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O outro, quem é ele? Considerações em torno da fenomenologia de Husserl, Heidegger e Lévinas
The other, who is he? considerations around Husserl’s phenomenology, Heidegger and Levinas
Griot: Revista de Filosofia, vol. 1, núm. 1, pp. 49-59, 2010
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 30 Maio 2010

Aprovação: 03 Julho 2010

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v1i1.464

Resumo: :

A proposta do presente artigo é apresentar, de modo sucinto, o papel que a figura do outro ocupa nas diferentes concepções filosóficas da contemporaneidade. Para tal, serão eleitas as perspectivas de Husserl, Heidegger e Lévinas, como possíveis abordagens da questão. Partindo da fenomenologia e atendo-se nos níveis da ontologia, poder-se-á compreender como se erige a proposta ética como autêntica possibilidade de abordagem da relação entre os seres humanos. Tomando como base a alusão ao eu transcendental realizada na quinta meditação de Meditações Cartesianas, será possível perceber como a relação com o outro em Husserl se estabelece como relação entre eus. De modo distinto, partindo do parágrafo 26 de Ser e Tempo, serão elencados os passos da analítica existencial em sua definição da condição essencial do Ser-no-mundo como Ser-com-os-outros; sempre tomando como base os pressupostos de uma ontologia fundamental. Em Heidegger, o outro é aquele que convive comigo num mesmo mundo circundante. Por fim, será apresentado o confronto com o pensamento levinasiano, o qual defende que somente nos níveis da ética se poderá definir a autêntica relação com o outro, finalidade última de toda a existência humana; aqui, o outro é sempre outrem.

Palavras-chave: Outro, Husserl, Heidegger, Lévinas.

Abstract: :

The purpose of this paper is to present, briefly, the role that the figure of the other occupies the different philosophical conceptions of modern life. This will be elected the perspectives of Husserl, Heidegger and Levinas, as possible approaches to the issue. Starting from the phenomenology and attend to the levels of ontology, it may be to understand how the proposal is built as an authentic possibility of ethical approach to the relationship between human beings. Based on the allusion to I held on Thursday transcendental meditation Cartesian Meditations, you can see how the relationship with the other in Husserl establishes himself as the relationship between selves. Differently, based on paragraph 26 of Being and Time, will be listed in the footsteps of existential analytic in its definition of the essential condition of Being-in-world as Being-with-others, always drawing on the assumptions of an ontology fundamental. In Heidegger, the other is one that lives with me in the same surrounding world. Finally, the confrontation will be presented with the thought levinasian, which argues that only the levels of ethics if you can define the real relationship with the other, the final purpose of all human existence, here, the other is always somebody else.

Keywords: Other, Husserl, Heidegger, Levinas.

Concomitante ao advento da modernidade, instaura-se a era do sujeito pensante, patente sobre a qual se erigiria todo e qualquer conhecimento objetivo. Inaugurado por Descartes e, em muito, prevalecente até os dias atuais, a concepção de um eu como agente imparcial donde brotam todas as proposições acerca do mundo, pode ter custado um preço por demais oneroso para toda a humanidade. Pode-se dizer que são motivos como esses que conduziram o pensamento contemporâneo por caminhos antes nunca percorridos. Instaura-se na contemporaneidade, a era dos dicotômicos. O pensamento deve de outro modo se conduzir. Para tal, questões como os limites do pensamento científico, o alcance, sentido e formação da linguagem e, de modo similar, a figura do outro, tornam-se centro vital de todo discurso. Dentre essas, destacamos como referência de nosso discurso o problema do outro. Ora, sabe-se que desde os primórdios da humanidade, a figura do outro é apresentada como elemento indispensável na construção de qualquer forma de organização social ou política. Em breves palavras, não existem eus sem outros. Entretanto, somente na contemporaneidade torna-se, ele, o centro de uma investigação filosófica, não mais se recolhendo à condição de subentendido ou pressuposto para outras questões.

Pensar acerca da figura do outro é algo extremamente novo! Trata-se do cerne de inúmeros discursos políticos, éticos, religiosos e, porque não, filosóficos. Várias são as teorias construídas entorno dessa figura. Todavia, quem é o outro? O alter ego? Um convivente? O meu inferno? O meu irmão? Um instrumento à minha disposição?... Trata-se de uma pergunta fundamental, mas cuja resposta exigiria uma análise por demais complexa. Do mesmo modo que foram muitos os discursos erigidos entorno dessa figura, são também variados os níveis de concordância ou discordância entre eles. Nesse intuito, elegemos para nossa análise três pensadores cujas obras representam um poderoso arsenal para o pensamento contemporâneo. São eles, Husserl, Heidegger e Lévinas. Partindo do método fenomenológico, encontram, ambos os três, a possibilidade de confronto com a figura do outro diante do eu que pensa. Seria por demais pretensioso de nossa parte, nos propor a exaurir tais abordagens filosóficas em sua totalidade. Tratam-se de sólidos complexos filosóficos, os quais deveriam ser examinados em sua singularidade. Contudo, o intuito de confrontá-los numa análise acerca do outro aparece como meio para apontar como acontece a evolução do conceito de outro partindo do método fenomenológico, rompendo os horizontes da ontologia e, enfim, adentrando os níveis da ética – lócus de uma autêntica reflexão acerca do outro.

Na fundamentação de sua fenomenologia, ao se propor a relação entre o sentido das objetividades para a subjetividade, ou seja, como sujeito e objetos se relacionam, Husserl sempre buscou trazer à luz da compreensão os aspectos que clarificam a evidência e a constituição da subjetividade transcendental. Para isso, apresenta o método fenomenológico como embasamento de uma filosofia primeira, rigorosa e universal, na qual, partindo do alcance do transcendental por meio das reduções, procura demonstrar o funcionamento e a dinâmica da consciência pura. Por conseqüência, enquanto fonte de sentido do mundo e sua condição de possibilidade, de toda objetividade e de si mesmo, o eu transcendental, quando se dirige para a realidade objetiva, depara-se com um outro que eu, igualmente doador de sentido; um outro que está aí para mim, para o qual minha consciência se volta. A subjetividade toma novo vigor, enquanto tal, garantido pela experiência empática: a intersubjetividade. Segundo Ricouer, tal problemática é colocada por Husserl em suas Meditações Cartesianas – Cartesianische Meditationen -, especificamente na quinta meditação, sendo também encontrada em seus Manuscritos sobre a Intersubjetividade, publicados postumamente. Diante disso, vale ressaltar que não se trata, o discurso husserliano acerca da intersubjetividade, de um modo de usurpar a primazia do eu, fundamento originário da fenomenologia, mas, de outro modo, compreender como se dá a progressão para o outro, sempre partindo do próprio eu transcendental.

Para tal, principia-se a objeção ao solipsismo. Não se trata a compreensão do mundo objetivo o fruto da elaboração de um sujeito solitário. É um outro, dotado de uma vida própria, que se entrelaça à sua e que lhe permite compreender, em última instância, todo o sentido do mundo objetivo, enquanto co-entendido como realidade objetiva. Em termos diversos, é um outro que pode confirmar ou infirmar sua experiência. O próprio Husserl problematizou:

Quando eu, o eu que medita, me reduzo pela epoché fenomenológica ao meu ego transcendental absoluto, não me torno por isso mesmo solus ipse e não permaneço assim à medida que, sob o rótulo da fenomenologia, efetuo uma explicação de mim? [...] Mas o que acontece então com os outros eus? (p. 104-105).

Uma vez objetado o solipsismo, o eu transcendental encontra no outro, não uma coisa, mas um alter ego, um outro que eu. Para concluir tal objeção, dá-se, contudo, a necessidade de referir-se à esfera do próprio. Em Husserl, o sentido do outro sempre parte do sentido do eu, por isso é necessário, primeiramente, dar sentido ao eu e ao próprio, para depois dar sentido a outro e ao mundo de outro. Só há estranho, pois, em primeiro lugar, há próprio. Nas palavras de Husserl, “evidentemente, é preciso possuir a experiência dessa esfera de pertença própria do eu para poder constituir a idéia da experiência de um outro que não eu”. (p.110). Em certa medida, a referência fenomenológica ao outro sempre parte tomando como pressuposto as referências ao eu, ao ponto de torná-lo outro que eu. Portanto, seguindo a ordem da explicitação husserliana, encontraremos a afirmação do primado da subjetividade trascendental como o substrato último de toda fonte de sentido. Por essa razão, a percepção do eu, dos conteúdos e das estruturas que lhe pertencem, é o princípio para a compreensão de todo o sentido que possa ter o mundo objetivo. Somente na reflexão do eu transcendental encontramos a possibilidade de uma reflexão acerca do sentido do alter ego, sempre em sua referência ao sujeito.

Por conseguinte, apropriando-se do método fenomenológico de Husserl, Heidegger aponta para a necessidade de um retomar da questão do ser, esquecida, em muito, pela filosofia contemporânea. Com a suspensão do mundo e todos os seus constitutivos, até mesmo a própria consciência, permanece ainda algo de primitivo, originário; trata-se do próprio ser; ser que se manifesta nos entes, ao mesmo tempo em que com eles não se confunde. Desse modo, utilizando-se da fenomenologia a fim de construir uma digna reflexão acerca do ser e dos entes, Heidegger inaugura sua ontologia fundamental. Nela, Dasein é o ente primordial. Somente por ele o ser se manifesta a nós. Daí a necessidade de uma abordagem capaz de explicitar-lhe os diferentes constitutivos, todos, por sua vez, baseados sobre sua constituição fundamental de Ser-no-mundo. Também o encontro com o outro é algo de anterior à existência como tal. A esse propósito, erige-se o capítulo quatro de Ser e Tempo – Sein und Zeit, no qual a análise do Ser-no-mundo, confirma-o como Ser-com – Mitsein. O outro do Dasein é aquele que se encontra com ele no mundo; em certo sentido, é o próprio mundo. Desse modo, ao contrário do que é defendido por Husserl, para Heidegger o outro não é um “outro eu”, com o qual o “meu eu” se relaciona, tornando-o um “tu”. Em Husserl, “tudo o que vale para mim vale também para todos os outros homens, que me estão à mão no meu mundo circundante. Experimentando-os como homens, compreendo-os e os aceito como ‘eu’, qual eu sou.” (Husserl, 1965, p. 61). O “outro”, aqui, é aquele que está com o ente que eu mesmo sou em um mundo comum. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o Ser-no-mundo torna-se Ser-com-os-outros, o próprio mundo se instaura como mundo compartilhado (mitwelt). O outro não é simplesmente o “outro”. Ao contrário, é um “co-existente”. Assim, na relação com o outro Daseinconfiro ao meu próprio Dasein seu caráter de Mitsein.

Para Heidegger, “Pode ser que o quem da presença quotidiana não seja sempre e justamente eu mesmo.” (ST; p. 166). Tal constatação leva ao reconhecimento de uma realidade exterior à sua própria; à possibilidade de existência de outros entes dotados das mesmas capacidades do ente que eu mesmo sempre sou. Da mesma forma que o Dasein que eu mesmo sou existe como Ser-no-mundo, também outros Daseins – se assim lhes denominarem – possuem o mesmo privilégio e constituição. Ser-no-mundo, nesse sentido, significa, impreterivelmente, Ser-com-os-outros. Para Heidegger, “o esclarecimento do Ser-no-mundo, mostrou que, de início, um mero sujeito não ‘é’ e nunca é dado sem mundo. Da mesma maneira, também de início, não é dado um eu isolado sem outros.” (ST; p. 167). Segundo o filósofo, o encontro com o conjunto instrumental do mundo circundante não é algo acrescentado pelo próprio entendimento, mas mediado por sua comum disposição no mundo. Sendo o mundo sempre “meu mundo”, o encontrar-se com os outros se torna indispensável. Consequentemente, ao longo de sua experiência de mundo, Dasein percebe que nem tudo o que lhe vem ao encontro se trata de um instrumental à sua disposição. “O mundo do Dasein libera, portando, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas, mas que, de acordo com seu modo de ser de Dasein, são e estão ‘no’ mundo em que vêm ao encontro segundo seu modo de ser no mundo.” (ST; p. 169). Não se trata, portanto, de algo simplesmente dado ou à mão; são, eles mesmos, presença.são, eles mesmos, Daseins. Assim, detentores de mesma constituição ôntico-ontológica tornam-se Co-presentes (Mit-Daseins) no mundo.

Por conseguinte, vale destacar que a compreensão heideggeriana de Mitsein se difere, em muito, daquela elaborada por Jean Paul Sartre, em sua obra O Ser e o Nada. Quando trata o tema da alteridade, Sartre busca em Heidegger a terminologia Mitsein. “Eis-nos de volta ao Mitseinde Heidegger. Valeu a pena, então, tê-lo criticado anteriormente?” (SARTRE, 1997, p. 513). Nesse trecho já se pode perceber a referência ao pensamento heideggeriano, estabelecida por Sartre. Continuando tal reflexão, faz-se imperativo esclarecer as diferentes compreensões dadas ao termo Mitsein tanto pela filosofia sartreana, como também pelo próprio pensamento heideggeriano. Para Sartre, a compreensão de Mitsein possui um caráter fundamentalmente ético. O outro com o qual me relaciono é realmente o outro que está junto de mim no mundo. Mitsein se torna, dessa forma, o plural do eu, o nós. A liberdade que outrora fora garantida pela total ausência de valores, como também, pela possibilidade da não existência de Deus, encontra seu ponto de limite: o encontro com o outro. O pessimismo sartreano em relação ao outro se dá pelo fato de que no outro o eu encontra seu limite. A culminação desse pensamento é a famosa formulação, segundo a qual, “o outro é meu inferno”. A terceira parte de O Ser e o Nada, intitulada O Para-outro, se propõe a discorrer acerca da problemática do encontro com o outro versus o obstáculo do solipsismo do eu. São envolvidos nesse discurso tanto a corporeidade do eu, como o âmbito das relações concretas com o outro. O cume de tais relações, para Sartre, é o que, resgatando a terminologia heideggeriana, denomina-se Mitsein. Basicamente nisso consiste seu caráter ético. O outro é visto sob o ditame das relações concretas. De modo diverso, em Heidegger a compreensão de Mitsein dispensa qualquer julgamento e avaliação ética que o precedam. A constituição do Mitsein se estabelece num nível puramente ontológico. Diante disso, pode-se dizer que, em Heidegger, Mitseinnão possui conotação valorativa. Tanto não é visto sob o prisma de um otimismo exacerbado, como, tampouco, subordinado a um pessimismo extremo. Mitseiné um constituinte, um modo de ser, do homem. Já existe previamente em sua constituição, dispensando elaborações posteriores. Em breves palavras, Mitsein não é o modo circunstancial de ser de Dasein. Todo Dasein . Mitsein.

Como é notado, em Heidegger, o encontro com o outro não se dá através do estabelecimento das diferenças, ou mesmo, partindo de uma referência à exclusão de si mesmo. Seu encontro se origina a partir do mundo, onde o próprio Dasein se encontra de modo essencial. Tal expressão se denomina “mundo circunstancial”. Nele Dasein não somente se encontra com o outro simplesmente dado, mas também, apropria-se da possibilidade de encontrar-se consigo mesmo. Tal encontro é sempre mediado pelo modo da “ocupação” com os entes intramundanos. Tal inserção da figura do outro antecede, em muito, os ditames do conhecimento imediato do mundo, “no qual Dasein se encontra, do qual se ocupa e com o qual se preocupa” (MARQUES, 2000, p. 13). Mesmo nos modos deficientes de se relacionar, a figura do outro permanecerá imprescindível diante da compreensão de Dasein pelo fato de que, ele próprio, se revela fundamentalmente como Mitsein.

Para o filósofo da Floresta Negra, “na maior parte das vezes e antes de tudo, Dasein se entende a partir de seu mundo, e a Co-presença dos outros vem ao encontro nas mais diversas formas, a partir do que está à mão dentro do mundo” (ST, p. 171). Tal afirmação significa dizer que, em primeiro plano perceptivo, ou seja, numa primeira relação, Dasein se encontra com os entes simplesmente dados, partindo de sua função instrumental. Em suas necessidades no mundo, Dasein se encontra com o outro instrumental ou utensiliar. Todavia, em sua condição de Ser-com-os-outros, o encontro com o outro não se concretiza nos mesmos patamares do “simplesmente dado”; o outro se encontra como pessoa .. A relação do encontro do Daseincom o outro Dasein se dá a partir da constatação de sua mútua condição de Seres-no-mundo. Para o filósofo, mesmo na simples apreensão do outro junto a si, Dasein não o reconhece como “coisa-homem” simplesmente dada. “O outro vem ao encontro em sua co-presença (Mit-Dasein) no mundo” (ST, p. 171).

Partindo de sua própria expressão como Dasein, percebe-se claramente que, a princípio, esse ente não se remete aos outros. Sua atitude primeira é a compreensão de seu próprio ser. A partir do mundo e da possibilidade do encontro com o outro, Dasein reconhece-se Mitsein. A abertura de Dasein ao outro somente é possível haja visto que Dasein é, em si mesmo, Mitsein (cfr. ST, p. 172). Assim como Dasein, Mitsein também é possuidor de caráter ontológico-existencial. Não se trata de um fator guiado pela circunstancialidade, sendo que somente no ato de encontrar-se com o outro, seria o Dasein Ser-com-os-outros. Mesmo não estando na presença do outro Dasein . Mitsein. Somente no caráter de Mitsein o outro pode lhe faltar. “Mesmo o estar-só do Dasein é Ser-com-os-outros no mundo” (ST, p. 172). Para Heidegger, o estar-só é um modo deficiente de expressão do próprio Ser-com-os-outros. Prova disso é a própria possibilidade da presença do outro, assegurada em sua falta. Além disso, segundo ele, não é o simples dado do estar sozinho que garante, de fato, a ausência do outro. Pode-se permanecer só num ambiente com dez outros entes – ilustra - no caso dos simplesmente dados. A determinação da co-presença dos outros parte do próprio caráter de Mitsein; é sua condição elementar. Quando, por exemplo, encontro-me em um ônibus com outras pessoas isso não significa que somos próximos. O fato circunstancial da proximidade física não se equivale ao dado ontológico de ser próximo ao outro, em termos heideggerianos, tocá-lo. Tal proximidade é conferida pelos dois modos mais comuns de se relacionar, a saber: a familiaridade e a estranheza. Assim, tanto posso permanecer distante daquele que me é presença física, quanto tenho a possibilidade de ser próximo àquele que me é ausente. Sendo meu ser Mitsein, mesmo na ausência dos outros sou-lhes próximo.

Por conseguinte, como expressão existencial do Ser-no-mundo, o Ser-com-os-outros deve ser sempre interpretado à luz do fenômeno da cura. Partindo da cura, como fenômeno de unificação, Mitsein se relaciona com os outros entes; com o mundo de maneira geral. Tal modo de ser, todavia, não se expressa por mesmas formas de encontro. A relação entre Mitseine os “outros” não se dá de modo igualitário quando esse se refere a entes simplesmente dados ou outros Daseins. No trato com as coisas cotidianas, seres à mão, dotados de intramundanidade, Mitsein se relaciona sob o modo da ocupação. Ao contrário, na relação com outros Daseins, Mitsein se vê envolvido no modo da preocupação. Ocupação e preocupação são os dois modos de relacionamento entre Mitsein e os demais entes. O ocupar-se com, não define o autêntico caráter ontológico de Dasein, como também, não se trata de sua plena manifestação, no que se refere ao seu modo de Ser-com-os-outros.“O caráter ontológico da ocupação não é próprio do Mitsein, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vêm ao encontro dentro do mundo da ocupação” (ST, p. 173 – grifo do autor). Diferindo-se do encontro com os outros intramundanos está a relação com o “outro”. Por possuir, ele mesmo, o caráter de Dasein, sua relação se estabelece de modo igualmente distinto; torna-se co-relação. Nesse ente, eleito por seus atributos e detentor do privilégio ôntico-ontológico, estabelece-se o autêntico Ser-com-os-outrosdo Dasein. Não possui, ele, o modo de ser do ente intramundano à mão, ele mesmo é Dasein. Longe de o simples ocupar-se com, trata-se de um preocupar-se. “Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa” (ST, p. 173). Nesse sentido, ocupar-se com o outro no cuidado é, também, preocupação. Somente com o outro Dasein, Mitsein exerce tal modo de ser.

Ao contrário da ocupação, referida anteriormente, a preocupação possui caráter ontológico na medida em que expressa o autêntico modo de Ser-com-os-outros de Dasein. Contudo, na maior parte das vezes, Mitsein mantém-se nos “modos deficientes” de preocupação. Nesse sentido, a preocupação não é exercida em sua autenticidade. Na cotidianidade da relação, permanece Mitsein na preocupação deficiente. Segundo Heidegger, “o ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação” (ST,p. 173). Para ele, são justamente esses dois últimos modos que caracterizam a convivência cotidiana de um com o outro. O modo da indiferença se distingue do não sentir-se tocado na medida em que possui distintas nuanças ontológicas. Em sua deficiência, Mitsein age movido pela indiferença. Essa, por sua vez, se dispensa aos entes simplesmente dados ou manuais. Enquanto isso, o não sentir-se tocado, evidencia a decadência do modo de ser da preocupação. Segundo o autor, “embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência ‘indiferente’ de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros” (ST, p. 173). Basicamente, a atitude de indiferença se refere, de modo particular, à insensibilidade em relação aos objetos em geral. Ao contrário, o ato de não sentir-se tocado dos entes revela um sentimento de exclusão que se contrapõe ao real sentido do preocupar-se. Torna-se uma preocupação deficiente. É a aplicação da estranheza em relação aos outros que, por ventura, lhe estão próximos.

É digno de atenção que a compreensão do outro nos níveis da ontologia encontra sérios limites no que se refere a uma autêntica relação entre humanos. O caráter de Ser-com não indica, entretanto, a efetivação da relação com o outro. A análise de nossa constituição ontológica mostra, de modo singular, que somos seres projetados à relação; a isso não se pode negar. Contudo, a referência primeira, até então instaurada, é sempre e unicamente o eu. Como já fora evidenciado, em Husserl a figura do outro surge como alusão ao eu transcendental. O outro aparece como um outro eu, detentor das mesmas necessidades e constituição. O encontro entre o sujeito da consciência e o outro que eu se dá sob a forma de uma relação “eu – eu”; afinal, aberto ao encontro com o outro percebo que se trata de um outro eu que o meu eu transforma em um tu. Por conseguinte, em Heidegger, o encontro com o outro se estabelece por sua comum disposição no mundo; o outro me vem ao encontro no meu mundo circundante. Longe de guiar-se pelo pressuposto do eu ou do tu, tal encontro se define como convivência. O outro é aquele que é sempre e na maior parte das vezes um co-migo no mundo. Tal convivência, segundo Heidegger, é explicitada no modo da convivência cotidiana, na qual o Dasein que sou, bem como todos os outros Daseins, são envolvidos em um Nós, dotado de inautenticidade. Ora, o Nós não é o eu e nem o outro, trata-se do inautêntico, no qual ambos, eu e outro, nos encontramos antes de tudo e na maioria das vezes. Simultaneamente, vê-se usurpada a identidade do eu e do outro; inaugura-se o império dos outros sem rosto, sem identidade ou pessoalidade; o outro não é o Nós. Talvez esse seja o momento propício à inserção de um novo elemento em nossa reflexão.

De modo notavelmente distinto, Lévinas não admite na relação com o outro os mesmos parâmetros que foram expostos até então. Na medida em que defino o outro como um outro eu, usurpo-lhe sua condição de outro de outrem. Em certa medida, significaria um regresso à concepção moderna na qual o sujeito do conhecimento era a patente condutora de todas as relações. Ora, o outro é sempre o outro. Segundo Lévinas, somente conservando ao outro sua condição de outrem se pode assegurar-lhe sua identidade; ao que afirma:

A relação com Outrem não anula a separação. Não surge no âmbito de uma totalidade e não a instaura nela Eu e o Outro. [...] A relação entre Mim e o Outro começa na desigualdade de termos, transcendentes um em relação ao outro, onde a alteridade não determina o outro formalmente como a alteridade de B em relação a A que resulta simplesmente da identidade de B, distinta da identidade de A. A alteridade do Outro, aqui, não resulta da sua identidade, mas constitui-a: O outro é outrem. (Lévinas, 2000, p.229 – grifo meu)

O único modo de garantir ao outro sua pessoalidade, seu caráter de identidade, é mantendo-o em sua condição de outro. Trata-se de uma novidade nunca antes tratada em toda a história da filosofia. A percepção de Lévinas acerca do único modo de relação capaz de preservar o outro em sua identidade contrapõe-se a todo o modelo instaurado pela filosofia moderna, onde todas as referências relacionais partiam do próprio sujeito. Aqui o outro permanece em sua condição de outrem, mesmo na relação. A relação não anula a separação, a diferença entre ambos. Ao contrário, pode reafirmá-la. Trata-se daquilo que denominamos por alteridade.

Contrapondo-se ao que é encontrado em Heidegger, para Lévinas, não é o mundo a condição de mediação de meu encontro com o outro. O outro pode vir por si mesmo, não unicamente partindo do contexto. Ora, “[o Outro] comporta um significado próprio independente desse significado recebido do mundo. Outrem [como ele chama aqui o Outro] não nos vem apenas a partir do contexto, mas sem mediação, significa por si mesmo.” (Lévinas apud Duque-Estrada, 2006, p. 35) O encontro do outro não parte da compreensão de um sujeito isolado, que na reflexão sobre o significado das coisas do mundo percebe-o como um convivente. O encontro com o outro, parte de sua singularidade. Do fato de que, por ele, ninguém pode responder. Atribuir à significação a atitude pela qual o outro se torna conhecido é, ao mesmo tempo, transmutá-lo no mesmo. O outro é aquele que compreende-se por si mesmo. Nesse encontro com o Outro, afirma Duque-Estrada, o Eu se acha naquilo que, de fato, segundo Lévinas, o unifica enquanto tal; ou seja, no fato de que ninguém pode, em seu lugar, responder... não o ser, mas à singularidade do outro. (cfr. Duque-Estrada, 2006, p. 35)

Muito influenciado inicialmente pelas idéias de Husserl e de Heidegger, percebemos aqui os elementos pelos quais o pensamento levinasiano ganha força própria e se apresenta como original em muitos aspectos. Sua análise fenomenológica se dirige principalmente para o terreno da ética e nessa perspectiva critica seriamente Heidegger por ter colocado ênfase excessiva numa relação pura e abstrata com o ser, negligenciando, por sua vez, a dimensão ética. Em Heidegger, ser de modo autêntico significa ser no cuidado com o ser; sendo o ser sempre meu ser. Nesse sentido, a relação com o outro se instaura, de modo fundamental, como relação com o próprio ser. A disposição ao outro aparece como conseqüência da compreensão do ser próprio. Em confronto com Heidegger, para Lévinas, o homem não é meramente «o pastor do ser», nem alguém que deva descobrir o sentido do ser numa relação inautêntica com os outros. O homem é mais propriamente alguém cujo sentido só pode ser encontrado na sua relação com o outro. Para Lévinas, a ética está no centro do pensamento e, para isso, sua filosofia se afasta daquela tradição filosófica que tentou pensar a unidade do ser. Seu pensamento se centra na alteridade do Outro; sua reflexão se dirige para a defesa da subjetividade baseada na idéia de infinito, entendido como a abertura ao reconhecimento do Outro. Em breves palavras, a autêntica relação entre humanos, outros de outros, somente se erigirá nos ditames da ética.

Por fim, através da análise fenomenológica acompanhamos o processo pelo qual a existência de um outro que eu salta ao campo das percepções do sujeito, exigindo-lhe o espaço necessário para co-existir. Em cada nova redução, novas percepções são adquiridas. Como princípio, a compreensão do outro como alter ego, mesmo que sujeita aos pressupostos da modernidade, aparece como fundamental para uma possível ultrapassagem rumo a uma visão capaz de abordar o outro em sua alteridade. Por conseguinte, percebemos que, partindo duma análise ontológica, somos portadores da constituição de Seres-com, o que nos garante a presença do outro consolidada no fenômeno do Ser-uns-com-os-outros. Porém, reduzida à relação consigo mesmo, com o meu eu, ou com o ser, que é sempre meu, dispensa-se à relação com o outro sua autêntica efetivação. Para tal, são propostos os ditames da ética, lócus de sobrevivência de toda e qualquer análise que se proponha preservar ao outro sua identidade e singularidade. Desse modo, encontramos a figura de Lévinas e sua reflexão que busca a abertura do ser para o mais além do ser, para o outro do ser - que é um ser para outro e não um outro-ser. Seu pensamento leva ao questionamento da relação tradicional entre sujeito e objeto, que desaparece para dar lugar ao aspecto fundamental da noção de presença do outro, irredutível ao eu. Aqui o outro aparece como um que deve ser respeitado, já que sem ele tampouco o eu poderia ser si mesmo, e sem sua presença não existe, portanto, sentido algum.

Referências bibliográficas

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___________ El Tiempo y el Outro. Tradución de José Luis Pardo Tório. Introdución de Félix Duque. Barcelona; Buenos Aires; México: Ediciones Paidós, I.C.E. de la Universidad Autônoma de Barcelona, 2004. (Coleción Pensamiento Contemporáneo)

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Título original: L’être et Le néant – essai d’ontologie phénoménologique. Tradução de Paulo Perdigão. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

Autor notes

1 Graduado em Filosofia Pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz (ISC), Goiânia, Goiás – Brasil e Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia Clássica e Contemporânea ( VIVA VOX) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracajú, Sergipe – Brasil


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