Resumo: Seguindo uma célebre afirmação heideggeriana, poderíamos dizer que a história da filosofia ocidental se constitui como uma onto-teo-logia. Essa assertiva, que em seu contexto crítico possui um sentido teórico-metodológico delimitado para os que buscam compreender a questão norteadora da filosofia grega e, posteriormente cristã, ou seja, a do fundamento do real ou do ser, não se sustenta quando aplicada à tradição apofática dionisiana. Marcado pelo diálogo com o neoplatonismo, o Corpus areopagyticum, por sua radical característica apofática, não somente coloca em suspensão uma certa linearidade histórico-filosófica herdeira do pensamento de Platão, mas instaura um modo de tratamento da linguagem humana para com o divino que permanece em vigor até os dias atuais. Esse artigo tem como finalidade pensar, à luz do diálogo com o pensamento neoplatônico, a noção de Deus como “nada de tudo o que é” e suas consequências para a teologia negativa dionisiana.
Palavras-chave:Dionísio Pseudo-AreopagitaDionísio Pseudo-Areopagita,NeoplatonismoNeoplatonismo,NadaNada,DeusDeus,ApofaticismoApofaticismo.
Abstract:
: Accordingly to a celebrated Heideggerian statement, we could say that the history of Western philosophy is constituted as an onto-theo-logy. This assertion, which in its critical context has a delimited theoretical-methodological meaning for those who seek to understand the guiding question of Greek philosophy and, later, Christian, that is, the foundament of the real or of the being, does not hold up when applied to the apophatic Dionysian tradition. Marked by the dialogue with Neoplatonism, the Corpus areopagyticum, by its radical apophatic characteristic, not only puts in suspension a certain historical-philosophical linearity inherited from Plato's thought, but establishes a way of treating human language regarding the divine that remains in force to the present day. This article aims to think, in the light of the dialogue with Neoplatonic thought, the notion of God as "nothingness of all that is" and its consequences for Dionysian negative theology.
Keywords: Dionysius Pseudo-Areopagite, Neoplatonism, Nothingness, God, Apofaticism.
Artigos
Dionísio pseudo areopagita e o nada de Deus
Dionysius pseudo areopagite and the nothingness of God
Recepção: 21 Abril 2019
Aprovação: 15 Agosto 2019
Quando “Dionísio” produz sua curiosa mistura de neoplatonismo e cristianismo bizantino, inicia um processo de assimilação não apenas de Platão e Plotino, mas agora também de Jâmblico (e, em certo sentido, da teurgia) e de Proclo. Plotino assumiu seu lugar na tradição à qual ele sempre quis pertencer, e da qual, em parte, os estudiosos modernos o escavaram” (RIST, 2017, p.473)
Historicamente, se costuma afirmar que a filosofia ocidental nasceu por volta do século VI a.C. Quando Tales de Mileto postulou como princípio (arkhé) originário um elemento que justificaria toda a geração e corrupção da natureza (phýsis), teríamos, com isso, a fundamentação do que será posteriormente nomeado de especulação filosófica frente ao mito e seu discurso sobrenatural. Dito de outro modo, o discurso explicativo, a partir de então, centrou-se na phýsis, isto é, na busca de compreensão do processo geracional da vida tendo, como base, um novo paradigma que permitiu que Aristóteles nomeasse esses primeiros pensadores de filósofos da natureza (physiólogoi).
Filósofos como Anaxímenes, Anaxágoras, Empédocles, Heráclito, entre outros, propuseram vários modelos interpretativos, sempre sustentados pela analogia com os elementos naturais (água, terra, fogo, ar). É somente com Parmênides de Eléia que a filosofia dará um novo salto. Em seu Proêmio temos, pela primeira vez na história do pensamento, a formulação de uma lógica em que somente o “ser” ganha sentido e validade. Como observa Tomás Melendo, Parmênides coloca o problema do ser em uma “dramaticidade não vista antes” (MELENDO, 1985, p.80 ). Com ele, a metafísica ganha o impulso primeiro em direção a uma verdade imutável e “bem redonda”, a saber: o ser é e não pode não ser (PARMÊNIDES, 1987, p.353). Segundo o eleata, no importante fragmento B3, “ser” e “pensar” são o mesmo (tò gár autò noein estín te kaì einai), isso significa dizer que o não-ser (impensável) fica excluído e desprovido de toda realidade..
Platão, intérprete e crítico do pensamento de Parmênides, reformula, sob o signo do “parricídio”, a ontologia parmenídica e instaura o não-ser como sinônimo de alteridade, dito de outro modo, como relação. Com Platão o não-ser ganha realidade como “outro”, isto é, como diferença. David J. Melling, ao comentar o diálogo Sofista, texto central em que Platão apresenta a diferença como “não-ser”, chama atenção para o fato de que o filósofo não está defendendo o “não-ser” como uma “forma” de existência oposta ao ser, mas, sim, como negação no sentido de “não-ser-de tal-e-qual maneira. (MELLING,1991, p. 218). Essa observação é importante porque evita o postulado da existência de uma “forma” para o não-ser o que, do ponto de vista da teoria das ideias (eide) seria um absurdo.
No fundo, Platão estaria salvaguardando a possibilidade da dialética como um método capaz de agrupar e separar o que é semelhante do dessemelhante e, com isso, definir quem “é” o filósofo e quem “não é”. O sofista, definido como fabricador de imagens e ilusionista (Sofista, 236 b-c), é o “outro”, enquanto diferença radical, do filósofo. Como bem ressalta Nestor-Luis Cordero, Platão, para confirmar o valor negativo do sofista, realiza uma verdadeira desconstrução, não somente da filosofia de Parmênides, mas de uma concepção de ser que o levará a descoberta do “outro” do ser (CORDERO,2005, p. 181).
Como se pode perceber, Parmênides e Platão permanecem na reflexão sobre o ser e o não-ser no âmbito de uma ontologia que elimina a possibilidade do postulado da existência de um princípio não justificado no âmbito do “ser” (o nada). Essa postura permanecerá em grande parte da tradição posterior, inclusive Aristóteles, para quem a metafísica é uma ciência (epistéme) que tem como objeto a contemplação (theoria) do ente enquanto ente (to òn he òn) (ARISTÓTELES,1990, p.150) permanecendo o não-ser (me òn) ou o não-ente no âmbito da negação das coisas ou da substância (ousía).
Mas, onde é que o nada. faz sua aparição no sentido que estamos aqui tratando? Sem sombra de dúvida é no Neoplatonismo. Compreender a inovação neoplatônica, frente à tradição grega, implica adentrar na estrutura exegética realizada por Plotino do pensamento de Platão. Com Plotino, a filosofia realiza um giro hermenêutico sem precedente na sua história.
O Neoplatonismo, enquanto uma tradição interpretativa do pensamento de Platão tem, tradicionalmente, como ponto de partida, as Enéadas de Plotino (204/205 d.C). Plotino redirecionou o pensamento filosófico graças a sua complexa “exegese” dos diálogos de Platão, principalmente, A República, O Parmênides e o Banquete. Seguramente outros textos são importantes, mas nesses três diálogos temos três aspectos norteadores da filosofia neoplatônica: o bem, como algo que está além de toda substância (Epeíkenas tes ousías, República, 509); as três hipóstases oriundas das hipóteses do Parmênides (O uno, o uno-múltiplo e o uno e múltiplo) e o eros, como força mediadora entre o uno e múltiplo (Banquete).
Para nossa temática, detenho-me somente na descrição da natureza “negativa” do uno que, enquanto princípio de todos os seres, não é ser, mas condição indispensável para tudo o que é. A passagem que justifica a defesa da aparição do “nada” como “fundamento sem fundo” de todo real, como será concebido posteriormente pela longa tradição cristã de intérpretes do pensamento neoplatônico., encontramos no seguinte passo da EnéadaIII:
Sim, é o nada (medèn) no sentido de nenhuma das coisas das que é princípio (arché), mas é tal que, não podendo predicar-se nada dele, não o ser (mè óntos), não a essência (mè ousías), não a vida (mè zoes), é o que sobrepassa todas as coisas (tò hypèr pánta tauta einai) (PLOTINO, En. III, 8,10,29, 1925, p.167).
Como se pode constatar, o aspecto dialético que permite, ao mesmo tempo, a nomeação do “uno” como princípio originário (arché), é o que desconstrói toda e qualquer predicação a ele atribuída. O uno não é nem mesmo uno, posto que, não podendo ser nenhuma realidade objetiva, tampouco poderá possuir um nome que lhe corresponda essencialmente. Estamos diante da instauração do espaço do silêncio que media o dizer e o indizível e da linguagem que, entendida como representação, aponta para o que lhe transcende..
Vejamos, de modo mais detalhado, os passos que conduzem, mediante o jogo dialético do uno ao nada e do nada ao uno, ao pressuposto inicial que funda a estrutura triádica plotiniana sustentada por uma visão (que não é visão), um conhecimento (que não é conhecimento) e que ganha, na negação de toda objetivação, precisamente, seu sentido.
O Neoplatonismo se estrutura em três hipóstases ou princípios: a) O uno (superior a todo ser); b) O uno-múltiplo (Convergência entre ser e intelecto); c) O uno e múltiplo (A alma). Aqui interessa somente saber em que medida é possível pensar o uno como tudo e nada. Werner Beierwaltes resume bem os aspectos positivo e negativo que envolvem o uno plotiniano. Segundo ele, enquanto origem e princípio o uno é tudo, posto que sem unidade nenhum ser adquire realidade. No entanto, por sua pura simplicidade, o uno é o nada de tudo o que é categorial e determinado enquanto ente (BEIERWALTES, 1992, p.49).
Frente à negação absoluta, a linguagem assume, necessariamente, o caráter de paradoxalidade que constatamos nos autores herdeiros da tradição plotiniana, em particular, na mística cristã. Diz Plotino: “O uno é todas as coisas e nenhuma dentre elas (tò hèn pánta kaì oudè hén), princípio de todas as coisas, ele não é todas as coisas, mas é todas elas (all’ekeino pánta). (PLOTINO, V, 2,1, 1931, p.33).. A chave interpretativa que nos ajuda a compreender a natureza transcendente e imanente. do uno, reside no caráter de superabundância que norteia o uno plotiniano enquanto princípio de tudo o que é. Superabundância não significa causalidade, nos moldes tradicionais de uma substância responsável por seus efeitos, mas permite pensar o uno como causa no sentido de transbordamento a partir de si mesmo. Seguindo a reflexão plotiniana, o uno, sendo perfeito, nada busca, nada possui, nada necessita. Esta imagem bem que se aproxima do que posteriormente dirá Angelus Silesius sobre o retorno à unidade: “Tudo vem do Uno e ao Uno deve regressar. Se não quer permanecer duplicado na multiplicidade” (SILESIUS, 2005, p. 189).
A multiplicidade é a característica maior do que não pode ser princípio, isto é, o múltiplo enquanto múltiplo não pode ser causa de si mesmo. Para Plotino, se o princípio fosse múltiplo, pressuporia algo que lhe antecederia na ordem constitutiva da vida. A base geral para tal afirmação é a de que, somente do que é simples, pode brotar algo no sentido de geração. Simplicidade aqui tem o sentido de pureza de natureza. É importante observar que Plotino estabelece dois níveis de atividades própria do uno, ou seja, o uno enquanto perfeição, promove uma atividade (enérgueia) chamada de atividade derivada da essência. que ativa, em cada coisa, aquilo que lhe é conatural e, também, uma outra intrínseca a sua própria constituição. O melhor exemplo, que ilustra dois modos de atividades, encontra-se na imagem do fogo que, enquanto tal, possui um calor que é intrínseco a sua própria natureza, mas, ao realizar-se na ação, gera um outro tipo de calor que provém, precisamente, dessa natureza: “assim, há no fogo um calor que constitui sua essência, e outro calor que vem dela” (PLOTINO, V, 4, 2-25, 1931, p. 82)10.
Graças a essa dupla atividade, podemos entender porque o uno é, em si, luminoso e iluminante (BEIERWALTES, 1992, p. 56). Estamos tratando, no fundo, da imagem platônica do sol que, enquanto tal, é causa de toda luminosidade e calor sem, no entanto, possui causa externa para si mesmo. Essa simplicidade, identificada com a ausência de tudo o que é, vem associada ao bem pensado como simples e puro. É importante sublinhar que o bem (agathón), enquanto sentido “primeiro, supera todas as coisas” (Tò ára prótos kaì tagathòn hypér te pánta tà ónta) (PLOTINO, V, 5, 13,30, 1931, p.107). Somente enquanto transcendência absoluta a todas as coisas é que o bem pode ser sinônimo do uno e, enquanto tal, compartilha da condição de estar mais além de toda “atribuição típica das coisas inferiores” (PLOTINO, V, 5, 13, 15, p. 106).
As consequências do postulado plotiniano do uno/bem como desprovido de essência ou ser, serão decisivas para toda uma tradição de pensadores que, na trilha da negação de toda predicação, postulou a identidade entre uno e Deus11 como expressão de uma experiência unitiva12 que ganhou seus tons mais vivos em autores como Dionísio Pseudo Areopagita, Mestre Eckhart, Juan de la Cruz, Tereza d’Ávila, Angelus Silesius, entre outros. Para esse estudo concentro minhas considerações em Dionísio Pseudo Areopagita, como síntese entre os elementos neoplatônicos, particularmente, no que se refere ao uno, em seu aspecto negativo, associando-o ao pensamento de Mestre Eckhart, ambos como expressões, na diferença, de um pensar que assume a unidade entre Deus e Intelecto como condição para uma reflexão em que Ser e Nada, em Deus, são faces de um princípio liberto de tudo.
Tendo exposto, embora que centrando em Plotino13, o solo neoplatônico em que a discussão sobre o nada se manifesta como abertura para a construção de uma meontologia ao modo cristão, passo, a partir de agora, para um breve recorte da recepção cristã, particularmente, no pensamento de Dionísio o Pseudo Areopagita.
De Dionísio, não se pode desconsiderar sua Teologia Mística . Dos Nomes Divinos como expressões máximas de um pensamento cristão neoplatônico que ousou radicalizar um discurso sobre o divino a ponto de beirar o ateísmo (DERRIDA, 1995, p. 8)14. Sua linguagem, paradoxal e simbólica, funda o que Derrida nomeiou de uma “prática textual” situada na história sob a marca da teologia negativa (1997, p. 13).
Em sua Teologia Mística podemos ler:
Renuncia às percepções sensoriais e às atividades intelectivas, deixa tudo o que pertence ao sensível e ao inteligível e todas as coisas que não são e as que são; despojado de conhecimento, avança, na medida do possível, até à união com aquele que está acima de toda a substância e de todo o conhecer (hypèr pâsan ousían kaì gnosin) (DIONÍSIO, 1996, p11)
É precisamente nessa renúncia a tudo (pánta aphelòn), ou seja, do que é e o que não é, que se torna possível a contemplação do princípio (Deus) superior a todo ser15. Definida como um distanciamento irresistível (katharon ekstásei). A descrição do êxtase em plena obscuridade luminosa demarca o limite entre a linguagem e Deus. Por essa razão, Derrida, comentando Dionísio, diz que toda frase negativa já estaria habitada por Deus ou pelo nome de Deus como se a distinção entre Deus e o nome de Deus abrisse espaço para este enigma (DERRIDA, 1997, p. 14).
Em Dionísio encontramos, de forma clara, os ecos negativos e positivos, oriundos das hipóteses do diálogo Parmênides, bem como, do uno plotiniano, mediados pelas reflexões de Proclo16, tomando-o como superior a todo ser e a todo pensar, assim como, em suas afirmações ou atribuições positivas. Essa característica é fundamental para a estrutura neoplatônica dionisiana tendo em vista que o aspecto negativo do uno será associado aos movimentos de permanência (monè), em sua estabilidade, e a processão (próodos) como expressões de Deus em sua dinamicidade criadora17. No entanto, mais do que uno, o princípio originário, Deus, é treva mais que luminosa que, enquanto tal, implica na privação da visão e do conhecimento.
Chegar a esta treva mais que luminosa (hypérphoton) é o que suplicamos e, pela privação da visão e pelo não-conhecimento (agnosías), ver e conhecer (idein kaì gnonai) aquele que está acima da visão e do conhecimento, precisamente pelo fato de não ver nem conhecer (medè idein medè gnonai) (DIONÍSIO, MT, II, 1025B, 1996, p. 17)18.
Visão que não é visão, conhecimento que não é conhecimento, ação que é inatividade, são paradoxos comuns aos textos dionisianos, posto que, para a tradição apofática, afirmações e negações não são contraditórias, mas, quando aplicadas a Deus, apontam para uma terceira via na qual “sim” e “não” coincidem abrindo para a superação de toda predicação. Sendo Deus, liberdade absoluta, “não é nem obscuridade nem luz, nem erro, nem verdade” (oúte skótos estìn oúte phos, oúte pláne oúte alétheia) (DIONISIO, MT, V, 1045, 1997, p.414). A radicalidade desse pensamento assume seu ponto máximo nesse mesmo capítulo da Teologia Mística em que lemos que a Causa não é nem sensível, nem inteligível, mas que se encontra acima de toda a afirmação (hypèr pasan thésin) e de toda negação (hypèr pansan aphaíresin) e, consequentemente, além do universo das coisas (epékeina ton hòlon) (DIONISIO, MT, V, 1045, 1996, p. 25). Mais uma vez, estamos diante da imagem do “nada” como negação de tudo o que é e do que não é.
Frente a já citada parmenídica afirmação da adequação entre “ser e pensar” assumida por Plotino como expressão do âmbito do intelecto (nous), Dionísio, graças a identificação das duas primeiras hipóstases (hén e nous)19, realiza uma síntese em que uno, ser e intelecto convergem na imagem de um Deus que, dado o seu caráter de desconhecimento, preserva-se, ao mesmo tempo em que se dá como criação e beleza. Não sendo nada do que existe ou do que não existe, está acima de toda existência, característica dos entes que são.
Não é nenhuma das coisas que não existem nem das que existem (oudé ti ton ouk ónton, oudé ti ton ónton estín), nem os seres a conhecem tal como ela é, nem ela mesma conhece os seres assim como eles são; não há palavra para ela, nem nome nem conhecimento (DIONISIO, MT, V,1048b, p.1996, p.25)
É a “desertificação” da linguagem que abre para o acontecimento, pela kénose, da presença de um Deus que é desconhecido (DERRIDA, 1995, p. 37). Bernard McGinn ilustra a linguagem dionisiana do seguinte modo: 1) Deus é x (verdadeiro, metaforicamente); 2) Deus é não x (verdadeiro, anagogicamente); 3) Deus não é nem x nem não-x (verdadeiro, unitivamente) (MCGINN, 2012, p. 261).
A imagem do escultor presente na Enéada I, 6, 9 de Plotino, é resgatada no capítulo II da Teologia mística como condição e caminho de acesso à treva mais que luminosa. Diz ele: “tal o artista que esculpe uma estátua ao natural, desbastando todas as excrescências que entravam a contemplação pura da figura oculta” (DIONÍSIO, MT, II, 1025c, 1996, p. 17). Deus como unidade que perfaz toda multiplicidade, sem reduzir-se a coisa alguma, assume a imagem do “véu” do desconhecimento, do velamento (aperikalýptos) graças aos seres que o obscurece (apokryptómenon) (DIONÍSIO, MT, II, 1025 c, 1996, p. 17). Sobre o tema da transcendência de Deus à linguagem, é preciso lembrarmos das raízes paulinas que norteiam, junto com o neoplatonismo, o que Charles Stang nomeia de três “privativos paulinos” (Pauline privatives): “invisível”(aóraton), “insondável”(anexereúneton) e “inescrutável” (anexichníaston) respectivamente oriundos das passagens bíblicas de Romanos 1:20, Colonisenses 1:15 e 1:16 e 1 Timóteo 1:17 (STANG, 2012, p. 122).
No paradoxo entre treva e luz reside, em Dionísio, a possibilidade de compreensão de um conhecimento que é ignorância, não no sentido de defeito, mas de abundância (DIONÍSIO, MT, 1997, p. 409). O que isso quer dizer? Estando Deus acima de todo pensamento e da substância, como já afirmamos anteriormente, a ignorância, tomada em sentido próprio, é o reconhecimento da incapacidade, da própria razão, em abarcar o que transcende a capacidade intelectiva20.
A Epístola II ao monge Gaio parece estabelecer uma diferença crucial, para o neoplatonismo, mas que, à luz da teologia cristã pode confundir, à primeira vista, um leitor desatento. Nela, Dionísio afirma, seguindo uma vez mais, às consequências da irredutibilidade do princípio primeiro, que o Ser superior a tudo, não sendo nada é, no entanto, princípio de toda divindade e bem. O que parece ser uma negação do Ser como Deus (divindade), interpretação que não procede dado que as duas primeiras hipóstases, Uno e Ser, convergem, para Dionísio, em Deus, se refere ao processo de deificação e bondade dos que, imitando, pelos dons deificantes da Thearquia, superior a toda imitação, deificam-se e tornam-se bons.
A primazia, portanto, do não participado21 está em sua inimitável imitação (tò amímeton mimema) que, enquanto tal, o torna superior ao divino e ao bem (tou hyperthéou kaì hyperagáthou), mas que, por isso mesmo, é fonte de toda divindade e bondade. Uma outra Epistola nos ajuda a entender essa aparente incongruência entre treva e luz. Trata-se da Epístola V em que Dionísio, ao citar o apóstolo Paulo, afirma: “O apóstolo Paulo diz ter conhecido Deus além de toda inteligência e todo conhecimento (hypèr pasan ónta nóesin kaì gnosin), estando, assim, “acima de todas as coisa, sendo causa de todas as coisas” (hóti pánton estìn epékeina pánton aitíos ón) ((DIONISIO, 2009, p.635). Como se pode constatar há uma perfeita adequação entre os aspecto inefável do uno e de Deus. Nos Nomes divinos lemos: “Como havíamos dito, ao expormos nossas Instituições teológicas, o Uno (tò hén), o Incongnoscível (tò agnoston), o Suprasubstancial (tò hyperoúsion), o Bem em si (autò t’agathón), qualquer coisa que seja, desejo dizer a unidade trina que é em igual medida Deus e Bem, não se pode dizer nem pensar (DIONÍSIO, DN, 593B, 2009, p. 369).
Tendo chegado a esse ponto da nossa exposição, cumpre ressaltar os aspectos comuns ao pensamento plotiniano e seus ecos na obra dionisiana ,especificamente, no que se refere à ideia do nada como fundamento sem fundo de uma experiência em que Deus, mais do que ser, é esvaziamento e excesso transbordante e, no entanto, desprovido de toda objetividade. É bem verdade que, em Plotino, a questão do nada, embora aludida enquanto expressão do uno como “nada de tudo o que é princípio” (medèn toúton on estín arché)22, resulta das consequências da sua negatividade decorrente da primeira hipótese do Parmênides de Platão, permanecendo, assim, como aspecto definidor da liberdade do princípio primeiro. Em Dionísio, no entanto, o nada corresponde, precisamente, à natureza própria de Deus que, enquanto tal, é mais que substancial e divina (hyperoúsie kaì hyperthee), presente em sua Teologia mística, mas, também, é expressão do Deus absconditus que, segundo o Salmo 18.11, fez das trevas sua morada.
Em perfeita sintonia com o pensamento neoplatônico e cristão, Dionísio afirma, como fará Mestre Eckhart posteriormente, ao interpretar a passagem de Atos 9.8 à luz do pensamento dionisiano, que Deus é, em seu completo esvaziamento de atributos e categorias, “um nada”, diz Eckhart:
Paulo levantou-se do chão e de olhos abertos nada vida”. Eu não posso ver o que é Um. Ele nada via, isto era Deus. Deus é um nada e Deus é um algo. O que é algo também é nada. O que Deus é, isso ele o é inteiramente. Por isso, Dionísio, o iluminado, sempre que escreve de Deus, diz: Ele é sobre-ser, ele é sobre-vida, ele é sobre-luz (ECKHART, Sermão 71, 2008, p.67).
Na obra Dos nomes divinos Dionísio, após negar, dentre outros, os aspectos de inteligibilidade (anoesía)23 e nome (anonumía), afirma que Deus não existe ao modo dos entes (katá medèn ton ónton) e, por estar situado acima de toda substância (páses ousías epékeina) não existe em si (auto dè mè òn) (DIONISIO, DN, 1, 588b, 2009, p. 363).
Estamos, portanto, diante de uma longa tradição de intérpretes do pensamento de Platão configurada, de modo bastante complexo, na irredutibilidade, seja do primeiro princípio, seja de Deus, como forma de salvaguardar, por um lado, a linguagem e, por outro, o mistério como face mais abissal da relação entre o humano e o divino. Werner Beierwaltes é preciso ao pontuar a relação entre identidade e diferença que norteia o nexo dialético que envolve, tanto a unidade de Deus com relação à criação, quanto o paradoxo de fundo da sua essência. Deus é e, ao mesmo tempo, não é. É unidade triádica e, ao mesmo tempo não é, posto que está além de toda unidade (BEIERWALTES, 1989, p.82).
Finalmente, como corretamente sustenta Jean-Marc Narbonne, se o neoplatonismo transformou as hipóteses do Parmênidesem uma gramática do real (grammaire du réel), o texto dionisiano, não somente fundou uma tradição mística baseada na ausência de qualquer fundamento objetivo para a experiência de Deus, mas permitiu, em termos derridarianos, uma audácia da língua, de uma língua poética ou metafórica (DERRIDA, 1995, p. 9) que encontrará seus desdobramentos durante todo o medievo, alcançará seu ápice no Renascimento, fundida em expressões literárias, pictóricas, teológicas, arquiteturais24, e permanecerá vigorando, em suas interpretações e reinterpretações, no idealismo alemão, na teologia e em alguns autores da filosofia contemporânea.