Resumo: O presente artigo trata da política de proteção fraterna dos indígenas e a intrusão das terras em seus toldos, articulado ao projeto de colonização implementado pelo governo republicano no norte do Rio Grande do Sul, via Diretoria de Terras e Colonização; analisa inicialmente a política de proteção fraterna dos indígenas, traçada e defendida por Torres Gonçalves e, em seguida, a delimitação do espaço dos toldos indígenas e a liberação das terras públicas para colonização, bem como os desdobramentos dessa política no cotidiano da atuação da Comissão de Terras e Colonização. As fontes giram em torno do Relatório da Diretoria de Terras e Colonização do Estado, entre 1910 e 1920. Conclui-se que a política de proteção fraterna do governo positivista, em particular, de sua ala mais humanista, confrontava-se com funcionários públicos inescrupulosos, que não conheciam a realidade dos indígenas e imprimiam ações que produziam conflitos no interior da esfera pública encarregada dos processos de colonização e junto aos indígenas; bem como que havia múltiplos interesses em torno da terra, fato esse que resultou nos aldeamentos indígenas.
Palavras-chave:Primeira RepúblicaPrimeira República,Rio Grande do SulRio Grande do Sul,Toldos indígenasToldos indígenas,Proteção fraternaProteção fraterna,IntrusãoIntrusão.
Abstract: This article deals with the policy of fraternal protection of indigenous people and the intrusion of land into their awnings, articulated with the colonization project implemented by the republican government in the north of Rio Grande do Sul, via the Land and Colonization Directorate; it analyses initially the policy of fraternal protection of indigenous people, outlined and defended by Torres Gonçalves, and then the delimitation of the space of indigenous awnings and the release of public land for colonization, as well as the unfolding of this policy in the daily activities of the Land and Colonization Commission. The sources revolve around the Report of the Directorate of Lands and Colonization of the state, between 1910 and 1920. We conclude that the policy of fraternal protection of the positivist government, in particular of its most humanist wing, was confronted with unscrupulous public officials, who did not know the reality of the indigenous people and printed actions that produced conflicts within the public sphere in charge of the colonization processes and with the indigenous people; as well as that there were multiple interests around the land, a fact that resulted in the indigenous aldeaments.
Keywords: First Republic, Rio Grande do Sul, Indigenous awnings, Fraternal protection, Intrusion.
ARTIGO
A Comissão de Terras e os indígenas no projeto de colonização na Primeira República - norte do Rio Grande do Sul
The Land Commission and the Indians in the colonization project in the First Republic - North of Rio Grande do Sul
Recepção: 22 Abril 2019
Aprovação: 20 Janeiro 2020
Abordar aspectos da política de “proteção fraterna” dos indígenas e a intrusão das terras delimitadas aos toldos, no norte do Rio Grande do Sul na Primeira República, implica tratar de um tema amplamente discutido na historiografia agrária sulina.1 Todavia, nesse aspecto, concordamos com Paul Ricoeur, que ao tratar da escrita da história e da representação do passado defende a comparação entre documentos que abordam o mesmo fato, bem como propõe:
[...] que se tome como referencia el hecho en mi opinión sorprendentemente revelador de la ‘reescritura’ en historia. Reescribir es como volver a traducir. [...] Asimismo, es al reescribir cuando se muestra el deseo del historiador de acercarse cada vez más a ese extraño original que constituye el acontecimiento en todas sus facetas. Verdad pretendida no de un solo libro sino, si me atrevo a decirlo, de un dossier completo de controversia (RICOEUR, 2007, p. 25-26).
Logo, debruçar-se sobre os mesmos documentos, comparar, cruzar, reinterpretar, contribui para buscar explicar e compreender as questões implicadas na política de proteção fraterna e delimitação dos toldos indígenas, e os desdobramentos dessas políticas no presente, em que novas demandas por demarcações de terras surgem, opondo os mesmos agentes - indígenas e colonos -, mas diminuindo, na maioria dos casos, a responsabilidade do Estado, que, no processo como um todo, foi o grande responsável por orquestrar a distribuição de terras e a colonização.
Desse modo, o artigo objetiva analisar o projeto do governo do Estado nas primeiras décadas do século XX de proteção fraterna aos indígenas, capitaneado pelo engenheiro Torres Gonçalves, no sentido de contemplá-los nos programas de colonização mista no norte do Estado. Essa política intencionava criar uma relação harmônica entre a esfera pública, responsável pela nova configuração da terra, e os indígenas no período referido. Imaginava-se, com isso, que as ações do governo estadual, nos processos de colonização e apropriação privada da terra, dar-se-iam de uma forma menos conflituosa.
A análise baseia-se em documentos (relatórios e mensagens) enviados pelos responsáveis dos projetos de colonização no norte do Estado a órgãos públicos, em particular, à Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas e à Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelos governadores do Estado entre 1910-1929. Estruturamos o texto, primeiramente, analisando alguns aspectos da relação conflituosa envolvendo posse, propriedade privada da terra e necessidade de aldeamentos para permitir a reocupação e as ações econômico-mercantis na província sulina; posteriormente, o texto adentra em algumas questões que envolveram o controle público e a normatização da terra para viabilizar a imigração e a colonização. Por fim, o texto aborda sua questão central, que é o projeto público da proteção fraterna aos indígenas pela Diretoria de Terras e Colonização, ou seja, as estratégias de colonização mista, de efetivação de aldeamentos, os conflitos internos no referido órgão e o problema da intrusão, bem como a atuação do Serviço de Proteção aos Indígenas (SPI).
Os povos indígenas, no decorrer do século XIX, foram sendo recuados das áreas tradicionalmente ocupadas, para ceder espaço à apropriação de terras por particulares, incorporando-as ao sistema de produção capitalista que se desenhava no meio social brasileiro e, no espaço rural, em particular. Esse avanço da propriedade privada da terra seguiu ritmos diferentes nas diversas regiões do país. O primeiro momento caracterizou-se pela concessão de extensas sesmarias, passando por um período de predomínio das posses e, posteriormente, com a Lei de Terras de 1850 e o Ato Adicional de 1854, com a obtenção da propriedade atrelada à compra ou herança. Por um lado, havia a legislação, por outro, as redes de relações que garantiam e reconheciam o apossamento realizado por seus congêneres. Em meio a esse universo nebuloso de posse de terras, havia o pequeno trabalhador livre, que não tinha condições financeiras para regularizar sua posse, permanecendo na terra em condições precárias, com o aval dos posseiros ou proprietários limítrofes, ou sendo espoliado por esses (MOTTA, 2008; SILVA, 2008).
Essa estrutura indistinta entre propriedade privada e propriedade pública, à revelia da legislação, somada à carência de instâncias legais para verificar os autos de medição, efetuar os registros e fiscalizar a apropriação das terras públicas, sobreviveu ao longo do século XIX. Na pauta do governo imperial, também constava o povoamento e a defesa das zonas de fronteira. Nesse quesito, o Rio Grande do Sul despontava como posição estratégica a ser ocupada, por meio de núcleos populacionais densos, que também se empenhariam em abastecer o mercado consumidor urbano em formação e as tropas militares. Com esse propósito, foi estabelecida a colônia São Leopoldo, em 1824, como ponto de expansão para novos núcleos coloniais. Atendendo ao discurso do branqueamento da raça em voga na época, optou-se por trazer imigrantes europeus para ocupar esses espaços, inicialmente alemães, posteriormente, italianos, poloneses, sírios/libaneses, dentre outras nacionalidades.
O estabelecimento do elemento estrangeiro em núcleos cada vez mais afastados da capital, de um lado, implicou a majoração dos preços das terras e a busca pela regularização das posses. Por outro, esse processo fez recuar os antigos habitantes - lavradores nacionais e indígenas - para fora dos domínios dos núcleos coloniais, afastando-os para áreas cada vez mais remotas, concentrando-se uma parcela significativa dessas populações nas zonas florestais da metade norte do Estado (BESCHOREN, 1989).
Não podemos esquecer de que o período que antecede a Lei de Terras de 1850 se caracteriza por um intenso apossamento de terras por estancieiros, tropeiros, milicianos, dentre outros sujeitos sociais (MACHADO, 2012). A vacância de lei no período criou essa condição. A ocupação do referido território necessitava ser acompanhada de processos produtivos e de trabalho em geral. A valorização das terras, pós 1850, e seus vários registros, dentre eles, os paroquiais, determinavam o amplo e seguro controle privado da terra para quem já havia se apossado que, em geral, era ou se tornou um grande proprietário fundiário, bem como as ações dos agentes públicos viam nessa prática uma possível fonte de renda aos cofres públicos. Em razão disso, os denominados pelo governo Imperial de “aldeamentos gerais” era condição fundamental para esse intento, pois liberaria grande quantidade de terra para ser comercializada (CUNHA, 1992; ALMEIDA, 2013).
Isso já começou em meados do século XIX. Políticas públicas tentaram implementar processos de aldeamentos indígenas com a intenção de permitir o povoamento, a comercialização de terras, a produção agrícola e o controle social e territorial na região centro-norte da província rio-grandense. O primeiro aldeamento, reunindo índios kaingang, foi criada em 1845, em Nonoai, atendendo ao Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845.2 Aqui é interessante observar os limites entre os municípios de Passo Fundo e Palmeira, na segunda metade do século XIX, que girava em torno do aldeamento de Nonoai, visto que nenhum deles tinha pretensões administrativas sobre essa área (BESCHOREN, 1989).
O tropeirismo para São Paulo estava se estruturando, porém, havia problemas no translado dos animais até a região de Lages, em razão da presença indígena. O controle territorial era condição sine qua non para o bom andamento do empreendimento econômico e territorial dessa porção da província. Colônias militares no sul do Brasil foram implementadas para viabilizar isso. A Colônia Militar de Caseros, por exemplo, situada entre os Matos Castelhano e Português, nas proximidades onde hoje em dia se situa o município de Lagoa Vermelha (Mapa 1), no norte da Província sulina, implementada entre os anos de 1858-1878, foi fundamental para permitir o andamento do tropeirismo na região, a interligação regional através de abertura de caminhos que ligassem São Paulo, passando por Laguna e Lages à região das Missões, bem como o desenvolvimento do extrativismo da erva-mate - produto por excelência dos cofres públicos do período - e a considerada fundamental ação de controle e aldeamento indígena (Figura 1).
As redefinições e configurações territoriais indígenas do centro-norte do estado meridional vão dar o tom dos seus processos de colonização e ocupação (Mapa 2). O tropeirismo (gado e mulas) e o possessismo instalam-se e, a região em questão, integra-se ao sistema econômico colonial, abrindo espaços e interligando territórios e regiões. Parcialidades indígenas vão redefinir suas trajetórias e interligações. Diz Cafruni (1966, p. 599) que os “[...] portugueses trataram de restabelecer comunicações com Laguna, através dos Pinhais, isto é, passando pelo divisor de águas, caminho natural, por meio do Mato Castelhano e Mato Português [...], região que se situava entre as atuais Lagoa Vermelha e Vacaria” (Figura 2).
A necessidade de constituição de aldeamentos, provisórios ou não (como foi o caso de Santa Izabel, Pontão, Campo do Meio, Nonoai, Guarita), no período em questão, pelo governo provincial, produziu mais conflitos e resistências. Indígenas imprimiram resistências, como foi o caso do Cacique Doble (LAROQUE, 2007). Esse Cacique tornou-se paradigmático, pois é visto de uma forma ambígua e/ou contraditória, tanto pelas esferas de governo, quanto pelos próprios indígenas (SIMONIAN, 1981). Na realidade, o aliciamento de caciques pelo governo provincial e/ou pelos diretores de colônias militares passou a ser uma estratégia para atingir seus objetivos (FRANCISCO, 2013; PEZAT, 1997). Promessas de garantia de sobrevivência, de terem matas, pinheiros e caça, além de cavalos e mantimentos, alguns caciques aceitavam se aliar aos poderes militares como estratégia de sobrevivência frente à pressão pelo aldeamento, da violência e das mortandades, da intrusão nos seus territórios, da visível e cada vez mais intensa escassez de terras “livres”, que pudessem ser usufruídas pelos indígenas em razão do aumento da cobiça das terras pelos estancieiros e colonos.
Em vez de aldearem-se, os comandos das parcialidades indígenas barganhavam espaços territoriais, pinheiros, cavalos, roupas e comida, algumas vezes, até soldos; em troca, favoreciam o explorador em algumas de suas ações, dentre as quais, no conhecimento da região, no extrativismo da erva-mate, em atividades agrícolas, na repressão às correrias efetuadas por indígenas de outros agrupamentos (LAROQUE, 2007; BECKER, 1995).
A intenção desse empreendimento público de aldeamento era a de aldear todos os indígenas do norte do Estado sulino num território só, independente de seus grupos étnicos (CAFRUNI, 1966). Isso permitiria liberar uma ampla porção de terra no norte da província para os agentes da colonização. Um grande esforço estatal e privado foi empreendido para esse fim. Pezat (1997) diz que essa política de aldeamento é expressiva da incapacidade do projeto imperial de promover a catequização e a integração considerada civilizatória junto aos indígenas; foi diferenciada em termos de regiões no país, sem maiores correlações entre si, além de demonstrarem ser inconsistentes, pois não promoveram a pacificação e, sim, o acirramento de conflitos, caça aos indígenas, quando não chacinas aos que resistiam aos aldeamentos; ou seja, lançou-se mão de vários dispositivos que revelam pouca eficácia do projeto que perpassa todo o período monárquico.
A imigração e a colonização a ela associada, no Rio Grande do Sul, e, em particular, em sua parte norte, são indissociáveis e provocaram uma mudança profunda na estrutura fundiária e na composição populacional. Conforme aponta Tramontini (2000), a colonização pressupunha terras livres e desembaraçadas ao estabelecimento da colônia e, o colono imigrante - antes e depois da Lei de Terras - exigia a escritura do seu lote. Nesse quesito, não compactuava com as práticas até então vigentes, como limites imprecisos e avanço dos marcos da propriedade, invasões de terras, presença de posseiros em seus lotes e “correrias” de indígenas. Surge o que o governo então denominou de “maus colonos”, ou seja, aquele sujeito que reclama por seus direitos, junto às autoridades locais ou provinciais, em defesa da sua propriedade.
Nesse sentido, na virada do século XIX para o século XX, houve a implementação de um modelo de colonização que terá no norte do Estado sua expressão maior, pois estará sob a égide da esfera pública. Agora não se tratava mais de uma imigração e colonização dirigida, nem colônias administradas por funcionários públicos. Na Primeira República, a política proposta pelo Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), de Júlio de Castilhos3, seguido por Borges de Medeiros, dentro do modelo positivista, previa a imigração espontânea e a formação de núcleos coloniais etnicamente mistos, reunindo, em um mesmo espaço, imigrantes europeus, descendentes de imigrantes e lavradores nacionais, próximos a toldos indígenas, visto que a colonização, competência antes da União, agora era dos Estados (TRAMONTINI, 2000; SPONCHIADO, 2005; NEUMANN, 2016).
O primeiro movimento adotado foi a criação de uma estrutura organizacional responsável pela pasta de terras e colonização, cuja nomenclatura e vínculo acabou se firmando na Secretaria de Obras Públicas, passando de Inspetoria à Diretoria de Terras e Colonização. Como agentes de campo, foram criadas Comissões de Terras e Colonização, instalando-se uma delas em Passo Fundo, em 1907, porém, já em 1903, havia sido instalada uma comissão nesse local vinculada à inspetoria, extinta com a nova comissão. Dentre as atribuições dessas comissões, estava a verificação e medição de terras públicas e privadas, a colonização e a administração dos toldos indígenas (IOTTI, 2001).
Considerando-se os limites municipais da época, os municípios de Passo Fundo, Palmeira e Lagoa Vermelha concentravam a totalidade dos onze toldos indígenas (Mapa 3), cujas áreas foram demarcadas pela Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo, estendendo-se os trabalhos de 1908 até 1910, mas com pendências que se arrastaram por longo período. Em razão disso, os primeiros dados mais precisos sobre esses espaços foram sistematizados pelo poder central em 1910. Desses toldos, apenas o Toldo do Ligeiro ficou sob a administração do governo central (Figura 3).
A população indígena, conforme levantamento do governo, em 1910, estabelecida nos toldos delimitados, totalizava 2.940 habitantes, distribuídos desse modo: 940 em Passo Fundo, 1.200 em Palmeira, 700 em Lagoa Vermelha e 200 em Soledade. Já em 1928, os dados são mais vagos, e indicam uma população de 1.879, mais 40, sem território definido, somando 1.919 indígenas (Quadro 1).
Os dados dos relatórios indicam, nas entrelinhas, a instabilidade dos toldos indígenas, tanto no que se refere à sua área quanto ao número de sua população. Em relação à área, em 1910, as medições ainda estavam em andamento. Já os dados de 1918 para 1928, indicam uma redução sensível da área ocupada pelos toldos indígenas, para menos da metade, além da ausência de dados. O relatório relativo ao ano de 1922 ressaltou: “[...] especial solicitude tem merecido o serviço de proteção aos indígenas que, em número de 2.520, sob a chefia dos respectivos caciques e disseminados em 11 toldos, ocupando a área de 97.400 ha., vão paulatinamente, ingressando na civilização ocidental” (RELATÓRIO..., 1922, p. 35). Já em 1929, o Toldo do Ligeiro permanecia sob a tutela da União, e os demais, do Estado, “[...] todos eles, com exceção do Casseros, de Lagoa Vermelha, atualmente abandonado, estão em boas condições” (MENSAGEM, 1929, p. 72).
Os dados do relatório também apontam para a mobilidade dos indígenas, e a não delimitação das terras destinadas aos toldos, conforme as determinações, ou o próprio deslocamento espacial dos toldos, reunindo os indígenas de diferentes toldos em um mesmo local. Por exemplo, no Relatório da Diretoria de Terras e Colonização de 1919, consta a informação da existência, em 1918, do Toldo Liso, com área a ser demarcada e com 41 habitantes. Já no Relatório da Diretoria de Terras e Colonização de 1922, explicava-se que constava também o Toldo Guarany, que era o antigo Toldo Lagoão, em Soledade. “A princípio fracionou-se em dois, continuando uma parte no Lagoão e outra indo estabelecer-se no Lageado Liso, na colônia Erechim, com cujo nome figura no relatório do ano anterior. Atualmente estão novamente reunidos, porém não mais no Lageado Liso e sim em terras a serem demarcadas” (RELATÓRIO DA DIRETORIA DE TERRAS E COLONIZAÇÃO, 1922, p. 432). Já em 1928, consta o Toldo Guarany, com uma população de 40 habitantes, mas sem área demarcada (RELATÓRIO DA DIRETORIA DE TERRAS E COLONIZAÇÃO, 1929) (Quadro 2).
Na visão de Torres Gonçalves, a demarcação dos aldeamentos resultaria em benefício aos indígenas, pois poderiam criar gado, plantar para seu sustento, etc. Diz ele em seu Relatório de 1911 (GONÇALVES, 1911, p. 79) que “[...] uma vez tranquilos na posse dos territórios que ocupam, melhorarão as suas habitações, aumentarão as suas roças e procurarão criar alguns cavalos e bois, de que estão inteiramente desprovidos”. O referido diretor sabia da intensa demanda pela terra dos “ocidentais”, desse modo, buscava orientar os seus subordinados da Comissão de Terras de Passo Fundo, para que os indígenas fossem ouvidos e que “[...] as terras devem ser demarcadas em globo para cada toldo, conforme a preferência deles próprios, e respeitadas sem nenhum documento legal de propriedade, a fim de evitar que eles venham a ser vítimas da má fé dos ocidentais” (RELATÓRIO..., 1911, p. 154).
A assistência aos nativos pelo estado por meio de seus órgãos de administração fundiária (Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas, Diretoria de Terras e Colonização) tornara-se visível em nível nacional, desenvolvida sobretudo nos governos do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), bastião dos ideais do positivismo4 no Estado e principal responsável pelo incentivo de políticas de modernização técnica da produção agrícola e racionalização do uso das terras disponíveis através dos projetos de colonização (FRANCISCO, 2013; MACHADO, 2012).
O governo republicano definiu como política de Estado a “proteção fraterna” dos indígenas. Tal política foi idealizada e construída pelo engenheiro Carlos Torres Gonçalves, positivista religioso, que ficou à frente da Diretoria de Terras e Colonização no período de 1908 até 1928, abrangendo todo período de atuação da Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo, norte do Estado. A “proteção fraterna” era uma política em construção, não muito clara aos diferentes funcionários envolvidos. Ao que se depreende dos escritos de Torres Gonçalves, consistia na busca de uma atuação equilibrada do Estado junto aos toldos indígenas. A preocupação governamental do período era a criação de uma política indigenista de assistência, estruturada e organizada pela Diretoria de Terras e Colonização (DTC), em correspondência com a política de ordem federal. Porém, houve contraposições de poderes, alguns aldeamentos sob a influência da esfera federal, outros da estadual. A preocupação com a “proteção fraternal” aos indígenas, devemos lembrar, fazia parte da doutrina positivista, principalmente no princípio da defesa de um estado forte capaz de desenvolver a economia, através da diversificação e ampliação da produção de alimentos, do desenvolvimento de estradas e indústrias (LAROQUE, 2007; PEZAT, 2003).
Os municípios de Nonoai, Passo Fundo, Lagoa Vermelha e Palmeira das Missões, no norte do estado, receberam atenção prioritária tendo em vista a necessidade de efetivação do processo colonizador da região, a fixação dos lavradores nacionais, e pelo fato também de grande presença indígena nesse espaço, proliferada em razão da ineficácia da política de aldeamento anterior (meados do século XIX). Missionários capuchinhos foram introduzidos na região norte do Estado com a tarefa de desenvolver a dimensão religiosa, assistencial e de controle social junto aos indígenas.
A Diretoria e as Comissões de terras no norte do Estado atuavam junto aos indígenas, pois a reconfiguração da terra nessa região passava pela normatização de territórios indígenas. A presença desses dificultava a implantação do projeto colonizador e modernizador da agricultura e das relações capitalistas de produção (comercialização da terra, propriedade privada, produção de excedentes, técnicas produtivas, etc.). Tratando-se de um engenheiro para além do gabinete administrativo, Torres Gonçalves percorreu os toldos indígenas da região, conforme seu Relatório sobre os indígenas do Rio Grande do Sul, datado de 9 de junho de 1910 (p. 147-157). As informações colhidas dão conta do número de famílias e indivíduos estabelecidos nos toldos, de acordo com o que já foi apontado no Quadro 1. Contudo, o relatório dá a ver também a dissonância entre a proposta ideal de Torres Gonçalves e a prática no cotidiano do toldo. Relata o caso do toldo de Fachinal, partindo da pergunta: “O que está fazendo o cid[adão] Ricardo Zeni”, passando a descrever a problemática vivida pelos indígenas do toldo:
Foi de toda a conveniência a minha visita a este toldo, pois o que o cidadão Ricardo Zeni tem feito e está fazendo, por forma alguma corresponde aos intuitos protetores do Governo do Estado.
Se fato, o Governo do Estado havia prometido aos índios respeitar e fazer respeitar as terras por eles ocupadas, a cuja demarcação já mandou mesmo proceder, bem como respeitar o regime sob o qual eles vivem - dupla medida que essencialmente resume a proteção devida aos selvícolas (sic) que ainda nos restam.
Pois bem, o cid. R. Zeni, quanto à primeira dessas medidas, em vez de deixar os índios nas terras que ocupam, contrariando a vontade deles, em nome do Governo, convidou-os a abandoná-las, para se estabelecerem meia légua ao norte, a 2 quilômetros do lugar denominado “Cacique Doble”, onde estão estabelecidos alguns pequenos negociantes italianos.
Declarou-nos o cid. R. Zeni que assim procedeu procurando terras que melhor prestassem à agricultura, e de acordo com o Coronel Heleodoro de Moraes Branco, Intendente da Lagoa Vermelha. [...]. Seja como for, o que é verdade é que essa intervenção do cid. R. Zeni teve um resultado desastroso (RELATÓRIO..., 1910, p. 148, grifos nossos).
Ao contatar o cacique Faustino, este teria assegurado que o Intendente agia em defesa dos indígenas, defendendo-os das incursões “dos ocidentais”. Entretanto, verificou que um quinto dos indígenas, liderados pelo indígena dissidente Fortunato, até então ajudante do cacique, haviam aderido ao convite, transferindo-se à área indicada. A situação encontrada por Torres Gonçalves remonta às sucessivas expulsões, segundo relato do cacique Faustino:
[...] há cerca de 70 anos, acossados do ‘Campo do Meio’, desde então a sua gente ocupa aquelas terras, e nelas deseja ser mantida. Ainda ultimamente, intimado a abandoná-las pelo cid. Vidal Andrade, um dos muitos brasileiros ocidentais que disputam atualmente a posse do Fachinal, formado a custo pela sua gente em meio do mato, repetiu-nos o cacique o que então lhe respondeu, e faz lembrar a antiga altivez dos nossos indígenas - MORTO, SIM; VIVO, NÃO - o retirariam dali”. (RELATÓRIO..., 1910, p. 148, grifos nossos).
A presença da Comissão de Terras e Colonização, verificando posses e medindo áreas de terras para colonização no norte do Estado, valorizou ainda mais essa região, frente à precariedade dos limites concedidos aos toldos indígenas. Logo, os toldos viam-se pressionados pelos proprietários das imediações, e os novos compradores que chegavam. A localização dos toldos e suas condições contribuíram para essa disputa:
[...] a sede acha-se em uma belíssima situação, numa das maiores altitudes do Estado, em um ponto de onde se domina todo o horizonte em torno, delimitado dali por uma extensíssima orla de pinheirais; ao mesmo tempo em que o solo, constituído de pequenas ondulações, em parte desnudadas do mato primitivo, está transformado em campestres de fachinais, entremeados de manchas ralas de gigantescos pinheiros, onde só existem eles, as demais árvores havendo desaparecido pela ação do homem; o que tudo concorre para aumentar o encanto do local. (RELATÓRIO..., 1910, p. 148-149, grifos nossos).
Da sede do toldo Fachinal, acompanhado pelo cacique, Torres Gonçalves também foi verificar o local onde estava sendo instalado o novo aldeamento, onde encontrou o índio dissidente, Fortunato, “[...] a quem encontramos de fatiota, chapéu de feltro, botinas, ao que parece assim vestido em recompensa da sua insubordinação” (RELATÓRIO..., 1910, p. 149). No local, havia duas casas prontas, e uma terceira em construção para abrigar a escola. Perguntado sobre os motivos da mudança, Fortunato respondeu que foi:
[...] por ordem do Governo, de quem também tinham promessa de auxílios os índios que a cumprissem. Não ocultou, porém, que ele e os que o acompanhavam preferiam muito continuar no fachinal onde tinham nascido e sido criados. Perguntado ainda se tinha queixa do general Faustino, respondeu que não, e pelo contrário, que o queria muito, pois os tinha criado a todos, era o pai de todos, além de que ele Fortunato, era seu sobrinho e compadre. Manifestações idênticas ouvimos dos demais companheiros (RELATÓRIO..., 1910, p. 149, grifos nossos).
Aqui, o “governo” assume várias feições e, quanto mais distante, mais difícil saber da veracidade das ordens dadas/recebidas. Internamente, também havia fissuras nos toldos, por disputas as mais diversas, sobre as quais a “política fraternal” não conseguia se sobrepor, como notou Torres Gonçalves:
Na manhã do dia seguinte, de regresso, passamos novamente em casa do general Faustino, em companhia do ajudante Fortunato, bem como do cid. R. Zeni. Chefe e auxiliar se evitavam, sendo preciso que eu chamasse o ajudante Fortunato para que eles, a contragosto, se falassem. E não foi sem um real sentimento de pesar que considerei o espetáculo dessa dissidência, da revolta dos subordinados para com o seu chefe, alimentada e mesmo suscitada por quem, para isso, invocava a sua qualidade de representante do Governo!...
Eu havia prometido ao cacique Faustino conseguir o restabelecimento da situação anterior, e encontrei o ajudante Fortunato disposto a obedecê-lo. Mas notei, nesse dia, que o general Faustino, que parece um índio enérgico, havia retirado a confiança ao seu ajudante. Porque, na ocasião de fotografarmos um grupo, solicitado a ladear-se dos seus dois ajudantes, o cacique substituiu o Fortunato por outro.
Quanto ao segundo aspecto da proteção devida aos nossos selvícolas, no que concerne o respeito do regime sob o qual vivem, não tem sido menos errado o procedimento do cid. R. Zeni. (RELATÓRIO..., 1910, p. 149).
Com relação à atitude do funcionário Ricardo Zeni, Torres Gonçalves criticou sua preocupação central em ensinar os índios a ler e trabalhar, afirmando que essa não era a preocupação do governo. Logo, concluiu que o funcionário não estava à altura da função, sugerindo seu afastamento, visto que os índios não se sentiam protegidos por ele, mas, sim, coagidos na sua propriedade e liberdade. Já sobre os indígenas, o chefe da Diretoria de Terras dizia que seu cérebro era um campo desconhecido e muito complexo, e ainda desconheciam o modo de como agir em relação a ele. Na sua concepção positivista religiosa, como já mencionamos, o cérebro dos indígenas estava em outro estágio - fetichista - em relação aos ocidentais, logo, o modo de agir não poderia ser o mesmo, e a conquista deveria ser pelo respeito e uma efetiva proteção fraterna, e não pela força, seja a física, ou pelo ato de ensinar a ler e escrever (RELATÓRIO..., 1910).
As concepções positivistas em torno da evolução mental e cultural dos indígenas faziam com que fossem justificadas políticas assistenciais, assimilacionistas e integracionistas para além das intenções originais da “proteção fraterna”; necessitava-se governar e coibir a tendência à sedentarização indígena, buscando marcar os limites específicos ocupados por eles. Esse processo foi muito marcante na cultura indígena, pois destruiu ou redefiniu seu ethos imemorial de mobilidade, etnicidade e transterritorialidade (PEZAT, 1997; 2003). Em razão das resistências indígenas, bem como das promovidas por proprietários de terras que não queriam aldeamentos indígenas próximos às suas propriedades, ou, então, que haviam posses nos territórios que passaram a ser demarcados, muitos conflitos, tensões e disputas políticas e jurídicas aconteceram, além, é evidente, de intensas subtrações de áreas indígenas previamente definidas.
O Relatório de 1910 já apontava o quanto os indígenas, nesse estágio fetichista, eram explorados “pelos ocidentais”, além desses estarem alimentando vícios daqueles. Há várias passagens nesse sentido. Por outro lado, também chamava atenção os conflitos entre “os ocidentais e indígenas”. Nesse caso, há dois relatos, um no toldo Ligeiro, onde um indígena, a serviço do italiano José Caramora, foi acertado na clavícula pela arma de caça deste, segundo o Relatório, “sem razão alguma”. Como desfecho, o italiano pagou uma pequena indenização. Já no outro caso, no toldo do Fachinal, houve uma briga em um baile, envolvendo “brasileiros e indígenas”, havendo prisões, sendo que os “[...] indígenas envolvidos iriam a júri [...]”, onde foram absolvidos. Enquanto isso, os “brasileiros”, que teriam iniciado a briga, “[...] estavam soltos”. No Relatório, Torres Gonçalves questionava o tratamento diferenciado dado aos indígenas, que eram criminalizados. Ele citava outro caso similar ocorrido anteriormente, no toldo do Carreteiro. Seu argumento era de que, como fetichistas, tinham suas próprias leis e normas de conduta, logo, não poderiam ser julgados pelo código criminal feito para os ocidentais/brasileiros (RELATÓRIO..., 1910, p. 36, p. 39).
Na concepção de Torres Gonçalves, a “proteção fraterna” ainda precisava ser construída e elaborada de forma mais clara. Segundo os dados, a maioria dos indígenas reunidos nos toldos era da etnia dos Coroados, e, em razão da proximidade dos “ocidentais”, já tinham perdido parte dos seus hábitos, costumes e tradições, bem como saberes e fazeres. O traço mais presente ainda era a língua. Os homens, na grande maioria, dominavam a língua portuguesa, as mulheres, entretanto, não; desconheciam a medicina dos antepassados; eram humildes, submissos, mas vingativos. “Pouco trabalham. Vivem em miseráveis ranchos, sem camas, as crianças nuas”. Continua o Diretor de Terras e Colonização descrevendo que os indígenas tinham poucos alimentos, cultivavam milho, feijão, mas não o suficiente. Seu artesanato estava concentrado na confecção de chapéu de palha e cestos de taquara. A sucessão do cacicado era hereditária; eram monogâmicos e tinham seus meios de justiça. O referido diretor defendeu os indígenas da acusação de que praticavam furtos, alegando que tinham outra concepção de propriedade. Em resumo, ele sinalizava que os indígenas estavam sendo corrompidos pelos maus exemplos e vícios dos “ocidentais”, despertando a indolência e perdendo a altivez. Cabia, então, ao projeto de “proteção fraterna”, como uma dívida histórica, reerguer esses povos indígenas, devolvendo-lhes a grandiosidade passada (RELATÓRIO..., 1910).
Líderes positivistas, de corrente humanista, eram enfáticos ao afirmar que “[...] a nação brasileira tinha uma dívida histórica relativa aos povos indígenas, devendo protegê-los dos ataques das vítimas que vinham sofrendo da frente de expansão da sociedade nacional e respeitar suas respectivas autonomias” (PEZAT, 1997, p. 274). Torres Gonçalves, em seu Relatório de 1916 (p. 165-166), ao falar das demarcações dos toldos, enfatiza que a ação pública nos territórios indígenas deverá obedecer aos desejos e interesses desses. Diz ele que “[...] o Estado prosseguirá na demarcação das áreas dos toldos, realizando-a com largueza, tanto quanto possível segundo linhas naturais, consultando sempre previamente o desejo dos índios”. Prossegue o diretor dando ênfase à voz dos que ele denominava de silvícolas: “[...] as terras dos toldos não serão utilizadas para construção de estradas de ferro, linhas telegráficas ou outro qualquer fim de utilidade pública, sem prévio consentimento dos índios”.
Contudo, a política de proteção fraterna tinha outros impedimentos, relacionados ao próprio orçamento do Estado. Se, por um lado, destinava as terras públicas para estabelecimento dos toldos, por outro, carecia de recursos para dar sustentabilidade a esse modo de vida sedentário.
A assistência do Estado a esses remanescentes das raças aborígenes traduz-se em medidas de proteção, mediante o fornecimento de roupas e utensílios agrários. Os recursos orçamentários votados não têm permitido fazer dessa proteção, como seria de desejar, um serviço eficiente de catequese educativa, capaz de integrá-los no trabalho metódico e racional, reunindo-os, para isso, num ou dois toldos a cargo de cada Comissão de Terras. Só assim seria possível, mediante a assistência material e sanitária sistemáticas, evitar que se dispersem, aos poucos, ou seja, dizimados, periodicamente, por moléstias curáveis, que encontram campo fácil de propagação nas péssimas condições higiênicas em que vivem e no abuso embrutecedor do álcool (MENSAGEM, 1910, p. 129, grifos nossos).
A relação dos indígenas com o álcool perpassa a política de “proteção fraterna”, e emerge em diferentes momentos, indicando para os toldos mais vulneráveis. Em 1921, verificou-se o problema no Toldo do Ligeiro, que, mesmo sob a direção da União, acabou recorrendo à Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo, em busca de providências. A direção do toldo apontava o embate entre os indígenas e pequenos comerciantes e agricultores, que seriam “gananciosos ocidentais”, que, para se aproveitarem da ingenuidade indígena, embriagavam-nos (o que era considerado crime), para que esses os deixassem trabalhar em suas lavouras. O documento reiterava que os indígenas facilmente se embriagavam, ao mesmo tempo em que eram intelectualmente infantis. Solicitava, assim, auxílio para a resolução dessas questões.5 Para proteger os indígenas, cogitava-se solicitar a ação da polícia administrativa e judiciária, nesse caso, para que o Ministério Público pudesse realizar ação penal contra os infratores.6 Como medida orientativa e ação efetiva, Torres Gonçalves encaminhou as Instruções do Desembargador Procurador Geral do Estado sobre como proceder com determinadas infrações, tais como embriagar indígenas, e como encaminhar o processo; e o Edital de Proteção aos Indígenas, que detalhava a mesma questão e as penas para tal infração.7
Além dessas questões, todas ligadas às ações da esfera pública e às especificidades atribuídas aos grupos indígenas na questão da terra, das relações sociais, do ensino de português, do álcool, etc., havia o problema da intrusão, principalmente de caboclos, pequenos camponeses que, no interior da proposta de colonização mista, não foram contemplados e/ou não tiveram condições de quitar o pagamento do seu lote. Essa é uma questão histórica e conflituosa na reconfiguração da terra no norte do Estado.
A intrusão e o intruso no empreendimento colonizador e da reconfiguração da propriedade da terra no norte do Estado são processos relacionais complexos, dinâmicos, constantes e conflituosos. Ambos vão além da dimensão étnico-racial (SILVA, 2016); são variados e expressam múltiplas situações. Porém, quase sempre estão envoltas na dinâmica da exclusão, do pequeno agricultor, do caboclo, do posseiro expropriado, do colono que não conseguiu pagar o terreno e/ou foi expulso do empreendimento colonizador. Ao tornar-se “intruso”, esses, em geral, eram caracterizados como invasores, pois sua ação não condizia com os preceitos positivistas preconizados no Estado. Esse processo passou a fazer parte do rol de preocupações dos dirigentes do Estado, visto que a exclusão alimentava a intrusão, fato esse que poderia prejudicar ainda mais os indígenas e a política de “proteção fraterna” pelo Estado.
O relatório de Torres Gonçalves traz à tona duas problemáticas caras aos indígenas: a fixação dos toldos e a intrusão. O primeiro aspecto já vinha sendo discutido internamente na Comissão de Terras e Colonização de Passo Fundo, desde sua instalação. Em seu relatório de 1907, o Chefe da Comissão, Lindolpho da Silva, defendia a elevação cultural e tecnológica dos caboclos, por meio da formação de colônias étnicas mistas, mas o projeto de colonização não incluía o indígena e já se aventou seu deslocamento.
É muito provável que à vista de todo esse movimento os ‘toldos’ de índios sejam deslocados para margem esquerda do rio do Peixe, ao sul da colônia em projeto. Naturalmente eles estão sobre a vertente oriental da ‘Serra do Ligeiro’ e próximos deste rio. São índios de boa índole, fáceis de serem encaminhados para onde convier, e cultivam terra à moda do país, vivem entre os caboclos, quase com os mesmos usos e costumes destes.8 (Grifos nossos).
O próprio Torres Gonçalves, em sua inspeção, numa primeira tentativa, tenta reunir os indígenas do Toldo do Ligeiro e do Toldo Fachinal em um único toldo, mas, quando percebe a ausência de consenso entre os indígenas, visto que nenhum grupo quer abandonar seu espaço, desiste da ideia (RELATÓRIO..., 1910). Assim, são medidas as terras para ambos os toldos. O segundo aspecto é a intrusão. Segundo a Diretoria de Terras e Colonização, sobre a intrusão:
Iniciadas a colonização, em princípios do século passado [XIX], com agricultores europeus, em terras de matas, começaram as mais próximas a despertar interesse. Porém por longos anos ainda, a extensão delas, o grande afastamento da maioria, a falta de estradas, e o pequeno valor das terras, bem como os ônus grandes que a sua defesa exigia, ficaram atuando como fatores do abandono em que continuaram as terras devolutas. [...]
A intrusão teve, pois, como origem, o abandono em que estiverem por longo tempo as terras devolutas. Tornou-se hábito com o correr dos anos. E avolumou-se á medida do rápido crescimento da população colonial que tendo constituído sempre viveiro de agricultores, ascende hoje a mais da terça parte da população do Estado.
Outros fatores concorreram também para a intrusão. Entre eles o último movimento revolucionário do Estado [Revolução Federalista, 1893-1895]. E mais recentemente, entre os anos de 1907-1914 o estabelecimento da nova corrente imigratória encaminhada pela União, retardando as providências para a normalização da situação deles. (RELATÓRIO..., 1919, p. 351, p. 355, grifos nossos).
A Diretoria de Terras e Colonização adotou como prática notificar os intrusos, via editais, sobre as medidas a serem aplicadas, conferindo um perfil de legalidade às práticas do governo, bem como externando a sua preocupação com o destino dos indivíduos afetados com as medidas adotadas. Assim,
‘Quando não tiverem dinheiro, o pagamento dos lotes será feito em prestação de serviços na construção de estradas e caminhos’. Já o edital complementar de 30 de maio de 1919 estabeleceu que nos casos de intrusão ‘em terras do domínio privado’, o Estado só ampararia os ocupantes estabelecidos anteriormente aos editais contra a intrusão. Já os ‘intrusos recentes’ estabelecidos em terras do domínio privado, posteriormente àqueles editais, o Governo do Estado deixará inteiramente expostos aos despejos que os respectivos proprietários promoverem (NEUMANN, 2016, p. 338, grifos nossos).
Os intrusos seriam retirados, oferecendo-lhes terras a baixo preço em outro local. Já em relação à área do Toldo do Fachinal, o número de demandantes declarando-se proprietários da área crescia diariamente. O governo acreditava tratar-se de terras públicas e, em sua defesa, estava verificando todos os documentos apresentados junto à Comissão de Terras e Colonização. Assim, para o Toldo do Ligeiro, seriam medidos 5.000 hectares, e, para o Toldo do Fachinal, 6.000 hectares. Os proprietários já estabelecidos em áreas dos toldos seriam indenizados. Os indígenas, por sua vez, garantiam melhorar suas condições materiais caso a posse da terra lhes fosse assegurada (RELATÓRIO..., 1910).
Articulado às políticas de proteção dos indígenas, por decreto do Governo Federal, foi criado, em 20 de junho de 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN).9 Frente a essa nova instituição, o Estado estava fornecendo todas as informações e o apoio para sua atuação, “[...] concedendo e demarcando, como nos cumpre, terras devolutas para os diversos toldos, ou agremiações de selvícolas” (MENSAGEM, 1911, p. 32).
A criação do SPILTN revela o temor dos republicanos em não repetir os mesmos erros cometidos na política indigenista do período do Império. Os positivistas idealizavam a possibilidade de estimular nos indígenas o desenvolvimento das faculdades morais, mentais e do trabalho, sendo esse considerado por eles como produtivo. “Trata-se de sistematizar a proteção aos índios. [...], não cabe à Republica, dentro do seu programa, negar-lhes cuidadosa assistência, fiel ao dever de estimular o desenvolvimento de suas faculdades morais, de sua capacidade de trabalho e de defender-lhes a vida”.10 Dizia Torres Gonçalves, em seu Relatório (1910, p. 152-153), que
[...] cabia reerguer os indígenas da situação de miséria e prostração em que, então, se encontram. [...], a impressão que se tem dos indígenas que atualmente ainda existem aqui no Rio Grande do Sul, é de uma raça abatida, deprimida, decadente: que nada lucrou com o contato com os ocidentais, antes perdeu. [...], temos uma dívida de honra a saldar com os descendentes dos primitivos ocupantes das terras por nós conquistadas pela violência.
Em relação à colonização e à questão indígena na região de Passo Fundo, houve também a atuação do SPILTN, ainda que a grande maioria dos toldos indígenas fosse assistida pela proteção fraternal estadual. O Toldo do Ligeiro, a partir de 1914, passou a ser gestado diretamente pelo SPILTN. Nesse sentido, parece ter congregado uma função mista, agregando indígenas e trabalhadores nacionais, sendo referido, até 1917, como “Centro Agrícola”, passando à categoria de “Povoação Indígena” (BRASIL, 1918, p. 515). A localidade destinava-se a ambos os grupos sociais e em prol da produção agrícola, em prol da distribuição de sementes e em prol da produção de gêneros variados. Os trabalhadores nacionais, além de terem espaço para cultivar, auxiliavam os indígenas à “passagem para a situação de trabalhador nacional” (BRASIL, 1916, p. 78).
Em 1910, a comissão técnica de Passo Fundo já havia medido e demarcado as áreas para os toldos Ligeiro, Fachinal, Caseiros e Carreteiro; e a Comissão de Erechim, para o toldo Ventara. “Aos intrusos, ocupantes das terras destinadas aos índios, tem o Governo doado no perímetro delas, ou em pontos diversos, outras áreas iguais, suficientes para que continuem nos trabalhos agropecuários, a que se dedicavam até aí. Esta resolução generosa e equitativa tem encontrado franca aceitação dos interessados” (MENSAGEM, 1911, p. 32).
No decorrer da atuação da Comissão de Terras e Colonização em Passo Fundo, nota-se a tensão entre a política ideal do modelo positivista, proposta pelo governo, e o cotidiano das relações estabelecidas em relação à terra na região, onde prevaleciam os interesses em ocupar as terras reservadas aos toldos indígenas por vários sujeitos sociais, desde o pequeno camponês até o latifundiário que já havia terras adquiridas próximas aos toldos (RÜCKERT; KUJAWA, 2010a). Nessa perspectiva, foi criada a colônia Nonoai, em 1914, no município de Palmeira, com o intuito de regularizar o serviço de “proteção fraterna” aos indígenas (MENSAGEM, 1914).
Na leitura da política de governo, “[...] a proteção aos indígenas está sendo dispensada sistematicamente, produzindo efeitos elogiáveis, sob todos os pontos de vista. Novos toldos foram instalados. Mostram-se os índios cada vez mais adaptáveis e ativos, sendo muitos deles aproveitados com real proveito em trabalhos de estradas de rodagem” (MENSAGEM, 1920, p. 63, grifos nossos). A assistência aos indígenas consistia em fornecer roupas, alimentos, sementes de trigo, realidade essa que vai se estender por vários anos, principalmente com a política de integração e nacionalização pós-década de 1930. Entretanto, a questão das terras dos toldos indígenas e a sua demarcação sobressai como uma problemática central, iniciada em 1910, prolongando-se no decorrer de toda Primeira República, e revista, de modo mais incisivo, no início da década de 1940, quando as medições, em vários casos, precisaram ser revistas (reduzindo significativamente as áreas indígenas demarcadas), motivadas principalmente pela intrusão e redução do número de indígenas. No primeiro caso, encontravam-se os toldos de Serrinha e Nonoai, e, no segundo, o de Água Santa, que, após verificação, permaneceu com a área original.11
Em função da ação assistencialista do governo estadual sobre a questão indígena, a atuação do SPI, até o início da década de 1940, mantivera-se estanque no norte do Rio Grande do Sul, inexistindo, inclusive, a vinculação do Estado a qualquer Inspetoria do Serviço. Até fins da década de 1930, o Serviço havia prestado assistência direta e permanente apenas na chamada Povoação Indígena de Passo Fundo12 que, por ser a única com intervenção simultânea do SPI e da Diretoria de Terras e Colonização do Rio Grande do Sul, figurara por longo período como exemplo a ser seguido, tanto pelas outras áreas indígenas da região quanto em nível nacional, devido aos resultados satisfatórios observados em relação à administração.
Passaram-se mais de duas décadas após as delimitações territoriais e as tentativas de acomodar o “problema indígena” (SIMONIAN, 1981) não surtiam grandes efeitos. Indígenas saíam dos agrupamentos forçados; foram inseridos num mesmo espaço parcialidades indígenas que possuíam conflitos de longa data, troncos de famílias que perderam poder, etc., fato esse que provocava a formação de novos agrupamentos em espaços externos em torno de lideranças, bem como, ao contrário, começa a inserção de agricultores no interior das terras demarcadas. Indígenas, com isso, recriam suas territorialidades, suas ligações entre grupos, mas, acima de tudo, enfrentam a intrusão de agricultores, madeireiros e ervateiros, fato esse que vai desembocar em grandes enfrentamentos no final da década de 1970. Esse processo de intrusão passou a ser intenso a partir de 1940, vindo a redefinir a concepção de terra indígena pela esfera pública, a qual queria também amenizar a pressão pela terra de pequenos agricultores que não foram contemplados pelos projetos de colonização ou não conseguiram até então adquirir uma propriedade.
Vimos, em linhas gerais, algumas das intenções do governo estadual materializadas em políticas públicas de proteção fraterna junto aos indígenas, em particular no norte do Rio Grande do Sul. A ala mais de cunho humanista buscava contemplar os nacionais nos projetos de colonização efetivando programas de assentamentos mistos, envolvendo trabalhadores nacionais e imigrantes e/ou filhos desses, bem como delimitar as áreas dos toldos indígenas, situados próximas de colônias. O objetivo governamental consistia na troca de saberes e fazeres entre esses diferentes sujeitos, culminando na elevação cultural e a modernização agrícola.
A empreitada, vista pelos relatórios produzidos e enviados ao governo do Estado (Secretaria de Obras Públicas), não demonstrou ser tão eficaz. Conflitos internos, entre comando e comandados da esfera pública, entre indígenas e agricultores, condensavam um processo mais amplo de interesses na apropriação privada da terra por vários sujeitos sociais.
Os indígenas, além de enfrentar os problemas de intrusão em seus espaços previamente designados, havia a imposição de um processo de assimilação à lógica capitalista da produção, aliada a uma incompreensão de seu ethos cultural e social ligado à terra. O resultado disso foi a acomodação em espaços forçados de aldeamentos, com territórios reduzidos e com conflitos internos, os quais produziram novos agrupamentos (parcialidades) fora dos territórios estabelecidos pela política pública.
Pós anos 1930, intensificaram-se as políticas de integração do indígena na sociedade maior, principalmente pelo viés produtivo (agricultura), na esfera do ensino (escolas mistas, com presença intensa de filhos de agricultores que estavam fora e dentro das reservas), além de uma série de elementos que alteraram o cotidiano e os saberes dos indígenas, as lógicas matrimoniais, os rituais religiosos, etc. A intrusão deliberada pelas políticas de nacionalização, as quais, em meio aos indígenas, possuíam a filosofia assimilacionista como seu carro-chefe, associa-se ao programa de modernização social e produtiva da sociedade em geral.
Das onze áreas demarcadas no início do século XX, entre os anos de 1910 e 1918, apenas três não sofreram, em anos posteriores, alterações em sua área previamente demarcada; além de que, a economia da madeira no norte do Estado e a presença da triticultura no horizonte dos colonos, através dos processos de modernização do campo, fizeram com que as áreas indígenas ficassem a mercê de colonos em busca da terra.
Enfim, sintetizamos um processo amplo, complexo e diversificado em termos de regiões no Estado, o qual revela uma dinâmica de política pública, que tentou imprimir controle aos indígenas contemplando-os na dinâmica da reconfiguração da terra e, com isso, dando garantias de inserção de colonos e do processo produtivo considerado moderno no norte do Estado.
* E-mail: jctedesco@upf.br** E-mail: rosaneneumann@gmail.com