Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Teoria do Discurso: possibilidades de análise dos sentidos da docência na política curricular (1996-2006)
Kátia Costa Lima Corrêa de Araújo
Kátia Costa Lima Corrêa de Araújo
Teoria do Discurso: possibilidades de análise dos sentidos da docência na política curricular (1996-2006)
Teoría del Discurso: posibilidades de análisis de los sentidos de la docencia en la política curricular (1996-2006)
The Discourse Theory: possibilities of analysis of meanings of teaching in curricular policy (1996-2006)
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 1, pp. 46-73, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O artigo problematiza a tese da docência como base da formação e da identidade de todo profissional da educação, formulada pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), como uma demanda hegemônica no debate da política curricular (1996-2006). Operamos com a teoria do discurso de Ernesto Laclau questionando os essencialismos e as tentativas de fechamento da significação da política curricular. A tese da docência como a base da formação e da identidade do profissional da educação é analisada como uma demanda hegemônica que disputa a significação em torno da concepção de Pedagogia, da identidade do curso de Pedagogia e de projetos curriculares relacionados à formação dos profissionais da educação no debate em tela.

Palavras-chave:Teoria do discursoTeoria do discurso,DocênciaDocência,Política curricularPolítica curricular.

Resumen: El artículo problematiza la tesis de la docencia como base de la formación y de la identidad de todo profesional de la educación, formulada por la Asociación Nacional por la Formación de los Profesionales de la Educación (ANFOPE), como una demanda hegemónica en el debate de la política curricular (1996-2006). Operamos con la teoría del discurso de Ernesto Laclau cuestionando los esencialismos y los intentos de cierre de la significación de la política curricular. La tesis de la docencia como la base de la formación y de la identidad del profesional de la educación es analizada como una demanda hegemónica que disputa la significación en torno a la concepción de Pedagogía, de la identidad del curso de Pedagogía y de proyectos curriculares relacionados a la formación de los profesionales de la educación en el debate en pantalla.

Palabras clave: Teoría del discurso, Enseñanza, Política curricular.

Abstract: The article problematizes the thesis of teaching as the basis of formation and the identity of all professionals of education, formulated by the National Association for the Training of Education Professionals (ANFOPE), as a hegemonic demand in the curriculum policy debate (1996-2006). We operate with Ernesto Laclau's discourse theory questioning the essentialisms and the attempts to close the meaning of curricular policy. The thesis of teaching as the basis of the formation and identity of the education professional is analyzed as a hegemonic demand that contests the meaning around the conception of Pedagogy, the identity of the Pedagogy course and curriculum projects related to the education professionals training in the debate on the screen.

Keywords: Discourse theory, Teaching, Curricular policy.

Carátula del artículo

Dossiê

Teoria do Discurso: possibilidades de análise dos sentidos da docência na política curricular (1996-2006)

Teoría del Discurso: posibilidades de análisis de los sentidos de la docencia en la política curricular (1996-2006)

The Discourse Theory: possibilities of analysis of meanings of teaching in curricular policy (1996-2006)

Kátia Costa Lima Corrêa de Araújo
UFRPE, Brasil
Simbiótica. Revista Eletrônica, vol. 6, núm. 1, pp. 46-73, 2019
Universidade Federal do Espírito Santo
Introdução

O artigo problematiza a tese da docência como base da formação e da identidade de todo profissional da educação, formulada pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), como uma demanda hegemônica no debate da política curricular (1996-2006). O artigo é resultado de uma pesquisa mais ampla, cujo objeto de estudo é o debate da política curricular e os sentidos do estágio supervisionado (1996-2006), considerando demandas, antagonismos e hegemonia. Operamos com a teoria do discurso de Ernesto Laclau, questionando os essencialismos e as tentativas de fechamento da significação da política curricular.

A pesquisa teve como campo de estudo a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE) e o Ministério da Educação/Conselho Nacional da Educação (MEC/CNE). Foram analisados dezessete documentos1 produzidos pelas entidades do campo educacional sob a forma de boletins, cartas, manifestos e posicionamentos teóricos acerca da reformulação curricular dos cursos de graduação destinados à formação dos

profissionais da educação, e nove documentos curriculares emanados do MEC/CNE[1], entre Pareceres e Resoluções. 47 Importar tabla

Importar imagen

1 1) Pronunciamento conjunto das Entidades da área da Educação ANPED, ANPAE, ANFOPE, CEDES, FORUMDIR, sobre o Curso de Graduação em Pedagogia, 2006; 2) Documento Final XIII Encontro Nacional. Campinas, SP, 2006; 3) ANFOPE, ANPED, CEDES. Documento das Entidades sobre o Anteprojeto de Resolução do CNE sobre o Curso de Pedagogia, 2005; 4) ANFOPE. Documento Final do XII Encontro Nacional. Brasília, DF, 2004; 5) ANFOPE, ANPEd, CEDES. Documento enviado ao CNE. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Pedagogia, 2004; 6) FORGRAD. Diretrizes para a formação de professores: concepções e implementação (Versão preliminar). Texto elaborado com base na Oficina de Trabalho de João Pessoa, PB, realizada em 16 a 17 de setembro de 2002; 7) Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, encaminhada por: Comissão de Especialistas de Ensino de Pedagogia e Comissão de Especialistas de Formação de Professores, Brasília, 2002; 8) ANFOPE. Documento Final do XI Encontro Nacional. Florianópolis – SC, 2002; 9) Posicionamento conjunto das entidades: ANPED, ANFOPE, FORUMDIR, CEDES e Fórum Nacional em Defesa da Formação do Professor, na reunião de consulta com o setor acadêmico, no âmbito do programa especial “Mobilização nacional por uma nova educação básica”, instituído pelo CNE, Brasília/DF, 07/11/2001; 10) ANPED, ANFOPE, FORUMDIR, Fórum de Pró-Reitores de Graduação das Universidades Brasileiras, Fórum Nacional dos Pró-Reitores de Extensão, UNDIME, CONSED, CNTE. Contribuições das Entidades para subsidiar discussão na Audiência Pública Nacional/CNE sobre a Formação do

Professor para a Educação Básica em cursos de Nível Superior, Brasília, 2001; 11) ANPED, ANFOPE, ANPAE, FORUMDIR, Fórum em Defesa da Formação do Professor. Contribuições das Entidades para subsidiar discussão na Audiência Pública Nacional/CNE sobre a Formação do Professor para a Educação Básica em Cursos de Nível Superior, RJ, 03/04/2001; 12) ANFOPE. Documento Final do X Encontro Nacional. Brasília, DF, 2000; 13) Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia: Comissão de Especialistas de Ensino de Pedagogia, 06/05/1999; 14) Documento Norteador para elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Formação de Professores: GT Licenciaturas, constituído pela SESu/MEC, 1999; 15) ANFOPE /FORUMDIR, Carta de Recife, 05/11/1999; 16) ANFOPE. Documento Final do IX Encontro Nacional. Campinas, 1998; 17) ANFOPE. Documento Final VII Encontro Nacional. Belo Horizonte, 1996.

Em consonância com a teoria do discurso, defendemos a tese que o debate da política curricular para a formação de professores é um campo discursivo de articulação e negociação de demandas curriculares heterogêneas que disputam a hegemonia dos sentidos na política curricular. Nesse campo discursivo atuam diversos atores do campo educacional, bem como aqueles que atuam nas esferas governamentais. Tais grupos influenciam e decidem os rumos da política curricular, mesmo que sejam provisórios e contingentes. Sob esta ótica, o currículo é visto como prática de articulação discursiva, como “jogos de linguagem” no sentido dado por Wittgenstein (2013), em que os significados não são fixos, mas contingentes.

Argumentamos que o debate da política curricular (1996-2006) é um campo discursivo marcado por disputas hegemônicas de significação. Tais disputas são políticas em torno de um projeto nacional de educação em seus níveis e modalidades, um projeto de sociedade e um projeto de currículo para a formação de professores cuja pretensão é produzir identidades fixadas, bem como mudanças na organização institucional e curricular das instituições de educação superior (IES) que ofertam a formação inicial e continuada em nível superior.

O contexto (1996-2006) é de intensas reformas nas políticas de currículo no Brasil e,

por isso, de grandes debates e embates que mobilizam professores, estudantes, gestores, 48 Importar tabla

entidades acadêmicas educacionais e esferas governamentais, no movimento de reformulação curricular dos cursos de formação de professores da educação básica, em especial do curso de Pedagogia.

Em 1996 temos a promulgação da Lei nº 9.394/1996 e, logo após, uma série de regulamentações instituídas pelo MEC/CNE, como a Resolução CP nº 1/1999, que dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação (ISEs); a Resolução CNE/CP nº 1/2002, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da Educação Básica; a

Importar imagen

que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia. Aprovado em 21/2/2006; 3) Parecer CNE/CP nº 5/2005, define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. Aprovado em 13/12/2005; 4) Projeto de Resolução. Conselho Nacional de Educação, 2005. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Pedagogia; 5) Resolução CNE/CP nº 2, de 19 de fevereiro de 2002. Institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica em nível superior; 6) Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura; 7) Parecer CNE/CP nº 28/2001. Dá nova redação ao Parecer CNE/CP nº 21/2001, estabelecendo a duração e a carga horária dos cursos de Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura de graduação plena. Aprovado em 2/10/2001; 8) Parecer CNE/CP nº 27/2001. Dá nova redação ao item 3.6, alínea “c”, do Parecer CNE/CP nº 9/2001, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Aprovado em 02/10/2001; 9) Parecer CNE/CP nº 9/2001. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Aprovado em 8/5/2001.

Resolução CNE/CP nº 2/2002, que institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura da Educação Básica e, finalmente, a Resolução CNE/CP nº 1/2006, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia. No cenário atual, foi aprovada outra Diretriz que orienta todas as Licenciaturas, mas que não foi objeto de análise desta investigação.

A seguir, discutiremos categorias da teoria do discurso como discurso, demandas, articulação e hegemonia que juntas permitem uma compreensão do social e da política curricular como relações discursivas. Com base nesse arcabouço teórico, problematizaremos, na sequência, a tese da docência como a base da formação/identidade profissional de todo educador.

O social é discursivamente significado

Para Laclau e Mouffe (1978), a realidade social é discursiva, isto é, uma totalidade discursiva resultante de práticas articulatórias. Discurso é prática, é articulação de sentidos. Tal

questão remete à própria natureza do conceito de discurso, em que os objetos se constituem 49 Importar tabla

dentro de uma condição discursiva, isto é, dependem da estruturação de um campo discursivo, formando “jogos de linguagem” que podem produzir novas significações contingentes. No sentido dado por Wittgenstein (2013), Laclau e Mouffe (1987, p. 183) afirmam que “os jogos de linguagem incluem uma totalidade inseparável da linguagem e das ações”. Os autores partilham com Wittgenstein a ideia de que os significados dos objetos são constituídos discursivamente em “jogos de linguagem” em processos articulatórios, que é o que chamam de discurso. Isso implica dizer que os sentidos “não estão meramente justapostos, mas constituem um sistema diferencial e estruturado de posições – quer dizer, um discurso” (LACLAU; MOUFFE, 1987, p. 184).

A categoria discurso nos conduz à concepção subjacente de sociedade, ou seja, abarca todas as dimensões da realidade social e não somente práticas usuais de escrever, falar, comunicar (HOWARTH, 2008). Isso porque, para Laclau (2011b), as relações sociais são discursivas, são relações simbólicas que se constituem por meio de processos de significação. Enfatizando a dimensão ontológica do social, Laclau pretende afirmar o sentido de todos os objetos e práticas; mostrar que todo sentido social é contingente, contextual e relacional, e argumentar que qualquer sistema de sentidos se apoia sobre um exterior discursivo que o

constitui parcialmente.

Na tentativa de aproximar a discussão teórica à política curricular para a formação de professores, compartilhamos com Lopes e Macedo (2011a) a perspectiva de discurso como uma totalidade relacional de significantes que limitam a significação de determinadas práticas e, quando articulados hegemonicamente, constituem uma formação discursiva. Entendemos o discurso a partir de múltiplos sentidos que se articulam com infinitas possibilidades de constituir um discurso hegemônico e contingente.

No caso do estudo das políticas curriculares, o discurso define como são os termos de um debate político, quais agendas e ações priorizadas, que instituições, diretrizes, regras e normas são criadas, portanto, produzem efeitos de posicionamento, autorização e restrição sobre os sujeitos que nela se constituem ou expressam (LOPES; MACEDO, 2011a).

A centralidade dada à categoria discurso se explica porque é através dela que se alcança uma ampliação do campo da objetividade, possibilitando pensar em numerosas relações do social – esse é o sentido assinalado à categoria discurso. Outra questão importante a ser

destacada na teoria laclauniana é o caráter incompleto da totalidade. Segundo Laclau (2011a), 50 Importar tabla

a totalidade é uma categoria que não pode ser erradicada, mas, como uma totalidade falida, constitui um horizonte e não um fundamento. O social se constitui no terreno da impossibilidade tanto de interioridade como de uma exterioridade total. Disso decorre que o campo das identidades nunca consegue ser plenamente fixado – nem a fixação absoluta nem a não fixação absoluta, são, portanto, possíveis.

Pode-se dizer que a incompletude da totalidade mantém interlocução com a noção de

“falta constitutiva” formulada na psicanálise lacaniana para tratar do sujeito. De acordo com Ferreira (2005), a “falta constitutiva” a que Lacan faz referência é uma falta que nos completa pela ausência – é a presença na ausência. “Se não houvesse a falta, se o sujeito fosse pleno, se a língua fosse estável e fechada, se o discurso fosse homogêneo, não haveria espaço por onde o sentido transbordar, deslizar, desviar, ficar à deriva” (FERREIRA, 2005, p. 71).

A “falta constitutiva” vem a funcionar para Lacan como verdadeiro motor da estrutura (estrutura, no sentido psicanalítico, quer dizer que o sujeito não está no centro de si mesmo e tampouco é a fonte do sentido; o lugar onde está não tem centro, mas é uma estrutura). Lacan deu um nome a essa falta, cunhando-a como uma de suas mais importantes invenções teóricas – o objeto a – um objeto faltoso, perdido, que o sujeito busca reencontrar, como causa do desejo (FERREIRA, 2005). Compartilhamos com Andrade (2013) que a psicanálise de Freud e Lacan é um legado para a teoria do discurso: Freud com a noção de inconsciente, Lacan com a percepção da incompletude. Com base em Mouffe (1996), podemos dizer que tais aportes teóricos contribuíram para reforçar o entendimento de que há uma falta fundante e original que subverte e é a condição de qualquer identificação do indivíduo.

Laclau (2011a) lida com uma totalidade fundada nas diferenças relacionais, isto é, em um conjunto diferencial, heterogêneo. Para apreender conceitualmente esta totalidade é preciso apreender seus limites, distingui-la de algo diferente de si mesma. Esta outra diferença provém do exterior, um exterior que é resultado de uma exclusão, de algo que a totalidade expele de si mesma a fim de constituir-se. Daí provém à noção de equivalência, isto é, aquela que subverte a diferença, de maneira que “toda identidade é construída dentro de uma tensão entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência” (LACLAU, 2011a, p. 94).

A formulação teórica da lógica da equivalência e da diferença é central no aporte laclauniano. “A equivalência cria um segundo sentido que, enquanto é parasitário do primeiro, o subverte: as diferenças se anulam na medida em que são usadas para expressar algo idêntico que subjaz a todas elas” (LACLAU; MOUFFE, 1987, p. 218). Em outras palavras, a 51

equivalência somente existe no ato de subverter o caráter diferencial desses termos: “dois termos para serem equivalentes devem ser diferentes – caso contrário, seria uma simples identidade” (LACLAU; MOUFFE, 1987, p. 220). Daí advém à fórmula do antagonismo, na medida em que esta não constitutividade ou contingência do sistema de diferença se mostra na não fixação que as equivalências introduzem. O caráter final desta não fixação, a precariedade final de toda diferença, haverá, pois de mostrar-se em uma relação de equivalência total em que se dissolva a positividade diferencial de todos os seus termos. Esta é a fórmula do antagonismo, que assim estabelece seu caráter de limite do social.

Discurso enquanto prática social supõe a existência de uma fronteira antagônica – campos políticos –, em que diferentes grupos lutam em torno da hegemonização de um sistema de significação. Em suma, os autores defendem a própria impossibilidade do real – a negatividade – que alcança uma forma de presença. É por isso que o real está penetrado pela negatividade – quer dizer – por antagonismo – que não alcança o status da transparência, da presença plena, e a objetividade das identidades é permanentemente subvertida.

Incorporando a teoria do discurso ao debate da política curricular, entendemos as políticas curriculares para a formação de professores como negociação de sentidos, como articulação discursiva para o fechamento provisório de estruturas, na medida em que existe um campo discursivo que busca fixar um sentido. Compartilhamos com Howarth (2008) a ideia de que as práticas hegemônicas implicam o deslocamento de um conjunto de demandas de um lugar social a outro, ou de um grupo a outro, através de um processo marcado pela negociação e disputas entre diferentes projetos.

Na perspectiva da Teoria do Discurso, entendemos que no jogo das decisões políticas que investigamos encontram-se múltiplos discursos que remetem a um processo de construção de sentidos em disputa pela constituição de projetos hegemônicos no contexto de reformulação curricular dos cursos de formação de professores. Portanto, um contexto em que há, conforme asseveram Lopes e Macedo (2011b), diversos produtores de textos e discursos – governos, meio acadêmico, práticas escolares, mercado editorial, grupos sociais dos mais distintos e suas interpretações – com poderes assimétricos, mas suas identidades são constituídas no processo de luta política.

Demanda, articulação e hegemonia

Iniciaremos esta seção buscando interpretar o conceito de demanda na teoria laclauniana. Para Laclau (2011a), se uma demanda específica, no sentido de um pedido ou de uma solicitação, feita por sujeitos ou grupos sociais diretamente a instituições formais do Estado é satisfeita, então o problema está resolvido e não há equivalência entre elas. Mas, se a demanda não é satisfeita, haverá uma frustração dessa demanda e outras demandas igualmente insatisfeitas se acumularão, estabelecendo-se entre elas uma relação equivalencial (LACLAU, 2011a). Dito de outro modo, uma fronteira política interna é formada, dando lugar ao surgimento de uma cadeia equivalencial de demandas insatisfeitas que se articulam em suas múltiplas reivindicações.

A pluralidade de demandas através de sua articulação equivalencial é o que Laclau (2011a; 2006) denomina de demandas populares. Nessa articulação plural se encontram demandas distintas umas das outras, cada uma com sua particularidade, de modo que todos os elementos da cadeia são heterogêneos. Podemos então perguntar, o que as une? O que as une é a oposição comum ao sistema ou a uma força antagônica. As distintas demandas se unem em uma luta política, articulando outras demandas insatisfeitas, que passam a estabelecer entre si uma relação de equivalência. Dito de outro modo, a unificação dessas diversas demandas – cuja equivalência, até este ponto, não havia ido além de um vago sentimento de solidariedade – é um sistema estável de significação. Podemos dizer que as articulações se transformam em reivindicações de defesa nas quais grupos variados, constituídos como vontades coletivas, se unem por uma luta política.

Laclau (2006) afirma que em certo momento a cadeia equivalencial pode se estender o suficiente, sendo necessário representá-la simbolicamente. Os meios para essa representação são as demandas individuais. Certa demanda adquire a função suplementar de representar a totalidade da cadeia de equivalências. Essa relação pela qual certa particularidade assume a função de uma totalidade que a excede é o que Laclau chama de relação hegemônica. E a hegemonia é uma particularidade que assume certa função universal.

Quanto mais estendida for a cadeia de equivalência, menos a demanda que assume o papel de representar a cadeia como um todo vai manter um vínculo estrito com o que a constitui originariamente como particularidade. Dito de outro modo, para ter essa função de representação universal, a demanda terá que se despojar de conteúdos precisos e concretos (LACLAU, 2006). Isto quer dizer que a demanda se esvaziará de sua relação com significados

específicos e vai se transformando em um significante vazio, um significante que perde sua 53 Importar tabla

referência direta a um determinado significado.

O significante vazio representa uma totalidade de elementos essencialmente heterogêneos entre si. No limite desse esvaziamento, o que põe em conjunto toda essa cadeia equivalencial é um significante que não tem um significado preciso, porque se refere a uma extensionalidade muito maior, que somente tende a se unificar em torno de um nome, de um elemento puramente conceitual que estabelece a unidade de todas elas. É por isso que existe um significante vazio; e é por isso que existe um nome (LACLAU, 2006, p. 25). Mediante o exposto, encontramos em Laclau (2006) três dimensões importantes para explicar como se formam as demandas: 1) a relação equivalencial; 2) a disputa hegemônica; 3) o significante vazio. Assim, o autor explica como se constitui a unidade de um grupo, de uma identidade política, a partir de uma dispersão de pontos de ruptura, antagonismos e demandas.

No campo da política curricular é importante considerarmos a heterogeneidade dos discursos, os diferentes atores educacionais e as disputas discursivas em torno da articulação de demandas voltadas à formação, à docência e ao currículo. Isso porque Laclau (2011a) chama atenção para o fato de que a divisão da unidade do grupo em unidades menores é o que ele denomina de demanda: “a unidade do grupo é, em nossa perspectiva, o resultado de uma articulação de demandas” (LACLAU, 2011a, p. 9).

Tudo isso tem em vista a constituição de um projeto hegemônico/aglutinador de discursos, formulado através da articulação de inúmeras demandas diferenciadas, todas buscando discursivamente fazer valer os seus sentidos no debate da reformulação dos cursos de formação de professores, em particular o curso de Pedagogia. Na seção a seguir, analisaremos os sentidos de docência no debate da política curricular (1996-2006).

Sentidos de docência na política curricular (1996-2006): disputas de significação e hegemonia

A tese que reivindica a docência como base da formação e da identidade do profissional da educação, junto à reivindicação de uma base comum nacional (BCN) para os currículos dos cursos de formação dos professores, constituem as principias demandas formuladas pela ANFOPE, no período em tela. Ambas articulam uma gama heterogênea de demandas curriculares no processo de disputas hegemônicas em torno de um projeto de currículo que tem 54 como fio condutor a docência como base para a formação/identidade de professores. Como resultado do procedimento de análise dos documentos das entidades acadêmicas de educadores, identificamos os temas que constituem as demandas, conforme veremos na Tabela 1 a seguir. Ressaltamos que os temas que constituem as demandas apresentadas nos documentos das entidades acadêmicas de educadores estão intimamente relacionados. Os mesmos foram separados com uma forma didática de organização dos dados, a fim de facilitar a sua análise.

Tabela 1

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Currículo: princípios educativos e eixos da formação de professores/base comum nacional

_______________________________________________________________________________________________-

Docência como base da formação e da identidade do profissional da educação

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Locais de formação dos profissionais da educação

Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado

Fonte: Documentos das Entidades Acadêmicas de Educadores

A tese da docência perpassa todo o debate da política curricular (1996-2006), envolvendo as entidades acadêmicas de educadores e as esferas governamentais como o MEC/CNE, particularmente no contexto de elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de Professores e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. No processo de identificação e análise das demandas formuladas pelas entidades acadêmicas educacionais, capitaneadas pela ANFOPE, o significante docência aglutina múltiplas demandasdiferentes sentidos no debate da política curricular (1996-2006), tais como:

i) identidade do pedagogo; ii) docência como elo articulador entre pedagogos e licenciados; iii) unidade entre licenciatura e bacharelado nos cursos de Pedagogia; iv) a base do curso de Pedagogia é a docência; v) valorização da formação dos profissionais da educação; vi) formação unitária de professores e especialistas; vii) base comum nacional; viii) sólida formação teórica e interdisciplinar; ix) unidade teoria e prática; x) articulação ensino, pesquisa e extensão; xi) defesa da concepção de profissional da educação; xii) compromisso social do profissional da educação; xiii) trabalho coletivo e interdisciplinar; xiv) trabalho pedagógico como foco da formação; xv) gestão democrática; xvi) avaliação permanente dos cursos de formação; xvii) superar a fragmentação entre as habilitações no curso de Pedagogia; xviii) 55 formação continuada.

Podemos assim dizer que a amplitude do significante docência o coloca como um discurso identitário curricular que se pretende hegemônico por mecanismos de articulação de diferentes sentidos, antagonismos e disputas no debate da política curricular para a formação de professores (1996-2006). Na perspectiva discursiva, consideramos o significante docência como uma decisão política que consiste numa forma de luta por hegemonia em torno de um projeto de currículo de formação de professores, que é sempre precário e contingente. Isso porque abordamos o currículo como uma ação política de significação, ampliada pela ausência de uma predefinição de horizontes e fundamentos. Por essa ótica, argumentamos que o significante docência é um mecanismo de constituição da hegemonia de uma base identitária para a política a formação de professores no contexto em tela.

Historicamente, a reivindicação da docência como base da formação/identidade de todo profissional da educação envolve disputas e conflitos em torno da identidade do curso de Pedagogia desde a sua criação, em 1939. Durante toda a década de 1980 e início dos anos 2000 houve acaloradas discussões e manifestações públicas por parte do movimento de educadores em busca da (re)definição da identidade do curso de pedagogia, contrárias à fragmentação do trabalho pedagógico/habilitações profissionais no curso de pedagogia e a dicotomia entre a formação dos pedagogos e dos demais licenciados (SAVIANI, 2012). O movimento de educadores propunha que as mudanças deveriam abranger todo o sistema de formação de professores ao considerar que a formação pedagógica do professor mantém sua base teóricoepistemológica no campo educacional e a base da identidade do profissional da educação encontra-se na docência:

O nosso movimento sempre defendeu e continua defendendo que, para se tornar pedagogo, este profissional deve ter a docência como eixo de sua formação, tendo claro, porém, que a pedagogia não se esgota na formação docente. Vai além, em termos de referencial e profundidade teórica (ANFOPE, 2002, p. 26).

O princípio de que a docência constitui a base da identidade profissional de todo educador (SHEIBE; AGUIAR, 1999) foi firmado no Encontro Nacional para a Reformulação dos Cursos de Preparação de Recursos Humanos para a Educação, realizado em Belo Horizonte, visando superar a dicotomia professor x generalista, já que todas as licenciaturas deveriam ter

uma base comum, pois são todos professores. O movimento luta contra uma formação diferenciada entre professores e especialistas “lutar para transformar as licenciaturas em cursos 56 Importar tabla

de formação de professores, superando a compreensão de que o professor é alguém [...] com licença para ensinar, ao invés de um profissional da educação formado com este objetivo” (ANFOPE, 1998, p. 32-33).

Com efeito, a docência como base da formação é uma demanda que envolve disputas históricas entre licenciatura e bacharelado, de modo a superar esses impasses buscando a unidade entre licenciatura e bacharelado nos cursos de Pedagogia, a valorização da formação dos profissionais da educação e uma formação unitária de professores e especialistas. “O Curso de Pedagogia é um curso de graduação plena, superando em sua estrutura a separação entre bacharelado e licenciatura presente nas demais áreas de formação de professores” (ANFOPE, 2000, p. 29).

Note-se que o significante docência como a base da formação aglutina as principais teses da ANFOPE em relação ao curso de pedagogia: tese 1) a base do curso de pedagogia é a docência; tese 2) o curso de pedagogia é, ao mesmo tempo, uma licenciatura e um bacharelado. Nessa perspectiva, o movimento de educadores defende a docência como um projeto formativo, uma docência que contribui para a instituição de sujeitos e não numa visão reducionista que a configura como um conjunto de métodos e técnicas neutros, tal como foi reafirmada no documento intitulado “Proposta de Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia”, elaborado pela Comissão de Especialistas de Ensino de Pedagogia (CEEP) (designada pela Portaria SESu/MEC nº 146, de 8/06/99) e pela Comissão de Formação de Professores, ambas constituídas pela SESu/MEC e encaminhado ao Conselho Nacional de Educação – CNE, em abril de 2002.

A docência constituindo a base da identidade profissional de todo educador e enquanto fio condutor da organização curricular do curso de pedagogia, é entendida como uma docência ampliada que aglutina ensino, participação na organização/gestão da educação escolar/não escolar/ensino e a prática da pesquisa/extensão:

O curso de Pedagogia, porque forma o profissional da educação para atuar no ensino, na organização e gestão de sistemas, unidades e projetos educacionais e na produção e difusão do conhecimento, em diversas áreas da educação é, ao mesmo tempo, uma licenciatura – formação de professores – e um bacharelado – formação de educadores/cientistas da educação (ANFOPE, 1998).

O trabalho pedagógico é o foco do curso de pedagogia e a docência é a base da formação

e da identidade de todo e qualquer profissional da educação. Destaca-se o posicionamento conjunto das entidades ANPED, ANFOPE, FORUMDIR, CEDES e Fórum Nacional em 57 Importar tabla

Defesa da Formação do Professor, ao defenderem no documento subscrito em Brasília, em 07 de novembro de 2001: “o eixo da sua formação é o trabalho pedagógico, escolar e não escolar, que tem na docência, compreendida como ato educativo intencional, o seu fundamento. [...]. A base dessa formação é a docência [...]” (POSICIONAMENTO CONJUNTO DAS

ENTIDADES ANPED, ANFOPE, FORUMDIR, CEDES e Fórum Nacional em Defesa da

Formação do Professor, 2001, p. 4).

Tal perspectiva propiciou a expansão de cursos de pedagogia no país inteiro, com estruturas curriculares que buscavam equilibrar o bacharelado e a licenciatura tomando a docência como base da formação da identidade dos profissionais da educação. O principal antagonismo a esta tese está na “não aceitação de que o curso de pedagogia deverá ter na espinha dorsal a formação do magistério para a educação infantil e para as séries iniciais do ensino fundamental, em suas modalidades” (ANFOPE, 2000, p. 27). Os dois argumentos dessa posição são:

[...] a ênfase na docência como base da formação do pedagogo deu margem a um esvaziamento do campo da educação, reduzindo a pedagogia à formação de professores; a formação do pedagogo, no seu caráter stricto sensu, deve garantir que ele possa atuar em vários campos educativos atendendo às demandas sócio-educativas DE TIPO: formal, não-formal e informal, tendo em vista que o objeto da pedagogia é a educação, nos seus aspectos teóricos e práticos (ANFOPE, 2000, p. 28).

Essas disputas são visualizadas nos debates que aconteceram no Grupo de Trabalho constituído pela SESu/MEC em 1999, por meio da Portaria nº 808 de 08/06/1999, para a elaboração das diretrizes curriculares para os cursos de formação de professores. Tal GT foi constituído diante da necessidade de orientações normativas gerais para a parte curricular referente à formação pedagógica, que resultou no Documento Norteador para Elaboração das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Formação de Professores – GT Licenciaturas, encaminhado à SESu/MEC. Nesse GT foram manifestadas posições conflitantes sobre a formação dos profissionais da educação, não incluídas no corpo do referido documento.

Tais posições aparecem anexas ao Documento do GT Licenciaturas com a declaração de voto da professora Helena Costa Lopes de Freitas, representante da ANFOPE, e a declaração de voto em separado de José Carlos Libâneo e Selma Garrido Pimenta. Para uma melhor visualização, apresentamos de forma resumida as posições desses grupos, que revelam as

disputas de projetos em relação ao curso de pedagogia e à formação dos profissionais da educação, conforme a Tabela 2 a seguir:


Tabela 2

Posições conflitantes em relação à tese da docência como base da formação e da identidade do profissional da educação







Fonte: Documento Norteador para Elaboração das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Formação de Professores – GT Licenciaturas, 1999.

O antagonismo entre os diferentes sentidos também é identificado no debate acadêmico educacional (LIBÂNEO; PIMENTA, 1999; FRANCO, 2008), entre outros, com posições contrárias à forma de organizar institucionalmente o curso de pedagogia, especialmente quanto

à tese de que a docência constitui a base da formação/identidade profissional de todo educador, 59 Importar tabla

todos os cursos de formação do educador deverão ter uma base comum: são todos professores.

Esse princípio levou à redução da formação do pedagogo à docência, à supressão em alguns lugares da formação de especialistas (ou do pedagogo não diretamente docente), ao esvaziamento da teoria pedagógica em virtude da descaracterização do campo teórico-investigativo da pedagogia e das demais ciências da educação [...] (LIBÂNEO; PIMENTA, 1999, p. 249).

O debate educacional acadêmico revela as disputas por hegemonia em torno do significado da Pedagogia, de projetos em relação ao curso de Pedagogia e à formação dos profissionais da educação, tais como: 1) a concepção de Pedagogia como ciência da educação que integra a licenciatura e o bacharelado, formando o professor e o pedagogo unitário em um mesmo percurso, numa concepção de estrutura única de curso, orientada por uma base comum nacional que permeia todo o currículo (posição da ANFOPE); 2) a Pedagogia centrada na ciência da educação como espaço de formação do pedagogo/cientista educacional, enquanto bacharelado. Esta última não consegue se sobressair ou se fixar como uma demanda hegemônica no debate em tela, apesar da intensa disputa no debate acadêmico pela significação hegemônica em prol da importância da formação diferenciada entre docente e pedagogo.

Na perspectiva da teoria do discurso, consideramos que ambos os projetos disputam a hegemonia por significação no debate da política curricular para a formação de professores, e o projeto que não conseguiu se sobressair continuará tentando se tornar hegemônico no campo da significação, visto que este debate é conflituoso, antagônico e a estrutura de significação nunca se fecha porque outras demandas estão sempre em jogo. Argumentamos ainda que o projeto que não conseguiu se fixar hegemonicamente é a condição mesma para determinada hegemonia no campo de significação da política curricular. Isso porque ele constitui o exterior, ou seja, um discurso que nega, que ameaça o discurso formulado pela ANFOPE pela docência como base da formação/identidade do profissional da educação.

É nesse sentido que o antagonismo é constitutivo e que toda constituição discursiva é antagônica. No que acabamos de expor, a docência como base da formação e da identidade profissional de todo educador é uma demanda cara à comunidade acadêmica de docentes que, desde a década de 1980, vem reafirmando-a e delineando-a em todos os encontros nacionais da ANFOPE como a base da formação e dos conhecimentos requeridos para o trabalho pedagógico. Também é uma demanda que tem suscitado intensa polêmica no debate acadêmico

de educadores, juntamente com a “base comum nacional” apresentada como um projeto 60 Importar tabla

hegemônico de currículo nacional para a formação de professores da educação básica em nível superior.

Na perspectiva da teoria do discurso de Ernesto Laclau e do pós-estruturalismo com a crítica do sujeito centrado do estruturalismo, o nosso exercício é na direção da desconstrução/problematização do conceito docência como base da formação/identidade do professor no campo discursivo da formação de professores. Tomamos o caminho de sua (des)essencialização a partir de uma ótica descentrada conjugada à hegemonia como tomada de decisões em um terreno indecidível. Como o pós-estruturalismo, que se colocou como uma resposta filosófica ao status pretensamente científico do estruturalismo e à sua pretensão de se transformar em uma espécie de megaparadigma para as ciências sociais (PETERS, 2000), problematizamos o significante “docência” e a sua pretensão em se transformar em um “mega” significante que aglutina de forma ampliada a base da formação e da identidade de todo professor, delineando os conhecimentos requeridos para a compreensão da totalidade do trabalho pedagógico, sendo a docência “entendida como trabalho pedagógico, como eixo central do processo de formação e fio condutor da organização curricular do curso de Pedagogia” (ANFOPE, 2000, p. 11).

A perspectiva antiessencialista da teoria do discurso de Ernesto Laclau suscita uma reflexão sobre o político, sobre a identidade dos grupos como relacional e sobre o caráter inerradicável do poder e do antagonismo. Inerradicável porque prevê a aceitação de que todas as identidades são relacionais e de que a condição de existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, ou seja, a determinação de um “outro” que desempenhará o papel de elemento externo constitutivo (ANDRADE, 2013).

Dito de outro modo, a identidade, para Laclau e Mouffe (1987), é o resultado de uma articulação discursiva e, sob essa ótica, o significante “docência” poderia ser tomado na direção de uma identidade relacional, cujo sentido é contingente e se apoia em um exterior discursivo que a constitui parcialmente. Ou seja, as identidades são construídas pela sua diferença em relação a outras identidades, e não por algo que lhes é próprio (LOPES; MACEDO, 2011a). Mas, contrariamente, a partir de uma ótica centrada, podemos dizer que a docência como base da formação/identidade de todo profissional da educação se mostra como uma essência absoluta.

Laclau e Mouffe (1987) rompem com todo essencialismo que penetra largamente as

categorias básicas da discursividade marxista, de modo que fazem uma desconstrução destas à 61 Importar tabla

luz dos problemas contemporâneos. Inspirando-se no pensamento de Wittgenstein, Laclau e Mouffe (2011) afirmam: “sabemos, por Wittgenstein, que não há algo como a aplicação de uma regra – a instância de aplicação é parte da própria regra” (LACLAU; MOUFFE, 2011, p. 9). É relevante acentuar ainda: “o essencialismo, ou seja, a posição para a qual é possível distinguir, nos indivíduos, propriedades essenciais de acidentais, independentemente do conhecimento que tenhamos deles, está no centro de ampla discussão em filosofia analítica” (ABBAGNANO, p. 421). Por esse caminho, de acordo com Abbagnano (2007), o essencialismo foi peremptoriamente negado por Wittgenstein, para quem o sentido não é conferido por propriedades, mas pelas regras do jogo.

O significante “docência” na perspectiva laclauniana (2011b) pode ser considerado como um discurso absoluto que orienta o debate da política curricular e das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Pedagogia, produzindo regras e efeitos de posicionamentos dos sujeitos, atribuindo-lhes uma determinada identidade social e cultural, na perspectiva de sua hegemonia. Entendemos que a plenitude de uma identidade é impossível, pois não há um fundamento que garanta sua significação de uma vez por todas. Isso porque, conforme Wittgenstein (2013), o sentido não é conferido por propriedades, mas pelas regras do jogo linguístico.

Tomando de empréstimo o pensamento de Laclau (2011b) ao se referir a Marx e à figura do proletariado como ator, como o único que pode levar a cabo o processo de emancipação, é como se o significante docência fosse um ator universal que esteja além da contradição entre particularidade e universalidade, ou melhor, um ator cuja particularidade expresse diretamente, sem qualquer sistema de mediações, a pura e universal essência humana (LACLAU, 2011b). Nesse caso, um ator cuja identidade é erigida no interior do debate de reformulação curricular dos cursos de formação de professores/curso de Pedagogia, como um discurso emancipatório total desse processo.

Isso significa que uma sociedade democrática não pode mais ser concebida como uma sociedade que teria realizado o sonho de uma perfeita harmonia ou transparência. Por essa ótica, o significante ‘docência’ como a base da identidade de todo profissional da educação, apresenta-se como um discurso identitário único, um fundamento essencial. Em contraposição, consideramos os particularismos e as identidades plurais e finitas que podem ser substituídas

por novas identidades sociais, as diversas posições de sujeitos, a incompletude e a 62 Importar tabla

provisoriedade do próprio sistema da política curricular para a formação de professores.

Para Laclau (2011b), particularismo é um conceito essencialmente relacional: algo é particular em relação a outras particularidades, e o conjunto delas pressupõe uma totalidade social no interior da qual elas são constituídas. Assim, se a própria noção de totalidade social está em questão, a de identidades particulares é igualmente ameaçada. Ainda segundo Laclau (2011b), tal colocação abre caminho para uma forma de conceber a relação entre particularismo e universalismo “que difere tanto da encarnação de um no outro quanto do cancelamento de sua diferença e que, de fato, cria a possibilidade de novos discursos de liberação” (LACLAU, 2011b, p. 39). Isso significa dizer que “a relação entre particularidade e universalidade é essencialmente instável e indecidível” (LACLAU, 2011b, p. 40).

Nestes termos, para Laclau (2011b), se o universal resulta de uma divisão constitutiva em que a negação de uma identidade particular transforma esta no símbolo da identidade e plenitude como tais, o autor conclui:

[...] a) o universal não tem nenhum conteúdo próprio, mas é uma plenitude ausente, ou melhor, o significante de plenitude em si, da própria ideia de plenitude; b) o

universal só pode surgir do particular, pois apenas a negação de um conteúdo particular transforma este no símbolo de uma universalidade que o transcende; c) como, no entanto, o universal – tomado em si mesmo – é um significante vazio, qual conteúdo particular o simbolizará é algo que não pode ser determinado por uma análise do particular em si nem do universal em si. A relação entre os dois depende do contexto do antagonismo e é, no estrito sentido do termo, uma operação hegemônica (LACLAU, 2011b, p. 41).

Se por um lado problematizamos a tese da docência como base da formação/identidade de todo professor, formulada pelas entidades acadêmicas de educadores/ANFOPE, por outro, não deixamos de considerar as circunstâncias históricas antagônicas do debate acadêmico educacional brasileiro que tornaram possíveis a sua emergência. Nesse contexto, registra-se a criação do curso de Pedagogia em 1939 com disputas e conflitos em torno de sua identidade, conforme antecipamos. Ao longo da década de 1970, algumas regulamentações polêmicas foram feitas visando a reestruturação global dos cursos superiores de formação do magistério no Brasil, incluindo aquelas referentes ao destino/identidade do curso de Pedagogia, todas de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases de 1971, Lei nº 5.692/71. E, ainda, o período da ditadura militar instaurada no Brasil (nas décadas de 60 a 80) e a constante luta dos educadores/entidades acadêmicas educacionais em prol de uma identidade para o curso de Pedagogia e pela

restauração de uma sociedade democrática no país. Pode-se dizer que nessa disputa pela significação da formação do professor emergem outras forças antagonistas que diferem umas 63 Importar tabla

das outras e ameaçam essa identidade, a docência, conforme constatamos nas posições conflitantes em relação à tese docência como base.

Como estamos no terreno político da política curricular, argumentamos que é neste terreno onde são produzidas as articulações e onde se dá a estruturação das articulações. Assumimos a política como o exercício da decisão; política é vinculada à significação e, por isso, entendemos que a política de produzir currículo torna-se um processo sem fim, como o é a impossibilidade de uma totalidade fechada em si mesma, ou de qualquer fundamento final, conforme Laclau (2011b).

No item a seguir, apresentaremos fragmentos de análise realizados nos documentos do MEC/CNE a partir da tensão entre as lógicas da equivalência e da diferença, tendo como referência as demandas formuladas pelas entidades acadêmicas educacionais, notadamente a tese da docência como base da formação/identidade dos profissionais da educação. O propósito é demonstrar: 1) a formação da relação de equivalência estabelecida entre as demandas curriculares e a construção da fronteira antagônica; 2) as demandas que se tornaram hegemônicas nos documentos curriculares, notadamente na Resolução CNE/CP nº 1/2006, que institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia.

A formação da relação de equivalência entre as demandas e a construção da fronteira antagônica

Alicerçadas no terreno teórico da lógica da equivalência e da diferença (LACLAU; MOUFFE, 1987; LACLAU, 2011a, 2008a), buscamos analisar os temas que geraram pontos de resistência e antagonismos entre o MEC/CNE e as demandas formuladas pelas entidades acadêmicas de educadores/ANFOPE. Para tanto, no processo de análise indagamos: quais demandas foram satisfeitas/hegemonizadas nos documentos emanados do MEC/CNE? Quais demandas foram excluídas? Sobre a lógica da equivalência e da diferença convém retomarmos certas características, tais como: 1) a equivalência se processa na diferença, a partir de demandas heterogêneas que se tornam iguais apenas em relação a um antagonismo comum a todas elas; 2) “as equivalências podem debilitar, mas não domesticar as diferenças” (LACLAU, 2011a, p. 105); 3) a equivalência não pretende eliminar as diferenças, uma vez que “a diferença continua operando dentro da equivalência, tanto como seu fundamento, como numa relação de tensão com ela” (LACLAU, 2011, p. 105).

Do ponto de vista da lógica da equivalência e da diferença, em relação às demandas não 64 Importar tabla

satisfeitas (das entidades acadêmicas de educadores) se começa a criar um sentimento básico de solidariedade entre todas elas (LACLAU, 2008a), formando uma relação equivalencial entre as mesmas. Desse processo discursivo, produz-se uma fronteira antagônica que opera uma divisão: de um lado, as demandas curriculares das entidades acadêmicas de educadores não satisfeitas formam uma cadeia equivalencial, ou seja, compartilham algo em comum com referência a uma ameaça comum, de outro, as políticas curriculares para a formação de professores emanadas do MEC/CNE/CP (sistema/inimigo comum) que geraram pontos de rupturas e antagonismos.

Na tentativa de resumir os principais pontos de ruptura das entidades acadêmicas em relação às Diretrizes Curriculares Nacionais – Resoluções CNE/CP 1/2002; CNE/CP 2/2002 – , destacam-se a revisão de aspectos como carga horária dos cursos, incorporação da base comum nacional à organização curricular de todas as licenciaturas, locais de formação (ISEs) e formação articulada aos sistemas de ensino. Vejamos no extrato a seguir, como indica a ANFOPE (2006):

[...] a) a necessidade de revisão principalmente no tocante à carga horária, às disciplinas do campo da educação e à incorporação da base comum nacional na organização curricular de todas as licenciaturas. b) análise, das experiências de formação em desenvolvimento nas IES, e o impacto das novas regulamentações sobre a organização acadêmica e institucional e na estrutura curricular. c) o estudo de novas formas de organização acadêmica e institucional das IES, redefinindo o papel das Faculdades/Centros/Departamentos de Educação e sua responsabilidade como lócus privilegiado da formação de professores. d) a formação dos profissionais da educação, articulada aos sistemas de ensino (ANFOPE, 2006, p. 18).

De um modo geral, ganha força o antagonismo em relação às políticas do MEC/CNE/CP[2], tal como se vê na afirmação a seguir:

[...] essas políticas trazem problemas à formação de professores, visto que as propostas mantêm as fragmentações na formação que enfatiza exclusivamente o conteúdo específico, as metodologias e o projeto pedagógico da escola, a concepção conteudista, tecnicista do professor, reduzindo-a a um “prático” com pretenso domínio da solução de problema da prática cotidiana da escola e da sala de aula, alijado da investigação e da pesquisa sobre as condições concretas que geram estes problemas (ANFOPE, 2000, p. 18).

Os pontos de ruptura e os antagonismos em relação às políticas do MEC/CNE formam uma relação de equivalência entre as demandas das entidades e produzem uma fronteira

antagônica. Cada demanda possui a sua particularidade, e também uma função mais global que vai encarnar o enfrentamento ao sistema/políticas de formação do MEC/CNE através de uma 65 Importar tabla

articulação equivalencial. Na tentativa de representar graficamente a relação equivalencial entre as demandas e a construção da fronteira antagônica no campo das políticas curriculares – DCN (2002, 2001) –, poderíamos assim resumir, conforme representação gráfica a seguir:

Representação Gráfica da Fronteira Antagônica:

A) Políticas governamentais antagônicas: Resoluções CNE/CP nº 1/2002 e CNE/CP nº 2/2002; Resolução CP nº 1/1999; Parecer CNE nº 970/99; Decretos nº 3.276/1999 e nº 3.554/2000.

Importar imagen

B) Demandas curriculares das entidades acadêmicas de educadores: D1, D2, D3, D4, D5, [...]

D1: Base comum nacional na organização curricular de todas as licenciaturas;

D2: Docência como base da formação/identidade do profissional da educação;

D3: Universidades/Faculdades/Centros de Educação como lócus privilegiado de formação dos profissionais da educação;

D4: Duração e carga horária: curso de licenciatura plena de 4 anos, com um mínimo de 3.200 horas; D5: O curso de Pedagogia como bacharelado e licenciatura; unidade na formação.

Importar imagen

Segundo as formulações de Laclau (2011a, 2008a), do ponto de vista da particularidade, essas demandas individuais são heterogêneas, mas do ponto de vista de oposição ao sistema elas passam a estabelecer entre si uma relação de equivalência. Ou seja, a equivalência subverte as diferenças para expressar algo comum a todas elas. Quando a cadeia equivalencial se estende o suficiente, faz-se necessário que uma demanda individual assuma a função suplementar de representar a totalidade da cadeia de equivalências. Nesse caso, por mais híbrida que seja a proposta curricular, a particularidade que consegue se sobressair passa a representar algo mais amplo. Esse tipo de relação é a hegemônica.

Tal processo é complexo, pois exige uma mobilização política de alto nível (unificação de diversas demandas), em um sistema estável de significação, além de demonstrar a impossibilidade de alcançar a presença plena (contingência do sistema de diferença). Com efeito, os educadores e suas entidades acompanharam de perto e estiveram presentes a este movimento (iniciativas do MEC/CNE acima apresentadas) em todo o período, mobilizando-se através de encontros, reuniões e documentos. Reivindicavam, conforme assevera Freitas (2005), que o CNE ampliasse a discussão, revendo suas formulações anteriores, as concepções

expressas nos documentos e retomasse as discussões sobre as Diretrizes da Pedagogia e os 66 Importar tabla

documentos de 1999, 2001 e 2002.

Essa cadeia de equivalência entre as demandas curriculares resulta da luta discursiva das entidades pela hegemonia de um projeto de currículo para a formação de professores da educação básica. Esse projeto de currículo antagoniza com os pontos de ruptura acima elencados, tais como: a noção de competência norteadora do currículo de formação, os Institutos Superiores de Educação (ISEs) e a duração e a carga horária dos cursos de formação de professores, primordialmente. Dessa luta discursiva, os processos articulatórios fazem com que determinados discursos, como por exemplo, a base comum nacional, percam a relação com conteúdos precisos e concretos, de modo a romper com o particularismo das demandas que as universaliza como parte de uma luta de emancipação mais ampla (LACLAU, 2008b).

Tal como procedemos na análise das DCN nº 1/2002, apoiadas na lógica da equivalência e da diferença (LACLAU, 2011a), assim procedemos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. Ou seja, tratamos de identificar as demandas satisfeitas e/ou frustradas, tomando como referência as principais teses das entidades acadêmicas de educadores/ANFOPE. Para tanto, a nossa análise focalizou temas que geraram rupturas e enfrentamentos entre o MEC/CNE e as entidades acadêmicas de educadores no processo de discussão e elaboração das diretrizes de Pedagogia. Dentre estes temas destacam-se as seguintes demandas: a base do curso de Pedagogia é a docência; princípios da base comum nacional; o curso de Pedagogia como bacharelado e licenciatura; dimensões da formação; a carga horária do curso de Pedagogia; o estágio supervisionado (concepções, procedimentos e carga horária); a extinção das habilitações/formação para as funções de magistério em nível de pós-graduação (supervisão, orientação e administração).

A fim de facilitar a visualização destas demandas e verificar os processos hegemônicos, elaboramos a Tabela 3 com as demandas que se tornaram hegemônicas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia. Para este artigo, focalizaremos apenas a demanda da docência: a base do curso de Pedagogia é a docência. Vejamos a seguir na Tab.3:




Leia-se: demanda satisfeita/ hegemônica: quadro de fundo colorido. Fontes: Resolução CNE/CP n. 1/2006; Documento das entidades acadêmicas de educadores.

Grande parte das demandas das entidades acadêmicas de educadores voltadas ao curso de Pedagogia foi satisfeita/incorporada à Resolução CNE/CP nº 1/2006. Na perspectiva da teoria do discurso (LACLAU; MOUFFE, 1987), pode-se dizer que esse quadro resulta de um longo processo de enfrentamentos com o MEC e o CNE, marcado por processos de articulações políticas e disputas discursivas em termos de princípios, concepções e formas de organização do curso de Pedagogia. No item a seguir, apresentaremos alguns fragmentos de análise referentes à tese da docência.

Demandas que se afirmam como identidades diferenciais: a base do curso de Pedagogia é a docência

Na perspectiva da lógica da equivalência e da diferença (LACLAU, 2011), em relação às demandas que se afirmaram como identidades diferenciais nas diretrizes curriculares nacionais para o curso de Pedagogia, conforme descrito no quadro-síntese anterior, destaca-se a polêmica Tese 1, ou seja, a base do curso de Pedagogia é a docência. Sobre esta concepção,

a ANFOPE analisa:

Esta concepção foi incorporada no documento das diretrizes curriculares para o curso de Pedagogia, construídas em amplo processo de discussão, que estabelecem que a docência é a base da formação do pedagogo, respondendo ao desenvolvimento dos estudos teóricos e das práticas das instituições de ensino superior e escolares nos últimos 10 anos, no entendimento de que não é possível (ANFOPE, 2006, p. 30).

Nas palavras da ANFOPE, “a Resolução aceita esta tese polêmica em seu artigo 2º, § 1º” (ANOFPE, 2006, p. 30). Deste modo, continua a ANFOPE (2006):

[...] superou-se, portanto, o entendimento da docência enquanto habilitação, entendendo-a como fundante, base da formação do especialista, na compreensão do trabalho pedagógico escolar como totalidade que pode e deve ser apreendida no processo de formação, independente das determinações existentes no exercício profissional (ANFOPE, 2006, p. 30).

Nesse processo discursivo cabe ressaltar o papel desempenhado pela ANFOPE e demais entidades acadêmicas, no sentido de sua mobilização a fim de aglutinar forças com vistas à afirmação desta tese. A articulação da ANFOPE em busca da afirmação da docência como base da formação e do estatuto epistemológico para a Pedagogia demonstra o complexo processo discursivo dos textos políticos curriculares aqui analisados, na medida em que podemos vê-los como um conjunto articulado, mas heterogêneo de discursos com diversos atores educacionais, múltiplas propostas, concepções conflitantes e distintas formas e princípios de organização curricular. Podemos comparar o processo de discussão das diretrizes curriculares de Pedagogia com sistemas de regras de produção de sentidos sempre contingentes e precárias (LACLAU; MOUFFE, 1987).

Como as regras de produção de sentidos são sempre contingentes e precárias, podemos argumentar que a disputa discursiva não tem prazo para terminar, na medida em que a Resolução CNE/CP nº 1/2006 reacende o conflito em torno da natureza do conhecimento pedagógico e do curso de Pedagogia, tal como explicitamos as posições conflitantes em relação à tese da docência. Quanto a isso, vejamos a posição de Libâneo (2006) no extrato a seguir:

[..] a Resolução do CNE que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em pedagogia reacende o debate em torno da natureza do conhecimento pedagógico, do curso de pedagogia, dos cursos de licenciatura para a formação de professores e do exercício profissional de professores e especialistas em educação (LIBÂNEO, 2006, p. 843).

As críticas são direcionadas à conceituação da docência que, segundo Libâneo (2006), 69 reduz a Pedagogia à docência. Na medida em que a disputa é em torno da natureza do curso de Pedagogia, é criticada a concepção de docência ampliada vinculada à participação na organização e gestão associadas a atividades de planejamento, coordenação, avaliação, produção e difusão do conhecimento.

Como discutimos anteriormente, há duas posições conflitantes em relação à natureza do curso de Pedagogia: 1) a concepção de Pedagogia como ciência da educação que integra a

licenciatura e o bacharelado, formando o professor e o pedagogo unitário em um mesmo percurso, numa concepção de estrutura única de curso, orientada por uma base comum nacional que permeia todo o currículo (posição da ANFOPE); 2) a Pedagogia centrada na ciência da educação, como espaço de formação do pedagogo/cientista educacional, enquanto bacharelado (posição de José Carlos Libâneo e Selma Garrido Pimenta, entre outros). Como se vê, as disputas conceituais não cessam e continuam no debate acadêmico educacional pós-Diretrizes de Pedagogia.

Conclusões

Neste artigo problematizamos o significante “docência” como uma demanda hegemônica formulada pela ANFOPE e demais entidades acadêmicas do campo educacional, que reivindica a docência como a base da formação e da identidade do profissional da educação. O nosso caminho de análise se deu na perspectiva antiessencialista da teoria do discurso de Ernesto Laclau. Tal perspectiva rompe com o essencialismo que penetra as categorias básicas da discursividade marxista. Como podemos ver, segundo a ANFOPE (2000), tanto a base comum nacional para os currículos dos cursos de formação de professores, como a docência como base constituem ponto de partida para a formulação das Diretrizes para todos os cursos de formação de professores.

Nesse debate de disputas e enfrentamentos, a ANFOPE reconhece que “na formação inicial, cabe destacar a aprovação das Diretrizes de Pedagogia após um período de 7 anos de enfrentamento com o MEC e CNE” (ANFOPE, 2006, p. 15). Argumentamos que a tese da docência apresenta-se como uma demanda hegemônica que disputa os sentidos em torno da

concepção de Pedagogia, da identidade do curso de Pedagogia e de projetos curriculares 70 Importar tabla

relacionados à formação dos profissionais da educação no debate em tela. Podemos assim dizer que tal identidade se impõe como um fundamento fechado, essencial.

No debate da política curricular consideramos a contingência de sentidos, os particularismos e as identidades plurais e finitas que podem ser substituídas por novas identidades sociais, as diversas posições de sujeitos, a incompletude e a provisoriedade do próprio sistema da política curricular para a formação de professores. Reafirmamos que o debate da política curricular é um campo discursivo de articulação de demandas, de negociações, de antagonismos e de disputas de significação hegemônica sempre precária e contingente, já que novos projetos estão em jogo apontando a possibilidade de romper com uma dada fixação proposta, como resultado dos efeitos da equivalência. Concluímos com as palavras de Laclau (2011b, p. 44): “estamos hoje admitindo nossa própria finitude e as possibilidades políticas que ela enseja. Este é o ponto em que os discursos potencialmente liberatórios de nossa era pós-moderna têm de ser iniciados”.

Notas

[1] 1) Resolução CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de

Graduação em Pedagogia, licenciatura; 2) Parecer CNE/CP nº 3/2006. Reexame do Parecer CNE/CP nº 5/2005,

[2] Refere-se às políticas de formação de professores que regulamentam os Institutos Superiores de Educação

(Resolução CP 1/99); Parecer CEE n. 970/99 que trata da formação de professores nos Cursos Normais Superiores; Decretos 3.276/99; 3.554/00; e as Resoluções CNE/CP nº 1/2002; CNE/CP nº 2/2002, por consagrarem o dualismo entre a formação específica e a formação pedagógica, e separar as diretrizes curriculares para a formação de professores da educação básica, em nível superior, das diretrizes para o curso de Pedagogia.

Material suplementar
Referências
ABBAGNANO, Nicola (2007). Dicionário de filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bossi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes.
ANDRADE, Michely Peres (2013). “A contribuição metodológica de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe para a Sociologia contemporânea”. Crítica e Sociedade: Revista de Cultura Política. v.
ANFOPE (2000). Documento Final. In: Encontro Nacional da ANFOPE 10. 2000, Brasília. Anais. Brasília: ANFOPE.
______. (2002). Documento Final. In: Encontro Nacional da ANFOPE 11, 2002, Florianópolis. Anais. Florianópolis: ANFOPE.
______. (2006). Documento Final. In: Encontro Nacional da ANFOPE XIII. Campinas, SP, Anais. Campinas, SP: ANFOPE.
______. (1998). Documento Final. In: Encontro Nacional da ANFOPE 9, 1998, Campinas, SP. Anais. Campinas, SP: ANFOPE.
______. (2000a). Resolução CNE/CP n. 1, de 18 de fevereiro de 2002. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura. 2000a. Desculpe o equívoco.
______. (2000b). Resolução CNE/CP n. 2, de 19 de fevereiro de 2002. Institui a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica em nível superior.
______. (2006). Resolução CNE/CP n. 1, de 15 de maio de 2006. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura.
______. (1999). Resolução CNE/CP n. 1/1999. Dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação (ISEs).
FERREIRA, Maria Cristina Leandro (2005). Linguagem, ideologia e Psicanálise. Estudos da Língua(gem). Michel Pêcheux e a Análise de Discurso. Vitória da Conquista, n. 1, pp. 69-75, junho.
FRANCO, Maria Amélia Santoro (2008). Pedagogia como ciência da educação. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Cortez.
FREITAS, Helena C. L. de (2005). Sobre diretrizes e pedagogia: texto restrito para estudo da entidade. Disponível em: <www.ced.ufsc.br/pedagogia/Texto/HelenaFreitas2005.htm>
HOWARTH, David (2008). “Hegemonia, subjetividad política y democracia radical”. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (Org.). Laclau: aproximaciones críticas a su obra. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal (1987). Hegemonia y Estratégia Socialista. Hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI.
______. (2008a). “Posfácio”. In: MENDONÇA, Daniel de; RODRIGUES, Léo P. (Orgs.). Pós-
Estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: EDIPUCRS,
______. (2008b). “Atisbando El Futuro”. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (Orgs.). Laclau: aproximaciones críticas a su obra. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
______. (2006). “Inclusão, exclusão e a construção de identidades”. In: AMARAL JR, Aécio; BURITY, Joanildo A. (Orgs.). Inclusão social, identidade e diferença: perspectivas pósestruturalistas de análise do social. São Paulo: Annablume.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal (2011). Hegemonia y Estratégia Socialista. Hacia una radicalización de la democracia. 3ª ed. 1ª reimp. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. ______. (2011a). La razón populista. 6ª reimp. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. ______. (2011b). Emancipação e diferença. Coordenação geral e revisão técnica geral, Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo. Rio de Janeiro: EdUERJ.
LIBÂNEO, José Carlos; PIMENTA, Selma Garrido (1999). “Formação de profissionais da educação: visão crítica e perspectiva de mudança”. Educação & Sociedade, Campinas, ano XX, nº 68, dezembro.
LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabete (2011a). Teorias de currículo. São Paulo: Cortez.
______. (2011b). “Contribuições de Stephen Ball para o estudo de política de currículo”. In: BALL, Stephen J.; MAINARDES, Jefferson. (Orgs.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez..
MOUFFE, Chantal (1996). O regresso do político. Trajectos 32. Tradução Ana Cecília Simóes. Lisboa: Gradiva.
PETERS, Michael (2000). Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica.
SAVIANI, Dermeval (2012). A pedagogia no Brasil: história e teoria. 2. ed. Campinas, SP: Autores Associados.
SHEIBE, Leda; AGUIAR, Márcia Ângela (1999). “Formação de profissionais da educação no Brasil: o curso de pedagogia em questão”. Educação e Sociedade, Campinas, ano XX, n. 68, dezembro.
WITTGENSTEIN, Ludwig (2013). Investigações filosóficas. Tradução de Marcos G. Montagnoli. Revisão da tradução e apresentação Emmanuel Carneiro Leão. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco.
Notas

Tabela 2

Posições conflitantes em relação à tese da docência como base da formação e da identidade do profissional da educação







Fonte: Documento Norteador para Elaboração das Diretrizes Curriculares para os Cursos de Formação de Professores – GT Licenciaturas, 1999.



Leia-se: demanda satisfeita/ hegemônica: quadro de fundo colorido. Fontes: Resolução CNE/CP n. 1/2006; Documento das entidades acadêmicas de educadores.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc