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Hannah Arendt e a perda do espaço público
Hannah Arendt and the loss of the public space
Griot: Revista de Filosofia, vol. 9, núm. 1, pp. 210-220, 2014
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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Recepção: 12 Abril 2014

Aprovação: 22 Maio 2014

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v9i1.589

Resumo: O proposito desse artigo é examinar a partir do pensamento político de Hannah Arendt a distinção entre esfera pública e esfera privada, e o modo como na modernidade a esfera da vida privada alcançou uma significação pública jamais tida antes. Para tanto, iniciamos pela divisão que os gregos e os romanos faziam dessas duas esferas, dando mais ênfase para os gregos, onde as questões relativas ao campo da vida privada jamais podiam adentrar ao domínio público. Portanto, é somente na modernidade que a esfera pública tornou-se apenas uma função da esfera privada, possibilitando, assim, que a vida e a necessidade ascendessem ao centro da questão política.

Palavras-chave: Hannah Arendt, Política, Esfera pública, Esfera privada.

Abstract: The purpose of this article is to examine from the political Hannah Arendt's thought the distinction between public and private spheres, and the way how the modernity of the private life sphere reached a public meaning never taken before. We begin by the division that the Greeks and Romans did with these two spheres, giving more emphasis to the Greeks, where the relating issues to the field of the private life could never enter to the public domain. Therefore, it is only in modern times that the public sphere has become only a function of the private sphere, this way, it will be enable that the life and the need ascend to the central political issue.

Keywords: Hannah Arendt, Politics, Public sphere, Private sphere.

Mortalidade e eternidade

Escrever sobre Hannah Arendt é explorar o horizonte teórico de uma pensadora extremamente empenhada em compreender os fenômenos políticos de sua época. Foi após escrever Origens do totalitarismo (1951), uma de suas principais obras, que Hannah Arendt voltou sua atenção ao significado do espaço público para o pensamento político contemporâneo, conceito que se tornou fundamental ao entendimento d’A condição humana.

Em nosso artigo nos deteremos principalmente ao segundo capítulo da obra A condição humana (1958), por entendermos ser nessa parte do texto que nossa autora inicia sua distinção entre esfera pública e esfera privada, que se tornou central para a compreensão do lugar da política na modernidade. Para Arendt, a modernidade é marcada pela entrada da esfera privada no campo da vida pública. A consequência imediata desse fenômeno é sem sombra de dúvidas a restrição da ação na esfera pública e a entrada da vida no âmbito da política fazendo com que, nesse período, as questões referentes a esfera da vida privada e da intimidade ganhassem uma importância jamais tida em toda tradição do pensamento político.

Assim sendo, defendemos a hipótese sustentada por nossa autora de que a ficção totalitária só foi, de fato, possível devido à entrada da esfera privada no espaço destinado aos assuntos públicos. No entanto, para entender os motivos que ocasionaram tal invasão faz-se necessário retornarmos a compreensão e diferenciação que os gregos e, posteriormente os romanos, faziam dessas duas esferas, para assim, entendermos a principal mudança acontecida nesse período, ou seja, não somente a primazia da esfera privativa sobre o domínio público, mas a completa sujeição de ambos a esfera do social.

Assim sendo, iniciamos nossa exposição pela diferenciação existente entre imortalidade e eternidade. Para os gregos a imortalidade2. significava a continuidade no tempo, portanto, somente os deuses do Olimpo dispunham de tal natureza. Já os homens eram mortais, no entanto, tinham a “capacidade de realizar feitos imortais, por poderem deixar atrás de si vestígios imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem a imortalidade que lhes é própria e demonstram sua natureza ‘divina’” (ARENDT, 2010, p. 23). Assim, é o conceito de imortalidade na polis que funda o conceito de vita activa em Arendt, possibilitando aos homens se imortalizarem através de seus feitos e obras realizadas por meio da atividade política. O homem torna-se uma espécie de demiurgo, “cuja obra o mantém no mundo mesmo após a sua morte” (AMITRANO, 2007, p. 39).

Quanto à experiência da eternidade, segundo Arendt (2010), essa foi inserida por Platão na tradição do pensamento político, só sendo possível fora do domínio dos assuntos humanos e do campo da pluralidade dos homens. De acordo com Cardoso Júnior, “a degradação da política na Grécia antiga formalizou-se com a filosofia política de Platão e sua ‘enorme superioridade da contemplação’ com relação à política” (2007, p. 47). A experiência do eterno, fruto da filosofia platônica, está baseada na teoria ou contemplação, e teve sua ampliação com a queda do Império Romano que mostrou claramente que nenhuma obra feita por mãos mortais poderia ser imortalizada, passando a ser fortemente propagada pela pregação cristã do evangelho que se sustenta na garantia de uma vida eterna. Tudo isso favoreceu para que a vita activa e o bios políticos tornassem-se servos da contemplação3.. De acordo com Cardoso Junior, Arendt afirma que “desde os primórdios da Era Cristã, a descrença dos indivíduos com relação à imortalidade terrena teria levado ao desinteresse pela participação na esfera pública e a negação do caráter político do mundo” (2007, p. 52).

Divisão entre público e privado da Grécia Antiga a Idade Média

Com base no pensamento grego, podemos dizer que para eles existia uma divisão clara entre os domínios da vida privada e os da vida pública, “entre a esfera da polis e a esfera do lar, da família, [...] entre as atividades relativas a um mundo comum e aquelas relativas à manutenção da vida, divisão essa na qual se baseava todo o antigo pensamento político” (ARENDT, 2010, p. 34). As questões relativas à economia não pertenciam de modo algum aos assuntos políticos, estavam relacionadas à vida individual e a sobrevivência da espécie, portanto, “[...] Nenhuma atividade que servisse à mera finalidade de garantir o sustento do indivíduo, de somente alimentar o processo vital, era autorizada a adentrar ao domínio público” (ARENDT, 2010, p. 44).

Para Arendt, a Cidade-Estado e o domínio público só foram realmente possíveis devido à existência de uma esfera privada do lar e da família (oikos), destinada a manter as necessidades vitais para que os homens pudessem dispor de tempo livre para o exercício da política. Cabe frisar também, citando novamente Cardoso Junior, que essa esfera “era marcada pela diferença, pelas especificidades únicas de cada indivíduo, onde impera o discurso monológico e o poder coercitivo do senhor da casa” (2007, p.39).

A polis era para eles o espaço político por excelência destinado ao exercício da liberdade, enquanto a esfera da vida privada4. era um espaço pré-político responsável pela manutenção das necessidades. O que diferenciava a polis do lar era o fato de na polis o homem estar entre “iguais”5., livre das necessidades da vida e ao mesmo tempo fazendo uso de sua singularidade através do discurso e da ação. A igualdade política, segundo Arendt, era entendida como uma questão de direitos iguais, isto é, somente os que eram iguais deveriam ser tratados como tais, pois nem todos deveriam ser considerados com igualdade6.. Assim, mesmo a noção cristã de igualdade, onde todos eram iguais diante de Deus, nunca pretendeu igualar todos os homens da face da Terra, como fez a modernidade, mas pretendia apenas tonar iguais somente àqueles que pertenciam ao mesmo grupo político.

Por outro lado, podemos afirmar que a igualdade é sempre fruto do corpo político e é igual à pertença a uma comunidade política. Ora, em princípio, “os iguais foram somente aqueles que pertenciam ao mesmo grupo, e estender esse termo a todos os seres humanos tem sido privá-lo de significado” (ARENDT, 2007a, p. 44). Portanto, o mundo moderno ao tentar tornar todos os seres humanos iguais do ponto de vista da igualdade social e não política7., rompe com a diferenciação presentes na antiga política grega entre esfera pública e privada, fazendo com que essas duas esferas se diferenciem o quando menos entre si. Na modernidade, “os dois domínios constantemente recobrem um ao outro, como ondas de perene fluir do processo da vida”. (ARENDT, 2010, p. 40).

Podemos dizer que somente na modernidade o abismo entre o privado e o público foi destruído por completo, pois mesmo durante a Idade Média ele ainda existia de certa forma, embora não tivesse a mesma importância que nutria para os antigos. Deste modo, o conceito de “bem comum” presente no pensamento político medieval do cristianismo defendia apenas que “os indivíduos privados têm interesses materiais e espirituais em comum” (ARENDT, 2010, p. 42), não tendo nenhuma pretensão política, isto é, sem concentrar qualquer importância pública às atividades pertencentes à esfera privada, como aconteceu com o advento da modernidade.

Por outro lado, cabe reforçar que o termo privado em sua origem também está ligado à ideia de privativo, conforme afirma Arendt,

Viver uma vida inteiramente privada significava, acima de tudo, está privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação “objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. (ARENDT, 2010, p. 71).

Nesse sentido, reduzir a vida à condição de privatividade significa, antes de tudo, deixar os homens privados do espaço destinado ao aparecimento, isto é, significa a impossibilidade de convívio com outros homens em um mundo comum partilhado. Segundo Arendt, a consequência imediata dessa privatividade na modernidade é o surgimento de uma sociedade de massas, de seres humanos massificados e desamparados, entregues a forma mais extrema e mais anti-humana possível, onde os seres humanos não estão somente privados de seu lugar no mundo, mas também do espaço de seu lar. Vale lembrar, que foi no terreno dessa sociedade de massas que os movimentos totalitários encontraram espaço para disseminar sua ideologia e terror.

Destarte, mais uma vez retomando o sentido original, a palavra privado sempre teve também relação com a ideia de propriedade privada e sempre nutria alguma importância para o corpo político. Antes da era moderna, a propriedade privada não era vista somente como condição para admissão no domínio público, mas como garantia da humanidade do homem, pois “ser político significava atingir a mais alta possibilidade de existência humana, não possuir um lugar privado próprio (como no caso do escravo) significava deixar de ser humano” (ARENDT, 2010, p. 78).

Assim sendo, era por possuir um espaço privado da família, espaço esse necessário à sobrevivência, que o homem dispunha de tempo livre para a atividade política, visto que “a vida pública somente era possível depois de atendidas as mais urgentes necessidades da vida” (ARENDT, 2010, p. 79). Para Arendt, a recusa em participar da vida política com vista a ampliar a propriedade privada, significa o puro sacrifício da liberdade. A era moderna tornou essa propriedade privada algo sagrado, passando a considerá-la como riqueza privada e promovendo um enorme acúmulo de bens, fruto da “expropriação dos bens monásticos da Igreja após a Reforma” (ARENDT, 2010, p. 81). O resultado imediato de toda essa reformulação de pensamento, que não via diferença entre propriedade privada e riqueza, foi à dissolução da esfera pública e a consequente evolução da produtividade social.

Vejamos então em que consistia a esfera pública para os gregos. Segundo nossa autora, numa primeira consideração, podemos dizer que público consiste em tudo aquilo que aparece na cena pública e pode ser visto e ouvido pelos demais, garantido assim a realidade das coisas. Num segundo momento, público significa o próprio mundo, “tem a ver com o artefato humano, com o que é fabricado pelas mãos humanas, assim como com os negócios realizados entre os que habitam o mundo feito pelo homem” (ARENDT, 2010, p. 64). O domínio público é, então, aquele mundo que dividimos na companhia de outros e podemos chamar de mundo comum. Assim sendo, “o que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las” (ARENDT, 2010, p.64).

Desse modo, na Idade Média onde ainda existia de certa forma a diferenciação entre público e privado, o cristianismo baseado no princípio da caridade instituído por Agostinho, tornou improvável o domínio público na vida comunitária cristã. Assim, ressalta Arendt, “[...] o caráter apolítico, não-político, da comunidade cristã foi bem definido na exigência de que deveria formar um corpus, um ‘corpo’, cujos membros teriam de relacionar-se entre si como irmãos de uma mesma família” (2010, p. 65). Já vimos que o caráter privado da vida familiar está justamente em oposição à vida pública, portanto, a entrada da caridade cristã no campo da política anulou qualquer possibilidade de existência da política e do domínio público. Outra característica do cristianismo é sua ideia de não mundanidade, de transcendência da realidade terrena, o que também impossibilita qualquer atividade no domínio público.

Dito isso, não podemos esquecer que tanto os gregos como os romanos tiveram sempre a preocupação de resguardar o espaço destinado ao domínio público, espaço esse de aparência e de libertação do reino das necessidades8.. Desse modo, “a polis era para os gregos, como a res pública para os romanos, antes de tudo sua garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado a relativa permanência dos mortais, se não a sua imortalidade” (ARENDT, 2010, p. 68). Podemos dizer que parte da natureza da crítica de Arendt à modernidade está baseada no fato desse período ter perdido a dimensão pública da polise da res pública romana, dimensões essas que se fundavam no fato de ser visto e ouvido pelos demais homens. Portanto, na era moderna, cada vez mais os homens tornam-se condicionados somente à satisfação das necessidades. O resultado imediato de todo esse condicionamento, fruto do isolamento radical e do surgimento de uma sociedade de massas uniformizadora de comportamentos, é, sem dúvida, a perda do mundo comum, pois “o mundo comum acaba quando é visto somente sobre um aspecto e só lhe permite apresentar-se em uma única perspectiva” (ARENDT, 2010, p. 71).

A perda do espaço público na modernidade

De acordo com Arendt, o que vemos surgir na era moderna não é somente uma contradição entre o privado e o público, mas, sobretudo, “a completa extinção entre privado e público, a submersão de ambos a esfera do social” (2010, p. 85). Destarte, segundo a autora, foi o aparecimento da sociedade na era moderna que confundiu os limites entre o privado e o público9., ao mesmo tempo em que “alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torná-los quase irreconhecíveis” (ARENDT, 2010, p. 46). Assim, afirma Arendt,

O que hoje chamamos de privado é uma esfera de intimidade cujos primórdios podemos remeter aos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente a qualquer período da Antiguidade grega, mas cujas peculiares multiplicidades e variedades eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna. (2010, p. 46).

A concepção de privado que temos hoje é totalmente contrária a concepção anterior dos gregos e romanos10. Não entendemos mais o termo privatividade como privação, mas como algo relacionado à intimidade do coração dos indivíduos, que não possui um lugar tangível no mundo11. Nesse sentido, Hannah Arendt observou Rousseau como sendo o primeiro grande expoente da intimidade12, pois, segundo nossa autora, foi a partir desse filósofo que a esfera privada passou a ser a esfera da intimidade, promovendo uma “estreita relação entre o social e o íntimo” (2010, p. 48). Dessa maneira, o indivíduo moderno é constantemente levado a se refugiar em sua intimidade e a substituir o espaço da vida pública pelo espaço da “autenticidade e da singularidade da vida privada”. (MELO, 1990, p. 37).

Nesse ponto, gostaríamos de fazer um parêntese e apresentarmos de forma sucinta um pouco do pensamento de Richard Sennett, em seu livro O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, de 194313, nessa obra o autor remonta as origens do declínio contemporâneo da vida pública observando justamente as questões relativas ao surgimento da intimidade. Assim como Arendt, Sennett concorda que foi Rousseau o grande responsável pela entrada dos valores da intimidade na vida dos indivíduos. Embora Sennett tenha sido aluno de Arendt e suas análises se aproximem bastante das feitas por nossa autora, principalmente com relação ao espaço público, o historiador em questão, não menciona Arendt em momento algum em seu texto, o que não impede de encontrarmos pontos em comum entre seu pensamento e o de nossa autora. Todavia, em nosso diálogo com Sennett nos interessa apenas a primeira parte de seu livro, onde o autor nos oferece uma visão geral de sua obra, começando por afirmar que existe “um paralelo entre a crise da sociedade romana após a morte de Augusto e a vida nos dias atuais, no que diz respeito ao equilíbrio entre vida pública e vida privada” (SENNETT, 1988, p. 15), pois foi com a morte desse imperador que os romanos passaram a ver a vida pública como obrigação formal, fato que permanece fortemente presente na modernidade.

Para Sennett, nossas sociedades atuais têm se tornado somente multidões de pessoas preocupadas apenas com suas próprias vidas e com suas emoções particulares, de modo que “o mundo exterior, o mundo impessoal, parece nos decepcionar, parece rançoso e vazio” (SENNETT, 1988, p. 17). O efeito imediato de toda essa postura é que as pessoas passam a conceber “em termos de sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal” (SENNETT, 1988, p. 18), os homens passam, então, a medirem sua vida social em temos pessoais, o que tem provocado a uma dissolução da vida pública, “deixando o domínio público desprovido de sentido” (SENNETT, 1988, p. 26), levando às pessoas a condição do mais radical isolamento da vida pública14.

Richard Sennett, assim como Hannah Arendt, defende em seu livro a tese de que o esvaziamento da vida pública e a ascensão da vida privada são fenômenos puramente modernos que se tornaram mais presentes ainda na geração nascida após a Segunda Guerra Mundial, tendo em vista que no início do século XVIII ainda existia um nítido equilíbrio entre essas duas esferas. Nessa perspectiva, o autor mostra que o desequilíbrio entre essas duas esfera teve início com a secularização no final do século XVIII e se firmou durante todo o século XIX, que utilizou seu forte aparato capitalista industrial de forma decisiva para o esvaziamento da esfera pública, tornando a família e consequentemente as questões privadas um refúgio do espaço público. Afirma Sennett,

Na medida em que a família se tornou um refúgio contra os terrores da sociedade, também se tornou gradativamente um parâmetro moral para se medir o domínio público das cidades mais importantes. Usando as relações familiares como padrão, as pessoas percebiam o domínio público não como um conjunto ilimitado de relações sociais, como no iluminismo, mas consideravam antes a vida pública como moralmente inferior. A privacidade e a estabilidade pareciam estar unidas na família; é em face dessa ordem ideal que a legitimidade da ordem pública será posta em questão. (1988, p. 35).

O fato determinante é que o capitalismo industrial e sua produção em massa conseguiram esvaziar de sentido a esfera da vida pública. E quando esse capitalismo se une a um secularismo, então temos uma completa dissolução da esfera pública, portanto, no século XIX, cada vez mais a esfera privada se sobrepõem a esfera pública. Para Sennett, o homem contemporâneo tornou-se incapaz de vida pública, incapaz de aparecer em público e declarar sua condição política, isso porque o homem contemporâneo não assumiu seu papel de ator que representa emoções e permanece preso à esfera da vida privada, onde só é capaz de representar seu mundo íntimo e exclusivo. Assim, “a idéia de que os homens são como atores, a sociedade como um palco, [que] era cultivada na escola tradicional do theatrum mundi” (SENNETT, 1988, p. 59), não corresponde a nossa realidade atual, onde o homem se refugia de sua condição política na intimidade de sua vida privada, passando a fazer parte de uma plateia silenciosa que não responde ao teatro da vida.

O traço comum que podemos perceber entre a concepção de público e privado, tanto em Arendt como em Sennett, é que ambos buscam de algum modo revitalizar o espaço público, que foi perdido com o advento da modernidade. Podemos afirmar segundo Melo, que o espaço público para esses pensadores é essencial, “ora concebido como espaço de aparência, no qual o homem surge e se manifesta para os outros (Arendt), ora como palco que torna possível o ‘homem como ator’ (Sennett)” (1990, p. 43). A ascensão da esfera privada e a dissolução da esfera pública é o primeiro passo para o surgimento do social, isto é, para que os interesses da vida privada ganhe uma dimensão pública. Nessa configuração, a sociedade visa organizar os indivíduos para que “ao invés de requerem o acesso ao domínio público em virtude da riqueza, exigiram dele proteção para o acumulo de riqueza.” (ARENDT, 2010, p. 83).

Assim, podemos afirmar que a era moderna é marcada por um novo conceito de governo preocupado em garantir proteção para os interesses privados de aumento de riquezas dos indivíduos. A esfera pública e a esfera privada vão aos poucos sendo totalmente submersas na dimensão do social, isso porque “a esfera pública, [...] se tornou um função da esfera privada, e a esfera privada, [...] se tornou a única preocupação comum que restou”. (ARENDT, 2010, p. 85). O que foi decisivo nessa transformação foi o fato da descoberta moderna da intimidade, que possibilitou ao indivíduo se refugiar em sua subjetividade, o que favoreceu o surgimento do domínio social e o fim da diferenciação entre as esferas da vida privada e pública.

Portanto, o fim dessa diferenciação entre esfera pública e esfera privada, e a consequente promoção do domínio social no século XIX, foi profundamente marcado pela entrada da intimidade no campo da vida pública que, segundo Sennett, surge como “uma tentativa de se resolver o problema público negando que o problema público exista” (1988, p. 44). Temos então, na era moderna, de acordo com Arendt, a invasão da privatividade pela sociedade e a consequente socialização do homem (Cf. 2010, p. 88). A consequência imediata de tudo isso é que a vida e a necessidade assumem o centro da questão política, reduzindo cada vez mais a política ao campo das necessidades, onde a esfera da vida privada se tornou a única preocupação comum que restou.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11º Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

_____. Karl Marx y latradicion Del pensamiento político occidental: reflexiones sobre La revolución húngara. Madrid: Encuentro, 2007a.

_____. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007b.

AMITRANO, Georgia Cristina. Ecos de razão e recusa: uma filosofia da revolta de Homens em Tempos Sombrios. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2007. (Tese de Doutorado).

CARDOSO JUNIOR, Nerione N. Hannah Arendt e o declínio da esfera pública. 2ª Ed. Brasília: Senado federal, secretaria especial de editorações, 2007.

CORREIA, Adriano. A questão social em Hannah Arendt: apontamentos críticos. Revista Filosofia Aurora, Curitiba, v. 20, n. 26, p.101-112, jan./jun., 2008.

LEFORT, Claude. Pensamento político. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

MELO, Hygina Bruzzi de. A dissolução do político: morte e vida do espaço público. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. XVII, n. 49, p. 29-53, abr./jun. 1990.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Notas

2 Para Arendt, “a preocupação dos gregos com a imortalidade resultou de sua experiência de uma natureza imortal e de deuses imortais que, juntos, circuncidavam as vidas individuais de homens mortais” (2010, p. 22).
3 Foi precisamente essa diferenciação entre imortalidade e eternidade, que segundo Arendt, separou vita contemplativa de vita activa no pensamento medieval (cf. 2010, p. 24).
4 A esfera privada para os gregos era a esfera da casa (oikos), da família, daquilo que é próprio do homem (idion). Nessa esfera o chefe de família exercia o poder despótico sobre os subordinados: filhos, mulher e escravos. Assim, a esfera privada era a esfera destina a manutenção do reino das necessidades e onde se encontrava tudo o que não era político.
5 Igualdade aqui não está ligada a justiça, mas antes significa liberdade: “ser livre significa ser isento da desigualdade presente no ato de governar e mover-se em uma esfera na qual não existiam governar nem ser governado” (ARENDT, 2010, p. 39).
6 Dentre os que não poderiam ser tratados com igualdade, podemos citar, segundo Benhabib, “mulheres, escravos, crianças, trabalhadores, não cidadão residentes, e todos os não gregos” (apud CORREIA, 2008, p 107), esses eram os que não dispunham de liberdade para participar da esfera política, não podendo assim ser tratados com igualdade.
7 Nessa perspectiva, Claude Lefort afirma que segundo Arendt, “fomos constrangidos a confundir igualdade política com igualdade social; confusão trágica, pois igualdade só pode ser política” (1991, p. 71).
8 Sobre aparência, afirma Arendt: “a polis grega foi outrora precisamente a ‘forma de governo’ que proporcionou aos homens um espaço para aparecimentos onde pudessem agir – uma espécie de anfiteatro onde a liberdade podia aparecer”. (2007b, p. 201).
9 A esfera pública tornou-se uma função da esfera privada e a esfera privada tornou-se a única preocupação comum que restou (cf. ARENDT, 2010, p. 85)
10 Segundo Arendt, para os gregos uma vida mantida na privatividade, fora do mundo, seria uma vida completamente “idiota”, desqualificada da condição humana; ao mesmo tempo em que para os romanos a privatividade seria apenas um refúgio temporário aos assuntos da res publica (2010, p. 46).
11 Para Arendt, foi Rousseau o primeiro a explorar a ideia de intimidade. Assim, “a intimidade do coração, ao contrário do lar privado, não tem lugar objetivo no mundo, e a sociedade contra a qual ele protesta e se afirma não pode ser localizada com a mesma certeza que o espaço público” (ARENDT, 2010, p. 47).
12 De acordo com Arendt, no que tange a esfera da intimidade, Rousseau chegou a “sua descoberta mediante uma rebelião, não contra a opressão do Estado, mas contra a insuportável perversão do coração humano pela sociedade” (2010, p. 47). Foi nessa perspectiva que Rousseau descobriu a intimidade do coração, fruto da rebelião e relação entre o intimo e o social, que possibilita ao homem transcender o espaço público.
13 Nesse livro, Richard Sennett apresenta a maneira como o mundo público foi diluído pela cena psíquica privada, anulando assim o individuo. Na tentativa de compreender tais acontecimentos o autor relaciona teatro, política, vida urbana e a função cambiante da família.
14 Para Sennett o termo isolamento na sociedade moderna pode ser empregado em três sentidos: “em primeiro lugar, significa que os habitantes ou os trabalhadores de uma estrutura urbana de alta densidade são inibidos ao sentirem qualquer relacionamento com o meio no qual está colocada essa estrutura. Em segundo lugar, significa que, assim como alguém pode se isolar em um automóvel particular para ter liberdade de movimento, também deixa de acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade da própria locomoção. Existe ainda um terceiro sentido, um sentido um tanto brutal de isolamento social em locais públicos, um isolamento produzido diretamente pela nossa visibilidade para os outros”. (1988, p. 29).

Autor notes

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) Ceará – Brasil. Professor do curso de Filosofia da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) Ceará – Brasil.


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