundo os estratos do porte populacional dos municípios.
Os resultados apontaram um aumento gradativo dos aspectos relacionados à organização da VS com o porte populacional dos municípios, mas também à presença de diversas deficiências nesses serviços. Esse último fato pode explicar a adesão majoritária ao elenco de ações básicas em VS propostas pelo PFVS. Dentre os 14 municípios da amostra com mais de 100 mil hab. e que poderiam pactuar a realização de ações de maior complexidade, dez deles optaram por adesão às ações básicas em VS.
Na Tabela 1 pode-se verificar que foi baixo, variando de 8% a 31% entre os estratos populacionais, o número de municípios com regulamentos (leis, portarias) que instituíam a VS local. A atuação da VISA sem o respaldo da aplicação de taxas ou multas também pode ser constatada em grande parte das localidades. Com relação aos RH, verificou-se insuficiência de categorias profissionais atuantes na VS, além de baixos percentuais de municípios com pessoal qualificado. Nos municípios com menos de 20.000 hab. apenas 14% apresentavam técnico da VS atuando com uma carga horária média de seis horas semanais. A existência de computadores para cada área específica da VS também foi baixa, bem como a disponibilidade da internet ( Tabela 1 ).
A análise das categorias profissionais mostrou que, no quadro de pessoal dos municípios, nem sempre estava disponível coordenador da VS com dedicação exclusiva, referências com formação técnica em VS, em Doenças e Agravos Não Transmissíveis (DANT) ou em Sexualmente Transmissíveis (ST).
Com relação à disponibilidade de infraestrutura, as melhores situações foram observadas na VE e na Promoção da Saúde, áreas que também se destacaram quanto às ações desenvolvidas ( Tabela 2 ). A infraestrutura e as ações desenvolvidas pela Visat municipal apresentaram a mesma mediana nos diferentes estratos populacionais.
As áreas da VA e VISA apresentaram os piores resultados quanto à disponibilidade de espaços físicos, materiais e equipamentos, principalmente em municípios com menos de 50 mil hab. Com relação ao elenco de equipamentos relacionados à VA, a análise desta variável apontou que mais da metade deles, como bomba costal, lupa entomológica, microscópio, medidor de cloro, dentre outros, faltavam em 77% (404) dos municípios da amostra, sendo que 22% (126) não registraram nenhum equipamento.
As ações desenvolvidas na promoção da saúde referiam-se, de forma predominante, aos Programas como Saúde na Escola, Controle do Tabagismo, Academia da Cidade, Vigilância Alimentar e Nutricional. Aquelas relacionadas ao controle das DANT ou envolvendo educação em saúde ou monitoramento da situação de saúde alcançaram 0% a 50% de execução em metade dos municípios da amostra.
A oferta em serviços de referência apontou a VE como a área com maior disponibilidade de encaminhamentos para a realização de exames diagnósticos e consultas especializadas ( Tabela 2 ). A menor oferta foi constatada em municípios com menos de 20 mil hab., seja para a VE, VA ou Visat.
A análise da cobertura da ESF e do NASF apontou que a oferta de equipamentos utilizados na realização de atividades físicas (p < 0,001) e de ações de promoção e proteção à saúde (p < 0,0001) correlacionou-se somente com a presença do NASF.
A caracterização dos serviços da VS municipal demonstrou que o PFVS apresentava fatores condicionantes à sua implantação, relacionados a aspectos da gestão, da infraestrutura e da organização dos serviços em rede. Há sinais de que o desenvolvimento das ações de VS propostas requeiram uma análise do contexto municipal e um planejamento comum entre áreas da VS e demais unidades de saúde, tendo por diretrizes o apoio em evidências e a integralidade da atenção. O não preenchimento do diagnóstico local por cerca de 40% dos municípios do estado e inconsistências no instrumento de coleta podem ter sido fatores limitantes à análise.
A insuficiente institucionalização dos serviços da VS no âmbito dos sistemas municipais de saúde foi incoerente com as afirmativas quanto à incorporação de ações da VS em documentos como Plano de Saúde, Programação Anual e Relatório de Gestão. A própria planificação apresenta indícios de comprometimento, considerando o déficit de infraestrutura relacionado aos Sistemas de Informação em Saúde (SIS), imprescindíveis ao monitoramento e avaliação dos processos e resultados pertinentes às ações de VS propostas.
Essa reflexão também deve incorporar o SIS para além do seu aparato tecnológico, mas enquanto ferramenta de uma análise dinâmica e publicizada da situação de saúde e enquanto apoio para a regulação dos processos de trabalho e a superação do caráter prescritivo e burocrático do planejamento no setor14 , 15 .
Os problemas detectados quanto à força de trabalho atuante nos serviços municipais da VS em MG coincidiram com os resultados de estudos de base local, em outros estados, que identificaram a insuficiência e a deficiência da formação de profissionais para atuação na perspectiva da integralidade da atenção, causas plausíveis das ações pontuais e fragmentadas da VS entre suas áreas e nos demais serviços da rede16 , 17 .
Respostas a esses entraves puderam ser identificadas a partir de ações recentes de formação pela Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS) e pela oferta de cursos de Educação Permanente em Saúde (EPS), via Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNASUS), ambas com foco na VS18 , 19 . Independentemente da modalidade da ação educativa proposta, o essencial é que esta se desenvolva a partir da realidade do território em que se insere o trabalhador da saúde, em prol da ressignificação das práticas e envolvimento da comunidade20 .
Já o fato do maior déficit quanto à infraestrutura ocorrer nos serviços da VA e da VISA pode ser relacionado às dificuldades que estes serviços enfrentam quanto ao financiamento e à articulação intersetorial, o que envolve desafios no âmbito político e técnico-operacional21 , 22 , 23 . Isso ressalta a necessidade de maior investigação quanto ao desenvolvimento das ações referidas pelos municípios, principalmente no que tange à VISA, incluindo o fato do instrumento de diagnóstico não apresentar a descrição de exames relacionados à sua atuação.
Tal ausência pode expressar um problema inerente ao instrumento de diagnóstico em questão, bem como uma dificuldade histórico-institucional da VISA em estabelecer interface com as demais práticas de saúde, o que pode contribuir para que não esteja contemplada em um planejamento prévio que lhe garanta retaguarda laboratorial24 .
O papel do NASF na operacionalização de ações da Promoção da Saúde encontrou respaldo em um estudo nacional que identificou o maior desenvolvimento de práticas corporais e atividades físicas em municípios com a presença destes serviços, com destaque para a Região Sudeste25 . Já a execução dessas ações de forma predominante, a partir de programas verticalizados, explica-se pelo caráter prescritivo destes, com implantação precedida por objetivos bem definidos, repasse de recursos financeiros e/ou de infraestrutura específicos, sem exigir capacidade de gestão ou mudanças no núcleo duro das práticas de saúde26 .
Os limites da integralidade da VS no que tange aos serviços de diagnose e consultas especializadas encontram consonância com aspectos da própria implantação do PFVS ao não abordar as diferenças de conformação dessa rede de serviços entre as regiões do estado7 , 8 , 11 . Essa é uma questão crítica que envolve macrodeterminantes políticos e financeiros que fomentam o acesso baseado na oferta do serviço contratado/conveniado, a insuficiência e ineficácia da rede laboratorial, a governança regional imediatista e conflitante, resultando em fatos visíveis como a falta de responsabilização quanto ao cuidado horizontal do usuário em rede e o comprometimento do vínculo27 , 28 , 29 .
Estudos apontam que a atenção da saúde em rede tem por pressuposto repensar a conformação das Regiões de Saúde a partir de conjunturas políticas, aspectos demográficos, socioeconômicos e sanitários distintos, contando com um papel mais proativo dos gestores municipais30 . Assim, o PFVS, na atual gestão estadual denominado como Programa de Monitoramento das Ações de VS, pode ser instrumento oportuno de apoio à qualificação dos gestores e referências técnicas em espaços como as comissões intergestores de saúde ou no próprio município31 .
Ações pontuais também podem ser identificadas no âmbito de alguns municípios para o enfrentamento de algumas questões referidas como investimento na regulação descentralizada e informatizada para o monitoramento de filas de espera, além da implantação de prontuários eletrônicos e diretrizes para a assistência, enquanto ferramentas de gestão do sistema e da clínica, compatíveis com a proposta de integração da atenção primária aos demais serviços da rede32 .
Essa reflexão encontra referência em Cecílio33 , ao apontar que a integralidade da atenção se constrói em equipes multiprofissionais de saúde, nas quais processos de trabalho solidários constituem-se de um conjunto de saberes e práticas voltadas às necessidades de saúde do indivíduo e do coletivo. Essa integralidade também está na forma como os serviços se organizam e se articulam para uma abordagem potencializada das necessidades de saúde34 .
As fragilidades dos serviços da VS municipal, identificadas por meio dos municípios respondentes, podem explicar a ausência de informações por parte significativa dos demais, revelando a importância das distintas realidades dos contextos municipais para a implementação do PFVS. Esse fato sustenta uma avaliação da atual proposta na perspectiva de assegurar a proteção da população, priorizando regiões de saúde com maiores iniquidades socioeconômicas e de acesso a serviços. Tal reflexão implicaria em considerar as localidades de menor porte populacional e suas respectivas capacidades de gestão (municipal ou compartilhada).
Já as limitações do instrumento de diagnóstico apontam para a necessária interação entre atores das áreas da VS e da APS no próprio âmbito estadual, enquanto condutores da implementação da proposta política. A reelaboração em conjunto desse instrumento seria um meio de fomentar um planejamento estratégico que potencializaria as ações da VS e a percepção da convergência das metas pactuadas pelos diversos setores.
Tal diálogo, subsidiado na análise do contexto municipal e regional, seria um meio de delinear as interfaces e especificidades dos processos de trabalho entre serviços no âmbito local no que tange às ações da VS, bem como a relação destes com os índices de resolubilidade da média e alta complexidade regional. A adequação do diagnóstico em uma base de dados apropriada à análise e de fácil acesso também seria um elemento importante a ser considerado.
os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: profeta@minas.fiocruz.br