RESUMO
Introdução: A biovigilância apresenta nova oportunidade de melhoria e segurança do processo doação-transplante. A biovigilância é definida como o monitoramento e o controle durante os procedimentos que envolvem células, tecidos e órgãos humanos desde a doação até a evolução clínica do receptor e do doador vivo, com o objetivo de obter e disponibilizar informações sobre riscos e eventos adversos, a fim de prevenir sua ocorrência ou recorrência.
Objetivo: Descrever acerca de modelos e iniciativas de biovigilância e transplante no Brasil e no mundo.
Método: Revisão narrativa da literatura nacional e internacional.
Resultados: O risco está presente em todas as etapas que envolvem a doação-transplante, e implica vigilância contínua. As iniciativas de biovigilância no mundo envolvem instituições como a Organização Mundial da Saúde e o Centro Nacional de Transplantes da Itália, que apoiam o compartilhamento de informações de vigilância publicadas para fins de ensino e para maior transparência pública e que, em conjunto com Estados-membros da União Europeia, têm o objetivo de apoiar o desenvolvimento e o fortalecimento da capacidade de monitorar e controlar a qualidade, a segurança e a eficácia nessa área. O governo australiano possui uma iniciativa que coleta informações sobre eventos adversos graves e reações relacionadas à doação e ao transplante de órgãos, mas ainda não possui um sistema de vigilância integrado. O Brasil, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, possui acompanhamento da análise eventos adversos, mas os seus bancos de dados, precisam ser integrados àqueles do Sistema Nacional de Transplantes.
Conclusões: É premente realizar esforço nacional para atender as inciativas internacionais com a Organização Mundial de Saúde e, assim, incorporar medidas para implementar uma cultura de qualidade e segurança no processo doação-transplante com uma modelagem assistencial inovadora, e devolver à sociedade o alto investimento realizado de modo eficiente e eficaz.
Palavras chave: Biovigilância, Obtenção de Tecidos e Órgãos, Transplante, Segurança do Paciente.
ABSTRACT
Introduction: Biovigilance presents a new opportunity for growth and improvement of the donation-transplantation process. Biovigilance is defined as the monitoring and control of procedures involving human cells, tissues and organs, from donation to the clinical evolution of the recipient and the living donor, in order to obtain and provide information on risks and adverse events and reactions, and to prevent its occurrence or recurrence.
Objective: Describe biovigilance and transplant models and initiatives in Brazil and worldwide.
Method: Narrative review of national and international literature on biovigilance and transplantation models in Brazil and worldwide.
Results: The risk is present in all stages involving the donation-transplantation process, and implies continuous surveillance. Bio-surveillance initiatives around the world involve institutions such as the World Health Organization and Italy’s National Transplant Centre, which support the sharing of surveillance information published for teaching purposes and for greater public transparency and which, together with Member States of the European Union, aim to support the development and strengthening of the capacity to monitor and control quality, safety and effectiveness in this area. The Australian Government has an initiative that collects information on serious adverse events and reactions related to organ donation and transplantation, but it does not yet have an integrated surveillance system. Brazil, through its National Sanitary Vigilance Agency, has been monitoring the adverse events and reactions analysis, but that database needs to be integrated with that of the National Transplantation System.
Conclusions: Having National efforts to address international initiatives with the World Health Organization is urgent, thus incorporating measures to implement a culture of quality and safety in the donor-transplant process, with innovative care modelling. It is also necessary to return back to society the high investments done in an efficient and effective manner.
Keywords: Biosurveillance, Tissue and Organ Procurement, Transplant, Patient Safety.
ARTIGO
Modelos e iniciativas de biovigilância e transplante: uma revisão narrativa
Biovigilance and transplantation models and initiatives: a narrative review
Recepção: 13 Setembro 2019
Aprovação: 01 Novembro 2019
Em fevereiro de 1997, o Brasil dava um salto importante na área de captação e transplante de órgãos e tecidos, profissionalizando-a com a criação do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), das Centrais Estaduais de Notificação, Captação, Distribuição de Órgãos e Tecidos para Transplante (CNCDO) e das Organizações de Procura de Órgãos (OPO), definindo o funcionamento desses organismos e suas relações 1.
Em 2009, a Portaria n o 2.600 do Ministério da Saúde (MS), de 21 de outubro, ao aprovar o regulamento técnico do SNT, implementava importantes instrumentos para a realização, a autorização e o registro de processos relacionados à alocação de órgãos e tecidos, bem como para a entrega de relatórios de atividades pelas OPO e pelas Comissões Intra-Hospitalares de Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos (CIHDOTT) 2.
Em 2017, a Portaria Gabinete do Ministro (GM) de Consolidação nº 4, de 28 de setembro 2, reúne as normas dos sistemas e subsistemas do Sistema Único de Saúde (SUS), reiterando os instrumentos anteriormente regulamentados, revogando a Portaria n° 2.600/2009 3. No mesmo ano, o novo Decreto nº 9.175, de 4 de fevereiro, trata, dentre outros regramentos, de que a Central Estadual de Transplantes (CET), antigo CNCDO, deve definir, em conjunto com o órgão central do SNT, parâmetros e indicadores de qualidade para a avaliação dos serviços transplantadores, dos laboratórios de histocompatibilidade, dos bancos de tecidos e dos organismos integrantes da rede de procura e doação de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano. Atualmente, algumas CET, por diferentes razões, ainda não conseguem fazer a análise qualitativa desses relatórios nem promover melhorias baseadas em evidências. As CIHDOTT, pelo mesmo decreto, também passam a ter nova denominação, sendo agora chamadas de Comissões Intra-Hospitalares de Transplantes (CIHT) 4.
O Registro Brasileiro de Transplante n o 4, publicação da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, em 2018 mostra que 33.454 pacientes estavam ativos nas listas de espera aguardando por um órgão ou tecido, 44,25% adultos e 58,58% crianças, enquanto foram realizados apenas 23.388 transplantes de órgãos e, ainda, 2.851 pacientes faleceram aguardando por um transplante. Enquanto isso, tivemos, em 2018, apenas 3.531 doadores efetivos, representando 17 doadores por milhão da população (pmp).
Evidenciando que a necessidade de transplantes é maior do que a oferta de doadores e, nessa área, esse binômio indivisível (doação-transplante) faz com que as ações tenham como principal objetivo utilizar esse bem escasso de maneira eficiente e eficaz.
Com o avanço do movimento de qualidade e segurança mundial e seu impacto no SUS, torna-se necessário monitorar e mensurar processos e resultados, de forma contínua, para garantir a manutenção dos transplantes com equidade, igualdade e justiça para aqueles que procuram essa forma de tratamento. Essa modalidade terapêutica, incorporada ao SUS, responsável pela execução de ações de vigilância sanitária, passa então a ter necessidade premente de acompanhamento dos seus processos e resultados com foco em melhorias constantes.
Isso porque a política de vigilância sanitária brasileira, criada a partir da Portaria GM/MS nº 1.660, de 22 de julho de 2009, determina ações, sob coordenação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para o monitoramento, a análise e a investigação dos eventos adversos e das queixas técnicas relacionados aos serviços e aos produtos na fase de pós-uso/pós-comercialização – Sistema de Notificação e Investigação em Vigilância Sanitária (VIGIPOS) – no âmbito do qual se inclui o uso de células, tecidos e órgãos humanos – com o objetivo último de promover o acesso da população a esses produtos de forma segura e obedecendo aos princípios bioéticos e legais 5.
Em 2010, a 63º Assembleia Mundial da Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS) aprovou a Resolução World Health Assembly (WHA) n o 63.22, que apresenta o seguinte pressuposto: “informações apropriadas sobre doação, processamento e transplante de células, tecidos e órgãos humanos, incluindo dados de eventos adversos graves e reações [...] devem ser comunicados e, posteriormente, analisados pelas autoridades de saúde competentes” 6.
No Brasil, desde 2013, quando foi criado o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) – RDC/Anvisa nº 36, de 25 de julho de 2013, criaram-se os núcleos de segurança do paciente visando promover cultura de segurança nos serviços de saúde, componente estrutural que favorece a implantação das práticas seguras e a diminuição de riscos com o uso de ferramentas da gestão de risco, entre elas a comunicação 7. Além disso, o estabelecimento desse programa determinou que as melhorias de gestão da informação e das atividades de monitoramento, vigilância, avaliação e gestão de riscos fossem implementadas; definindo como indicador de controle dessas ações o quantitativo de países que contam com mecanismos de notificação, vigilância e gestão de eventos adversos informados ao sistema de biovigilância implantado e coordenado pela autoridade competente 8.
Portanto, a biovigilância estabeleceu, em 2019, por meio da consulta pública Anvisa nº 501, de 2 de abril de 2018 9, um conjunto de ações de monitoramento e controle que abrange todo o ciclo de uso terapêutico de células, tecidos e órgãos humanos, desde a doação até a evolução clínica do receptor e do doador vivo, com o objetivo de obter e disponibilizar informações sobre riscos, incidentes e eventos adversos a fim de prevenir a sua ocorrência ou recorrência. Trata-se de uma ferramenta de gestão de risco estabelecida para melhorar a segurança e a qualidade dos procedimentos e processos envolvidos no uso terapêutico de células e tecidos e no transplante de órgãos humanos 9.
Adicionalmente, após 22 anos de implantação da Lei n o 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que trouxe os avanços e sucessos na área da doação e do transplante de órgãos e tecidos no Brasil, pode-se considerar que as instituições brasileiras responsáveis por regular e monitorar o processo de doação e transplantes estão preparadas para, junto com países europeus e outros países das Américas, implementar e promover qualidade e segurança nessa importante área da saúde brasileira 1.
Portanto, para atender ao compromisso internacional com a OMS, é necessário que o Brasil incorpore medidas que encorajem profissionais que trabalham no processo doação-transplante a implementar uma cultura de qualidade e segurança capaz de fornecer informações que promovam a melhoria constante de resultados de maneira ética e responsável. Neste contexto, o objetivo deste estudo foi descrever acerca das iniciativas de biovigilância e transplante no Brasil e no mundo.
Estudo de revisão narrativa da literatura nacional e internacional, seguindo as etapas: formulação do problema, busca na literatura, coleta de dados, análise dos estudos incluídos, apresentação dos resultados e discussão.
Definiu-se como questão norteadora: o que tem sido publicado acerca de modelos e iniciativas de biovigilância e transplante no Brasil e no mundo? Realizou-se busca nas seguintes bases de dados: Pubmed, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Embase, Scientific Electronic Library Online (SciELO), Scopus, Web of Science e Open grey, com os descritores: “Biovigilância”; “Obtenção de Tecidos e Órgãos”; “Transplante”; e “Segurança do paciente”, nos idiomas português e inglês. A pesquisa foi realizada no período de agosto a setembro de 2019.
A OMS há tempos atua na implantação de ações e estratégias em âmbito mundial, objetivando reduzir os riscos e a ocorrência de incidentes e eventos adversos. A literatura aponta que: “Incidentes são eventos ou circunstâncias que resultaram ou poderiam ter resultado em dano desnecessário ao paciente, enquanto o risco é definido como a probabilidade de o incidente ocorrer” 10.
Em relação ao processo de doação e transplante de órgãos e tecidos, a Anvisa adota as definições dos termos incidente, quase erro e evento adverso como sendo os seguintes 11:
Incidente: Ocorrência de desvio dos procedimentos operacionais ou das políticas de segurança do indivíduo no estabelecimento de saúde relacionada à retirada, avaliação, processamento, armazenamento e distribuição de células, tecidos e órgãos detectados antes ou após a doação ou o transplante/infusão/enxerto/implante que podem ou não levar à transmissão de uma enfermidade, morte, risco à vida, deficiências ou incapacidades ou hospitalização ou, ainda, à prolongação do tempo de enfermidades ou hospitalização, em um receptor ou doador vivo 12, 13.
Quase erro: Qualquer desvio de um procedimento padrão ou de uma política que, se não fosse detectado, poderia levar à obtenção, ao uso ou implante de células, tecidos ou órgãos incorreto, inapropriado ou inútil, mas que é detectado antes que seja realizado o procedimento e corrigido 12, 13.
Evento adverso: Qualquer ocorrência desfavorável relacionada à doação, retirada, avaliação, processamento, armazenamento, distribuição e ao procedimento de uso terapêutico de células, tecidos e órgãos, em um receptor ou doador vivo, podendo ou não levar à transmissão de uma enfermidade, morte, risco à vida, deficiências ou incapacidades ou hospitalização ou, ainda, à prolongação da Taxonomia baseada também na Classificação Internacional para Segurança do Paciente (ICPS) 12, 13.
O foco na segurança, caracterizado pela preocupação com a magnitude da ocorrência de danos ao paciente resultantes da prestação de cuidados de saúde, evidencia a urgência e a necessidade de ações para mitigar riscos e melhorar a segurança 14.
O setor de saúde e os profissionais envolvidos com doação e transplantes estão cada vez mais focados na promoção e no estabelecimento de uma cultura de segurança. A United Network for Organ Sharing (UNOS) tem empreendido esforços para aumentar a integralidade de notificações e, com base nesses dados, contribuir na identificação de estratégias de melhorias no processo de doação e transplante 15.
Da mesma forma, o Conselho Europeu tem estabelecido normas de qualidade e segurança no processo de doação e transplante de órgãos, envolvendo suas diversas etapas, desde o processo de doação, alocação, manuseio, transporte e enxertia do órgão doado 16. Essa entidade atua ainda na avaliação e na atualização regular de requisitos técnicos para a garantia da qualidade e da segurança da doação e transplante, fornecendo orientação técnica para profissionais tanto na assistência como no gerenciamento dos serviços e processos 17.
Dentre especialistas, os esforços para melhorar a segurança do paciente e para reduzir incidentes e eventos adversos têm sido cada vez mais o foco de discussões, estimuladas principalmente em função de eventos graves como descarte acidental de órgãos ou devido a falhas de processos, transmissão de doença do doador para o receptor, entre outros 18.
Sabe-se que diversos incidentes que não causaram danos ao paciente ou mesmo aqueles que por alguma razão acabaram não acontecendo (quase erro ou near miss), de modo geral, acabam não sendo registrados ou notificados, denotando a subnotificação.
A notificação possibilita fornecer informações que levam a novos conhecimentos e melhoram a segurança do paciente. No entanto, os sistemas de notificação de incidentes, por serem sistemas de notificação voluntária, não refletem uma proporção substancial de incidentes, especialmente aqueles que não causaram eventos adversos 15, 19. A notificação de incidentes é de grande valor para todos os envolvidos, possibilitando rever processos, aprender com as falhas e, assim, melhorar os processos e a assistência 15.
Existe pouca informação na literatura sobre a ocorrência de incidentes e eventos adversos, causas relacionadas e impactos para o paciente, o que ressalta a importância das notificações, possibilitando aprender com situações ocorridas, bem como criar indicadores e estratégias que aumentem a segurança 19.
O número real de incidentes e eventos adversos que ocorrem no processo de doação e transplante é desconhecido. Além disso, é possível que situações menos graves não sejam notificadas. Há instituições que submetem relatórios com zero incidentes em análise de período anual. É implausível que uma instituição de saúde não apresente falhas em seus processos e situações de incidentes, evidenciando a ausência de prática e rotina de relatar situações notificáveis. Assim, os relatórios marcadamente desiguais de registro de situações de segurança entre instituições de transplante denotam que estas ainda são muito subnotificadas 15.
As barreiras à transparência em relatar situações notificáveis envolvem o mito do perfeccionismo, a cultura da culpa e da vergonha, o medo da punição e da exposição, bem como a falta de apoio para lidar com os erros 18.
Esse cenário precisa ser visto e modificado, dando ênfase a valores como a transparência, a não punição dos profissionais diante do relato de incidentes, a cultura orientada por dados e informações precisas, dando espaço e valor ao trabalho direcionado à análise de falhas do sistema e dos seus processos, e ainda ao aprendizado com os incidentes e as falhas. Assim, pode-se desenvolver, passo a passo, uma cultura de transparência e de segurança 20, 21.
Eventos adversos, geralmente inesperados, ocorrem em associação com a prestação de cuidados de saúde e geram impactos para o paciente e para as instituições, que contribuem para o aumento das taxas de internação e readmissão, e que afetam negativamente a qualidade de vida do receptor, podendo interferir nos resultados do transplante 18.
Os receptores são particularmente vulneráveis às consequências de incidentes, erros, violações e eventos adversos devido à situação polimórbida da doença que o leva a necessitar de transplante, além do tratamento medicamentoso após enxerto 18, 19. Essas características denotam a importância da biovigilância e da implantação de medidas de maior segurança para o paciente.
A segurança de doadores vivos, de primordial e óbvia importância, é ainda mais preocupante 22. A estratégia de utilizar a doação intervivos, devido à insuficiência de doadores, requer cuidado especial em relação ao doador, indivíduo saudável e, portanto, sua segurança deve ser prioridade absoluta, seja em relação à avaliação clínica, ao procedimento cirúrgico, ao uso de medicações, à assistência perioperatória ou ao acompanhamento pós-doação 22.
Diversos são os fatores que implicam ocorrência de incidentes e eventos adversos. Estes vão desde os fatores humanos, como fadiga, sobrecarga de trabalho, conhecimento insuficiente, desconhecimento de processos e de riscos, até fatores que envolvem as instituições, seus processos e seus fluxos de funcionamento 15, 18.
As falhas de comunicação, os erros na descrição ou nos relatos de dados são comumente identificados. A fragilidade na comunicação envolvendo, por exemplo, a falta de acurácia ou informações insuficientes sobre o doador, o atraso na entrega das informações ( delay), documentos incompletos, rasurados ou extraviados, erros de comunicação (emissor e/ou receptor) são situações que não são raras e que fragilizam o processo de segurança, implicando em aumento do risco de falhas e incidentes 15.
Entretanto, outros fatores estão relacionados a falhas no processo e a risco ao paciente, como: falhas no diagnóstico de sorologias e infecções do doador, falhas envolvendo o procedimento cirúrgico (retirada e enxertia), falhas no protocolo de cirurgia segura e inadequação na embalagem, armazenamento e transporte do órgão doado. Estes causam dano ao órgão, seja por contaminação, lesão ou aumento do tempo de isquemia para além do limite de segurança, além de complicações relacionadas ao tratamento medicamentoso ou mesmo aos processos assistenciais e de gerenciamento do cuidado 15.
Diante desse contexto, ressalta-se a importância de desenvolver e utilizar indicadores de segurança do paciente com base na melhor evidência científica disponível, e de adaptá-los à realidade de cada país para garantir a sua viabilidade, considerando as variações culturais e da prática clínica, a disponibilidade dos sistemas de informação e a capacidade de hospitais e de sistemas de saúde de implementar programas de monitoramento da qualidade efetivos, com a participação de todos os envolvidos no processo, sejam eles profissionais da saúde, administradores das instituições de saúde, pacientes ou profissionais das instâncias de regulação 23.
Vale ressaltar a urgência e a necessidade de registrar as situações incidentes, elencar e validar estratégias de segurança, mobilizando profissionais e instituições em prol da mitigação de riscos e da melhora na segurança do paciente, visto que a ocorrência de eventos adversos, além de implicar em danos aos pacientes e famílias, envolve custos sociais e econômicos consideráveis 14.
O risco está presente em todas as etapas que envolvem a doação-transplante, embora seja uma escolha de tratamento que traga benefícios para os receptores, o risco de incidentes, eventos adversos e complicações sempre existe 11, 24.
Sendo assim, desenvolver uma cultura de segurança favorece o aprimoramento de práticas mais seguras, com melhorias nos processos, na comunicação, no trabalho em equipe e no compartilhamento de conhecimentos, uma vez que a segurança implica na necessidade de vigilância contínua 14, 19. O Quadro apresenta iniciativas de biovigilância em órgãos e tecidos para transplante no Brasil e no mundo.
A biblioteca Notify da OMS pretende ser abrangente, ao descrever todos os tipos de reações ou eventos que possam ter valor de ensino e auxiliar na estimativa de risco. Os objetivos da Notify Library são: 1. fornecer aos profissionais informações úteis para determinar a adequação de um potencial doador; 2. elaborar diretrizes comuns de apoio à implementação de vigilância eficaz; e 3. fornecer apoio prático aos países que estão desenvolvendo sistemas de vigilância para produtos médicos de origem humana 25.
A Notify Library utiliza um banco de dados que não apenas é um programa de relatórios de vigilância, mas um instrumento de coleta e revisão de informações identificadas e que são analisadas à luz das evidências científicas disponíveis e das melhores práticas oriundas dos relatos de casos de programas de vigilância regulamentares ou profissionais. Para cada tipo de ocorrência adversa, pelo menos uma fonte de referência é citada e os especialistas internacionais colaboradores do projeto fornecem uma análise estruturada do evento. São publicados no site documentos com as taxonomias adotadas e os resultados apresentados pelos países colaboradores 25.
A iniciativa Vigilância e Controlo da Segurança da Transfusão, Transplante e Reprodução Assistida (VISTART), da União Europeia (UE), visa promover e facilitar a padronização das inspeções, os sistemas de autorização e vigilância de sangue, tecidos e células para aplicação humana e aumentar a colaboração entre os Estados-Membros e a confiança na inspeção e vigilância uns dos outros, com especial atenção à implementação do Código Único Europeu para Tecidos e Células de acordo com as legislações pertinentes. No total, participam 17 centros de 13 países europeus (Itália, Hungria, România, Portugal, França, Croácia, Irlanda, Grécia, Áustria, Bélgica, Lituânia, Noruega e Polônia) 26.
Além disso, um tratamento comum de incidentes e eventos adversos favorece soluções eficientes e uniformes, bem como a formação de um conteúdo acordado das mensagens de comunicação e alerta para profissionais de saúde, instituições de saúde e pacientes. Novos riscos associados a doenças emergentes serão considerados usando a extensa experiência histórica do campo de transfusão de sangue para tornar as aplicações de tecidos e células mais seguras. As autoridades competentes para a segurança e a qualidade compartilharão princípios sobre as suas expectativas em relação ao acompanhamento do paciente quando novos métodos de processamento forem introduzidos. A Biblioteca de Notificação da OMS sobre ocorrências adversas em transfusão, transplante e reprodução assistida será aprimorada com casos didáticos fornecidos pelas autoridades competentes da UE. Atualmente, atua de forma integrada à Notify Library26.
A Austrália possui um sistema nacional de vigilância para doação e transplante de órgãos vital para: apoiar sistemas de qualidade nos setores de doação e transplante; monitorar, registrar e analisar eventos adversos e o impacto de intervenções; melhorar os resultados do paciente; e informar futuras doações de órgãos para gestão de transplantes e políticas de saúde. O próximo passo é o estabelecimento de um especialista em vigilância e um Comitê Consultivo de vigilância para monitorar o desempenho do sistema de vigilância e vigilância; avaliar os eventos e reações adversas de acordo com os critérios internacionais de relatórios; analisar retrospectivamente os eventos e reações adversas; identificar e recomendar as melhores práticas; identificar a necessidade potencial de intervenção estratégica; e fornecer política de longo prazo. A associação será formada por especialistas com experiência em vigilância e vigilância, doenças infecciosas, epidemiologia, oncologia, doenças transmissíveis, atividades de doação e transplante 27.
No Brasil, nos casos que estejam relacionados às células ou aos tecidos humanos destinados à produção de medicamentos ou combinados com produtos para a saúde, a biovigilância só deve ser aplicada ao processo de doação, retirada/coleta e avaliação; os demais processos devem de ser regulados pela farmacovigilância ou tecnovigilância. Assim, o conjunto de ações de controle e monitoramento dos riscos relacionados a todo o ciclo do sangue, desde a doação até o uso de sangue e seus componentes para fins transfusionais é regulado pela hemovigilância 11.
Dessa forma, as ferramentas básicas para o funcionamento do sistema de notificação estão disponíveis na página web da Coordenação do Sistema de Biovigilância (http://portal.anvisa.gov.br/), em que se encontram a Ficha de notificação de reação adversa, a Ficha de comunicação de incidente; a Ficha de notificação de reação adversa; e o Guia de orientação de preenchimento das fichas 11.
Portanto, no Brasil, percebemos que os fluxos de notificação foram mapeados, mas o processo de análise e implementação de medidas de melhorias no processo ainda precisam ser implementados, assim como a disponibilização de dados em uma biblioteca acessível.
Os resultados de qualidade e segurança no processo doação-transplante podem ser melhorados incorporando resultados e indicadores para direcionar melhores práticas assistenciais. Para isso, modelos de vigilância já implementados em outros países devem ser investigados e sua adaptação à nossa realidade deve ser avaliada. Quando isso não for possível, faz-se necessária a construção de melhorias de processo com base em nossas evidências. Como exemplo dessas melhorias, está a divulgação dos resultados brasileiros à sociedade, oferecendo transparência pública e, assim, possibilitando a orientação das tomadas de decisão por todos os envolvidos no processo doação-transplante.
Considerando que o transplante, frequentemente, é a única possibilidade de sobrevivência para muitos pacientes, são necessários investimentos nos resultados e indicadores que possibilitem a construção de bancos de dados para os processos de doação e transplante, possibilitando um novo olhar para saudáveis e necessárias melhorias.
É necessária, ainda, a construção do Programa Nacional de Qualidade e Segurança em Doação-Transplante, para acompanhar processos, resultados e indicadores relacionados aos desfechos assistenciais.
Ressaltando ainda, a inserção do maior programa público de transplante do mundo, na integralidade do SUS, garantindo que esse paciente percorra com segurança toda a rede de atenção a saúde do SUS, por meio de desenho e implantação Linha de Cuidado ao Paciente Doador ou Receptor de órgãos e tecidos. Assim, são necessários novos rumos na área da doação-transplante de órgãos e tecidos. Isso significa mensurar os resultados brasileiros com dados em larga escala e a construção, a partir da análise dos indicadores, de uma modelagem assistencial inovadora que justifique o alto investimento financeiro e se verifique eficiente e eficaz.
Agradecemos à parceria incansável com membros da Gerência de Hemo e Biovigilância e Vigilância Pós-uso de Alimentos, Cosméticos e Produtos Saneantes (GHBIO), Leonardo Oliveira Leitão e Lara Alonso da Silva. Às famílias que doam órgãos de seus parentes falecidos. Aos receptores de órgãos e tecidos. Ao Bruno Henrique Sena Ferreira, pelo apoio na formatação do artigo.
Os autores informam não haver qualquer potencial conflito de interesse com pares e instituições, políticos ou financeiros deste estudo.
* E-mail: bartira.roza@unifesp.br