RESUMO
Introdução: A infecção do trato urinário associada a cateter vesical de demora (ITU-CVD) representa cerca de 40,0% das infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS).
Objetivo: Identificar através da literatura os principais fatores associados à formação do biofilme em cateter vesical de demora (CVD).
Método: Revisão nas bases de dados: Lilacs, Ibecs PubMed e Portal Capes, utilizando os descritores: “infecção do trato urinário”; “cateteres urinários” e “biofilme” de artigos publicados na íntegra entre 2009 e 2016, nos idiomas inglês, espanhol ou português.
Resultados: Foram selecionados oito artigos, sendo quatro revisões sistemáticas e quatro estudos observacionais. Os biofilmes nos CVD são formados pela fixação de patógenos que se inicia pela deposição de urina na superfície do cateter. Os fatores associados à formação do biofilme no CVD foram: tipo de microrganismos (87,5%), presença de flagelos, motilidade e produção de urease, conformação estrutural (37,5%) em látex (superfícies irregulares hidrofóbicas e hidrofílicas) que permitem a adesão e colonização por vários microrganismos, e o sexo feminino (12,5%).
Conclusões: a presente revisão identificou os fatores associados à formação do biofilme no CVD e assim contribuiu para a proposição de medidas eficazes na prevenção com foco na segurança do paciente.
Palavras chave: Infecção do Trato Urinário, Cateteres Urinários, Biofilme.
REVISÃO
Biofilme em cateter vesical de demora e a segurança do paciente: uma revisão da literatura
Recepção: 27 Março 2017
Aprovação: 08 Agosto 2017
A infecção do trato urinário associada a cateter vesical de demora (ITU-CVD) representa cerca de 40,0% das infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS) e praticamente todos os casos de ITU hospitalar estão relacionados com o uso do cateter vesical (CV)1 .
A incidência de bacteriúria, presença de bactérias na urina, em pacientes sondados é proporcional ao tempo de cateterização, sendo o risco diário de 3,0 a 10,0% chegando a 100,0% em período de 30 dias. Após a inserção do cateter vesical de demora, as bactérias que colonizam o meato uretral aderem à superfície interna e/ou externa do cateter e podem iniciar a formação de biofilme, um complexo de material orgânico constituído por microrganismos que crescem em colônias organizadas de células envoltas por uma matriz, composta, principalmente de exopolissacarídeos (EPS) de origem microbiana formada por macromoléculas, incluindo ácidos nucleicos, proteínas, polissacarídeos e lipídios. O biofilme propicia a adesão do microrganismo à superfície do cateter de uma forma que dificulta sua remoção, e o inverso também pode ocorrer, a superfície do cateter favorece a adesão da bactéria e a partir daí a formação do biofilme, ocasionando a ITU-CVD1 , 2 .
O biofilme constitui o principal fator de risco para IRAS e estima-se que cerca de 65,0 a 80,0% das infecções relacionadas a dispositivos invasivos estejam associadas à sua presença. O tempo necessário para se formar um biofilme em um cateter vesical depende da associação microbiana no dispositivo e do tipo de material3 , 4 , 5 . Especificamente relacionados aos cateteres urinários, o biofilme é considerado como um importante fator para ITU-CVD, que conduz a tratamentos prolongados, elevados custos de saúde e taxas de mortalidade6 .
A formação do biofilme tem uma relação direta com a habilidade do microrganismo de colonizar o cateter. Em geral, os microrganismos mais comumente associados ao biofilme de cateter vesical são Escherichia coli, Enterococcus sp , Proteus mirabilis e Klebsiella pneumoniae5 , que se aderem à superfície do cateter e, ao ser envoltos pela camada de EPS, essa confere às células microbianas uma elevada resistência aos antimicrobianos, além de aumentar a possibilidade de transferência horizontal de genes entre bactérias dentro do biofilme, proteção aos mecanismos de defesas do hospedeiro e contra antissépticos, com graves implicações clínicas7 , 8 , 9 .
Assim, biofilmes desempenham um papel importante na patogênese da ITU-CVD. Dada a relevância do tema, espera-se que os resultados alcançados forneçam subsídios para uma melhor compreensão das práticas que possam minimizar/eliminar os possíveis fatores associadas à formação do biofilme no cateter vesical. Diante do exposto, o objetivo desse estudo foi buscar evidências na literatura sobre os fatores associados à formação do biofilme no CVD.
Tratou-se de uma revisão da literatura fundamentada nos seguintes passos: identificação do tema e formulação da questão de pesquisa, elaboração dos critérios de inclusão e exclusão de artigos, construção quadro sinóptico para coleta de dados dos artigos selecionados, avaliação e análise dos artigos, interpretação e discussão dos resultados obtidos e apresentação da revisão.
O levantamento dos artigos foi realizado nas bases de dados da biblioteca virtual de saúde (BVS): Literatura Latino-americana em Ciências da Saúde (Lilacs) e Índice Bibliográfico Espanhol de Ciências da Saúde (Ibecs); além da U.S. National Library of Medicine National Institute of Health (PubMed) e bases de dados do Portal Capes. Para a seleção dos artigos foi efetuada uma consulta aos Descritores em Ciência da Saúde (DeCS) e ao Medical Subject Headings (MeSH), sendo identificados e utilizados os descritores controlados, nos idiomas português, inglês e espanhol: infecção do trato urinário; cateteres urinários e biofilme, através da seguinte estratégia de busca: “Mesh:c01.539.895” OR “ Urinary Tract Infections ” OR “ Infecciones Urinarias ” OR “ Infecciones Urinarias ”; AND “Mesh:e07.132.625” OR “Cateteres Urinários” OR “ Urinary Catheters” OR “ Urinary Catheter ” OR “Cateter Urinário” OR “Catéteres Urinarios” OR “Sonda Vesical de Demora”; AND biofilm *.
Foram estabelecidos como critérios de inclusão: artigos em inglês, português e espanhol, publicados nos últimos nove anos (2009 a 2017), considerando como referência a data da publicação do Guideline for Prevention of Catheter Associated Urinary Tract Infections10 .
A busca dos artigos ocorreu no período de outubro de 2016 a fevereiro de 2017, encontrando-se um total de 943 artigos, sendo selecionados 156 e, após leitura comparativa, foram excluídos 51 desses por estarem duplicados, totalizando para a próxima etapa 105 artigos. Nessa etapa, realizou-se a leitura na íntegra desses 105 artigos, verificando-se que 97 não atendiam aos critérios previamente definidos ou a pergunta norteadora, ficando a amostra final composta por oito artigos. A Figura 1 ilustra o processo de seleção dos artigos desta revisão.
Para a coleta de dados foi elaborado um quadro sinóptico, adaptado para este estudo, que contemplou os seguintes itens: dados de identificação do artigo original (autores, revista e ano), objetivos, principais resultados e conclusões e nível de evidência científica do estudo.
Para determinação do nível de evidência dos estudos, os mesmos foram hierarquizados de acordo com a avaliação da confiabilidade e validade, a qual considera a abordagem metodológica, o delineamento de pesquisa empregado e a qualidade de seus resultados. Para esta avaliação, considerou-se: nível I - evidência obtida do resultado de uma revisão sistemática ou metanálise de todos os ensaios clínicos randomizados controlados ou oriundas de diretrizes baseadas em revisões sistemáticas de ensaios clínicos a controlados; nível II - evidência obtida de pelo menos um ensaio clínico com aleatorização, controlado e bem delineado; nível III - evidência proveniente de um estudo bem desenhado e controlado sem aleatorização; nível IV - evidência proveniente de um estudo com desenho de caso-controle ou coorte; nível V - evidência proveniente de uma revisão sistemática de estudos qualitativos e descritivos; nível VI - evidência de um único estudo descritivo ou qualitativo; nível VII - evidência proveniente da opinião de autoridades e/ou relatórios de comissões de especialistas/peritos11 .
Após leitura na íntegra e extração dos dados dos artigos selecionados, os resultados foram apresentados em quadros e gráfico contendo os fatores mais relevantes associados à formação do biofilme no CVD.
A amostra desta revisão foi composta por oito estudos, publicados entre 2009 e 2016, destacando-se o ano de 2014 com três (37,5%). Dessas publicações, sete (87,5%) foram na língua inglesa, um (12,5%) na língua espanhola e nenhum em português. Entre os periódicos, os principais foram oriundos do PubMed com seis (75,0%) estudos, Ibecs com um (12,5%) e um (12,5%) nas bases do Portal Capes.
Os principais fatores associados à formação do biofilme no CVD identificados nos estudos analisados foram: Tipo de microrganismos (87,5%); duração do CVD (62,5%), conformação estrutural do CVD (37,5%) e o sexo feminino (12,5%) ( Quadro 1 ).
Com o objetivo de facilitar a compreensão dos resultados apresentados, as investigações incluídas na presente revisão foram agrupadas segundo fatores de risco e nível de evidência no Quadro 2 .
Em relação ao nível de evidência, observou-se que a metade dos estudos foram classificados com nível V, ou seja, evidência proveniente de uma revisão sistemática de estudos qualitativos e descritivos. Quanto às publicações no período analisado, evidencia-se que a produção em relação à temática não apresenta crescimento, o que se apresenta como desafio para prevenção das ITU-CVD, visto que a formação do biofilme é o principal fator de risco para essas infecções ( Figura 2 ).
Os fatores associados à formação do biofilme em CVD, identificados nesse estudo, estão relacionados aos microrganismos, à conformação estrutural do CVD e às condições intrínsecas do paciente. A combinação desses fatores ocorre desde a inserção do CVD e subsequente ascensão do biofilme que se forma rapidamente em toda sua superfície9 , 16 .
Os biofilmes nos CVD são formados por bactérias Gram-positivas e/ou Gram-negativas e fungos através da fixação que se inicia pela deposição de urina na superfície do cateter15 , 16 . Além disso, a motilidade e presença de flagelos nos uropatógenos facilitam a aderência necessária para a formação do biofilme3 , 17 . Estudos identificaram produção significativa de biofilme nas ITU-CVD em amostras de E. coli (60,0–80,0%), Klebsiella sp (16,0–21,0%), Staphylococcus coagulase negativo (3,0–6,0%), P. mirabilis (6,0%), P. aeruginosa (2,0–4,0%), Acinetobacter spp (1,0–2,0%) e Enterococcus (2,0%)13 , 14 , 19 .
Outro aspecto importante é a capacidade de produção de urease pelos microrganismos, que contribui para a formação do biofilme cristalino e consequente obstrução do CVD5 . P. mirabilis, patógeno mais prevalente nos cateterismos crônicos, é responsável pela maioria das obstruções5 , 9 . A urease produzida por esse microrganismo hidrolisa ureia seis a dez vezes mais rapidamente em comparação com outras espécies3 , 5 , 9 e a amônia liberada eleva o pH da urina e precipita cristais de cálcio e fosfatos de magnésio na superfície do cateter. Essas incrustações bloqueiam o lúmen do cateter favorecendo o refluxo urinário com possibilidade de evolução para pielonefrite aguda, bacteremia, prostatite crônica, infecção renal crônica, sepse e, em alguns casos, a morte3 , 13 , 19 .
Outras bactérias produtoras de urease são P. aeruginosa , K. pneumoniae , Morganella morganii , Providencia sp e algumas cepas de S. aureus e Staphylococcus coagulase negativo. A produção de urease por P. aeruginosa , K. pneumoniae e M. morganii não gera urina alcalina, sendo estas cepas raramente associadas à incrustação e obstrução de cateteres9 .
Observa-se nessa revisão que a microbiologia do processo de formação do biofilme no CVD é um processo dinâmico, que continuamente pode incorporar novos microrganismos com características diferentes. Portanto, é comum biofilme polimicrobiano em cateterização de longa duração, sendo, na maioria das vezes, o reservatório o próprio trato urinário do paciente12 .
Os CVD de látex apresentam alta propensão à formação de biofilmes devido à composição favorável de superfícies irregulares hidrofóbicas e hidrofílicas que permitem a fixação e colonização por vários microrganismos5 , 7 .
Uma variedade de alternativas aos cateteres de látex tem sido investigada para evitar a formação de biofilme e, consequentemente, a ITU-CVD. As alternativas incluem cateteres de silicone ou revestidos de silicone, impregnados com antimicrobianos, revestido com prata ou hidrogel. O uso do silicone foi pensado para diminuir a inflamação uretral e fixação bacteriana. Estudo demonstrou vantagem do cateter de silicone puro comparado com o de látex revestido de silicone em termos de incidência de colonização bacteriana, bem como a formação de biofilme8 . Em relação aos cateteres impregnados com antimicrobianos e revestidos com prata, esses foram desenvolvidos para retardar a proliferação bacteriana e a superfície com hidrogel é teorizada para evitar a formação de biofilme por alteração da afinidade superficial bacteriana7 , 8 , 12 .
Por outro lado, estudo multicêntrico sugeriu que o uso de cateter impregnado com antimicrobianos reduziu o risco de ITU-CVD quando comparado com o cateter de látex revestido. Entretanto, esses resultados foram limitados ao curto prazo de cateterização e sua recomendação é incerta quanto à prevenção de biofilme e ITU-CVD em períodos acima de sete dias além de uma relação custo-benefício desfavorável10 , 20 .
Assim, a indicação para utilização de cateteres impregnados com antimicrobianos é restrita para situações de insucesso no controle das taxas de ITU-CVD quando já implementadas as recomendações globais para prevenção como o uso restrito, técnica asséptica na inserção e avaliação da necessidade de manutenção do cateter7 , 10 , 19 . Todos os tipos de cateter atualmente disponíveis podem ser vulneráveis à formação de biofilme e, além da retirada do cateter, não existem evidências de métodos eficazes para sua prevenção ou controle5 , 7 , 8 , 10 , 12 , 20 .
Outra questão crítica é o tempo de permanência do CVD, que é proporcional ao risco de formação do biofilme. Os biofilmes se desenvolvem de forma dinâmica, com alterações nas populações microbianas e virulência ao longo do tempo e estimulam o crescimento microbiano e a ascensão no sistema urinário3 , 9 . Deste modo, a conduta frente à utilização do CV deve ser criteriosa, desde a avaliação da indicação, inserção, manutenção e a sua remoção o mais breve possível10 .
Vários fatores de risco relacionados ao paciente têm sido descritos para elevada prevalência de ITU-CVD como sexo, idade avançada e uma doença grave coexistente3 , 13 , 14 . Entretanto, somente um estudo realizado em Portugal identificou o sexo feminino como fator influente na produção de biofilme em CVD13 . É conhecido o fato de que a infecção urinária é muito mais comum nas mulheres do que nos homens, devido à pequena extensão da uretra feminina e à disposição anatômica de sua genitália externa, cujo meato uretral, localizado no vestíbulo vaginal, fica mais exposto à colonização de germes do trato intestinal10 , 14 .
Como limitação deste estudo, identificou-se a escassez de artigos científicos primários randomizados, verificando-se o predomínio de estudos descritivos e de revisão. Entretanto, o último guideline do Centers for Disease Control and Prevention para prevenção de ITU-CVD é de 2009, transmitindo um conhecimento recente sobre essa problemática.
Os principais fatores associados à formação do biofilme no CVD identificados nessa revisão foram relacionados aos microrganismos, como a presença de flagelos e espécies bacterianas ( P. mirabilis, E. coli, K. pneumoniae, Enterococcus faecalis, Staphylococcus sp e P. aeruginosa) , ao tipo de cateter vesical, os compostos por borracha ou látex e ao sexo feminino.
Assim, conhecer os fatores associados à sua formação influencia nas decisões da equipe assistencial para uma melhor análise do tipo de cateter a ser utilizado nos serviços de saúde bem como os riscos inerentes aos pacientes (sexo feminino) e condições que favorecem a aderência e fixação dos microrganismos nos CVD, contribuindo de forma sólida para a proposição de medidas eficazes de prevenção desse evento, com foco na segurança e no cuidado do paciente.
os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: ecilacampos@hotmail.com