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Reinos e notícias reluzentes nos meandros do Rio da Prata e da cordilheira andina: a iconografia cartográfica francesa em meados do século XVI
Kingdoms and shiny news in the meanders of the Rio da Prata and the andean cordillera: the French cartographic iconography in the middle of the XVI century
Anos 90, vol. 27, e2020005, 2020
Universidade Federal do Rio Grande Sul, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

ARTIGO


Recepção: 08 Junho 2019

Aprovação: 12 Dezembro 2019

DOI: https://doi.org/10.22456/1983-201X.92728

Resumo: No presente estudo, analisamos mapas franceses produzidos entre 1546 e 1555, buscando observar a maneira como representavam, cartográfica/iconograficamente, os meandros da região do Rio da Prata e da Cordilheira Andina. O foco da atenção incide sobre imagens alusivas às minas de ouro e prata e aos supostos reinos indígenas ocultos, porém, vagamente noticiados por conquistadores espanhóis. As representações dos indígenas, os anseios coloniais ultramarinos e o caráter de instigação política promovida pelas cartas geográficas francesas são os temas que constituem nosso âmbito de interesse. Nosso diálogo epistemológico envolve áreas afins como a Antropologia, História da Arte e da Cartografia.

Palavras-chave: Iconografia cartográfica, Rio da Prata quinhentista, Expansão ultramarina francesa.

Abstract: In the present study we analysed French maps produced between 1546 and 1555 seeking to observe the way that they use to represent cartographic/iconographically the meanders region of Rio de la Prata and the Andean mountain range. The focus of attention focuses on the allusive images on the gold and silver mines and to the supposed occult indigenous kingdoms, however, vaguely reported by Spanish conquerors. The indigenous representations, overseas colonial aspirations and the political instigation character promoted by the French geographical charts are the subjects that constitute our scope of interest. Our epistemological dialogue involves related areas such as Anthropology, History of Art and Cartography.

Keywords: Cartographic iconography, Rio de la Plata five hundredth century, French overseas expansion.

Considerações iniciais

No presente estudo, buscamos analisar quatro mapas franceses que foram produzidos no decênio de 1546-1555. Em ordem cronológica, são os seguintes: Planisfério de Pierre Descelier (1546); Atlas Vallard, (1547); Planisfério de Pierre Descelier (1550) e Cosmographie Universelle selon les navigateurs, tant anciens que modernes, de Guillaume Le Testu (1555). Propomos perceber como os referidos mapas transmitiam notícias e aspirações acerca da conquista e da colonização no interior do continente sul-americano, mais especificamente do intermédio do Rio da Prata e da Cordilheira Andina.

O recorte temporal corresponde à década que precedeu e culminou na fundação da colônia França Antártica na Baía da Guanabara. Esse evento não é o tema deste estudo, mas merece ser evocado pela íntima relação que suscita com o que Sérgio Buarque de Holanda denominou “geografia fantástica” e “tesouros opulentos que andariam encobertos no fundo do sertão” (HOLANDA, 2000, p. 67). Nos anos que precederam a fundação da colônia francesa no Rio de Janeiro, essa geografia e seus tesouros foram representados, visualmente, na cartografia servindo de alento aos anseios mercantilistas/expansionistas franceses.

Portanto, a partir da iconografia cartográfica, observamos como certas notícias acerca de extraordinários tesouros e de fabulosos reinos, já descobertos e conquistados, ou vagamente noticiados e ainda supostamente ocultos, entre o sistema fluvial platino e as serras andinas, foram representadas visualmente nas referidas cartas geográficas.

Considerações teóricas e historiográficas

Vale destacar que temas referentes a reinos míticos, a lugares fantásticos e riquezas fabulosas são familiares à historiografia da América colonial e que a obra Visões do Paraíso (1959), ao analisar os motivos paradisíacos da conquista e colonização da América a partir das narrativas dos protagonistas dessa “epopeia”, representa um marco historiográfico nesse panorama temático.

Combès, em seu estudo sobre as incansáveis expedições espanholas em busca de um Rei Branco, de uma Serra de Prata (séc. XVI) de Mojos, Paititi, Candire ou “Tierra rica” (séc. XVI [final] e XVII), sugere que tal tema é digno de ser analisado sob as mais diversas perspectivas:

Existen muchas maneras de abordar un tema como el de la “Noticia”. Se puede seguir los recorridos de los exploradores en busca de su realidad, se pueden leer los hallazgos arqueológicos a la luz de las crónicas; se puede también considerar la Noticia como parte del imaginario europeo de la época, o buscar sus raíces indígenas. Se puede también, como lo hicimos en estas páginas, seguir el hilo de las migraciones indígenas en su búsqueda. Todos estos enfoques son válidos - el Paititi es todo eso, y todavía más (COMBÈS, 2011, p. 115).

Se pode também, assim propomos, perscrutar, decodificar e interpretar as imagens divulgadas pelas peças cartográficas relativas às tais “notícias ricas”. Não se trata de prescindir fontes escritas, ou de hierarquizar determinado sistema de representação - visual ou escrito - em detrimento de outro, mas de suscitar diálogos entre as ilustrações cartográficas e descrições/informações escritas num sentido amplo. Isso porque, de acordo com Bezerra de Meneses (2012, p. 253): “[...] a hierarquia entre os sentidos e a razão, ou entre o visual e o verbal (principalmente escrito), não se sustenta. E, da mesma maneira, ao inverso, uma pretensa prioridade em si da fonte visual”. Todavia, na sequência, o mesmo autor esclarece que:

A complementaridade das fontes é sempre bem-vinda, mas a expectativa de convergência, contudo, nem sempre é útil ou desejável − salvo no nível empírico elementar. O que torna a complementaridade legítima e benéfica é o respeito à lógica específica que rege cada fonte e que deve orientar a análise crítica a que tem de se submeter qualquer tipo de fonte. Com efeito, fonte visual e fonte verbal pertencem a sistemas de representação diversos e, portanto, comunicam informação e significados diferentes. Basta lembrar que a imagem visual se realiza no espaço e fornece de imediato a totalidade de coisas, pessoas, eventos e suas relações; já a fonte verbal se realiza no tempo, acumulando unidades de informação em sequência, podendo explorar com mais eficácia relações temporais (MENESES, 2012, p. 253).

Consideramos que os mapas em questão, produzidos por personagens experientes no campo marítimo, “científico” e artístico, com o intuito de suscitarem um deleite estético e cognitivo da nobreza/realeza e, desse modo, estimular esses setores à ocupação colonial do Novo Mundo, representam, para o historiador, uma fonte consistente para avançar de forma densa e abrangente sobre o fenômeno da conquista e colonização. Além de ampliar o entendimento sobre o que são e o que podem oferecer as fontes cartográficas, nosso foco será perceber como os portulanos franceses da “escola” de Dieppe1, de meados do século XVI, ao representarem o centro sul da América do Sul (o Rio da Prata e adjacências), foram capazes de conferir visualidade aos rumores quanto a reinos indígenas, a riquezas auríferas e argentíferas e a outras instigações e inquietações nos meandros interioranos da região platina/andina.

Para cumprir esses objetivos, dialogamos com pesquisas situadas nos campos da história da cartografia, da antropologia da arte e, sobretudo, com estudos que abordam a imagem como um texto, uma narrativa; isto é, uma fonte não verbal. Tanto a monumental obra The History of Cartography, editada pela Universidade de Chicago, principalmente o texto de Sarah Toulouse (2007, v. III), quanto os trabalhos de Frank Lestringant (2013; 2017) e Chet Van Duzer (2015), constituem a base da análise empírica da cartografia francesa (normanda) do séc. XVI, do presente estudo.

Tendo em vista que a cartografia renascentista além de ser indissociável da arte, como observou Surekha Davies (2016, p. 111), é permeada por questões políticas expansionistas, buscamos apoio em referências teóricas que contemplam, além dos processos de produção, circulação e consumo, a agência; isto é, os efeitos dos artefatos. Ao analisar as perspectivas de Alfred Gell (1998), William Mitchell (2005), Ulpiano B. de Meneses assegura que:

Tais posturas abrem caminho para uma compreensão mais aprofundada de que as imagens (e demais artefatos) têm o potencial de produzir efeitos, gerar transformações, dispor de agência (aqui entendida basicamente como potência de ação). Mais que isso, são integrantes da interação social [...] (MENESES, 2012, p. 256).

A ideia de que os artefatos são capazes de desencadear reações cognitivas, provocar efeitos e concretizar projetos de organização social e de poder lança luzes sobre as narrativas visuais dos referidos mapas franceses.

Finalmente, as premissas de que tanto textos verbais quanto os não verbais (imagens cartográficas) são construídos a partir de signos: “[...] que constituem sistemas simbólicos propostos à interpretação” (CHARTIER, 2002, p. 244); e que qualquer imagem pode ser lida [?] ou então, que “[...] podemos criar uma leitura para qualquer imagem” [?]2 (MANGUEL, 2001, p. 21) constituem a motivação e base teórica do presente trabalho.

Em relação ao estilo cartográfico os mapas em questão seguem o sistema das cartas náuticas (portulanos) surgido por volta do século XIII como instrumentos para a navegação do Mediterrâneo. Todavia, os mapas em análise apenas mantêm o estilo das cartas náuticas, já que não tinham a intenção de orientar marinheiros, e, sim, de instar soberanos, representando-lhes um mundo fascinante que estaria ao alcance das naus francesas. Outra consideração pertinente é que os mapas em questão foram produzidos num período preparatório decisivo para o estabelecimento francês na Baía da Guanabara. Além de terem o caráter de informar, para respaldar a política expansionista, tem também o propósito de influir, instigar e constituir um imaginário propício a ações efetivas por parte da monarquia e dos setores mercantis. Portanto, o recorte temporal corresponde aos anos que antecedem a decisão da monarquia francesa de subvencionar o estabelecimento de uma colônia militar e comercial bem equipada para alavancar a França na disputa, contra outras potências, pelo comércio ultramarino.

Tanto pelo valor histórico/cartográfico quanto pela íntima relação com a cartografia portuguesa, os mapas de Dieppe são de interesse da historiografia luso-brasileira, há muitas décadas3. Paulo Miceli, ao apresentar a exposição O Tesouro dos Mapas: A Cartografia na Formação do Brasil, declara que a atuação de cartógrafos portugueses foi percebida na maioria dos países que tinham ambições ultramarinas:

Muitas vezes, numa bem remunerada clandestinidade, cartógrafos portugueses passaram para outros países, como a Espanha, para onde foram cerca de 40 deles, [...]. Outros cartógrafos portugueses prestavam serviços na Alemanha e na França, sendo digno de destaque o fato de que, neste último país, onde trabalharam cerca de duas dezenas deles, sua influência foi decisiva para o desenvolvimento da famosa escola de Dieppe (MICELI, 2002, p. 161).

Segundo Lestringant (2013), a produção cartográfica dessa “escola” tem um caráter híbrido, resultado da transferência cultural entre Portugal, França e Inglaterra. Portanto, se é certo que existiu uma “política de segredo” em relação às conquistas náuticas portuguesas, também é certo que existiu, por parte de outros países europeus, uma política de aliciamento de lusitanos, profissionais da cartografia, dispostos a vender conhecimentos geográficos e trabalhar na elaboração de mapas mediante subvenções mais generosas que aquelas oferecidas pelo rei de Portugal. Nesse sentido, a “Política de Segredo” foi minada por políticas de aliciamento das monarquias rivais.

A exata filiação de cartógrafos a essa “escola” e a quantidade de trabalhos desenvolvidos, também é objeto de discussão. De acordo com Toulouse (2007, p. 1551), atualmente são conhecidos onze cartógrafos que produziram um total de trinta e uma obras além de seis trabalhos anônimos assim classificados devido às semelhanças estilísticas. Para Lestringant (2013, p. 1), são identificados doze cartógrafos, que deixaram trinta e sete obras, incluindo mapas, atlas e escritos hidrográficos.

Apenas evocamos essas questões, concernentes ao debate historiográfico em torno da cartografia de Dieppe, na medida em que elucidam o caráter desses artefatos cartográficos. Todavia, o foco da nossa abordagem não é esse, e tampouco os delineamentos geográficos dos continentes, rios, ilhas, baías ou a toponímia que os cartógrafos portugueses conheciam e revelavam a todo aquele que pagasse melhor que a coroa portuguesa. Nossa análise incide sobre as iluminuras que ornamentam, simbolizam e significam as terras delineadas pelos cartógrafos. Interessam-nos, portanto, os apelos, os anseios e o imaginário que as imagens representam e, simultaneamente, alimentam.

Os planisférios de Desceliers

Sabe-se que Pierre Desceliers foi ordenado padre, que residiu em Arques, na região da Normandia, na França, e que elaborou três, ou mais, planisférios (mapas-múndi) datados de 1546, 1550 e 1553. Os dois primeiros sobreviveram aos séculos e encontram-se na Biblioteca Universitária John Rylands, em Manchester, na Inglaterra e na British Library, em Londres, respectivamente. Já o mapa de 1553 teria desaparecido num incêndio em 1915, restando dele apenas uma reprodução fotográfica4. De outros possíveis mapas atribuíveis à Desceliers, há notícias, mas suas localizações são desconhecidas5.

De acordo com os dados que constam no catálogo da National Library of Australia, o planisfério de Desceliers de 1546 é uma peça de tamanho monumental. O Fac-símile dessa instituição, do qual nos servimos por sua alta resolução digital, é composto por quatro folhas, cada qual medindo 131 x 254 cm, o que totaliza um plano de 262 x 508 cm. Os dois mapas de Desceliers foram concebidos para serem contemplados sobre uma mesa e, para facilitar a leitura dos milhares de registros, estão direcionados tanto para o fundo (sul) quanto para o topo (norte).

Tanto o planisfério de 1546 quanto os demais mapas concernentes ao presente trabalho são obras desenhadas, pintadas e escritas à mão; isto é, são exemplares únicos elaborados por encomenda para obsequiar a nobreza e a própria à realeza da França. Parafraseando Davies (2012, p. 324), mapas e atlas manuscritos e iluminados possuíam um valor artístico, intelectual e político. Eram, portanto, obras valiosas, produzidas por artistas habilidosos e quem os possuía ostentava luxo e poder (Figura 1).


Figura 1 -
Detalhes do Planisfério de Desceliers, de 1546. Em sentido horário: 1) América do Sul; 2) Artilharia e cavalaria x indígenas; 3) Artilharia contra fortaleza. 4) Rei, objetos de metal, e execução. Fac-símile da National Library of Australia.
Fonte: Disponível em: http://nla.gov.au/nla.obj-231279946/view. Acesso em: 20 nov. 2017.

Um primeiro aspecto a ser considerado nesse planisfério é a total ausência de qualquer símbolo heráldico (flâmulas, brasões) que sinalize o pertencimento da América do Sul às monarquias ibéricas. Ao contrário dos mapas portugueses e espanhóis que esbanjavam tais símbolos ao representarem suas possessões ultramarinas, esse planisfério apenas representa o contorno do continente e nomeia rios, portos e outros acidentes geográficos. Entendemos que a ausência de tais símbolos significa que essas terras não tinham pertencimento. Além do mais, a profusão de iluminuras relativas à fauna, à flora, aos indígenas e aos reinos - conquistados e a outros ainda ocultos - sugere que a América do Sul é um continente abundante e fascinante.

Um tema recorrente nessa cartografia de Dieppe é a conquista do Peru, que nesse mapa é representada pela ação conjunta de três armas: uma carga de cavalaria e outra de infantaria facilmente destroçam poucos combatentes indígenas armados de arco e flecha (detalhe 2). Um pouco abaixo, cinco canhões, com as bocas fumegantes, bombardeiam uma fortaleza. Do lado de fora do castelo/palácio, está representado um rei, com manto e coroa, pensativo, sem companhia, sentado ao lado de montanhas. Um pouco abaixo, e à direita, outra cena envolvendo um rei, com manto, coroa e cetro, sentado sobre um objeto cúbico acompanhado de sete personagens de difícil identificação, a maioria deles vestindo mantas soltas e esvoaçantes. Um oitavo personagem, nitidamente espanhol (barba e elmo), está ajoelhado, inclinado para frente com as mãos apoiadas no chão, examinando objetos, aparentemente cálices que um dos personagens da cena expõe diante dele. Outra parte da mesma cena mostra um personagem ajoelhado diante de uma cova. Aparentemente, o sujeito ajoelhado está com as mãos amarradas por uma corda, que é segurada por um dos personagens a sua frente, enquanto outro sustém os ombros do personagem que está de joelhos (detalhe 3).

Sondar o que o cartógrafo/iluminador quis sugerir com as cenas acima é uma tarefa, sem dúvida, controversa. Não está claro se o miniaturista representou um mesmo evento em uma sucessão de cenas6 ou se cada cena corresponde a um evento distinto. O detalhe 1 e 2 representam, com bastante clareza, a conquista do império inca pelos espanhóis: uma batalha frontal em que grossos contingentes militares desbaratam meia dúzia de indígenas que lutam de arco e flecha (o que de modo algum corresponde aos eventos históricos registrados pelos conquistadores e pela historiografia). Só o número de soldados espanhóis a cavalo é superior ao de inimigos indígenas, sem contar a infantaria - representada por um batalhão de lanceiros - e os canhões da artilharia. Resta destacar que arco e flecha não eram armas dos exércitos incas.

Se com essa desproporção de forças Desceliers quis fazer uma crítica à “máquina” de guerra espanhola que destroça “pobres indígenas indefesos” ou se quis insinuar que as estruturas políticas indígenas (grupos, cacicados, impérios) são débeis, portanto fáceis de serem conquistadas e submetidas, não é possível saber assertivamente. Provavelmente as duas proposições estiveram presentes no momento em que o miniaturista compunha as cenas.

Em relação ao detalhe 3, quem seria o personagem da realeza sentado meditativo, fora do castelo? Se forem cenas isoladas, talvez seja uma alusão aos descendentes reais que se refugiaram nas montanhas e florestas. O detalhe 4 poderia representar mais de um momento da prisão e do pagamento do resgate do soberano Inca Atahualpa, considerando que na cena há um conquistador espanhol observando objetos de metal, enquanto outro personagem traz estranhos objetos sobre a cabeça. O texto de José Luis Martínez, que analisa o passo a passo do fatídico “desencontro” entre espanhóis e andinos, em Cajamarca, no ano de 1532, do qual sobreveio a conquista do império inca, refere-se a um conjunto de elementos materiais, relacionados a esse episódio, e que podem ser visualizados na carta de Desceliers. Roupas finas, confundidas com tecidos de seda, copos de ouro, comida e bebidas eram “regaladas”, por embaixadores de Atahualpa, aos espanhóis na expectativa de que, ao receberem esses dons, agissem de acordo com os ritos da reciprocidade inca (MARTÍNEZ, 1994, p. 30-31).

Talvez as roupas esvoaçantes e os objetos de ouro sejam uma alusão a essas embaixadas que ofereciam tais objetos. Outros componentes materiais e atitudinais, relacionados à majestade dos imperadores andinos, talvez tenham chegado ao conhecimento do ilustrador do mapa de Desceliers:

Atawallpa estaba sentado en su tiana, un asiento bajo de madera que constituía uno de los principales emblemas de todos los gobernantes andinos. […]

El asiento, para los dirigentes andinos era la insignia principal, en su tiana podían asegurar su ecuanimidad, una actitud ética necesaria para gobernar, para intermediar e imponer justicia. Es por eso que Atawallpa esperaba sentado a los españoles, indicándoles que era la autoridad (MARTÍNEZ, 1994, p. 34-35).

Ou seja, o destaque dado à tiana (cadeirinha), a solenidade e o sentido ritual da postura sentada do governante estariam, de certo modo, ilustrados no mapa de Desceliers.

Outra possibilidade é que essa cena represente um reino similar ao inca, noticiado por diversas fontes rio-platenses e andinas. Essa interpretação pode ser aventada se considerarmos que, no planisfério de 1550, o mesmo cartógrafo, faz uma alusão explícita ao Rei Branco (Figura 2).


Figura 2 -
Detalhes do Planisfério de Pierre Desceliers: 1) América do Sul; 2) Conquista do Peru; 3) Rei Branco.
Fonte: DUZER, 2015.

No planisfério de Desceliers, de 1550, a conquista do Peru parece menos desproporcional do que no mapa anterior. Já não se vê a carga da cavalaria, enquanto a artilharia espanhola conta com apenas dois canhões. Os indígenas agora são mais numerosos e mais densamente organizados, em forma de batalhão. Todavia, a infantaria espanhola, composta por lanceiros, é maciçamente superior. Um pouco acima e à esquerda da cena uma legenda esclarece as imagens: La conqueste del perou faicte par les espagnois. Outro componente iconográfico notável registrado no planisfério de 1550 são as cidades andinas relacionadas à conquista do império inca. Caxamalco corresponde a Cajamarca, cidade onde ocorreu a batalha que redundou na derrota do exército inca e na prisão de Atahualpa. Pachacama, ou Pachacamac, onde um grupo sob o comando de Hernando Pizarro saqueou um templo rico em ouro e prata. Coico, certamente uma alusão a Cuzco, a capital do império. Além dessa, figuram ainda Castel, uma outra cidade apenas representada por um ícone, e uma pirâmide.

Em toda a América do Sul, no mapa de Desceliers (1550), tais ícones somente foram representados sobre a região andina. Lucas Rabelo percebeu a influência da cartografia medieval nos símbolos que indicam determinada povoação. Castelos, igrejas e fortalezas em miniatura são figurações que correspondem a elementos arquitetônicos que, desde o medievo, representam a concepção ocidental de cidade ou povoado (RABELO, 2015, p. 64-66). Nesse sentido, a simbolização da região andina como um âmbito civilizado e monumental está bem evidenciada no mapa de Desceliers.

As cobiçadas minas de metais preciosos, onipresentes nas crônicas da conquista do Rio da Prata e dos Andes, foram abundantemente iconografadas nos mapas em questão. A alusão às minas situa-se próximo a Pachacama, onde o ilustrador representou dois personagens escavando uma montanha dourada, sobre uma legenda que diz: miniere dor (mineração de ouro). Um pouco mais ao sul, ainda nas terras altas (andinas), um personagem vestindo manto vermelho e coroa, de posse de um cetro e usando barba, sentado em posição majestosa, aponta para o oriente. Logo acima da sua cabeça a legenda revela que esse é o Roy Blanc (Rei Branco). Vale destacar que a representação desse soberano destaca uma série de componentes arquetípicos, no imaginário ocidental, relativos à majestade: manto, coroa, cetro e barba.

Uma das primeiras notícias escritas acerca desse personagem é a Carta de Luis Ramíres a su padre desde el Brasil (1528). Ramíres fazia parte da expedição de Sebastian Caboto (1526-1530) que, por sua vez, havia sido contratado para buscar especiarias nas Ilhas Molucas, seguindo o trajeto de Fernão de Magalhães. Todavia, Caboto se deixou seduzir pelas notícias dadas por um grupo de náufragos de Juan Dias de Solis (1516) e de outra expedição portuguesa a essa região. Maura resumiu nos seguintes termos o que se passou com os náufragos e o teor dos seus relatos:

En 1516, la tripulacion de Juan Diaz de Solis encallo en la isla brasileña de Santa Catalina, donde escucharon a los indigenas referirse a una sierra de plata situada en el interior de la selva formada por cerros del precioso metal, lo que despertó sus ansias de riqueza. Uno de los naufragos, Alejo Garcia, junto con el “mulato” Pacheco y otros se internaron hasta las minas de Charcas, en el Alto Peru, y regresaron con un considerable tesoro. A su muerte, algunos se volvieron al Brasil llevando la trascendental noticia, que se extendió cruzando los mares hasta el viejo mundo. […] Con estos hombres comienza la leyenda del rey Blanco que vivía en montanas de plata, territorio cercano al inmenso rio de la Plata o de Solis. Esta leyenda es una mas de todas las que originaron las expediciones a esta parte del continente, todas ellas compartiendo el ideal de encontrar enormes cantidades de oro y plata (MAURA, p. 11, 2007).

Luis Ramírez ouviu as histórias e talvez tenha sido o primeiro a registrar os relatos dos náufragos sobre as riquezas existentes a montante do Rio de la Plata.

Y que en esta sierra habia mucha manera de metal, y que en ella habia mucho oro y plata, y otro género de metal, […]. Y que esta sierra atravesaba por la tierra más de doscientas leguas, y en la halda de ella habia asimismo muchas minas de oro y plata y de los otros metales (MAURA, 2007, p. 45-46).

Dois náufragos informantes reportaram que somente eles permaneceram na ilha de Santa Catarina e que outros sete: “[...] vista la gran riqueza de la tierra, y como junto a la dicha sierra había un rey blanco que traia [bar (bas??)...] vestidos como nosotros, se determinaron de ir alla, por ver lo que era […]” (MAURA, 2007, p. 46).

O brilho das notícias platinas logo reluziu na Europa, impeliu avultadas expedições (oficiais e clandestinas) que se embrenharam pelos rios Paraná, Paraguai e afluentes, das terras baixas às altas, e num sentido contrário, das altas às baixas. Ao longo de mais de cem anos a Sierra de Plata e o esplendoroso Rey Blanco foram alvo de conquistadores, muitos dos quais registraram as notícias incríveis e produziram relatos dos seus périplos7.

Se o primeiro registro manuscrito da Sierra de Plata e do Rey Blanco data de 1528, supõe-se que, nas décadas seguintes, quando os planisférios estavam sendo elaborados, esses temas circulavam de diversas formas (oral, manuscrita, impressa) e avivavam o imaginário dos setores do mercantilismo ultramarino. A esse respeito Buarque de Holanda havia observado que:

Que a fama de tais tesouros logo tivesse ultrapassado, na Europa, as fronteiras ibéricas, é mais do que provável. Os “segredos” das novas terras descobertas não eram grandes segredos para muitos estrangeiros, armadores de navios, alguns deles, estabelecidos nos portos castelhanos ou lusitanos (BUARQUE DE HOLANDA, 2000, p. 92).

Isso significa que em parte as fontes que ensejaram a representação do roy blanc, por Desceliers, eram orais, do tipo “diz que diz”; segredos mal guardados, boatos que circulavam entre homens que, de algum modo, estavam envolvidos na expansão ultramarina.

Por fim, a maneira como Desceliers nomeia o continente sul-americano pode ser reveladora de como os franceses pensavam marcar sua presença nessas terras. Bem no centro da América do Sul, em frente ao Rei Branco, em letra de fôrma e caixa alta, tamanho grande lê-se: AMERIQUE. Logo abaixo, agora com letras cursivas, lê-se: Amerique ou bresill. Se América equivalia a Brasil, uma colônia na Baía da Guanabara marcaria a presença francesa na América (do Sul).

O Atlas Vallard

Dentre as quinze cartas náuticas que compõem o Atlas Vallard, a que representa o Rio da Prata corresponde à décima segunda. Embora a autoria artística e cartográfica seja desconhecida, o nome de Nicolas Vallard8 está diretamente relacionado a essa obra. Direcionado do Norte para o Sul, esse mapa representa o litoral atlântico desde o nordeste brasileiro até o Estreito de Magalhães (Figura 3).


Figura 3 -
Atlas Vallard, f. 12, 1547. Sudeste da América do Sul, Estreito de Magalhães.
Fonte: Disponível em: https://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+29. Acesso em: 14 abr. 2020.

Com a nomenclatura toponímica do litoral atlântico em português e com representação desmedida dos rios Paraná, Uruguai e Paraguai, tal como aparece na Carta Náutica [...] do cartógrafo Gaspar Luis Viegas, do ano de 1534 (OLIVEIRA, 2015), esse mapa também denota a força da tradição cartográfica portuguesa em Dieppe. Tal como os planisférios de Desceliers, os mapas do Atlas Vallard não ostentam insígnias heráldicas que indiquem qualquer relação de soberania sobre essas terras, por parte das monarquias ibéricas. No interior do continente, não ocorre nenhum registro verbal (nem sequer os estabelecimentos espanhóis de Buenos Aires e Assunção foram assinalados). Em compensação, o interior do continente é um extenso texto visual9; um enredo extraordinariamente sofisticado na medida em que dispõe ao espectador uma paisagem que tanto pode ser apreciada por inteiro quanto cena após cena, ou, ainda, cada elemento ou personagem por si só.

Geograficamente o enredo se desenvolve na bacia hidrográfica platina cujo hinterland alcança as montanhas andinas. Num primeiro plano da paisagem, seis indígenas - dois homens e quatro mulheres - são surpreendidos, em seu cotidiano edênico, por três forasteiros barbudos que vieram praticar escambo. O suposto cacique, que apenas veste um cocar, gesticula com um dos forasteiros. Com expressões oscilantes, entre admiração, espanto, simpatia e pejo, as mulheres observam o que sucede.

Quanto aos atributos físicos e morais dos homens e mulheres indígenas, não há nada que contraste os valores e padrões europeus. Poucas imagens quinhentistas conferem tão univocamente um sentido edênico ao Novo Mundo. Enquanto que na maioria dos mapas e gravuras os costumes bárbaros dos habitantes da América (sobretudo a antropofagia) eram hiper-representados para causar impacto visual sobre os leitores; “[...] combinando o exótico, o erótico e o macabro [...]” (GAMBINI, 1988, p. 150), nesta representação temos apenas o exótico e uma leve insinuação erótica, talvez realçada pela dissimulação gestual e posicional da nudez feminina.

O nu das indígenas não exprime uma alteridade radical, e, sim, uma representação renascentista dos tempos de Adão e Eva. Nenhum aspecto fisionômico e nenhum adereço estético desnobrece qualquer personagem que compõe a paisagem. As mulheres, de tez branca e cabelos louros, quase dourados, penteados à moda europeia, seios firmes e roliços, corpos venusianos, só se distinguem das europeias pelo cenário exótico (papagaios, macacos, cervo e jacaré). Na aparência física, na gestualidade corporal, nos suaves movimentos que dissimulam sua nudez do olhar dos intrusos (e dos espectadores do mapa), em tudo, enfim, correspondem ao imaginário da humanidade europeia primitiva; selvagens sem qualquer selvageria. Davies (2012, p. 348) já havia observado que a cartografia normanda não confere conotação negativa aos indígenas tal como outros mapas e ilustrações europeias, relativas à América do século XVI, que lhes atribuíam o canibalismo, a barbárie guerreira e uma nudez bizarra, que no imaginário ocidental, antigo e medieval, são signos da selvageria.

Os intrusos vestem as cores da França, e estão providos de grande quantidade de ferramentas - machados e foices - que são escambadas, provavelmente, por madeira e produtos exóticos. O personagem central apresenta aos indígenas um objeto dourado, certamente, não para intercambiá-lo, senão para indagar sobre a existência de artefatos semelhantes10. Num plano imediatamente superior da paisagem, vemos indígenas em cenas cotidianas ao longo de um caminho gradativamente ascendente: alguns caçam um cervo, outros três carregam pau-brasil, um deles está simplesmente sentado - descaçando ou meditando - e dois, de estatura um pouco menor, ao que parece, praticam atividades lúdicas.

Mais ao alto um indígena com o corpo inclinado manuseia um objeto circular. A posição do indivíduo em relação ao objeto é uma clara alusão ao garimpo de ouro de aluvião mediante o uso de bateia. Mais adiante, finalmente, o caminho chega à esplendorosa serra. Ou seja, entre o enredo visual do mapa e o texto de Ramírez há quase uma convergência, algo como se o ilustrador tivesse em mãos o seguinte fragmento:

[…] porque el dicho rio Parana y otros que a el vienen a dar iban a confinar con una sierra a donde muchos indios acostumbraban ir y venir. Y que en esta sierra habia mucha manera de metal, y que en ella habia mucho oro y plata (MAURA, 2007, p. 45).

Numa das montanhas da serra vê-se talhada uma porta de entrada cujo interior resplandece. De dentro da montanha dois indígenas trazem uma cesta repleta de prata enquanto um terceiro, em frente à boca da mina, ergue diante dos seus olhos um objeto discoidal, do mesmo metal. Mais ao fundo, por detrás da montanha, há mais caminhos, mais serras e, aparentemente, mais minas de prata.

A Cosmographie Universelle de Guillaume Le Testu

Guillaume Le Testu, autor do atlas Cosmographie Universelle selon les navigateurs tant anciens que modernes11, nasceu por volta de 1509 na vila e atual cidade Le Havre. Em Dieppe, tornou-se cartógrafo e capitão de navegação. Em 1550-1551, ele teria sondado o litoral brasileiro com vistas à fundação de uma colônia francesa. Em 1557, juntamente com Jean de Lery, participou do socorro à recém-fundada colônia França Antártica. Em 1559, levou Nicolas Durand de Villegagnon de volta à França. Le Testu morreu como pirata em 1572 ao atacar, junto com seu sócio Francis Drake, um carregamento de ouro e prata espanhol em Nombre de Dios, Panamá (LESTRINGANT, 2013).

A Cosmographie Universelle [...], que contém os mapas/imagens que interessam ao presente trabalho, foi elaborada entre 1552-1555, portanto, às vésperas da fundação da França Antártica. Le Testu dedicou seu Atlas manuscrito a Gaspard de Coligny que, sob o título de almirante da França e conselheiro do rei Carlos IX, foi um dos principais incentivadores das atividades marítimas-mercantis francesas. Tavares (2014) apresenta uma extensa biografia desse personagem que foi decisivo nos empreendimentos coloniais ultramarinos, e que se envolveu intensamente nos conflitos religiosos que, por sua vez, repercutiram e impactaram no (des)desenvolvimento das colônias francesas no Novo Mundo.

Sobre o valor histórico (os pretextos políticos e os saberes “cosmográficos” que convergiram para sua elaboração), iconográfico e geo/cartográfico da Cosmographie Universelle [...] vale a pena registrar dois pareceres de pesquisadores especialistas nessa obra:

A riqueza de detalhes do Atlas de Le Testu é tão grande que seria possível verter oceanos de tinta sem esgotar as possibilidades de análise dessa obra em torno de uma vasta e variada gama de temas (TAVARES, 2014, p. 90).

O Atlas de Le Testu oferece à monarquia francesa o espetáculo de seu triunfo universal. Ao mesmo tempo, dá-lhe meios práticos e ferramentas técnicas para alcançar suas ambições. Daí a estreita colaboração entre hidrografia e mitologia, entre ciência náutica mais atualizada e um imaginário chamativo oriundo das profundezas do tempo12 (LE TESTU, 2012, p. 93).

No atlas de Le Testu, o continente americano é retratado em 15 mapas ao passo que a Europa figura em sete e a África e Ásia juntas apenas em oito. Por si só esse é um claro indicativo das expectativas que o autor alentava em relação à instalação de colônias francesas na América.

Cada mapa contido no Atlas constitui um texto visual, isto é; um conjunto de componentes iconográficos supostamente pertinentes ao mundo natural (acidentes geográficos, delineamentos hidrotopográficos plantas, animais, e seres fantásticos) e humano (guerras, costumes, vestuário, aspectos históricos, atividades econômicas etc.) em questão.

Para cada mapa, há também um texto verbal que sumariamente discorre sobre as delimitações geográficas, sobre as potencialidades econômico-mercantis, sobre os habitantes “primitivos” e, no caso da América, sobretudo no México e no Peru, sobre a presença espanhola. Esses dois gêneros textuais (visual e verbal) podem ser lidos separada ou comparativamente, considerando que nem sempre há uma correlação direta entre ambos.

Os mapas/imagens que interessam ao presente estudo representam o sul da América do Sul: Patagônia, Rio da Prata e Peru. O primeiro mapa do Atlas que se ocupa com a América representa duas regiões austrais do continente: Patagônia (Regne de Ginganton) e Rio da Prata (Rivierre de Plate) respectivamente (Figura 4).


Figura 4 -
Regne de Ginganton - Rivierre de Plate.
Fonte: LE TESTU, 2012.

Cada região é representada por um cenário humano próprio. O Regne de Ginganton é retratado como signo de selvageria onde se trava uma batalha brutal entre três gigantes, dos quais um sucumbiu com um lançaço nas costas enquanto outros dois duelam com escudos e lanças em punho. Os comentários de Le Testu sobre o país dos gigantes baseiam-se na crônica de Antonio Pigafetta que foi um dos poucos sobreviventes da primeira volta ao mundo chefiada por Fernão de Magalhães. Os gigantes teriam de dez a doze cúbitos13 de altura e comunicar-se-iam apenas por assobios por serem incapazes de falar.

No Rivierre de Plate, visualiza-se uma festiva roda de música e dança em torno de um personagem soberano sentado numa liteira carregada por súditos. Munido de um cetro, adornado de braceletes e colares dourados, vestindo uma tanga e um boné cônico curvado para frente, amparado por um objeto que se assemelha a um guarda-sol, o solene personagem é o motivo e o centro da celebração. A sua volta, dançarinas de corpos renascentistas, seminuas, e, finamente, adornadas de joias douradas, gesticulam com graça e dançam ao som de um tambor, dois instrumentos de sopro, à moda de trompetes, e um maracá dourado.

No texto do fólio F. XLIIII, que verbaliza o mapa, não há qualquer alusão à “Majestade Real” e tampouco à homenagem que lhe é prestada. Sobre os habitantes, o texto informa que são muito ricos em prata, que são selvagens, que não tem conhecimento de Deus, que se vestem de algodão e que possuem milho e mandioca com os quais fazem farinha e pão. Informa ainda que os espanhóis costumam traficar nesse rio. Vale destacar que, embora diga que os habitantes do Rio da Prata são selvagens, nem no texto e muito menos na imagem há qualquer menção a atributos de selvageria, tais como: canibalismo, guerras ou nudez associada a depravação sexual. O único elemento arrolado, na imagem e no texto, que remete ao estereótipo de selvagem é o não conhecimento de Deus.

No imaginário europeu do século XVI, todos os demais traços significam povos civilizados: a agricultura, o comércio (com os espanhóis), as roupas de algodão, a música e a dança, as joias de ouro, a abundância de prata. Além de tudo isso, a imagem sugere claramente que, nos meandros do Rio da Prata, há um reino (talvez semelhante ao inca) inconquistado cujo monarca recebe ovações dos súditos: esse é o supremo signo de civilidade.

O contraste entre a selvageria e a civilidade aparece também no mapa do fólio XLIX que representa a Patagônia e parte do Peru. Enquanto na Terre des Grandz hommes é travada uma luta cruenta em que seis guerreiros patagões se estraçalham com armas primitivas (lanças, arco e flecha e maças), na Terre Du Peru, uma personagem, portando um cetro, vestindo um boné cônico arqueado para trás e um manto dourado (deixando à mostra um dos seios) recebe a saudação de um súdito (Figura 5).


Figura 5 -
Terre des Grandz hommes - Terre Du Peru.
Fonte: LE TESTU, 2012.

Não há como saber a quem representam as duas personagens majestosas que usam chapéus cônicos, no Rio da Prata e no Peru. Os textos paralelos aos mapas/imagens também não fazem alusão a elas e tampouco permitem entrever qualquer fonte escrita relacionada ao tema. Entendemos, todavia, que as iluminuras projetadas sobre essas duas regiões contíguas (Rio da Prata e Peru) assinalam o teor de notícias, mais ou menos correntes, que circulavam nas marinhas europeias. Infladas pelos anseios de conquista colonial, dos setores mercantis, as notícias iluminadas de reinos reluzentes sugerem perspectivas econômicas altamente promissoras para a monarquia francesa.

As imagens acima, convém salientar, não concernem ao império inca e, sim, a supostas estruturas sociopolíticas similares ainda intactas em espaços remotos do Rio da Prata e do Peru. Pierre Desceliers, como vimos, representou a conquista do império inca com destaque à desmedida força bélica espanhola destroçando as tropas de Atahualpa. Le Testu, por sua vez, extravasa tintas vermelhas-sangue na cena intitulada PARTIE DE LA DEFAICTE DATABALIPA AV PERV (Parte da derrota de Atahualpa no Peru) (Figura 6).


Figura 6 -
PARTIE DE LA DEFAICTE DATABALIPA AV PERV.
Fonte: LE TESTU, 2012.

Nela, o autor representa a conquista do Peru como um espetáculo de crueldade. Dois espanhóis empunham espadas para decapitar, decepar as mãos e golpear as espaldas de indígenas que ensanguentados e despedaçados são a própria expressão do horror desse episódio. De acordo com Lestringant, essa imagem constitui um eco precoce da Leyenda Negra antiespanhola que, por sua vez, justificava, em oposição, os projetos coloniais da França na costa do Brasil e mais tarde na Flórida (LESTRINGANT, 2013, p. 101). Essa atitude parece ser uma característica comum às imagens em questão: de um lado, o silenciamento ou negação da efetiva presença hispânica na América; de outro, a representação da conquista espanhola como um massacre desmedido.

Considerações finais

Diante do exposto, o tom apelativo é o aspecto mais evidente da cartografia de Dieppe, na década de 1546-1555. Nos quatro mapas analisados, a mensagem que os cartógrafos fizeram saltar aos olhos dos nobres apreciadores é que, não obstante as seis décadas da presença ibérica, a América ainda é um continente aberto onde reinos e serras reluzentes abrigam tesouros à espera de intrépidos conquistadores e investidores franceses. Tal apelo, procuramos demonstrar, estava intensamente sintonizado aos boatos em franca circulação nos meios mercantis coloniais e profundamente imbricado com o imaginário renascentista das conquistas transatlânticas.

Nesse sentido, ao invés de imagens de valor etnográfico sobre os nativos do Rio da Prata e dos Andes, os mapas que apreciamos mapeiam, sobretudo, os anseios dos franceses pela expansão ultramarina. Sob a forma iconográfica, tais anseios oferecem ao apreciador os códigos capazes de instigar ações em relação ao comércio do pau-brasil, à conquista dos povos indígenas e ao descobrimento de metais preciosos. Tais temas foram arquetipicamente representados pelos “bons selvagens” que carregam toras, garimpam e traficam (Atlas Vallard), pelo “Rei Branco” e reinos congêneres (Planisfério de Desceliers e Cosmografia de Le Testu), e pelas minas de metais preciosos (Vallard e Desceliers).

O fato de cartógrafos/artistas terem tornado visuais as notícias rumorosas em torno desses temas revela o esforço dos setores artísticos/intelectuais e mercantis de lhes conferir credibilidade, evidenciando, assim, aos espectadores a quem as ilustrações cartográficas eram dedicadas, os lucros a serem auferidos mediante o estabelecimento de uma base de conquista e comércio nas proximidades do Rio da Prata.

Nesse sentido, entendemos que, se por um lado havia motivos para que os setores mercantis franceses supusessem a existência de metais preciosos e de reinos indígenas, similares ao Inca, no centro sul da América do Sul, por outro lado, as imagens primorosamente iluminadas que salientam os mapas da década que antecedeu a fundação da França Antártica corroboram a ideia de que a arte tem a ver com intervenção social, ações políticas e mobilização, em suma, com agência no sentido proposto por Meneses.

Referências

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Notas

1 Dieppe é uma cidade portuária situada na Normandia (França) que, no século XVI, aglutinava comerciantes e profissionais de afazeres náuticos. Por volta de 1550, Dieppe passa a ter um papel efetivo no esforço francês de estabelecer colônias na América.
2 Manguel formula interrogativamente essas premissas que norteiam sua obra.
3 Em 1944, o eminente pesquisador português Jaime Cortesão ministrou um curso no Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro, no qual tematizava a influência portuguesa nas cartas geográficas francesas. Um dos tópicos do curso de Cortesão intitulava-se: “As cartas de Gaspar Viegas e a sua influência na escola cartográfica de Dieppe: [...]” (OLIVEIRA, 2015, p. 19).
4 Esse mapa pode ser visualizado no site da Biblioteca Nacional da França, disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84394536.r=desceliers?rk=21459;2. Devido à baixa resolução da imagem fotográfica disponível, não trabalharemos com esse mapa.
5 De um modo geral, as informações biográficas sobre os cartógrafos que atuavam na Normandia, sobretudo em Dieppe, são escassas. As informações e os estudos em torno da obra de Descelier baseiam-se em Toulouse (2007) e Duzer (2015).
6 Jean Rotz, cartógrafo da mesma “escola” cartográfica fez, em 1542, um mapa da América do sul e no seu interior representou o passo a passo entre a guerra, a captura do prisioneiro, sua execução, esquartejamento e assamento (moqueamento), numa sucessão de cenas.
7 Para Combès (2011), nas fontes coloniais dos séculos XVI e XVII, que tratam de migrações guarani e de expedições luso-espanholas que rumavam do sul do Brasil e do Paraguai rumo às terras andinas, há uma estreita coincidência entre uma figura mitológica tupi-guarani, denominada Pai Sumé, e o mito jesuítico do apóstolo São Tomé em terras americanas, e também entre o reino de Paititi e o Rei Branco. Essas quatro entidades seriam, de uma só vez, o resultado de notícias, em torno de um herói civilizador (sacerdote e rei) - com um profundo teor mítico - mal traduzidas, “bem recebidas” e mal interpretadas por uma sociedade ansiosa por ouro e prata e desejosa por conquistar novos reinos similares ao inca.
8 Quase nada se sabe sobre Nicolas Vallard, que empresta seu nome a esse atlas. Embora seu nome, sua cidade e o ano em que foi produzido apareçam em destaque, no centro do frontispício “NICOLAS VALLARD DE DIEPPE, 1547”, nos meios acadêmicos predomina o parecer de que Nicolas Vallard apenas tenha sido o primeiro proprietário do mapa, e não cartógrafo autor da obra (THOMAZ, 2010).
9 Segundo Chartier (2002, p. 244): “O que autoriza a designar como ‘textos’ essas diversas produções [partituras musicais, mapas, imagens] é o fato de que são construídas a partir de signos, cuja significação é fixada por convenção, e de que elas constituem sistemas simbólicos propostos à interpretação”.
10 Essa cena ilustra um esforço de comunicação em torno de um tema recorrente nos primeiros encontros entre europeus e ameríndios. Exibir um objeto de metal precioso para tentar adivinhar a reação e possível confirmação da existência de algo semelhante foi praticado pelos homens de Cristóvão Colombo, de P. A. Cabral e certamente por todos os conquistadores europeus em seus primeiros contatos com os habitantes da América.
11 Cosmografia Universal de acordo com navegadores antigos e modernos.
12 L’atlas de Le Testu offre à la monarchie française le spectacle de son triomphe universel. Il donne dans le même temps les moyens pratiques et les outils techniques pour réaliser ses ambitions. D’où la collaboration étroite de l’hydrographie et de la mythologie, de la science nautique la plus actuelle et d’une imagerie flamboyante venue du fond des âges.
13 Cúbito ou côvado é uma antiga unidade de medida equivalente à medida do cotovelo à extremidade do dedo médio; aproximadamente 66 cm.

Autor notes

Professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, MS, Brasil. Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).

* E-mail: protasiolanger@ufgd.edu.br



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