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A insustentável leveza do si: a ipseidade entre a existência e a narrativa
Vítor Hugo dos Reis Costa
Vítor Hugo dos Reis Costa
A insustentável leveza do si: a ipseidade entre a existência e a narrativa
The unbearable lightness of the self: selfness between existence and narrative
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 94-113, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: :

O presente artigo tem como objetivo apresentar a pertinência do recurso da narração tanto na representação quanto da própria constituição da ipseidade. Para realizar esse intento, optou-se por uma estratégia comparativa entre uma posição antinarrativista e uma narrativista no que concerne aos poderes da narração em apreender e compor o domínio das identificações. Em um primeiro momento será realizada uma reconstrução das posições de Jean-Paul Sartre acerca da narração tendo por base a ontologia fenomenológica de O ser e o nada bem como as considerações sobre narrativa e identidade encontradas no romance A náusea e no texto de Diários de uma guerra estranha. O momento seguinte explorará os argumentos narrativistas de Alasdair MacIntyre em Depois da Virtude, de Charles Taylor em As fontes do self e, especialmente, de Paul Ricoeur em Tempo e narrativa e O si-mesmo como outro. Finalmente, no momento mais estritamente comparativo, pretende-se mostrar certas dificuldades da posição antinarrativista, bem como a fecundidade da posição narrativista, no que diz respeito ao distinto modo de administração da demanda por sentido no rechaço antinarrativista da identidade e do acolhimento do desafio de permanente elaboração de sentido da posição narrativista.

Palavras-chave:ExistênciaExistência,IpseidadeIpseidade,NarrativaNarrativa,SentidoSentido.

Abstract: :

This article aims to present the relevance of the narrative resource in the representation and in the constitution of the selfness. To achieve this goal, a comparative strategy was chosen between an anti-narrative and narrative positions with regard to the powers of narration in apprehending and composing the domain of identifications. In a first moment, a reconstruction of Jean-Paul Sartre's positions on narration will be carried out, based on the phenomenological ontology of Being and nothingness, as well as the considerations about narrative and identity found in the novel Nausea and in the text of War diaries: notebooks from a phony war. The next moment will explore narrative arguments in Alasdair MacIntyre's After virtue, Charles Taylor’s The sources of the self, and especially Paul Ricoeur’s in Time and narrative and Self as another. Finally, in the most strictly comparative moment, it is intended to show certain difficulties of the anti-narrative position, as well as the fruitfulness of the narrative position, with regard to the different way of managing the demand for meaning in the anti-narrative rejection of identity and the acceptance of the challenge of permanent elaboration of the meaning of the narrative position.

Keywords: Existence, Selfness, Narrative, Meaning.

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Artigos

A insustentável leveza do si: a ipseidade entre a existência e a narrativa

The unbearable lightness of the self: selfness between existence and narrative

Vítor Hugo dos Reis Costa1
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 94-113, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 10 Setembro 2020

Aprovação: 20 Dezembro 2020

Considerações iniciais

Nas últimas décadas a questão da narração e suas relações com a identidade pessoal ganhou significativo relevo nos debates em ciências sociais, humanidades e na filosofia. O intento do presente artigo é de explorar comparativamente duas teses nas quais a singularidade de uma existência pessoal é pensada ora como narrativamente inapreensível e ora como narrativamente constituída. Em especial, serão reconstrutivamente tematizadas as posições de Jean-Paul Sartre e Paul Ricoeur sobre a questão da ipseidade. Em um primeiro momento, a tese da incompatibilidade entre a ipseidade existencial e qualquer forma de representação objetiva será abordada, em um trajeto exploratório pela ontologia fenomenológica de Sartre apresentada em O ser e o nada. Na medida que o filósofo é também notório autor de obras pertencentes a outros registros discursivos, a teoria de Sartre será permanentemente cotejada com elementos presentes em seus Diários de uma guerra estranha e no romance A náusea. O segundo momento será dedicado a reconstrução da posição narrativista, preparada por Alasdair MacIntyre em Depois da virtude e Charles Taylor em As fontes do self e explorada exaustivamente por Paul Ricoeur em obras como Tempo e narrativa, O si-mesmo como outro bem como em outros textos menos célebres. A reflexão se seguirá por uma comparação entre as semelhanças e diferenças das concepções de ipseidade no antinarrativismo sartriano e no narrativismo ricoeuriano. Finalmente, serão avaliadas as dificuldades da posição antinarrativista e os recursos da posição narrativista diante da permanente demanda humana por sentido.

A pureza da ipseidade existencial

O conceito de ipseidade ocupa um papel mais central do que sua presença quase discreta parece sugerir nas páginas de O ser e o nada. É no circuito da ipseidade que emerge o próprio mundo do sentido, isto é, no qual o Para-si significa o Em-si dando relevo ao domínio indistinto do ser e produzindo diferença e realidade na aura fenomenal com a qual recobre a massa bruta do ser, “O mundo aparece no interior do circuito da ipseidade” (SARTRE, 2008, p. 262), instaurando o reino do propriamente humano. Porém, a tendência intrínseca da ipseidade, no circuito em que se constitui, é de se alienar em identificações e adesões convictas que mascaram sua negatividade essencial. Se o circuito da ipseidade é condição do sentido, também é o horizonte no qual a ipseidade, em seu desejo de ser, mascara sua falta. Vejamos como isto se dá.

Antes de tudo, a ipseidade não é um “eu”. Desde A transcendência do Ego, Sartre concebe o eu como produto e efeito da reflexão, sendo de natureza objetiva. O Ego não é, portanto, o sujeito e simboliza a subjetividade de forma meramente deteriorada. Se a ipseidade do sujeito não é seu Ego, porém, Sartre entende que ipseidade é condição de possibilidade do Ego na medida que “o Ego é Em-si, não Para-si” (SARTRE, 2008, p. 155) enquanto a ipseidade, “fundamento da existência pessoal, é totalmente diferente de um Ego ou uma remissão do Ego a si mesmo” (p. 310) na medida que “a consciência é um ser concreto e sui generis, não uma relação abstrata e injustificável de identidade; é ipseidade e não sede de um Ego opaco e inútil” (p. 310). Sartre afirma que “o Para-si é integralmente ipseidade e não poderia haver ‘eu profundo’” (p. 549). Sob eventuais camadas de compreensões impróprias – isto é, de má-fé – da realidade humana Sartre vê uma verdade ontológica a ser assegurada por uma reflexão bem conduzida, uma reflexão purificada dos envolvimentos com ideais como identidade, essência, substancialidade, etc. A restauração desse caráter de pura ipseidade revela que “sem mundo não há ipseidade nem pessoa; sem a ipseidade, sem a pessoa, não há mundo” (p. 156).

Essa relação do Para-si consigo mesmo envolve uma trajetória pela reflexão porque “a reflexão [...] capta a temporalidade na medida em que esta se revela como o modo de ser único e incomparável de uma ipseidade, ou seja, como historicidade” (p. 217). Para Sartre, “a temporalidade deve ter a estrutura da ipseidade” (p. 192). O filósofo francês observa que é no nível das histórias pessoais e de suas vicissitudes que os romancistas dão testemunho de compreender as reorganizações dos projetos existenciais nos quais os sujeitos se lançam em possibilidades:

Não estudadas pelos filósofos, essas conversões, ao contrário, inspiraram amiúde os literatos. Recorde-se o instante em que o Filoctetes de Gide abandona inclusive seu ódio, seu projeto fundamental, sua razão de ser e seu ser; recorde-se o instante em que Raskolnikov decide se denunciar. Esses instantes extraordinários e maravilhosos, nos quais o projeto anterior desmorona no passado à luz de um projeto novo que surge sobre suas ruínas e que apenas ainda se esboça, instantes em que a humilhação, a angústia, a alegria, a esperança, casam-se intimamente, instantes nos quais abandonamos para captar e captamos para abandonar – tais instantes em geral têm podido fornecer a imagem mais clara e mais comovedora de nossa liberdade. Mas constituem apenas um entre outras de suas manifestações. (SARTRE, 2008, p. 586)

Se a ipseidade não é o Ego, porém, como compreender uma ipseidade pura, sem Ego? Na medida em que a atitude de identificação com um Ego é uma posição identitária de má-fé, qual seria o resultado de um abandono de qualquer identificação? A despersonalização mediante dissolução do Ego ou uma nova relação com as qualidades, estados e ações atribuídas a ele enquanto endereço identitário de uma pessoa? É plausível que o reconhecimento da ipseidade enquanto ancoradouro de significação do mundo não seja apenas absurda no sentido dramático do existencialismo mas, como propõe Charles Larmore, no sentido de ininteligibilidade:

Sartre supõe que é por uma “escolha fundamental” da parte do sujeito que “todas as razões vêm a sê-lo”. Uma escolha dessa espécie é denominada “absurda” porque se situa “além de todas as razões”. Para dizer a verdade, é absurda no sentido mais prosaico de ser ininteligível. Não é possível que qualquer pensamento coerente não se regule, em última instânca, por exigências consideradas possuidoras de uma autoridade independente, mesmo que com base em normas da lógica, exigências às quais é preciso simplesmente se submeter. É a ordem normativa que constitui o sujeito, e não o contrário. (LARMORE, 2008, p. 131)

Próxima da posição de Larmore sobre o flerte sartreano com um ideal que parece presumir uma despersonalização da ipseidade, Hazel Barnes observa que “a condição de vida consciente sem um ego só pode ser patológica”2. (BARNES, 1992, p. 36). Ainda segundo Larmore, na filosofia de Sartre a existência de um Ego é “simplesmente detestável” (LARMORE, 2008 p. 203). Isto se daria pela dificuldade de Sartre em reconhecer que haveria uma forma de inautenticidade que não implica em má-fé:

A autenticidade não é tudo, eis o erro fundamental. Ela não passa de um valor entre outros, e deveria ser evidente agora como é grande o engano de elevar a autenticidade ao nível de um valor supremo. Esse erro provém do fato de não se fazer a distinção entre as duas formas de inautenticidade, pois só há uma que é da ordem da má-fé e que não pode comportar nenhuma vantagem. Convém dizê-lo simplesmente: com frequência é bom ser como um outro. À força de evocar, como Sartre (ele não é o único a fazê-lo, longe disso!), a noção de uma “existência autêntica”, arriscamo-nos a negligenciar a importância do conhecimento de si, mesmo que este seja de natureza a impedir-nos de ser plenamente nós mesmos. (LARMORE, 2008, p. 201-202, grifo meu)

Em Sartre, para que a autenticidade possa se realizar, a ipseidade deva se despojar do ego e superar definitivamente a identificação com as qualidades desse resíduo de uma reflexão imrpópria. É como se Sartre entendesse que para que um indivíduo pudesse ser si-mesmo, precisasse ser ninguém. Vejamos isto em detalhe, ainda que de modo indireto.

O sujeito sartreano é pensado enquanto “unidade de responsabilidade” e “livre unificação” (SARTRE, 2008, p. 687). O já mencionado elemento do absurdo da existência individual aparece quando Sartre afirma, por exemplo, que “todo desejo apresentado como irredutível é de uma contingência absurda e envolve na absurdidade a realidade humana tomada em seu todo” (p. 687). Concebendo a psicanálise existencial como o correlato necessário da ontologia enquanto recurso de acesso ao indivíduo concreto, tal psicanálise tem por meta a busca de “um verdadeiro irredutível, ou seja, um irredutível cuja irredutibilidade nos fosse evidente [...] cuja constatação produzisse em nós um sentimento de satisfação” (p. 686). A orientação dessa busca é a concepção de que a condição humana é “fundamentalmente desejo de ser” (p. 692) e “invenção particular de seus fins” (p. 693). Sartre diferencia sua perspectiva daquela consagrada pela tradição freudiana em termos de princípios, objetivos, ponto de partida, ponto de apoio e método (p. 696).

Na perspectiva de que o ser, o ter e o fazer são categorias cardeais da condição humana, Sartre entende o fazer como redutível ao ser e ao ter, enquanto o ser e o ter o são irredutíveis e imbricadas: deseja-se ter qualidades para ser uma identidade e vice-versa. Assim, a criação de fins individuais é sempre “escolha de ser, seja diretamente, seja por apropriação do mundo, ou, antes, as duas coisas juntas” (p. 731). O mundo que se habita constituído no circuito da ipseidade sempre implica “uma certa maneira como o ser se revela e se faz possuir” (p. 731), implicando no que Sartre pensará em termos de elaboração de visões de mundo pessoais (p. 732). É com o fim de penetrar na tessitura dessa Weltanschauung de um sujeito que Sartre esboça, no final de O ser e o nada, a psicanálise existencial:

A psicanálise existencial irá revelar ao homem o objetivo real de sua busca, que é o ser como fusão sintética do Em-si com o Para-si; irá familiarizá-lo com sua paixão. Na verdade, existem muitos homens que praticaram em si mesmos esta psicanálise e não esperaram para conhecer seus princípios, de forma a servir-se dela como meio de libertação e salvamento. Muitos homens sabem, com efeito, que o objetivo de sua busca é o ser; e na medida em que possuem este conhecimento, abstêm-se se se apropriar das coisas por si mesmas e tentam realizar a apropriação simbólica do ser-Em-si das mesmas. Mas, na medida em que tal tentativa ainda compartilha do espírito de seriedade e em que ainda podem supor que sua missão de fazer existir o Em-si-Para-si acha-se inscrita nas coisas, esses homens estão condenados ao desespero, pois descobrem ao mesmo tempo que todas as atividades humanas são equivalentes – já que todas tendem a sacrificar o homem para fazer surgir a causa de si – e que todas estão fadadas por princípio ao fracasso. Assim, dá no mesmo embriagar-se solitariamente ou conduzir os povos. Se uma dessas atividades leva vantagem sobre a outra, não o será devido ao seu objetivo real, mas por causa do grau de consciência que possui de seu objetivo ideal; e, nesse caso, acontecerá que o quietismo do bêbado solitário prevalecerá sobre a vã agitação do líder dos povos. (SARTRE, 2008, p. 764)

Conforme visto, Sartre dá crédito aos romancistas pela percepção das histórias nas quais os sujeitos organizam a temporalidade e alienam a pureza da ipseidade na má-fé da convicção de que este ou aquele projeto existencial de fato realiza uma identitade. Também foi visto, porém, que o horizonte de purificação completa da ipseidade pode ser compreendido como resultando em ininteligibilidade e, no limite, na assunção de um ideal impraticável de autenticidade. Penso que, desde O ser e o nada, seja possível encontrar pistas para um desenvolvimento narrativista da psicanálise existencial que opere não apenas com o desejo de ser mas também com a ideia de “história de cada um” (p. 505). Porém, a primeira dificuldade que se coloca nessa direção é o enfrentamento das própria posição de Sartre sobre os valores e direitos da narração. Lê-se em A náusea:

Para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse.

Mas é preciso escolher: viver ou narrar. [...] Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. [...] Mas quando se narra a vida, tudo muda. [...] Os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início. [...] E na verdade foi pelo fim que começamos. [...] O sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras. E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede. [...] E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes [...] como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. (SARTRE, 2005, p. 62-64, grifos meus)

Antoine Roquentin, alter-ego de Sartre no romance, é um historiador que perde a confiança no poder da narração. O romance, construído na forma de diário, explora o processo de erosão da ordem do sentido em forma de narrativa. Refaço aqui as perguntas que Noeli Rossatto deduz da reflexão de Sartre: “até que ponto o singular poderá ser compreendido fora das narrativas? E se a vida não pode ser narrada tal como sucedeu, decorre daí necessariamente que todo relato sobre ela seja falso, falseável ou pura ficção literária? Ou ainda: será que as ações humanas têm permanência no tempo se prescindirem das narrativas?” (ROSSATTO, 2013, p. 153). Penso que seja possível esboçar respostas para tais questões seguindo certas pistas e explorando certas brechas de O ser e o nada.

Para Sartre a psicanálise existencial deve investigar “tendências primordiais e os complexos de tendências constituídos por nossa história individual” (SARTRE, 2008, p. 95). A história de uma vida pode ser concebida como o domínio no qual a pura ipseidade faz o entrelaçamento temporal de um conjunto de elementos com os quais, de má-fé, se identificará. Sartre afirma que “não é concebível que o Para-si irrefletido que se historiza (historialise) em seu surgimento seja ele mesmo essas qualidades, estados e atos” (p. 217). Mesmo que a ipseidade se extravie em uma compreensão de má-fé na qual emerge a possibilidade de identificação com uma história, tal domínio não é sem importância para a psicanálise existencial na medida que “são as circunstâncias exteriores e, sem meias palavras, a história do sujeito que decidirão se tal ou qual tendência irá coagular sobre tal ou qual objeto” (p. 565). A história de um indivíduo é um ambiente de exploração da subjetividade:

É necessário consultar a história de cada um para ter-se uma ideia singular acerca de cada Para-si singular. Nossos projetos particulares, concernentes à realização no mundo de um fim em particular, integram-se no projeto global que somos. Mas, precisamente, porque somos integralmente escolha e ato, esses projetos parciais não são determinados pelo projeto global: devem ser, eles próprios, escolhas, e a cada um deles permite-se certa margem de contingência, imprevisibilidade e absurdo. (SARTRE, 2008, p. 592, grifos meus)

No final de O ser e o nada Sartre fará uma interessante analogia ao afirmar que “a metafísica está para a ontologia assim como a história está para a sociologia” (SARTRE, 2008, p. 755). Ou seja, história e a metafísica produzem enredo para os elementos oferecidos pela sociologia e pela ontologia. A confiança nos relatos sobre uma vida é o território no qual se observa a articulação sistemática das escolhas identitárias:

Dizer que “tive coqueluche aos cinco anos” pressupõe mil projetos, em particular a adoção do calendário como sistema de referência de minha existência individual – logo, uma tomada de posição originária frente a ordem social – e a crença resoluta nos relatos feitos por terceiros a respeito de minha infância, crença essa acompanhada, certamente, por respeito ou afeto a meus pais, respeito esse que confere sentido à crença, etc. (SARTRE, 2008, p. 612, grifo meu)

Contudo, é possível afirmar com Rossatto que “no fundo, o problema proposto por Sartre pode assim ser resumido: o singular é mais que o narrado e, em contrapartida, todas as palavras são inadequadas para expressar a complexidade e a irredutibilidade da existência” (ROSSATTO, 2013, p. 154). A plausibilidade da história individual enquanto ambiente de investigação narrativa da psicanálise existencial se deixa observar no próprio texto de Sartre sobre si mesmo, conforme pode ser observado em seus diários escritos durante seu período no front na segunda guerra mundial:

Um momento me aparecia, não como uma unidade vaga ajuntando-se a outras unidades da mesma espécie, mas como um momento que se erguia sobre um fundo de vida. Aquela vida era uma composição em rosácea cujo fim se juntava ao começo: a idade madura e a velhice davam sentido à infância e à adolescência. De certa forma, eu via cada momento presente do ponto de vista de uma vida feita, para ser exato, devia dizer: do ponto de vista de um biógrafo, e me considerava obrigado a dar conta desse momento àquela biografia, sentia que não se podia decifrar o sentido completo sem se colocar no futuro, e esboçava sempre para meus olhos um futuro vago que dava significado ao meu presente. (SARTRE, 2005, p. 291)

O trecho mostra que o próprio Sartre viveu imbuído de um sentimento de enredo3. em uma história. Sartre desejava viver uma bela biografia, uma história cuja beleza se definenos marcos da possibilidade da narração dos acontecimentos. Chamando de “ilusão biográfica” esse desejo de viver uma bela história e o sentimento de enredo desde o qual já se sentia vivendo tal história, Sartre admite que outros elementos de sua identidade eram compreendidos desde seu significado nesse panorama:

Se hoje pergunto a mim mesmo qual é o critério que permitia reconhecer uma bela vida, vejo que a bela vida era, para mim, simplesmente aquela que enchia de lágrimas os olhos do leitor, quando contada por um biógrafo sensível. Eu estava repleto do que chamarei de ilusão biográfica, que consiste em acreditar que uma vida vivida pode assemelhar-se a uma vida contada. [...] eu mereceria muito mais aquela vida se vivesse moralmente; e a biografia seria mais rica, mais comovente, se esse homem que conhecera tudo e tudo amara apaixonadamente, que deixara obras tão belas, tivesse sido ainda por cima um homem "de bem", como dizia em 1930, com certo pudor. (SARTRE, 2005, p. 293, grifo meu)

Sartre, portanto, “seria moral para realizar a vida mais bela e não pela moral em si” (p. 294). Décadas depois o autor reelabora seu passado, considerando seu sentimento de enredo uma neurose:

Naquele tempo, passei por uma porção de mudanças e constatei, sobretudo, que tinha vivido uma verdadeira neurose…. Que, no fundo – como, aliás, Flaubert também pensava em sua época –, eu achava que não havia nada mais bonito nem melhor do que o ato de escrever, que escrever significava criar obras que ficariam para sempre e que a vida de um escritor só podia ser compreendida através de seu trabalho. A partir daí, de 1953, percebi que isto é um ponto de vista completamente burguês, que existem muitas outras coisas além da literatura; e que tinha, portanto, que ser colocada num nível bem diferente do que eu pensava. E assim me curei da neurose, de repente, lá por volta de 1953-1954. Foi então que me deu vontade de entender… e escrevi As Palavras... (SARTRE apud COHEN-SOLAL, 1986, p. 464, grifo meu)

Por razões de espaço, não vou explorar em detalhe a reelaboração biográfica que aparece em As palavras mas seguir o caminho por ideias sobre a narração identitária que mostram como tal reelaboração é possível. Considerando a discreta pertinência da história pessoal em O ser e o nada, a descrença na verdade narrativa em A náusea, a prática da narração de si nos diários e relatos oferecidos por Sartre e a falta de uma ampla tematização da prática narrativa por parte do autor, passo então a abordagem de argumentos que consideram positivamente a possibilidade da apreensão e apresentação narrativa de uma identidade pessoal.

A unidade da narrativa identitária

Se os primeiros seminários de Lacan (2008) já colocavam a subjetividade moderna como sendo caracterizada pelo mito individual de um neurótico no início dos anos 50 do século XX, o interesse nas histórias de vida ganhou grande proeminência nos debates de ciências sociais e humanidades trinta anos depois. A emergência das narrativas de vida foi percebida com extrema preocupação por Pierre Bourdieu, tal como se pode constatar em seu texto intitulado A ilusão biográfica, originalmente publicado em 1986. Para o sociólogo, a própria noção de história de vida entra como que por “contrabando” no universo científico” (BOURDIEU, 2006, p. 183). O pressuposto principal da exortação da biografia é o de que “a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como projeto” (p. 184). Para Bourdieu, Sartre tem parte da responsabilidade por essa emergência da biografia na medida que “a noção sartriana de ‘projeto original’ somente coloca de modo explícito o que está implícito nos ‘já’, ‘desde então’, ‘desde pequeno’, etc. Das biografias comuns ou nos ‘sempre’ (‘sempre gostei de música’) das ‘histórias de vida’” (p. 184). Se, conforme visto, a posição de Sartre sobre a pertinência da narração da singularidade de uma vida envolve um reconhecimento do caráter ilusório da biografia, vejamos algumas posições que não se furtam em acomodar a narratividade na exploração da existência singular.

Alasdair MacIntyre é um dos defensores da ideia de identidade narrativa. A pertinência de sua convocação na esteira da presente argumentação se impõe na medida que, conforme Rossatto, “a perspectiva adotada por MacIntyre [...] será marcada por uma oposição explícita à fenomenologia sartriana. Em Depois da virtude ele toma como ponto de partida analítico o personagem Antoine de Roquentin, de A náusea, que, a seu ver, ilustra de modo perfeito o conflito aberto – e no caso sartriano – insolúvel entre a esfera da vida e a da narrativa” (ROSSATTO, 2010, p. 122). Nos termos do próprio MacIntyre:

A ideia de uma história é tão fundamental quanto a ideia de uma ação. Uma precisa da outra. Mas não posso dizer isso sem reparar que é precisamente isso que Sartre nega – como, de fato, toda sua teoria do eu, que capta tão bem o espírito da modernidade, requer que ele faça. Em A náusea, Sartre faz com que Antoine Roquentin argumente não só o que Mink argumenta, que a narrativa é bem diferente da vida, mas que apresentar a vida humana em forma de narrativa é sempre deturpá-la. Não existem nem podem existir histórias verdadeiras. A vida humana consiste em ações que não levam a lugar nenhum, que não têm ordem; o contador de histórias impõe aos acontecimentos humanos uma ordem retrospectiva que não tinham quando foram vividos. [...] Sartre/Roquentin acha que os atos humanos são, como tais, ocorrências ininteligíveis: é a descoberta das implicações metafísicas disso que Roquentin é levado no decorrer do romance, e a consequência prática sobre ele é encerrar seu próprio projeto de escrever uma biografia histórica. Esse projeto não faz mais sentido. Ou ele escreve a verdade ou ele escreve uma história inteligível, mas uma possibilidade exclui a outra. Será que Sartre/Roquentin está certo? [...] Como seriam os atos humanos destituídos de qualquer narrativa deturpadora? Sartre nunca responde a essa pergunta; é impressionante que, para provar que não existem narrativas verdadeiras, ele próprio escreva uma narrativa, embora fictícia. (MACINTYRE, 2001, p. 359-360)

MacIntyre chama atenção para a falácia performativa de Sartre em não oferecer alternativas a narração e, ainda por cima, criticar a narração em uma narrativa4.. MacIntyre ainda afirma que “o eu assim destacado é, naturalmente, um eu bem à vontade na perspectiva de Sartre [...], um eu que não pode ter história” (p. 371). MacIntyre inverte o olhar existencialista: se a narrativa é para Sartre um consolo de má-fé, MacIntyre alega que a ruptura com a própria história também pode ser um subterfúgio de evasão do mal-estar. Como resume Rossatto:

Segundo MacIntyre, o primeiro Sartre, se assim se pode falar [...], compreende o singular, o individual, a vida como o desenrolar de episódios ocasionais, atomizados, desconexos e, em suma, ininteligíveis. Deste modo, a verdadeira existência singular não se deixa apreender por nenhum sentido dado, não tem tema, não tem sequência alguma, não tem inteligibilidade prévia. É esse o sentido preciso atribuído por Sartre à expressão ‘a vida é absurda’, ou seja: ela se compõe de atos homogêneos, sem sentido inerente e desvinculados entre si. (ROSSATTO, 2013, p. 150)

Segundo MacIntyre, “pensar na vida humana como uma unidade narrativa é pensar de um jeito estranho às modalidades individualistas e burocráticas predominantes da era moderna” (p. 380). A importância da dimensão narrativa não seria, para o autor, meramente pessoal. É o senso de narratividade que entrelaça o indivíduo com instituições e empreendimentos humanos. Para MacIntyre,

uma vida vivida de momento em momento, de episódio em episódio, sem conexões com encadeamentos de intenções de grande escala, careceria de fundamento para muitas instituições característicamente humanas: casamento, guerra, lembrança da vida dos mortos, a sobrevivência de famílias, cidades e serviços por gerações, etc. Mas a imprevisibilidade persistente na vida humana também torna todos os nossos planos e projetos permanentemente vulneráveis e frágeis. (MACINTYRE, 2001, p 180)

MacIntyre afirma que “não há como fundar minha identidade – ou a falta dela – sobre a continuidade ou descontinuidade psicológica do eu. O eu habita um personagem cuja unidade é dada como a unidade de um personagem” (p. 364) e que “a identidade pessoal é exatamente aquela identidade pressuposta pela unidade do personagem que a unidade na narrativa requer. Sem tal unidade, não haveria protagonistas sobre os quais se pudesse contar histórias” (p. 366). Na perspectiva de MacIntyre, a narração não é privilégio dos artistas mas uma prática comum e amplamente difundida entre os indivíduos e grupos:

Narrativa não é obra de poetas, dramaturgos ou romancistas que ponderam sobre fatos que não tinham ordem narrativa antes de lhes ser imposta pelo cantor ou pelo escritor; a forma narrativa não é disfarce nem decoração. [...] É porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa própria vida nos termos das narrativas que vivenciamos, que a forma de narrativa é adequada para se entender os atos de outras pessoas. As histórias são vividas antes de serem contadas – a não ser em caso de ficção. (MACINTYRE, 2001, p. 355-356)

Outro expediente de pertinência da narrativa para MacIntyre diz respeito ao seu poder de organizar a relação do indivíduo com a temporalidade, seja com a dimensão do passado o com a do futuro almejado pela expectativa e pela ação pois. Segundo o autor, “não existe presente que não seja instruído pela imagem de algum futuro” e “assim como os personagens de uma narrativa fictícia, não sabemos o que acontecerá a seguir, porém nossa vida tem uma forma que se projeta na direção do nosso futuro” (p. 362)5..

Na mesma linha de MacIntyre, Charles Taylor compreende que na existência humana se pode constatar um “espaço de indagações que só um narrativa coerente pode responder. Para ter um sentido de quem somos, temos de dispor de uma noção de como viemos a ser e de para onde estamos indo” (TAYLOR, 2005, p. 70). É a MacIntyre que Taylor faz referência como inspiração de reflexão no tema:

A narrativa precisa desempenhar um papel maior que a mera estruturação de meu presente. O que sou tem de ser entendido como aquilo em que me tornei. Costuma ser assim mesmo para questões corriqueiras como saber o lugar onde estou. [...] Mas é inescapavelmente assim que acontece no tocante à minha posição no espaço moral. [...] Encontrar sentido em minha ação presente, quando não estamos diante de questões triviais como onde estarei dentro de cinco minutos, mas com uma interrogação acerca de minha posição com respeito ao bem, requer uma compreensão narrativa da minha vida, um sentido sobre o que me tornei que só pode ser conferido pela história. E, ao projetar minha vida para a frente e endossar o rumo atual ou dar-lhe um novo, projeto uma história futura, não só um estado de futuro momentâneo, mas uma direção a ser seguida por toda minha vida vindoura. Esse sentido de que minha vida está dirigida para aquilo que ainda não sou é o que Alasdair MacIntyre capta em sua noção, citada acima, de que a vida é vista como uma ‘busca’. (TAYLOR, 2005, p. 71-72)

Na ótica de Taylor, “queremos que nossa vida tenha sentido, peso, substância, que ela se encaminhe para alguma plenitude. [...] Isso se refere à toda nossa vida. Se necessário, desejamos que o futuro ‘redima’ o passado, torne-o parte de uma história de vida dotada de sentido ou de propósito, incorpore-o a uma unidade significativa” (p. 75). MacIntyre também não pensa o entrelaçamento entre narratividade e inteligibilidade e considera que ambas também estão imbricadas com a dimensão da responsabilidade:

É importante reparar que não estou argumentando que os conceitos de narrativa, de inteligibilidade, ou de responsabilidade sejam mais fundamentais do que os da identidade pessoal. Os conceitos de narrativa, inteligibilidade e responsabilidade pressupõem a possibilidade de aplicação do conceito de identidade pessoal, assim como este pressupõe a possibilidade de aplicação deles e também como, de fato, cada um dos três pressupõe a aplicação dos outros dois. A relação é de pressuposição mútua. Segue-se que, naturalmente, todas as tentativas de elucidar a noção de identidade pessoal isoladas das noções de narrativa, inteligibilidade e responsabilidade estão fadadas ao fracasso.” (MACINTYRE, 2001, p. 367)

Vale dizer que a ideia de relação íntima entre a narração, a existência e a identidade pessoal não é privilégio de filósofos. Em O homem sem qualidades, de Robert Musil, encontramos o exemplo de Ulrich, o protagonista, descobrindo no final da primeira parte do romance que “a lei desta vida, pela qual ansiamos, sobrecarregados mas sonhando com a simplicidade, não é senão a vida da ordem narrativa!” (MUSIL, 1989, p. 462). No campo da filosofia, talvez nenhum filósofo tenha explorado mais as estruturas da narração e de suas relações com a identidade pessoal do que Paul Ricoeur. Passo agora ao exame reconstrutivo de suas ideias.

A riqueza da ipseidade narrativa

Ricoeur vê raízes na questão da narrativa identitária na filosofia antiga, no adágio socrático de que “uma vida não examinada não é digna de ser vivida” (RICOEUR, 2010, p. 197) e no Aristóteles da Poética que propõe um conceito de mythos que Ricoeur julga por bem interpretar como enredo “no sentido de história bem construída” (p. 198). Enfatizando o aspecto ético do exame narrativo de uma vida, afirma Ricoeur:

A ética, tal como Aristóteles a concebia e tal como se pode ainda concebê-la [...] fala abstratamente da relação entre as virtudes e a busca da felicidade. É a função da poesia, sob sua forma narrativa e dramática, propor à imaginação e à meditação situações hipotéticas que constituem outras tantas experiências de pensamento mediante as quais aprendemos a unir os aspectos éticos da conduta humana à felicidade e à infelicidade, à sorte e à falta de sorte. Aprendemos por meio da poesia como as mudanças de sorte resultam desta ou daquela conduta, tal como é construída pelo enredo na narrativa. É graças à familiaridade que contraímos com os modos de enredo recebidos de nossa cultura que aprendemos a ligar as virtudes, ou melhor, as excelências, à felicidade e à infelicidade. Essas “lições” da poesia constituem os universais de que falava Aristóteles; mas são universais de um grau inferior aos da lógica e do pensamento teórico. Devemos, entretanto, falar de inteligência, mas no sentido que Aristóteles conferia à prhonesis (que os latinos traduziram por prudentia). Nesse sentido, falarei de bom grado de inteligência fronética para opô-la à inteligência teórica. A narrativa pertence à primeira e não à segunda. (RICOEUR, 2010, p. 200)

A prática de exame narrativo do agir e do sofrer, para Ricoeur, aponta para uma dimensão de pertencimento a uma longa tradição dessa prática na medida que há uma “vida da atividade narrativa que se inscreve no caráter de tradicionalidade característico do esquematismo narrativo” (p. 201). Para Ricoeur, “o leitor pertence ao mesmo tempo em imaginação ao horizonte de experiência da obra e ao de sua ação real” (p. 204) por estar enredado na “rede daquilo que se poderia chamar de semântica da ação” (p. 206), conceito definido por Ricoeur nos seguintes termos:

Nossa familiaridade com a rede conceitual do agir humano é da mesma ordem da familiaridade que temos com os enredos das histórias que nos são conhecidas; é a mesma inteligência fronética que preside a compreensão da ação (e da paixão) e a da narrativa. [...] Se, efetivamente, a ação pode ser narrada, é que já está articulada nos signos, regras, normas; ela é simbólicamente mediatizada. Esse caráter da ação foi vivamente ressaltado pela antropologia cultural. (RICOEUR, 2010, p. 206)

Desse modo, vê-se que Ricoeur admite como possível falar de uma “qualidade pré-narrativa da existência humana”, de que se pode falar de uma “vida como uma história em estado nascente” ou de uma “vida como uma atividade e uma paixão em busca de narrativa” desde onde “falamos de maneira familiar de histórias que nos acontecem, ou de histórias em que estamos presos, ou pura e simplesmente da história de uma vida” (p. 207). Depois de nos lembrar que no caso da vida propriamente dita somos apenas narradores e não autores da própria história e que essa seria a diferença decisiva entre a vida e a ficção, Ricoeur minimiza essa diferença e, em seu característico tom de exortação e apelo, diz:

Essa diferença é parcialmente eliminada pelo poder que temos de aplicar a nós mesmos os enredos que recebemos de nossa cultura e de ensaiar assim os diferentes papéis assumidos pelos personagens favoritos das histórias que são as mais queridas. É assim por meio das variações imaginativas sobre o nosso próprio ego que tentamos extrair de nós mesmos uma compreensão narrativa, a única que escapa à alternativa aparente entre transformação pura e identidade absoluta. Entre as duas resta a identidade narrativa. (RICOEUR, 2010, p. 211)

É no contexto da demarcação entre o que permanece e o que muda em uma vida que Ricoeur lança mão do conceito de ipseidade. Formando um par simultaneamente antagônico e complementar com o conceito de mesmidade, a ipseidade ricoeuriana evoca tanto a dimensão da inovação em relação aos estratos sedimentados de uma identidade quanto a manutenção perseverante das promessas e projetos que demarcam um espaço de fidelidade a si mesmo e ao outro. Segundo François Dosse, “a mesmidade evoca o caráter do sujeito naquilo que ele tem de imutável, à maneira de suas impressões digitais, enquanto a ipseidade remete à temporalidade, à promessa, à vontade de uma identidade mantida a despeito da mudança: é a identidade sujeita à prova do tempo e do mal” (DOSSE, 2009, p. 342).

Se a questão da identidade narrativa emerge como problema no final de Tempo e narrativa, no interior de O si-mesmo como outro o conceito operará como solução e núcleo de uma reflexão nomeada, pelo autor, de “hermenêutica do si”. A proposta de uma hermenêutica do si pretende se interir no debate histórico sobre identidade pessoal que no contexto da história do tratamento do problema se coloca “a igual distância da apologia do Cogito e de sua destituição” (RICOEUR, 2014, p. XVI) por “incluir a mudança, a mutabilidade na coesão de uma vida”. (RICOEUR, 2010c, p. 419). Confiante na inspiração do adágio socrático, Ricoeur entende que “o si do conhecimento de si não é o eu egoísta e narcísico do qual as hermenêuticas da suspeita denunciaram tanto a hipocrisia como a ingenuidade, tanto o caráter de superestrutura ideológica como o arcaísmo infantil neurótico” pois a ipseidade é “de um si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo” (p. 419).

Um dos traços importantes da posição de Ricoeur sobre a relação entre narrativa e identidade pessoal é a de que a narrativa identitária não tem caráter definitivo nem poderia ter pretensão de ter tal caráter. Pelo contrário, como afirma o filósofo francês, uma identidade narrativa não tem estabilidade definitiva na medida em que se faz, desfaz e refaz sendo desse modo tanto “o título de um problema, tanto quanto o uma solução” (p. 422). Não se pode, portanto, esperar que a narrativa identitária opere na função de figuras como as da substância e da essência no que tange ao asseguramento de uma identidade pois, “a identidade narrativa não esgota a questão da ipseidade do sujeito” (p. 422). A ipseidade, portanto, inesgotável pela narração identitária, envolve a dimensão da expectativa e do cumprimento de promessas. Esse aspecto fica mais claro nas páginas de O si-mesmo como outro:

Falando de nós mesmos, dispomos, de fato, de dois modelos de permanência no tempo, que resumo com dois termos descritivos e emblemáticos: caráter e palavra cumprida. Em ambos, tendemos a reconhecer uma permanência que dizemos ser de nós mesmos. Minha hipótese é que a polaridade desses dois modelos de permanência da pessoa resulta do fato de a permanência do caráter expressar a sobreposição quase completa da problemática do idem e da do ipse, ao passo que a fidelidade a si mesmo no cumprimento da palavra dada marca o afastamento extremo entre a permanência do si e do mesmo, comprovando plenamente, portanto, a irredutibilidade recíproca das duas problemáticas. (RICOEUR, 2014, p. 118)

Como na filosofia de Sartre, que identifica a tendência de uma ipseidade se alienar na identificação com o próprio Ego, em Ricoeur se vê a ameaça do eclipsamento da ipseidade pela figura de fixidez representada pela mesmidade. Diferentemente de Sartre, para quem a perseverança identitária é um compromisso com uma compreensão equivocada da existência, Ricoeur entende a mesmidade como uma indicação do caráter com o qual a promessa estabelece sua dinâmica constitutiva. O caráter, para Ricoeur, é o “conjunto das marcas distintivas que possibilitam reidentificar um indivíduo humano como sendo o mesmo” (p. 118). Diz o filósofo:

O caráter, diria eu hoje, designa o conjunto das disposições duráveis pelas quais se reconhece uma pessoa. É dessa maneira que o caráter pode constituir o ponto-limite em que a problemática do ipse se torna indiscernível da problemática do idem e inclina a não as distinguir uma da outra. Por conseguinte, é importante interrogar-se sobre a dimensão temporal da disposição: é ela que remeterá mais longe o caráter no caminho da narrativização da identidade pessoal. (RICOEUR, 2014, p. 121)

Para Ricoeur, “o hábito confere história ao caráter; mas é uma história na qual a sedimentação tende a sobrepor-se à inovação que a precedeu e, em última instância, a aboli-la” (p. 121). Segundo o hermeneuta, “a dialética entre inovação e sedimentação, subjacente ao processo de identificação, está aí para lembrar que o caráter tem uma história, contraída, dirão, no duplo sentido da palavra ‘contração’: abreviação e afetação” (p. 123). Não faz sentido, portanto, pensar em uma palavra dada que nunca se cumpre, sem o lastro de um caráter no qual se atesta o si que promete pois “a palavra cumprida expressa uma manutenção de si que não se deixa inscrever, como o caráter, na dimensão do algo em geral, mas unicamente na do quem?” (p. 124). Se em Sartre tudo se passa como se o desafio posto seja o de se des-solidarizar com o próprio Ego e permanentemente romper, por meio da novidade da iniciativa, com as identificações sedimentadas, Ricoeur entende que “o cumprimento da promessa [...] parece realmente constituir um desafio ao tempo, uma negação de mudança: ainda que meu desejo mude, ainda que eu mude de opinião ou inclinação, ‘manterei’” (p. 125). Sobre essa tensão constitutiva da hermenêutica do si, afirma François Dosse:

A hermenêutica do si está na encruzilhada de uma dupla dialética entre o idem e o ipse, entre a ipseidade e a alteridade no interior. O percurso do si aparece então como o de uma tomada de responsabilidade, de um engajamento que assume a travessia da experiência como modo de chegada a si. O si é. A esse respeito, a dimesão refletida de todos os pronomes pessoais. Não é nem o eu, nem o tu nem o ele, mas ao mesmo tempo engloba todos como forma secundária. A outra vantagem da noção de si é a impossibilidade de acesso imediato a um conhecimento que só pode ser indireto. Permite evitar a alternativa prejudicial entre um ego todo-poderoso, divnizado, e um sujeito humilhado, desfeito. (DOSSE, 2009, p. 342)

Alguns anos depois da publicação de O si-mesmo como outro, Ricoeur afirmou que “a questão quem requer uma resposta equívoca, uma resposta cindida, da qual os dois extremos seriam ilustrados pelo caráter que marca a permanência do idem e pela promessa que ilustra a manutenção do ipse” (RICOEUR, 2016, p. 15). Para Dosse, “com seu conceito do ‘si’, do sujeito que resulta da ação do eu sobre o outro e vice-versa, Paul Ricoeur nos oferece um meio de pensar conjuntamente a tensão, o dilema de todo biógrafo entre a reprodução do caráter do sujeito biografado e as mudanças que ele experimenta ao longo da existência” (DOSSE, 2009, p. 34). Nota-se, na abordagem de Ricoeur, o já mencionado direcionamento da questão para a afirmação da similaridade entre uma identidade pessoal e a identidade narrativa do personagem de uma história. E se “narrar é dizer quem fez o quê, por quê e como” (RICOEUR, 2014, p. 153), uma narrativa identitária apresenta, de forma indelével, a pessoa como personagem:

A pessoa, entendida como personagem de narrativa, não é uma entidade distinta de suas experiências. Ao contrário: ela compartilha o regime da identidade dinâmica própria à história narrada. A narrativa constrói a identidade da personagem, que pode ser chamada de sua identidade narrativa, construindo a identidade da história narrada. É a identidade da história que faz a identidade da personagem. (RICOEUR, 2014, p. 155)

O trajeto pelos argumentos narrativistas de MacIntyre e Taylor até os de Ricoeur oferece, em sua forma mais bem acabada, um conceito de narrativa equívoco, provisório e revisável. Em que medida essa identidade narrativa, em sua insustentável leveza, realmente oferece uma alternativa positiva ao tipo de expediente identitário que é o detestável Ego sartreano? Se a narrativa é assim aparentemente tão frágil, que valor ou função positiva ela pode ter para além daquela de uma “ficção útil”? Em que medida sustentar uma narrativa equívoca, provisória e revisável pode ser preferível ao esforço de des-identificação como aquela que ocorreria no atendimento ao apelo de Sartre? Aliás, serão as perspectivas de Sartre e Ricoeur tão distintas assim, já que nem o Ego nem a narrativa esgotam a questão da ipseidade? O terceiro e último momento do presente texto visará, por meio da comparação, oferecer elementos e esboçar respostas para tais perguntas.

A insustentável leveza da narrativa

Se a discordância entre Sartre e MacIntyre é total no entendimento da questão da relação entre a existência e a tentativa narrativa de apreendê-la e apresentá-la, Ricoeur, por sua vez, parece representar uma posição de mediania na articulação das austeras exigẽncias de ambos os pensadores. Sobre MacIntyre, a opinião de Ricoeur é mais frequente do que sobre Sartre. Para Ricoeur, MacIntyre “tem principalmente em vista as histórias contadas ao vivo da ação cotidiana e não atribui importância decisiva, pelo menos para a investigação ética na qual está empenhado, à distância entre as ficções literárias e as histórias que ele diz em ato” (RICOEUR, 2014, p. 168). MacIntyre, por exemplo, não tira vantagem, como Ricoeur, “do fato de que é na ficção literária que a união entre a ação e seu agente é mais bem apreendida e de que a literatura se revela como um amplo laboratório para experiências intelectuais” (p. 169) nem é capaz de reconhecer a dificuldade acerca de “como as experiências intelectuais provocadas pela ficção, com todas as implicações éticas [...], contribuem para o autoexame na vida real” (p. 169). Também passa despercebido para MacIntyre o fato de que “nada na vida real tem valor e começo narrativo” (p. 171) pois “sobre o percurso conhecido de minha vida, posso traçar vários itinerários, tramar vários enredos, em suma, contar várias histórias, uma vez que a cada uma falta o critério de conclusão” (p. 171). Por não reconhecer que a existência e a ficção se separam por um abismo fundamental, MacIntyre não teria percebido que “enquanto cada romance expõe um mundo textual que lhe é próprio, sem que na maioria das vezes seja possível relacionar os enredos [...] de várias obras [...] as histórias vividas por uns estão intricadas nas histórias dos outros” (p. 171). A narrativa identitária é, vale repetir e apresentar as palavras do próprio Ricoeur, revisável e provisória:

Quanto à noção de unidade narrativa da vida, também é preciso ver nela um misto instável entre fabulação e vivência. É precisamente em razão do caráter evasivo da vida real que temos necessidade do socorro da ficção para organizá-la retrospectivamente após os acontecimentos, mesmo que seja preciso considerar revisável e provisória toda e qualquer figura de enredo extraída da ficção ou da história. Assim, é com a ajuda dos começos narrativos com os quais a leitura nos familiarizou que, forçando de algum modo a mão, estabilizamos os começos reais constituídos pelas iniciativas – no sentido forte do termo – que tomamos. E também temos a experiência, que se pode dizer inexata, do que quer dizer terminar um curso de ação, um segmento de vida. (RICOEUR, 2014, p. 173, grifos meus)

Afirmando que Ricoeur não subscreve a problemática ideia de MacIntyre de que a vida pode ter uma unidade narrativa, prossegue Rossatto observa que somos ‘no máximo co-autores’ [...] pois, em relação ao nascimento e à morte, sempre dependemos do relato de terceiros. (ROSSATTO, 2010, p. 128).

As menções de Ricoeur a Sartre raras em Tempo e narrativa e O si-mesmo como outro. Conforme já mencionado, a possibilidade de articulação da posição de Sartre e Ricoeur se insinua desde o fato de que a questão da ipseidade não pode ser esgotada pela narrativa ou pelo Ego. Se a narrativa é, por sua própria estrutura, um discurso sobre o passado, por outro lado, o discurso sobre o passado não ocorre sem eferência ao horizonte do futuro representado para Ricoeur principalmente na ideia de promessa e para Sartre na ideia de projeto existencial. Aproximando a noção sartreana de projeto daquilo que Reinhart Koselleck chamara de “horizonte de expectativas”, afirma Ricoeur:

Na compreensão de si, a mímeis práxeos parece só conseguir abranger a fase já passada da vida e precisar articular-se com previsões e projetos, segundo um esquema semelhante ao proposto por R. Koselleck em Vergangene Zukunft .Futuro Passado], em que a dialética entre “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” põe em relação a seleção dos acontecimentos narrados e as previsões pertinentes àquilo que Sartre chamava de projeto existencial de cada um. (RICOEUR, 2014, p. 172)

A apropriação de Ricoeur da noção sartreana de projeto é observata também por Rossatto (2010, p. 129), que enfatiza o fato de que a seleção dos acontecimentos narrados precisa presumir a projeção em possibilidades de um sujeito em um horizonte de possíveis e expectativas. Assumindo com Ricoeur que as promessas e os projetos presumem um horizonte de expectativa, assim se passa porque a noção de Koselleck é ampla o suficiente para açambarcar “a esperança e o temor, o desejar e o querer, a preocupação, o cálculo racional, a curiosidade, em suma, todas as manifestações privadas ou comuns que visam o futuro” (RICOEUR, 2010c, p. 354-355).

Acomodar a noção de existência lançada projetivamente em horizontes de expectativas é flertar com a resposta positiva acerca da similaridade entre Sartre e Ricoeur sobre uma espécie de virtualidade que seria comum ao Ego e a narrativa identitária. Porém, cabe explorar as comparações que enfatizam sobretudo as diferenças entre a perspectiva do existencialista e a do hermeneuta. Parte da fortuna crítica sobre a discussão pode ser encontrada nos trabalhos do já mencionado Rossatto, para quem as diferenças entre as posições de Sartre e Ricoeur no que concerne a identidade pessoal parecem estar centradas na “pureza” ou “impureza” da ipseidade em um e outro autor. Comentando essa diferença, Rossatto comenta as posições de ambos os autores:

[Em Ricoeur] a singularidade estaria habilitada a partir de uma dupla função: a identidade-idem, que indica a permanência no tempo, e a identidade-ipse, que implica na mudança. Assim, a própria estrutura do singular em Ricoeur carrega consigo a herança de uma quase-essência, sob a categoria de identidade-idem; de outro, se abre para o fluxo contínuo da existência pela categoria de identidade-ipse.

Em Sartre, não haveria uma identidade-idem como termo correspondente a uma essência nem a uma quase-essência; haveria apenas o polo da ipseidade como fluxo contínuo e permanente de uma consciência sem fundo, nadificada e em pleno movimento de projeção para um sentido. [...] O autêntico singular sartreano, em constante fluxo, não pode trazer consigo qualquer marca de um mundo comum. (ROSSATTO, 2013, p. 165-166)

Outra comparação é feita pelo historiador François Dosse. Amigo pessoal e admirador do pensamento de Ricoeur, Dosse alega que a posição sartreana não pode senão aparecer como a filosofia de um sujeito mutilado, amputado de seu passado e entrincheirado em uma negatividade insuperável. Diferentemente de Sartre, Ricoeur não identificaria liberdade com abolição de identificações na direção de um núcleo faltado da condição humana. Embora o tom do texto de Dosse seja claramente enviesado pela admiração que guarda para com Ricoeur, suas palavras ajudam a perceber como a transcendência do Ego sartreano é distinta do caráter provisório e revisável da narrativa em Ricoeur:

Para Sartre, a característica ontológica do ser humano situa-se num nada onde se enraíza a liberdade e que escapa a todo determinismo. 'A liberdade é o ser humano que põe seu passado de parte ao secretar seu próprio nada'. A liberdade é isenta de historicidade, de identidade. Podemos, entretanto, nos perguntar com Ricoeur se uma recusa pode originar-se dela própria: 'Uma negação pode começar de si?'. A travessia do ato nulificante a partir da finitude da existência não é negada por Ricoeur, que só a retoma para ultrapassá-la. A reflexão filosófica deve, pois, se apoiar no núcleo de afirmação que encerra o ato de repúdio à coisa dada, o ato de recusa, de desprendimento. Aqui, Ricoeur desdenha a falsa alternativa sartriana entre uma liberdade-nada e o ser petrificado na essência do outro. Ricoeur sugere colocar o problema do ser logo de início. A filosofia do nada parece-lhe uma filosofia mutilada que representa apenas uma vertente, a metade sombria de um ato total amputado da parte luminosa, sem a qual o próprio ato negativo seria impossível. Essa dimensão de luz se abre para a ação, não para o isolamento ou o desprendimento – ou seja, abre-se para o engajamento. Assim, a náusea não é o corolário inelutável da travessia da noite. 'Sob a pressão da negatividade, das experiências em negativo, precisamos recuperar uma noção do ser que constitua ato e não forma, afirmação viva, possante, de existir e fazer existir'. (DOSSE, 2009, p. 240)

Com Dosse, podemos observar uma posição na qual a narrativa ricoeuriana e o Ego sartreano já não podem ser aproximados por sua virtualidade mas devem ser afastados: se a narrativa é a elaboração reflexiva de uma dimensão de vivências já pensadas narrativamente, a identificação com o Ego em Sartre é expediente de concessão ao universo do determinismo, das desculpas, dos pretextos, da existência deteriorada de um sujeito de má-fé. Mesmo as preocupações de Bourdieu coma ilusão biográfica seriam contempladas pela teoria de Ricoeur na qual, segundo Dosse, “a emergência de um si, que já não é um eu devido às alterações provenientes de sua relação com o outro e de sua travessia do tempo, oferece um meio de sair da ‘ilusão biográfica’ denunciada pela sociologia bourdieusiana” (p. 408).

Uma outra diferença radical entre Ricoeur e Sartre pode ser observada na reflexão de Francisco Naishtat, a saber, a diferença do papel da alteridade no percurso da ipseidade na direção de si mesma. Se a filosofia de Sartre oferece uma paisagem na qual a relação entre sujeitos é a de um conflito de olhares na qual tudo se passa como se a luta hegeliana das consciências pelo reconhecimento estivesse congelada em um momento insuperável, a hermenêutica do si oferece outro trajeto na qual o si-mesmo precisa passar pela alteridade para retornar a si mesma. Dependente do recurso da atestação do si, da palavra dada e cumprida, Ricoeur acomoda a alteridade em uma posição positiva naquilo que Sartre chamaria de circuito da ipseidade. Na conclusão de artigo no qual compara as noções de ipseidade de ambos os autores, afirma Naishtat:

Salvando a continuidade inegável que há em Sartre entre a sua teoria individualista da consciência e o caráter comprometido de sua ética existencial, há, no entanto, uma diferença crucial com Ricoeur pois este faz do outro uma mediação ontológica que carrega um sentido de afirmação do ipse, não mais sob a forma conflitual da intersubjetividade sartriana, de marcado acento hegeliano, ou de uma posição negativa e transitória contra a opressão, mas na forma de fidelidade, que é constitutiva do respeito pelo outro e da estima de si. O outro não é em Ricoeur o diferencial pelo qual é possível a afirmação do si-mesmo em todas as figuras de conflito intersubjetivo e da afirmação coletiva, mas é a própria fundação original da intencionalidade na forma de atestação e compromisso consigo mesmo, sem a qual não haveria estima ou respeito de si no nível mais básico da constituição da subjetividade: a intencionalidade é sempre já vetor orientado para uma forma de compromisso que é simbolizado pela promessa, como um fenômeno originário de uma subjetividade que é desde sempre intersubjetividade6.. (NAISHTAT, 2007, p. 13-14)

A despeito da absorção da noção de projeto no interior de uma hermenêutica que é narrativa mas não descuida da expectativa, Ricoeur se afasta de uma posição existencialista de modo notório. Rossatto, Dosse e Naishtat não deixam dúvida que a ipseidade concebida por Ricoeur é de tipo radicalmente distinto da de Sartre.

Considerações finais

Pode-se concluir que a narração do si não produz um Ego detestável ­a priori, como em Sartre, mas, pelo contrário, coloca em relevo e enredo um nível íntimo do si desde o qual seu estrato moral pode ser permanentemente elaborado e reelaborado. É justamente a ideia de permanente reelaboração, inspirada em Freud e aproximada da teoria do luto deste autor, que Ricoeur fará suas últimas exortações dos poderes da narração ao afirmar que a reelaboração frequentemente “não se efectua sem um trabalho de dor, o qual não se resume à lamentação passiva, mas consiste num trabalho feito sobre a perda, que é levada até a reconciliação com o objecto perdido, no termo da sua completa interiorização” (p. 3). Se o existencialismo de Sartre nos lembra que a ipseidade não precisa permanecer presa ao neurótico mito individual da “unidade narrativa da vida” de cariz macintyreano, disso não se segue que a vida precise ser caracterizada por uma aventura quase impraticável da perseverança no negativo. O apelo de Ricoeur, vimos, não é por um completo despojamento de si. Como observa João Botton, na reelaboração narrativa “a ipseidade permanece marcando o lugar vazio a ser ocupado pelo sujeito, ainda que esse lugar não possa ficar vazio por muito tempo” (BOTTON, 2017, p. 79). Em outras palavras: ainda que os projetos existenciais malogrem, que as narrativas familiares deixem de fazer sentido, que a experiência se esvazie e a expectativa seja condenada a operar em um horizonte desértico, permanecerá incidindo sobre a vida um chamado por sentido, um desejo de – poder – viver belas histórias. Mesmo que o caráter doloroso da reelaboração seja eventualmente insuportável – como a dos soldados que, no retorno da primeira guerra, permaneciam em silêncio porque “viveram uma experiência de tal ordem que não podia mais ser contada como narrativa” (AB’SÁBER, 2016, p. 35) – deve permanecer possível conceber a restauração de sentidos novos desde os fragmentos do sentido fraturado. Mesmo que seja sempre provisória e permanentemente revisável, mesmo que seja perpassada por uma insustentável leveza, a narrativa de uma vida não precisa ser compreendida, por isso, detestável ou ilusória. Imbuído pelo apelo de compromisso com o sentido, concluo citando Lauren Nunes que, em sua reflexão sobre dilemas morais e seus efeitos traumáticos, nos oferece uma delicada metáfora de restauração:

Os japoneses, em vez de jogar fora o objeto quebrado, como se faz na cultura ocidental, procuram restaurá-lo. Para isso, desenvolveram a técnica do Kintsugi, por meio da qual unem as peças quebradas com uma mistura de laca e pó de ouro. Após o restauro o objeto passa a ter ainda mais valor e singular beleza.

Pensado como metáfora para a vida, o Kintsugi sugere um significado profundo. Ou seja, um objeto quebrado não perde seu valor, mas justamente, ao contrário: após reconstruído, por suas rachaduras, é ainda mais valorizado na cultura oriental, pois suas rachaduras o deixam mais especial e belo.

Para os japoneses, essa metáfora vale para as pessoas: quanto mais rachaduras, mais ela errou e mais ela aprendeu. As rachaduras, pois, fazem a pessoa ser aquilo que ela realmente é. E não é possível para uma pessoa passar a vida intocável e sem "quebrar-se". (NUNES, 2015, p. 122)

Material suplementar
Referências
AB’SABER, Tales. Freud e o ensaio .Além do princípio de prazer’. Em: FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Tradução do alemão de Renato Zwick; revisão técnica e apresentação de Tales Ab’Saber; ensaio biobibliográfico de Paulo Endo, Edson Sousa. – 1. ed. – Porto Alegre. RS: L&PM, 2016.
BARNES, Hazel. Sartre’s ontology: the revealing and making of being. Em: HOWELLS, Christina. The Cambridge Companion to Sartre. Cambridge University Press, 1992.
BOTTON, João Batista. O homem como promessa: estudo das implicações da antropologia filosófica de P. Ricoeur. Belo Horizonte, 2017. Tese (Doutorado em Filosofia). Pós-graduação em Filosofia da UFMG, 2017.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. Em: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (orgs). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: FGV, 2006.
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma Vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
LACAN, Jacques. O mito individual do neurótico, ou, A poesia e verdade na neurose. Tradução Claudia Berliner; revisão técnica Ram Mandil. - Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LARMORE, Charles. As práticas do eu. Tradução de Maria Estela Gonçalves. São Paulo, SP: Editora Loyola, 2008.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Trad. Jussara. Simões. Bauru: EDUSC, 2001.
MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
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Notas
Notas
2 [“the condition of conscious life without an ego could only be pathological”] (BARNES, 1992, p. 36)
3 Tomo emprestada a expressão cunhada por Ronai Rocha e utilizada no final da reflexão de Quando Ninguém Educa: questionando Paulo Freire, publicado pela editora Contexto em 2017. Na obra, o autor se serve da expressão “sentimento de enredo” para se referir a um elemento que precisa comparecer no espaço de experiência de um estudante. Um dos espaços de observância para o estabelecimento desse sentimento estaria na reflexão sobre o currículo que, em sendo adequadamente montado como uma espécie de itinerário de uma viagem pela herança do que de melhor a tradição ocidental produziu em termos de conhecimento, pode se configurar como o espaço de garantia da oportunização desse sentimento. A expressão parece compatível com uma formulada por Deise Quintiliano quando esta comenta que em As palavras Jean-Paul Sartre narra uma história que não é rigorosa nem no detalhe e nem na cronologia ainda que “o sentimento de viver na História, de ter uma relação substancial e alimentadora com ela, faz parte do húmus sartreano” (QUINTILIANO, 2005, p. 58, grifo meu).
4 Concordo com Rossatto quando este afirma que “um dos argumentos centrais do romance sartriano vai girar em torno da oposição entre vida e narrativa: ou as ações são tomadas na desordem da existência cotidiana, individual e isolada, sem sentido prévio e sem inteligibilidade alguma, ou, de outro modo, elas são narradas com uma ordem e com plena inteligibilidade, com sentido e significado já dados. Quanto a isso, MacIntyre acerta ao caracterizar o romance sartriano.” (ROSSATTO, 2010, p. 124)
5 Em artigo recente intitulado Reading from the middle: Heidegger and the narrative self, Ben Roth (2017) apresenta uma posição muito semelhante a de MacIntyre por vias completamente distintas: alegando uma identidade estrutural entre a intencionalidade de um leitor, designada por Wolfgang Iser como “ponto de vista errante”, e a orientação mediana do existente humano em sua condição de estar sempre lançado projetivamente em possibilidades, tal como pensado por Heidegger, Roth sugere que somos leitores de nossas vidas. As vidas podem ser narradas, portanto, porque já são vividas como histórias.
6 [“Salvando la innegable continuidad que hay en Sartre entre su teoría individualista de la conciencia y el carácter comprometido de su ética existencial, existe, sin embargo, una diferencia crucial con Ricoeur en cuanto que el último hará del prójimo una mediación ontológica que es portadora del mismo sentido de afirmación del Ipse, no ya bajo la forma conflictiva de la interindividualidad sartriana, de marcado signo hegeliano, ni de una posición negativa y transitoria contra una opresión, sino bajo la forma de la fidelidad, que es a la vez constitutiva del respeto por el otro y de la estima de sí. El otro no es en Ricoeur el diferencial por el que es posible la afirmación del sí-mismo bajo todas las figuras del conflicto interindividual y de la afirmación colectiva, sino que es el basamento originario mismo de la intencionalidad bajo la forma de la atestación y del compromiso de sí, sin el cual no hay siquiera estima ni autorrespeto al nivel más básico del escalonamiento de la subjetividad: la intencionalidad ya es desde siempre vector orientado hacia una modalidad de compromiso que está emblematizada por la promesa, como fenómeno originario de una subjetividad que es desde siempre intersubjetividad.”]
Autor notes
1 Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria – RS, Brasil. Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.
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