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Recepção: 17 Abril 2011
Aprovação: 12 Maio 2011
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v3i1.488
Resumo: O presente texto tem como corolário investigar a gênese constitutiva do “fenômeno originário”. Para isso, partimos da consideração da natureza enquanto topos fundamental para elucidação da arquitetônica estética de Goethe. Inusitadamente, a força movente do edifício teórico goethiano brota da condição singular aferida ao mundo fenomênico. É pela mediação das reflexões inventariadas na investigação da natureza que Goethe consegue esclarecer o movimento de trânsito do mundo fenomênico ao mundo das abstrações que perfazem o universo da ciência e da arte. Através da descrição da categoria “fenômeno originário”, enquanto categoria que encontra sua específica identidade na categoria lukacsiana da particularidade, é possível adentra-se no reino antropomorfizador da estética.
Palavras-chave: Categoria, Natureza, Estética.
Abstract: The current paper has as corollary to investigate the constitutive genesis of the "originary phenomenon". For that, from the consideration of nature while fundamental topos for elucidation of Goethe aesthetic architectonic . Unusually, the moving force of the goethian theoretical building bears the singular condition gauged to the phenomenal world. It is through the mediation of inventoried reflexions at investigation of nature that Goethe can clarify the movement of traffic in the phenomenal world to the world of abstractions which accomplishes the universe of science and art. Through the description of the "originary phenomenon" category, while category which finds its specific identity in the lukacsian category of particularity, it is possible to enter itself in the anthropomorphizer realm of aesthetics.
Keywords: Category, Nature, Aesthetics.
“A natureza é o único livro que oferece um conteúdo valioso em todas as suas folhas” (Goethe, Máximas e reflexões).
Partimos do pressuposto de que os estudos científicos de Goethe sobre a natureza são nodais para a compreensão das suas disposições filosóficas2.. A versatilidade e abrangência deste pensador se revelam na incomensurável capacidade de tratar tanto da morfologia das plantas quanto da perquirição do mundo da physis mediante as pesquisas realizadas acerca do universo cromático, do reino geológico e acerca da diferenciação existente entre a morfologia das plantas e a estrutura anatômica dos animais. Assim como existe uma “planta originária”, existe também um “animal originário” (BENJAMIN, 1996, p. 155). Tendo como eixo de investigação a categoria denominada de “fenômeno originário” (Urphänomen), vamos no decorrer deste texto tentar compreender a constituição desta categoria, enquanto construto que emana da órbita da investigação da natureza e que acaba incidindo sobre as formulações estéticas e literárias goethianas.
Indubitavelmente, todos os ramos de pesquisa dirigidos por Goethe partem de uma perspectiva unitária que tem como eixo fundamental a natureza. A unidade entre natureza e espírito cumpre um papel nodal na sua perspectiva estética, pois parte da compreensão do mundo de uma forma abrangente e totalizadora. A natureza não é considerada em seus aspectos fragmentários, “mas como coisa atuante e vivente, procurando-se apresentá-la como uma totalidade que se esforça por evidenciar-se em suas várias partes” (GOETHE, 1997, p. 8)3 E ainda num aforístico, denominado Natura (1780), escreve: “Natureza! Estamos cercados e envoltos por ela – incapazes de afastar-nos dela e também incapazes de aprofundar-nos nela. Sem pedir e prevenir, ela nos acolhe no circuito de sua dança e nos arrasta até ficarmos cansados e cairmos de seus braços” (GOETHE, apud STEINER, 2007, p. 5). O referido autor consegue estabelecer uma relação íntima entre natureza e estética porque se aproxima da natureza sempre como um pesquisador apaixonado pelas suas conexões íntimas. Em que seu senso de realidade impede-o de estabelecer qualquer disjunção no processo de investigação da natureza; quer faça ciência quer faça arte se trata sempre de uma mesma natureza, em que o desenvolvimento da matéria ocupa papel primordial.
As pesquisas realizadas, na perspectiva da elucidação do processo evolutivo do homem4 levaram Goethe a considerar o crânio humano como resultante do desenvolvimento das vértebras e a observar o desenvolvimento dos órgãos vegetais como metamorfoses do princípio espiritual expresso pela folha. Acerca do desenvolvimento da estrutura óssea do hominídeo, assinala a articulação existente entre o crânio e as vértebras; em que as diversas vértebras da coluna seriam manifestações de um princípio espiritual, de uma ideia ou “fenômeno originário”, que de vértebra em vértebra vai ocorrendo o processo de metamorfose, até finalmente alcançar a forma mais sutil e desenvolvida do crânio, como última metamorfose da vértebra5
Goethe expressou suas noções acerca do desenvolvimento do ente vegetal em seu texto A metamorfose das plantas, publicado em 17906 O aludido texto parte da interpretação do desenvolvimento orgânico das plantas mediante a noção de “fenômeno originário” (Urphänomen), em que este emerge como elemento estruturador da compreensão do reino orgânico, quer dizer, aparece como uma abstração que serve para conferir coerência à natureza.
Como um apaixonado pela natureza, Goethe aproveitou sua viagem à Itália (1786-1788)7 para realizar uma inusitada atividade de investigação do universo botânico e estético. Ao cruzar os Alpes destaca como os fatores geográficos interferem no processo de desenvolvimento metabólico do ser vegetal. Em Veneza, próximo das águas do mar, considera que os aspectos das plantas são modificados pelo terreno e pela respiração do ar salino. E no jardim botânico de Pádua, em meio à rica diversidade que perpassa sua vegetação exuberante, brota o germe do entendimento de que todas as formas vegetais poderiam ser desenvolvidas a partir de uma forma primordial8 Em outras palavras, é no contato empírico com a natureza que surge o entendimento nodal de uma “planta primordial” ou “proto-planta” (Urpflanze)9 Esta categoria terá implicações profundas em toda a anatomia estética e literária de Goethe, pois é da investigação da natureza que emerge a noção estética fundamental que denominará, posteriormente, de “fenômeno originário” (Urphänomen) e que também pode ser considerada, segundo Lukács, como a categoria estética da particularidade (LUKÁCS, 1978).
A noção de “planta primordial” constitui-se, enquanto categoria, numa série inusitada de transformações que possibilita a emergência das diferentes variedades que constituem o mundo vegetal. A totalidade dessas metamorfoses tem sua gênese nas leis constitutivas que estão na essência da “planta primordial”. Nesse aspecto, as interposições exteriores servem tão somente como aspectos plasmáticos das leis internas. O mundo exterior comparece como esteio explosivo das forças adormecidas no princípio constitutivo do vegetal.
A Urpflanze, “planta primordial” ou “proto-planta”, é uma categoria que não pode ser encontrada em nenhum ente ou espaço físico circunscrito, no entanto, ela se manifesta parcialmente em cada planta particular. É pela mediação do estudo morfológico e anatômico da folha que consegue assinalar como cada planta constitui-se originariamente como uma folha em processo de mutação ou metamorfose.
O “fenômeno originário” é também uma categoria nodal para apresentar as revelações goethianas no âmbito da física. Como incansável investigador da natureza, ele tentou encontrar inexoravelmente na própria natureza suas leis imanentes. Nessa perspectiva, as ideias não são conceitos gerais e vazios de sentido, não são emanações da cabeça do sujeito, mas fundamentos essenciais dos organismos portadores de um conteúdo rico e concreto de determinações, perceptíveis e cheios de vida.
As categorias não são entidades a priori, não são resultados de alguma enigmática produtividade do indivíduo, senão formas constantes e gerais da realidade objetiva. É preciso, como assinala Marx, “não esquecer que as categorias exprimem, portanto, formas de ser determinadas, condições de existência determinadas, muitas vezes simples aspectos particulares desta sociedade determinada” (1983, p. 224). Nessa perspectiva, Steiner destaca que as ideias são:
tão reais como as cores e as formas das coisas, sendo porém perceptíveis apenas à capacidade de percepção adequada, assim como cores e formas só existem para seres dotados de visão, e não para cegos. Se não nos aproximarmos do mundo objetivo com espírito perceptível, ele não se nos desvendará. Sem a capacidade instintiva de perceber ideia, não temos acesso a este domínio (STEINER, 2007, p. 5).
Os fenômenos originários (Urphanomene) são abstrações que tem seu ponto de inflexão no mundo empiricamente dado; no entanto, de modo algum se circunscreve ao reino da empiria, pois não subsiste qualquer ternura pelas coisas sensíveis – como nas posições filosóficas que fazem da empiria seu universo privilegiado de investigação. As abstrações têm vinculação intrínseca com o mundo fenomênico, no entanto, elas sempre saltam sobre as condições imediatamente dadas no mundo prosaico, indo além da imediatez que perpassa a cotidianidade. Escreve Goethe: “Nós vivemos no âmbito dos fenômenos derivados e não sabemos de maneira nenhuma como poderíamos chegar aos fenômenos originários (Urphänomen)” (1997, p. 229).
É preciso estabelecer uma conexão entre os fenômenos e as ideias, tendo como premissa de que: “Tudo é mais simples do que se pode pensar e, ao mesmo tempo, mas complexo do que é compreensível” (GOETHE, 1997, p. 229). A investigação da essencialidade de uma coisa simples pode exigir a dedicação de “uma vida inteira, se nos dá prazer e se nos estimula” (GOETHE, 1997, p. 229), como é o caso, por exemplo, da elucidação da estrutura morfológica da “planta originária” (Urpflanze). A elucidação do código secreto que subsiste na metamorfose das plantas torna-se difícil de ser decifrado porque subsiste uma disjunção entre o reino da imediatez sensível e a ideia, é por isso que a metamorfose “das plantas contradiz igualmente os nossos sentidos” (GOETHE, 1997, p. 220).
Numa carta dirigida a Goethe, 02 de fevereiro de 1821, Hegel tenta exprimir de forma bastante singela a natureza do “fenômeno originário” (primordial): Escreve Hegel:
O senhor coloca no princípio o simples e abstrato, que muito acertadamente denomina fenômeno primordial, em seguida mostra como os fenômenos concretos surgem com o advento de novas formas de ação e de novas circunstâncias regendo o processo, de modo que a sequência das condições simples se desenvolve até os compostos, ordenadas de um tal modo que o complexo aparece em toda clareza somente por meio de sua decomposição. Rastrear o fenômeno primordial, interpretando-o em relação aos outros como algo que denominamos abstrato: considero isso matéria do mais elevado sentido espiritual para a natureza, assim como uma passagem para o verdadeiro conhecimento científico nesse campo (apud GIANNOTTI, 2003, p. 175).
As palavras de Hegel são carregadas de lucidez porque consegue esclarecer a peculiaridade ontológica da categoria “fenômeno originário”. Nos termos hegelianos se observa a emergência do realismo goethiano que impede qualquer devaneio metafísico, o ponto de partida de Goethe é o fenômeno enquanto uma manifestação simples que condensa em-si a riqueza genérica que movimenta os diferentes complexos da realidade. O “fenômeno originário” tem a especificidade de aglutinar em-si o movimento de passagem das condições simples às condições compostas, em que se inscreve o processo de decomposição do simples no composto e do abstrato no concreto. Existe um movimento de trânsito do concreto ao abstrato, da realidade ao pensamento, ao mesmo tempo um retorno das formas abstratas ao concreto, em que o concreto é um concreto pensado e o pensamento é um pensamento que emana do concreto.
Hegel registra sua afeição com a postulação goethiana, porque o “fenômeno originário” serve para indicar o rico movimento, contraditório e sintético, que conduz o pensamento imediato ao reino da ciência. Escreve Hegel: “Rastrear o fenômeno primordial, interpretando-o em relação aos outros como algo que denominamos abstrato: considero isso matéria do mais elevado sentido espiritual para a natureza, assim como uma passagem para o verdadeiro conhecimento científico nesse campo”. Goethe é capaz de extrair da observação e investigação da natureza sua categoria decisiva, o que denota o caráter materialista de formatação de seu pensamento. E quer faça ciência ou faça arte o ponto de partida das formulações goethianas é sempre o “fenômeno originário”, enquanto abstração razoável que emana dos ricos tecidos constitutivos do mundo objetivo. A subjetividade em Goethe é sempre uma subjetividade objetivada.
Para Goethe, as ideias são forças moventes e movidas no mundo, elas são forças que brotam dos fenômenos, ao tempo que incidem na forma de ser do próprio mundo objetivo. Escreve Goethe: “Aquilo que se chama Ideia: aquilo que continuamente surge no âmbito do fenomenal e por isso se nos impõe como lei de todo o acontecer fenomênico” (1997, p. 219). As ideias nunca são destituídas de substancialidade material. O que denota que o referido autor recusa qualquer postulação hipostasiante das ideias. Mas essa posição não nasce na cabeça de Goethe como uma coisa pronta e acabada. Ele mesmo mostra a evolução na direção do amadurecimento da categoria mencionada através da discórdia sucedida entre ele e Schiller, quando este último, após uma exposição pictórica e minuciosa de Goethe acerca da metamorfose das plantas, arremata: “Isso não é uma experiência, é uma ideia” (GOETHE, 1997, p. 8). Seguido de um instante de silêncio, controlando sua profunda inquietação, Goethe contra argumenta: “É muito agradável para mim ter ideias sem o saber, e até mesmo vê-las com meus próprios olhos” (GOETHE, 1997, p. 8).10 Goethe demonstra sua exasperação diante da afirmação de Schiller do seguinte modo: “Frases como a que segue deixavam-me infelicíssimo: ‘Como é possível haver uma experiência que corresponda a uma ideia? A peculiaridade desta última é justamente o fato de jamais lhe ser possível coincidir com uma experiência’” (GOETHE, 1997, p. 9). Goethe estar convicto de que os fenômenos sozinhos conduzem à vacuidade, no fundo eles “não servem para nada, a não ser quando nos proporcionam uma compreensão mais profunda da Natureza, ou quando se podem aplicar em nosso proveito” (1997, p. 232).
É preciso encontrar o topos de uma unidade possível entre experiência imediata (unmittelbare Ehrfahrung) e ideia, pois, para Goethe, deveria haver uma reconciliação possível entre o que Schiller “considerava uma ideia o que eu considerava uma experiência” (1997, p. 9). Essa reconciliação se inscreve na esfera daquilo que subsiste de mais elevado. Escreve Goethe: “Só no mais elevado e no mais comum é que a Ideia e fenômeno se encontram. Em todos os graus médios da reflexão e da experiência eles afastam-se um do outro” (1997, p. 219). O mais elevado e o mais comum são as categorias da particularidade e da universalidade, na primeira se inscreve o reino da estética; na segunda, o reino da ciência.
As conversações e colóquios entre Goethe e Schiller não pararam aí, mas conduziram à frutificação duma grande amizade e de um acentuado reconhecimento do segundo sobre a produção intelectual do primeiro. É o que encontramos nas palavras de Schiller:
O Senhor toma a Natureza toda em conjunto para elucidar as particularidades; na totalidade de suas aparências, o Senhor procura o fundamento explicativo para o indivíduo. De uma organização simples o senhor ascende, passo a passo, às mais complexas para, afinal, edificar geneticamente a mais complexa de todas – o Homem – dos materiais da Natureza como um todo (apud STEINER, 2007, p. 6).
A natureza na verdade é o medium pelo qual Goethe apropria-se da natureza num ordenamento superior, quer dizer, a natureza orgânica serve de prólogo para o adentramento na natureza constitutiva do homem, mas isso não implica que haja um propósito na natureza de servir aos interesses e às finalidades humanas; porque Goethe descarta a possibilidade de qualquer preceito teleológico na natureza.11
O homem desempenha o papel fundamental de centro do fazer estético e de toda verdadeira produção estética, pois o universo estético é uma atividade imanente ao homem e tem como centro irradiador o próprio homem. Não existe arte sem o homem, da mesma maneira que não existe homem sem natureza. A natureza está na própria essência da produção artística.
No capítulo IV de sua Introdução a uma estética marxista,12 Lukács dedica especial atenção ao exame da problemática do “fenômeno originário” em Goethe. No entendimento do filósofo húngaro o encaminhamento goethiano para as questões da particularidade ocorre de uma maneira inconsciente, geralmente movido por impulso infatigável para elucidar a natureza do “fenômeno originário” (Urphänomen). A elucidação da categoria da particularidade, pela mediação do “fenômeno originário”, é possível devido ao florescimento das pesquisas no âmbito das ciências naturais. E como vimos, Goethe dá um passo decisivo à frente de seu tempo histórico porque se apropria do desenvolvimento das pesquisas no campo das ciências naturais.13
A natureza estética do “fenômeno originário” emerge na Doutrina das cores (Fabenlehre) em que o grande escritor confessa que ninguém tem condição de afirmar objetivamente qualquer coisa acerca do colorido, por isso é necessário se aproximar das cores como fenômenos físicos, pelo lado da natureza. Deste modo, recusa o método de Newton e a aplicação matemática na elucidação dos problemas ópticos. Para ele, nas belas formas da natureza existe um significado que se revela com maior clareza nos chamados “fenômenos originários”. No Urphänomen o singular e o universal coincidem, oferecendo uma visão completa do todo, pois ele é a origem do fenômeno emergindo no próprio no fenômeno. Nessa obra, o referido autor elenca a facilidade do filósofo em alcançar a natureza do fenômeno originário frente ao modo de investigação que perpassa o itinerário do físico. Escreve Goethe:
Não se pode esperar do físico que seja filósofo, embora dele possamos esperar que tenha suficiente formação filosófica para ser capaz de diferenciar-se radicalmente do mundo e associar-se de novo a ele numa esfera superior [...] Nãos e pode exigir do filósofo que seja físico; contudo sua influência no âmbito da física não só é necessária como desejável. Para isso, não precisa de um conhecimento do singular, mas apenas dos limites em que o singular pode ser encontrado. [...] O pior que pode ocorrer à física, assim como as outras ciências, é tomar o derivado pelo originário e, uma vez que este não pode ser derivado. [...] O físico e, com ele, o filósofo estarão salvos se puderem encontrar aquilo que denominamos fenômeno primordial, porque se convencerão de terem alcançado o limite de sua ciência: estarão, assim, no ponto máximo da empatia, de onde podem ter uma visão retrospectiva e geral de todos os graus de experiência e talvez até possam, se não adentrar, ao menos entrever o âmbito teórico. O filósofo estará salvo com ele, já que aquilo que recebe da mão do físico como final torna-se algo inicial para ele (1993, p. 129-130).
O “fenômeno originário” é o último que nele se torna o primeiro. Ele possui uma afinidade com aquilo que os filósofos da natureza denominavam de princípio fundante de todas as coisas. Do particular que contém em-si o universal e o singular. Goethe entende o “fenômeno originário” como dotado de uma fundamentação tanto prática quanto teórica, tanto no nível da realidade eidética quanto da realidade fenomênica. O “fenômeno originário” é uma verdadeira mediação entre o homem e a natureza. Nas formulações contra o procedimento investigativo de Schiller, Goethe assinala:
Existe uma grande diferença no fato do poeta buscar o particular para o universal ou ver no particular o universal. No primeiro caso, nasce a alegoria, o particular só tem valor enquanto exemplo do universal; no segundo, está propriamente a natureza da poesia, isto é, no expressar um particular sem pensar no universal ou sem se referir a ele (apud LUKÁCS, 1978, p. 150).
Observa-se que no particular persiste a unidade viva que consiste em separar-se, unificar-se e fundir-se no universal. O particular tem mil maneiras de ampliar-se e contrair-se, aparecer e desaparecer, fundir-se e solidificar-se, enrijecer-se e liquefazer-se; por isso, escreve Goethe: “mesmo o acontecimento mais particular se apresenta sempre como uma imagem e um símbolo do mais universal” (apud LUKÁCS, 1978, p. 150). No entendimento de Goethe, o universal e o singular coincidem no particular, na medida em que: “O particular é eternamente submetido ao universal; o universal deve eternamente adaptar-se ao particular” (GOETHE, apud LUKÁCS, 1978, p. 150-51).
As várias correspondências entre Schiller e Goethe denotam a pertinência da particularidade como método extremamente relevante no âmbito da produção poética, apesar de quase nunca, segundo Lukács, adotar conscientemente o termo “particularidade” e preferir geralmente o termo “fenômeno originário”. No entanto, os colóquios do velho Goethe com Zelter e Eckermann são decisivos na iluminação da equivalência destes termos. A particularidade como forma da poesia é apresentado numa carta a Zelter em que o poeta discorre que nenhum autor contemporâneo:
quer compreender que a suprema e única operação da natureza e da arte consiste em dar forma, e que na forma a operação suprema foi e continua a ser a especificação, pela qual tudo se torna algo particular, significativo. Não é arte deixar os talentos pessoais segundo os humores, segundo o arbítrio do indivíduo (apud LUKÁCS, 1978, p. 155).
E ainda num colóquio com Eckermann acentua:
Bem sei que é difícil, porém a compreensão e a apresentação das circunstâncias características são também a própria vida da Arte. E depois, enquanto nos conservamos no que é vulgar, a todos é possível imitar-nos; mas nas particularidades ninguém nos imita. Por quê? Porque não passaram por elas (ECKERMANN, 1950, p. 36).
A perspectiva goethiana do “fenômeno originário” serve para esclarecer o entendimento da particularidade enquanto categoria estética e superar as idiossincrasias da particularidade como um simples termo intermediário entre singularidade e universalidade, servindo somente aos propósitos de passagem do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico. No âmbito da cotidianidade é comum se identificar o particular com o universal e o singular, pois o cotidiano não consegue distinguir com precisão a essência das coisas. O particular aparece então como um termo fixo entre o singular e o universal. Mas, o aperfeiçoamento do reflexo da realidade alarga o campo de atuação de cada uma dessas categorias. Por isso que as figuras esquemáticas do silogismo não servem para revelar o movimento das categorias singularidade, particularidade e universalidade. Na estética, o particular deixa de ser um mero termo mediador, como na ciência, para ocupar o papel de centro das posições categoriais. O particular não é um ponto, mas um processo de movimento centrado. No “fenômeno originário”, a particularidade deixa de ser um simples termo intermediário para constitui-se como o centro da atividade estética; com isso não se conclui a investigação estética, pelo contrário, ela é tão somente prefácio à investigação e análise da elucidação da essencialidade do universo estético.
A forma exemplar como Goethe se relaciona com a realidade, levou Lukács à seguinte postulação: “Talvez não tenha existido nenhum outro poeta para o qual a unidade do conteúdo da vida, do conteúdo das experiências vitais, na ciência e na poesia, tenha sido – em todos os momentos – a estrela polar” (1978, p. 149). Indubitavelmente, o mundo objetivo ocupa um papel nodal na perspectiva estética goethiana, a partir do qual confere ao universo estético a possibilidade de uma nova reconfiguração da realidade pela mediação do “fenômeno originário” ou da categoria estética da “particularidade”.
Como vimos, Goethe extrai a categoria “fenômeno originário” da investigação das plantas e dos animais, conferindo a ela a forma de categoria estética da particularidade. No entendimento de Lukács, ele foi o primeiro a conceber a particularidade como uma categoria estética. Antes dele, a particularidade estava limitada ao mundo da filosofia. Pela mediação da noção da existência de uma planta primordial e de um animal primordial, Goethe chega à formulação da existência do “fenômeno originário” enquanto uma abstração que assume a forma da categoria estética da particularidade, síntese elevada dos fenômenos empíricos imediatos e da ideia.
Referências bibliográficas
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Notas
Autor notes