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Retórica e justiça: aprofundamento aristotélico de indicações platônicas
Gilfranco Lucena dos Santos
Gilfranco Lucena dos Santos
Retórica e justiça: aprofundamento aristotélico de indicações platônicas
Rhetoric and justice: aristotle’s deepening from plato’s indications
Griot: Revista de Filosofia, vol. 4, núm. 2, pp. 84-95, 2011
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Este artigo visa construir uma relação direta entre Aristóteles e Platão, no que respeita à sua Retórica e à primeira parte do Górgiasde Platão. Este Diálogo de Platão forneceu um aspecto fundamental e relevante: a retórica tem uma relação com o que é justo e injusto e pode ser usada com justiça se o orador for justo. Mas no Diálogo, Platão revela pela boca de Sócrates certo ceticismo frente a esta possibilidade da retórica. Mas seria possível ver, que Aristóteles tentou demonstrar em sua Retórica um caminho para a realização desta possibilidade? Este artigo diz sim a esta questão, e procura mostrar que Aristóteles estabeleceu as condições para esta realização.

Palavras-chave:PlatãoPlatão,AristótelesAristóteles,RetóricaRetórica,JustiçaJustiça.

Abstract: This article aims to construct a direct relation between Aristotle and Plato, in respect to his Rhetoricand the first part of Plato’s Gorgias. This Plato’s Dialog has furnished a fundamental and relevant aspect: the rhetoric has a relation with that, what is just or unjust, and it can be used with justice if the rector is just. But in Dialog, Plato reveals by Socrates’s mouth a relative skepticism with this rhetoric’s possibility. However, could be possible to see, that Aristotle tried to demonstrate in his Rhetoric a way to realize this possibility of rhetoric? This article says yes to this question, and it tries to show that Aristotle has established the conditions for this realization.

Keywords: Plato, Aristotle, Rhetoric, Justice.

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Retórica e justiça: aprofundamento aristotélico de indicações platônicas

Rhetoric and justice: aristotle’s deepening from plato’s indications

Gilfranco Lucena dos Santos1
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 4, núm. 2, pp. 84-95, 2011
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 13 Outubro 2011

Aprovação: 14 Novembro 2011

Introdução

De acordo com os estudos de Werner Jaeger, é sabido, a partir da carta de Aristóteles escrita ao rei Filipe da Macedônia, que Aristóteles, tendo vivido 20 anos na companhia de Platão na Academia, chegou a ela por volta do ano 368/7 aos 17 anos (cf. JAEGER, 2002, p. 19). Neste sentido, chega ali justamente ao fim da segunda fase do pensamento platônico, quando a maior parte daquilo que Platão pensara a respeito da Retórica, e que podemos ver expressa principalmente em seus diálogos da segunda fase, intitulados Eutidemo e Górgias, já haviam sido pensados, e que se haviam transformado numa verdadeira polêmica anti-retórica que vai ser abordada no Fedro (cf. PLEBE, 1978, p. 21-34), que data do final dessa segunda fase, justamente no tempo em que Aristóteles chega à Academia. Segundo o testemunho de Julián Marias, “é evidente que ainda nos tempos de velhice de Platão, na Academia se considerava o Górgias como o texto definitivo do mestre contra a Retórica” (TOVAR, 1999, p. XXII). Contudo, faz-se importante notar que o Górgias não se tornara somente um parâmetro de pensamento anti-retórico; fora também um diálogo que, motivado por duas grandes figuras, quais sejam Sócrates e Górgias, fornecia o aspecto segundo o qual a retórica podia ser considerada de maneira relevante, caso fosse reconduzida e experimentada em sua essência própria. Parecia tornar-se claro para os membros da Academia não somente os problemas da retórica, mas também sua relevância ética e política se por ventura mantivesse a conexão própria que a mesma deveria ter com a justiça. Por isso, segundo meu parecer, torna-se relevante correr à procura de certa conexão entre retórica e justiça, que Platão deixa esboçar no seu diálogo Górgias, e que acaba por se fazer manifestamente presente na Retórica de Aristóteles.

Platão: a essência da retórica no Górgias e seus problemas práticos

A que conclusões chegam Sócrates e Górgias, as personagens principais do diálogo platônico, na primeira parte do Diálogo Górgias? Platão coloca na boca de Górgias o aspecto fundamental da retórica, isto é, aquilo que a torna essencial e seu problema: a retórica é exposta como arte de persuadir a respeito do que se crê (do que se pode tornar digno de confiança2.). É assim que Górgias se exprime no diálogo: “A persuasão é, de fato, a finalidade precípua da retórica” (PLATÃO, Górgias, 453a)3.; através desta arte se procura “convencer os juízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política” (PLATÃO, Górgias, 452e). Tal arte é, pois, aquela que “se exerce nos tribunais e demais assembléias” e “se relaciona com o justo e o injusto” (PLATÃO, Górgias, 454a), que deve, porém, “ser usada com justiça” (PLATÃO, Górgias, 457b). E a isto que Platão faz ser o parecer de Górgias a respeito da retórica, ele acrescenta, pela boca de Sócrates, que, na medida em que a pessoa que aprende retórica deve aprender a conhecer o que é justo e injusto, “de acordo com esse princípio, é justo quem aprendeu o que é justo” e “será, portanto, forçoso que o orador seja justo e, como tal, queira praticar ações justas”, de tal modo que “o orador necessariamente terá de ser justo” (PLATÃO, Górgias, 457b).

A retórica mostra-se, assim, portanto, como uma arte de persuasão em torno da crença sobre o que é justo ou injusto próprio de um orador em tribunais e assembleias que saiba o que é justo e, sendo justo, enquanto retórico, não queira praticar nenhuma injustiça.

Estas são as conclusões a que chega o diálogo entre Sócrates e Górgias na primeira parte do Diálogo (PLATÃO, Górgias, 447a – 461a). Elas definem o que seria para Platão a essência da retórica e isto nos fornece certas indicações de aspectos da retórica que Aristóteles certamente levará em consideração ao constituir a sua Retórica. Nesse sentido, a retórica e aquele que a utiliza ou perfaz possui um tropos, que convém pensar; possui o caráter de uma intenção, de uma atitude, de não querer praticar injustiça. A disposição da conduta (h=qoj) e do caráter (tropoj) torna-se, pois, essencial na retórica.

Pode-se de certo modo perceber que este é o ponto de partida de Aristóteles. Tentarei mostrar que é a partir desta compreensão do que deve ser a retórica que, então, Aristóteles a coloca num plano ético-político e a formula orientado pela seguinte pergunta: O que deve ser conhecido na retórica para que possa ser conduzida a esse caráter? Essa é a pergunta de Aristóteles. Este caráter é fundamentalmente ético e possui fins políticos. A retórica não é uma arte da fala em função de si mesma, mas está em função da política e é, desse modo, fundamentalmente ética4..

Platão deixa entrever, porém, uma série de problemas através do que Górgias postula como mau uso da Retórica. Fosse aquela a sua essência não haveria que trazer nenhum mal nem ser usada injustamente. É esta posição de Górgias que conduz à descrença socrática a respeito da retórica e que constitui a continuidade do diálogo que demonstra por parte de Platão certo ceticismo em relação às possibilidades da mesma de conduzir à justiça e os indivíduos a praticarem ações justas, e o faça vê-la muito mais como uma mera rotina (evmpeiri,a, ou experiência) para produzir prazer e satisfação a quem a usa independentemente de fazer o que seja justo.

Vejamos, pois, agora como Aristóteles toma aquele ponto de partida e pensa a sua retórica na perspectiva inicial enunciada por Platão através do diálogo entre Sócrates e Górgias.

Aristóteles: a essência da retórica e seu caráter prático

Aristóteles procura evitar o que eu chamaria de “ceticismo socrático” exposto no Górgias de Platão. Vendo que a disposição da conduta e do caráter torna-se essencial à retórica, ele procurará pensar sob que condições é possível que a retórica possa conduzir à justiça. Sua retórica se torna uma análise dessas possibilidades, na medida em que analisa fundamentalmente as virtudes do orador e as paixões dos ouvintes de que o orador precisa tomar conhecimento, se quer que seu discurso seja conducente à justiça. Trata-se de um conhecimento do h=qoj com vistas a uma justa construção política.

Do que se pode tornar digno de confiança e do que lhe favorece (pi,stij e h=qoj)

Segundo Aristóteles, o que se faz digno de crédito, de fé, de confiança, a crença (pi,stij), que é efetivamente digna de ser levada em consideração na fala do orador pelos que ouvem, é a demonstração, “pois damos crédito a tudo quando entendemos que algo está demonstrado”5 . (ARISTÓTELES, Retórica, A 1355a 5-6); mas no discurso retórico, que segundo ele consiste em ser “a faculdade de considerar em cada caso o que convém para persuadir” (ARISTÓTELES, Retórica, A 1355b 25-26), não segundo sullogismo,j, o que é próprio da dialektikh,, mas segundo evntu,mhma6., que conduz à construção das convicções próprias dos argumentos retóricos, é de fundamental importância a conduta (h=qoj) do falante, “pois damos mais crédito e antes de tudo às pessoas descentes” (ARISTÓTELES, Retórica, A 1356a 6-7). Além disso, pode-se dizer, segundo Aristóteles, kuriwta,thn e;cei pi,stin to. h=qoj, o que poderíamos traduzir da seguinte maneira: a conduta carrega dominantemente consigo a dignidade de confiança, a credibilidade.

E o que justamente o orador precisa ter para que seus argumentos retóricos possam ser de fato dignos de confiança?

Segundo Aristóteles, são três as causas pelas quais cremos além das demonstrações: fro,nhsij kai. avreth. kai. eu;noia, isto é, a ponderação (prudência, discernimento ou sabedoria prática), a virtude e o bom senso (ou bom juízo, benevolência) (cf. ARISTÓTELES, Retórica 1378a 9-10). A ponderação ou discernimento, que Aristóteles compreende já em sua Ética a Nicômaco como sendo uma virtude dianoética, é definido por ele no livro A da Retórica da seguinte maneira: fro,nhsij d v evsti.n avreth. dianoi,aj( kaq v h]n eu= bouleu,esqai du,nanqai peri. avgaqw/n kai. kakw/n tw/n eivrhme,nwn eivj euvdaimoni,an( isto é, “o discernimento ou prudência é uma virtude da inteligência mediante a qual se pode decidir acerca dos bens e males, que, como se tem dito, encaminha-se para a boa ventura, a felicidade” (ARISTÓTELES, Retórica, 1366b 21-23). A virtude é assim definida: vAreth. d v evsti. me.n du,namij( w`j dokei/( poristikh. avgaqw/n kai. fulaktikh,( kai. du,namij euvergetikh. pollw/n kai. mega,lwn( kai. pa,ntwn peri. pa,nta, ou seja, “a virtude é, segundo parece, o poder criador e conservador de bens, e a capacidade de fazer toda sorte de muitos e grandes benefícios acerca de tudo” (ARISTÓTELES, Retórica, 1366a 36sq).

O termo euvnoi,a tem no texto o sentido de fazer bom juízo do outro, algo como uma espécie de ter o outro em boa conta. Certamente é por esse significado do termo que a tradução de que nos utilizamos usou a palavra benevolência; este termo, porém, encobre o caráter do nou/j presente no termo euvnoi,a) Por isso optamos pela palavra bom senso. Aqui ela apenas aparece citada por Aristóteles e não anteriormente definida como as demais. A dianoi,a, própria do nou/j, tem de possuir sem dúvida no plano da ética o caráter de uma euvnoi,a, a fim de que a conduta do falante possa chegar a tornar-se digna de crédito pelo ouvinte. Ela tem o caráter de uma boa intenção, de um juízo reto por parte do falante em relação ao ouvinte, que não tende a promover o engano através do discurso simplesmente por interesse ou satisfação própria, mas deve estar plena de sinceridade e honestidade.

A compreensão do que é justo e bom que se manifesta na conduta

Percebe-se, pois, como o caráter ético está intimamente imbricado com a retórica. Aristóteles, assim como Platão deixa transparecer na primeira parte do Górgias, compreende que o retórico deve saber o que é justo e injusto. Essa visão está presente de tal modo que em sua Retórica torna-se tema de discussão o que são e qual o papel das virtudes e o conhecimento a respeito do que são os atos justos e injustos e suas causas (cf. ARISTÓTELES, Retórica, A 9, 1366b 1-23 e A 10-13).

O retórico deve conhecer para cada caso os caminhos do bem, da beleza e da justiça, as formas de governo para aconselhar, os móveis da ação e sua condição, o que caracteriza o ato justo e o ato injusto, e isto de tal maneira que se manifeste na conduta.

Para Aristóteles, ta. me.n ga.r h;qh fanera. kata. th.n proai,resin( h` de. proai,resij avnafe,retai pro.j to. te,loj( isto é, “as condutas se manifestam segundo as resoluções e a resolução está diretamente referida a um fim”7. (ARISTÓTELES, Retórica, A 8, 1366 a 15-16). O orador fala em favor de uma determinada coisa, e isto já tem de estar de certa maneira discernido e decidido em sua fala, de tal modo que se torne manifesto ao ouvinte o seu te,loj. Neste sentido, o que no fim das contas é que se torna fundamentalmente digno de crédito é o que nem é tanto o orador, mas aquilo em favor do que ele fala. Isto é o que segundo Heidegger caracteriza fundamentalmente a pi,stij (cf. HEIDEGGER, 2002, p. 118). Segundo ele:

Aristóteles diz: o lo,goj (discurso) precisa ser de tal modo considerado, “que torna digno de crédito o próprio orador”, que por si mesmo dá a impressão de que a coisa é de tal modo concorde. E Aristóteles diz expressamente: Através do próprio discurso e do modo como o próprio orador fala, o h=qoj precisa se tornar visível. A partir do próprio discurso precisa emergir a pi,stij) (HEIDEGGER, 2002, p. 120s)

A partir do momento em que Aristóteles vincula a manifestação do fim no discurso retórico à resolução que se revela na conduta do orador, ele nos coloca no inteiro plano da ação e da ética. É o fim da ação conducente ao bem e à boa-ventura que tem de se tornar patente no discurso retórico. Por isso o conhecimento do que é justo e injusto é tão importante na retórica.

A atenção ao momento oportuno e o conhecimento e anúncio de sua ocasião prática

O discurso retórico é guia da ação política. “À ação pertence o fato de que ela emerge ocasionalmente a partir de uma resolução.” (HEIDEGGER, 2002, p. 189), aqui, é importante notar o aspecto temporal da ação: “A ação mesma tem seu te,loj no kairo,j.” (HEIDEGGER, 2002, p. 189) Para Aristóteles, a relevância do kairo,j não está tanto no fato de que há um momento oportuno para cada discurso (coisa que também desenvolve na Retórica A 3, 1358b, 14-21). Kairo,j é sempre um momento em que o bem se exprime sob a forma do que é conveniente e útil. No Fedro, também Platão apresenta o horizonte em que se pode tematizar na retórica a questão do tempo como kairo,j8. (cf. PLATÃO, Fedro 272 a) Isto se remonta a Górgias que teria justamente pensado a oportunidade vinculada ao discurso retórico como o conhecimento das ocasiões quando se deve falar ou calar9.. Aristóteles vai mais longe quando devolve ao conceito seu horizonte propriamente ético e político, que certamente já era premente na máxima de Pítaco: kairo.n gnw/qi, isto é: “Conhece a oportunidade” (DIÓGENES LAÉRCIO, Vitae Philosophorum I, 79, 10).

Na Retórica, Aristóteles mostra que o discurso se conjuga a partir de três coisas: a partir de quem fala, sobre o que fala e em relação a quem fala (cf. ARISTÓTELES Retórica A 3, 1058a – 1058b). O ouvinte é considerado o fim para o qual concorre essa conjugação do discurso, isto é, o último elo da corrente. Aristóteles assegura que o ouvinte é ou espectador (que contempla e especula em torno do que ouve) ou juiz. Aristóteles possuía dois termos para esses respectivos modos de ouvir do ouvinte: o qew/roj e o kri,ton. Em sendo juiz, discerne acerca de coisas já sucedidas ou sobre coisas que estão por acontecer. Como membro da assembléia, o ouvinte juiz discerne a respeito de coisas futuras. Enquanto membro do tribunal, o juiz julga sobre fatos passados. Daqui se depreende que na compreensão aristotélica – e certamente na compreensão grega em geral, que nós também herdamos – a assembléia existia para discernir sobre coisas futuras e os tribunais existiam para o discernimento a respeito dos fatos passados. Enquanto espectador que contempla e especula em torno do que ouve, o ouvinte reflete em torno do possível, do conjunto de coisas que podem ser demonstradas como possibilidades. A partir disto é que ele assegura que são três os tipos de discurso na retórica: deliberativo, judicial e demonstrativo.

É de acordo com esta reflexão prévia em torno dos modos como o discurso é ouvido e os tipos de discursos engendrados a partir deles, que Aristóteles compreende os tempos do discurso do orador. Ao investigar os tempos do discurso ele estabelece que: para o orador cujo ouvinte é o deliberante, isto é, o membro que ocasionalmente discerne e delibera em assembléia sobre coisas que hão de vir, o tempo é o futuro (o` me,llwn), “pois aconselha acerca do que está por vir, seja persuadindo seja dissuadindo” (ARISTÓTELES, Retórica A 3, 1058b 14 – 21). Para o orador forense, isto é, aquele que fala ocasionalmente ao ouvinte que julga no tribunal a respeito dos fatos passados, o tempo é o passado (o` geno,menoj), pois sempre fala sobre o que se sucedeu seja na acusação ou na defesa (cf. ARISTÓTELES, Retórica A 3, 1058b 14 – 21). Por fim, para o orador que tem como ouvinte o espectador, isto é, aquele que ouve em função de especular sobre um conjunto de possibilidades que podem ser demonstradas, o tempo é o presente (o` parw,n), ainda que levem em conta o passado, enquanto recordam, ou o futuro, enquanto fazem conjecturas (cf. ARISTÓTELES, Retórica A 3, 1058b 14 – 21).

A partir dessa breve caracterização sobre os tempos do discurso, pode-se verificar como Aristóteles não leva em conta, nesse caso, o tempo como um momento oportuno de falar ou calar, assim como sugeria o pensamento de Górgias e a indicação do próprio Platão no Fedro (cf. PLATÃO, Fedro, 272a). É muito provável pelo que se diz na Ética Nicomaquéia e na Ética a Eudemia, que essa atitude de atenção à ocasião certa de falar ou calar na assembléia ou nos tribunais seja um pressuposto fundamental de quem faz uso da palavra. A atenção à ocasião adequada de falar ou calar pode ser importante para chegar a bom termo e favorecer a comunidade a possibilidade de alcançar o que é útil. Mas este só pode ser um pressuposto implícito, pois não aparece na Retórica qualquer referência a essa compreensão. Como ocasião adequada para qualquer atitude humana que se constituir no tempo como boa, o kairo,j está melhor caracterizado nos textos da Ética Nicomaquéia e da Ética Eudemia. Esta compreensão deve certamente ser pressuposta na Retórica na medida em que o ato de falar em assembléia ou no júri é uma atitude ocasional, que exige atenção ao momento. Do mesmo modo, o orador e o ouvinte, ao discernirem em assembléia, devem estar atentos ao momento de agir de tal ou qual maneira, pela compreensão do que é útil ou nocivo na deliberação a ser tomada.

É, pois, na Ética a Nicomaquéia, e mais especificamente no Livro A, capítulo 6, e na Ética Eudemia, especialmente no Livro A 1217b, que o termo kairo,j se encontra conceitualmente determinado dentro do “sistema categorial” do Estagirita. Ver-se-á que o conceito assume em Aristóteles uma perspectiva ética que o caracteriza inicial e fundamentalmente como um tempo ético.

Após assegurar que “toda arte e todo método, e do mesmo modo toda ação e escolha, parece tender a algum bem” e que “o bem é aquilo a que todas as coisas tendem”, e após estabelecer que dentre os fins “uns são atividades e outros obras”, no livro A da Ética a Nicomaco, Aristóteles assegura que “se existe algum fim de nossos atos que queiramos por ele próprio e os demais por ele... é evidente que este fim será o bom e o melhor” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1094a). Após estabelecer esta assertiva, Aristóteles apresenta, então, a ciência à qual pertence a investigação deste fim supremo que nossos atos buscam por si próprio, e certifica-se de que “a política” é a “principal e mais eminente diretiva” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1094a 25-28) que conduz à compreensão deste fim que é tanto o bem do indivíduo quanto o da cidade. Assim se estabelece na Ética a Nicômaco o objeto da investigação.

Ele está disposto a resolver a seguinte questão: Qual é o bem ao qual a política aspira e qual é o supremo entre todos os bens que podem realizar-se? (cf. ARISTÓTELS Ética a Nicômaco, A 4, 1095b 14-17). Aristóteles assegura que “quase todo mundo está de acordo quanto ao seu nome, pois tanto a multidão como os refinados dizem que é a boa-ventura (euvdaimoni,an)” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, A 4, 1095a 18-19), ou como se traduz comumente, a felicidade10. Além disso, Aristóteles assegura que todo mundo “admite que o viver bem (to. eu= zh/n) e o agir bem (to. eu= pra,ttein) é o mesmo que ser feliz” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, A 4, 1095a 19-20). Porém, como compreender o viver e obrar bem e, resumidamente, como compreender o conceito de bem (avgatw/n)?

Da mesma maneira como na investigação ontológica, o método pelo qual Aristóteles procura a determinação do conceito de bem é o categorial. Segundo Aristóteles, “como o bem se diz de tantos modos como o ser” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, A 6, 1096a 23-24), ele se predica em todas as categorias, ou seja, ele se diz segundo as figuras da predicação. É assim que kairo,j é compreendido como sendo o bem, dito segundo a figura da predicação cro,noj (tempo), ou po,te (quando).

Na Ética a Eudemo, o contexto de reflexão, considerado, porém, em geral, como anterior à Ética a Nicômaco, é semelhante a esta. Mas possui algumas peculiaridades. Aristóteles começa por determinar que a boa-ventura é a melhor de todas as coisas que se pode almejar. Este tema, porém, se apresenta como um assunto difícil e que somente a filosofia especulativa é capaz de resolver “segundo a ocasião oportuna” (kata. to.n epiba,llonta kairo,n) (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, A 1214a 13-14). “Mas nós devemos considerar primeiro em que consiste a vida boa (to. eu= zh/n) e como ela pode ser obtida” (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1214a 14-15). Aristóteles se propõe a discutir o fato de alguns sustentarem que o discernimento (th.n fro,nhsin) é o maior bem, outros que é a virtude (th.n avreth,n) e outros ainda que é o prazer (th.n hvdonh,n) (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, A1214a 30-33). Aristóteles enxerga que há três modos de vida (bi,ouj o;ntaj), nos quais estes bens são experimentados: a vida política (politiko.n), a vida filosófica (filo,sofon) e a vida prazerosa (avpolaustiko,n) (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo 1215a 35 – 1215b 1). Destas, a vida filosófica diz respeito à contemplação da verdade; a vida política implica em ocupar-se de ações belas (honrosas) que emergem da virtude; e a vida prazerosa a que se orienta pela satisfação dos prazeres do corpo (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo 1215b 1-5). Aristóteles questiona a vida de satisfação corporal e se pergunta se de fato pode conduzir à felicidade. Deixando para mais tarde a resolução desse problema, Aristóteles passa a se perguntar primeiramente sobre a virtude e discernimento: eles próprios ou as ações que deles emergem são partes do bem? (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1216a 37- 1216b2). E acima de tudo, Aristóteles dá-se conta de que é preciso primeiro saber o que é o bem, de tal maneira que se caracterize como o melhor (to. a;riston) no homem. E assim, evitando trilhar o caminho platônico da teoria das formas para resolver o problema (cf. ARISTÓTELES, Ética a Eudemo 1217b), uma vez que, segundo ele, “mesmo concedendo que ideias e a ideia do bem existam no mais pleno sentido, certamente isto não é útil para a vida boa e para a conduta” (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1217b 23-25), Aristóteles constitui seu caminho a partir da colocação dos múltiplos significados do bem. E aqui também se anuncia o fato de que “o bem se diz de várias maneiras assim como o ente”, e segundo as figuras da prediação, o bem é dito como sendo “na entidade o intelecto e Deus, no qual a justiça, no quanto a medida, no quando a oportunidade...” (ARISTÓTELES, Ética a Eudemo, 1217b 25-32). E assim, do mesmo modo que na Ética Nicomaquéia, o kairo,j é compreendido como sendo o bem, dito segundo a figura da predicação po,te (quando), ou cro,noj (tempo).

Ao ler o primeiro livro da Ética a Nicômaco podemos notar como Aristóteles vincula o tempo à discussão em torno do bem a ser perseguido no pensamento ético. De antemão, o tempo (cro,noj) é para Aristóteles na Ética a Nicômaco tomado como uma categoria, isto é, uma maneira segundo a qual se diz o que é, o ente enquanto tal, aquilo que está sendo. Para ele, tal como o ser se diz de vários modos, o bem também se deixa dizer segundo o esquema das categorias, dentre as quais se encontra o tempo11. Na física o tempo é pensado segundo a sucessão e mencionado duplamente segundo o antes e o depois. Na ética, porém, o tempo é pensado como o instante oportuno de uma ação. Assim é que o próprio Aristóteles proclama: “o bem se diz de tantos modos como o ser (pois se diz na categoria de substância [evn tw/| ti,] como Deus [o` qeo.j] e o entendimento [o` nou/j]; e na de qualidade as virtudes, e na de quantidade a justa medida, e na de relação o útil, e na de tempo a oportunidade [evn cro,nw| kairo,j], e na de lugar a residência, etc.)” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco 1096a, 23-27, grifo meu).

Sobre o conceito de kairo,j pode-se, pois, dizer antecipadamente que se trata em Aristóteles de uma maneira de dizer o bem segundo o esquema da categoria de tempo (cro,noj): segundo a categoria de tempo o bem é dito como sendo kairo,j. Além disso, segundo o que segue no texto da Ética a Nicômaco, pode-se também dizer que Aristóteles concebe ciências do bem, que, ditas segundo este esquema categorial, poderiam ser ditas ciências da “oportunidade” (evpisth,mh tou/ kairou/) sendo estas na guerra a estratégia, na enfermidade a medicina etc. O mesmo aconteceria para cada categoria. Na Ética a Eudemo, o kairós não será pensado diferentemente. O texto é praticamente um paralelo sinóptico.

Isto significa que o discurso retórico conducente ao bem, não sabe simplesmente da oportunidade de quando falar ou calar, mas da oportunidade de um falar que aponta para a ação oportuna e, portanto, conducente ao bem. A ação oportuna é o bem dito segundo a categoria de tempo. É ela que o orador deve conhecer e que seu discurso deve enunciar.

Por isso é de fundamental importância na Retórica de Aristóteles que o orador possa ter as condições suficientes para saber o que é útil e conveniente em cada discurso nas assembleias deliberantes, homenagens ou tribunais, a fim de que isso possa se tornar manifesto na conduta do orador, além do conhecimento do momento oportuno para a ação que o discurso enuncia.

Conclusão

Pode-se verificar, portanto, que Aristóteles procura assegurar as seguintes inquietações de Platão: 1) aceita por princípio definidor que a função da retórica é a persuasão que tem por finalidade conduzir os interlocutores nas assembléias e tribunais a alcançar o que é justo, assumindo assim um caráter ético-político; 2) reconhece que o orador precisa exprimir essa mesma justiça em sua própria conduta a fim de que seu discurso seja digno de crédito por parte do ouvinte; 3) assegura que o orador precisa conhecer o momento oportuno, e não somente como o conhecimento da mera hora de falar, mas fundamentalmente da oportunidade da própria ação convocada pelo discurso. Ora, é em função desses elementos que se pode indicar brevemente como Aristóteles resguarda em sua proposta para a retórica as preocupações que Platão já estabelecera no Górgias e no Fedro. Sua proposta terá em vista superar as aporias práticas encontradas por Platão, superando o caráter cético presente na visão platônica quanto às possibilidades próprias da retórica para assegurar o seu fim ético-político e reconstituindo a dignidade da retórica como arte da persuasão conducente à justiça.

Material suplementar
Referências bibliográficas
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Notas
Notas
e 255Importar imagen ; An. Post. 83Importar imagen
e 83Importar imagen ; Rhet. 1385Importar imagen
e Met. 1026Importar imagen
e 1029Importar imagen ); apenas por duas vezes ele emprega o advérbio interrogativo ποτε (cf. Met. 1017Importar imagen
e EE 1217Importar imagen ) e uma única vez ele opta pelo termo cro,noj (Cf. EN 1096Importar imagen )” (PUENTE, 2001, p. 45.)
2 O termo grego utilizado tanto por Platão como por Aristóteles é pi,stij, tratando-se portanto de uma opinião que pode ser tornada digna de confiaça.
3 Utilizamos a tradução de Carlos Alberto Nunes.
4 Isso é o que deixa entrever também M. Heidegger em sua análise dos três primeiros capítulos dos primeiro livro da Retórica de Aristóteles: “Die Rhetorik ist keine auf sich selbst gestellte te,cnh, sondern steht innerhalb der politikh,”, isto é, “a retórica não é qualquer te,cnh em função de si mesma, mas se encontra dentro da politikh,.” (HEIDEGGER, 2002, p. 134).
5 Utilizamos a tradução espanhola de Antonio Tovar. Quando procurei eu próprio fornecer uma tradução que considerei mais apropriada de alguns termos, citei o texto no original e apresentei em seguida a tradução, seguindo, porém, no que diz respeito a indicações gramaticais a indicação de Antônio Tovar.
6 Segundo Heidegger, o evntumhma pode ser pensado a partir do verbo evntumei/sqai, que significa “sich etwas zu Herzen nehmen”, isto é, levar interiormente (ao coração) algo em consideração. De fato, qumo,n, a que está vinculado a palavra evntumhma, era para os antigos a sede do pensamento que pode discernir e saber. Em Homero existe por duas vezes (uma na Ilíada e outra na Odisséia) a expressão: eu= ga.r evgw. to.de oi=da kata. fre,na kai. kata. qumo,n\ ( `Ome,roj( vIlia,doj Z 447), ou seja, “Isto eu bem sei segundo a mente e o coração” (Homero, Ilíada VI 447). Trata-se portanto de uma convicção que pode ser demonstrada através do discurso que conduza o ouvinte a sentir interiormente a mesma convicção daquele que fala.
7 O termo proai,resij aparece como intenção na tradução de que nos utilizamos. A palavra, porém, encontra-se mais vinculada ao significado de uma tomada de posição da pessoa que discerne com vistas a uma determinada ação que ele resolve escolher como boa. O falante se decide por isto ou aquilo, e esta decisão se torna manifesta na conduta. Trata-se muito mais da manifestação de uma decisão que vem á tona no discurso de quem fala e que revela a conduta do mesmo.
8 No original grego Platão se exprime da seguinte maneira: proslabo,nti kairou.j tou/ po,te lekte,on kai. evpiscete,on, o que poderíamos traduzir como: ter “conhecimento das ocasiões de quando falar e silenciar”.
9 De acordo com Armando PLEBE, “a ligação da definição gorgiana com a teoria do kairós foi mostrada por Rostagni por meio de sua concordância com o testemunho de Dionísio de Halicarnasso, o que afirma que, para Górgias, o kairós retórico ‘deve ser obtido não com a ciência geral, mas com a opinião’...”, assegurando ainda que “A definição gorgiana da retórica nos leva, portanto, a um último elemento da sua doutrina retórica: à retomada do conceito de kairós, de ‘oportunidade’ retórica, ajustada ao tipo de ouvinte e aos fins do orador” (PLEBE, 1978). Fernando CZEKALSKI procurou discutir a importância do conceito de kairós para o que ele chamou “A Tribuna de Górgias”: apesar de verificar que somente no fragmento B 6 – o qual reza “ser esta a lei mais divina e universal: falar e calar, fazer e deixar fazer o que se deve no momento devido” –, correspondente à Oração Fúnebre, é que “a idéia de kairo,j, o momento oportuno, é mencionada”, Czekalski assegura que o testemunho de Dionísio de Halicarnasso “ao afirmar que ‘nenhum retor ou filósofo estudou a fundo a arte da oportunidade, nem mesmo Górgias de Leontinos, o primeiro que se dedicou a escrever sobre esse assunto, escreveu algo digno de menção’ (Frag. B 13) parece não deixar dúvidas de que uma teorização sobre o tema foi realizada por Górgias.” (CZEKALSKI, 2006, p. 107). Armando PLEBE assegura que “É discutível se podemos aceitar a notícia de um específico escrito programático de Górgias peri. tou/ kairou/... mas é certo que o kairós tinha uma importância fundamental na sua doutrina retórica”, dizendo ainda que “foi precisamente por esta sua técnica que Górgias se tornou famoso entre os antigos” (PLEBE, 1978, p. 18), como testemunha, segundo o autor, Filostrato, em sua Vida dos Sofistas, I, 1: “ele, assim, mostrou que sabia tudo o que teria podido falar sobre qualquer questão, confiando na oportunidade” (apud PLEBE, 1978, p. 18).
10 Há atualmente certo desgaste na compreensão comum do conceito de felicidade. Preferi traduzir o termo por boa-ventura.
11 De acordo com Fernando Rey Puente, “em todas as passagens de sua obra em que Aristóteles inclui a categoria relativa ao tempo no seu elenco categorial, ele o faz denominando-a, na quase totalidade das vezes, com o advérbio indefinido ποτε (cf. Cat. 1
Autor notes
1 Doutor em Filosofia Pelo Programa de Doutorado Integrado em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPB), Pernambuco – Brasil, Universidade Federal de Paraíba (UFPB), Paraíba – Brasil e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rio Grande do Norte – Brasil. Professor Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Bahia – Brasil, Campus/Amargosa
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