Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Finitude e personalização: a escolha original em Sartre
Marcelo Prates
Marcelo Prates
Finitude e personalização: a escolha original em Sartre
Finitude and personalization: the original choice in Sartre
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 410-432, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar na filosofia de Sartre a noção de personalização. Inserida nos quadros da psicanálise existencial, tal noção nos esclarece acerca da escolha original e do projeto existencial. Desde seus primeiros trabalhos Sartre nos apresenta uma consciência transcendental impessoal, de modo que a liberdade como nadificação é independente da vida psíquica. O que queremos demonstrar é que a partir do desenvolvimento da psicanálise existencial a liberdade não é separada da noção de personalização, mas a pressupõe devido à condição de finitude da liberdade. Neste caso, embora pressuponha um campo transcendental impessoal, a liberdade só é apreensível concretamente a partir da personalização. Isso pressupõe uma relação necessária entre a ontologia e a psicanálise existencial na elucidação da liberdade, da história, do homem.

Palavras-chave:SartreSartre,OntologiaOntologia,Psicanálise existencialPsicanálise existencial.

Abstract: This article aims to analyze in Sartre's philosophy the notion of personalization. Inserted in the framework of existential psychoanalysis, this notion elucidates about the original choice and the existential project. Since his first works, Sartre has presented an impersonal transcendental conscience, so that freedom as nadification is independent of psychic life. We want to demonstrate that from the development of existential psychoanalysis freedom is not separated from the notion of personalization, but presupposes it due to the finitude condition of freedom. In this case, although it presupposes an impersonal transcendental field, freedom can only be apprehended concretely through personalization. This presupposes a necessary relationship between ontology and existential psychoanalysis in the elucidation of freedom, history, and the man.

Keywords: Sartre, Ontology, Existential psychoanalysis.

Carátula del artículo

Artigos

Finitude e personalização: a escolha original em Sartre

Finitude and personalization: the original choice in Sartre

Marcelo Prates1
Universidade Estadual do Centro-Oeste, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 410-432, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 14 Dezembro 2020

Aprovação: 26 Janeiro 2021

A psicanálise existencial esboçada no final de O ser e o nada tinha como propósito “determinar a escolha original” (SARTRE, 2007, p. 615) de um indivíduo, de modo a fazer ele “tomar conhecimento de seu ser” (SARTRE, 2007, p. 620). Partido dos resultados da ontologia que apontava o indivíduo como escolha singular de si mesmo, tal escolha “conglomera em uma síntese pré-lógica a totalidade do existente e, como tal, é o centro de referências de uma infinidade de significações polivalentes” (SARTRE, 2007, p. 615). Sendo uma síntese, esta escolha implica a totalidade existente do indivíduo em seu transcorrer temporal, de modo que a escolha original é, assim, o resultado total e atual de toda uma existência singular. Por isso, na totalidade do tempo transcorrido “não há diferença entre existir e escolher-se” (SARTRE, 2007, p. 618). Assim, determinar a escolha seria fazer com que o indivíduo que é tal escolha e, portanto, a compreende, chegasse a conhecê-la. Por um lado, isso teria uma função clínica de auxílio para com o indivíduo em seus investimentos existenciais no sentido de rever seus movimentos de liberdade e alienação sendo a pessoa o resultado singular da maneira como o indivíduo respondeu aos acontecimentos primeiros de sua vida. Por outro lado, ela não teria apenas uma função clínica, mas histórico e social, e talvez esse fosse o maior ensejo dado por Sartre a ela, haja vista tratá-la como indispensável à análise social e à antropologia existencial. Assim, sendo um instrumento de análise social e individual, ao mesmo tempo, ela permitia visualizar tanto a liberdade individual no campo dos possíveis em seu entorno e relação com o prático-inerte quanto os movimentos pelos quais ela ultrapassa e arrasta o movimento da História.

Deste modo, a escolha original é a imagem própria da liberdade. Isso é devido ao peso que o original traz nas implicações em todas as áreas do saber que dialogam e trabalham na análise da antropologia existencial. Ela é original no sentido ontológico, de que é por ela que o indivíduo se justifica e se legitima existencialmente. Ela é original na história e na sociedade porque, embora se inicie de um campo já dado e condicionado, e veremos melhor no decorrer do artigo, ela surge justamente como superação e transformação desse campo. Ela é original para o indivíduo na medida em que ele, enquanto sendo esta escolha, se faz apesar de condições pré-determinadas e sempre como superação delas, pois ainda que parta de uma facticidade, de um campo já constituído, a escolha original é a maneira como ele o ultrapassa, o que, portanto, faz dessa escolha única, irredutível, singular, enfim, original. Ela é, por fim, a origem de um indivíduo que .esta escolha e expressa-se a partir de sua concretude com o transcorrer de toda a sua vida. Por isso, é neste indivíduo singular que temos a imagem real da liberdade na filosofia de Sartre. Portanto, jamais há uma fórmula para a liberdade, de modo que a escolha original se resumisse a ela; o que temos, em nosso tempo e na história, são imagens da liberdade, formas singulares pelas quais os indivíduos inventam a si mesmos como maneira de ultrapassar o dado e constituir o sentido do real:

Não há primeiro umdesejo de ser e depois milhares de sentimentos particulares, mas o desejo de ser só existe e se manifesta no e pelo ciúme, pela avareza, pelo amor à arte, pela covardia, pela coragem, as milhares de expressões contingentes e empíricas que fazem com que a realidade humana jamais nos apareça senão manifestadapor tal homem, por uma pessoa singular (SARTRE, 2007, p. 611).

Ora, uma vez, então, que tal originalidade implica uma radical novidade, a maneira como ela é analisada e o que ela deve nos revelar escapa aos mecanismos já constituídos para uma análise, seja com relação ao ponto de partida, seja com relação ao ponto de chegada. Isto é, não sabemos o que precisaremos para compreender este indivíduo, bem como não sabemos que liberdade em sua originalidade nós encontraremos. Assim sendo, a psicanálise existencial nasce contra as psicologias que reduzem o homem a significações universais (SARTRE, 2007, p. 603) anteriores ao seu próprio surgimento. Uma vez que tal escolha é original, a psicanálise existencial rejeitará rodas as tendências totalizadoras, os “grandes ídolos explicativos de nossa época – hereditariedade, educação, meio, constituição fisiológica.” (SARTRE, 2007, p. 604), e toda compreensão genérica que não explicite a especificidade do caso (não, por exemplo, . castidade, mas estacastidade, como alude Sartre (SARTRE, 2007, p. 605). Deste modo, “uma vez que nosso objetivo não poderia ser o de estabelecer leis empíricas de sucessão, não podemos constituir uma simbólica universal” (SARTRE, 2007, p. 618), exigindo do psicanalista existencial que este reinvente uma simbólica (SARTRE, 2007, p. 618), haja vista que “é necessário consultar a história de cada um para fazer uma ideia singular de cada para-si singular” (SARTRE, 2007, p. 525). É justamente por tal necessidade que ele não teria como elaborar tal reinvenção sem explicitar as transformações sociais que ela exige ou implica, mostrando justamente o conflito entre a liberdade insurgente e os quadros sociais a partir do próprio indivíduo singular, “pois a liberdade não é nada mais do que uma escolha que cria suas próprias possibilidades [...] uma invenção particular de seus fins” (SARTRE, 2007, p. 612). Assim, o psicanalista existencial não deixa de ser, em certa medida, um antropólogo existencial.

É justamente o como dessa invenção, a maneira singular que ela apresenta, que faz dela uma escolha. Por isso ela não é primeiramente um ato reflexivo, embora este povoe esta vida em inúmeros momentos. Ela é a totalidadesempre movente e modificada do indivíduo a partir de um acontecimento primeiro e seu conjunto de acontecimentos, os quais são expressos com o nascimento e na primeira infância. Com isso o que a psicanálise existencial visa restituir como conhecimento “é menos um puro acontecimento psíquico do que uma estrutura dual: o acontecimento crucial da infância e a cristalização psíquica em torno deste acontecimento” (SARTRE, 2007, p. 615). Essa é a parte da constituição, cujo movimento regressivo da análise procura compreender e determinar como solo primeiro da singularização. Mas, também já na constituição o indivíduo reinventa-se (não como escolha reflexiva) por sua própria existência, pois seu pequeno desenrolar expressa os primeiros movimentos dessa luta e tentativa de superação daquilo que começa a se constituir. Em outras palavras, não há dois momentos separados, constituição e superação, pois a constituição é já um movimento, ainda que cego (sem saber), dirá Sartre, de superação, de modo que mesmo na personalização não será aniquiladoo dado constituído, senão assumido e radicalizado a singularidade por tal processo. Assim sendo, a personalização seria um momento de assunção da singularização a partir do qual o indivíduo incide sobre si numa nova metamorfose, num novo movimento espiral de singularização da constituição primeira. O objetivo deste texto é explicitar tal movimento. Faremos isso a partir da análise de Flaubert e do desenvolvimento da ideia de personalização e, assim, de pessoa. Ideia tão cara a uma filosofia de um campo transcendental impessoal como é posto já a partir da primeira obra fenomenológica, A transcendência do ego.

Assim, embora se considere inicialmente a situação fáctica e a constituição como momento no qual se engendra essa escolha original no indivíduo, é preciso aferir que não há “conduta, por mais complexa e elaborada que ela possa parecer, que não seja originalmente a superação de uma determinação interiorizada” (SARTRE, 2013, p. 653). Sendo o indivíduo superação de si e de seu meio, portanto, de sua situação desde o seu início, e uma vez que não há dado a priori que o condicione a assumir e superar tal situação de uma maneira padronizada e idêntica ao outro, será “o modo mesmo de assumir a traduzir simbolicamente a disposição interna do indivíduo” (SARTRE, 2007, p. 615, negrito meu). Por isso não haverá diferença entre a pessoa,em toda sua condição psíquica e corporal2., e a liberdade irredutível que é o próprio campo transcendental impessoal. Poderíamos dizer que o que permite tal realidade sintética é justamente a singularidade e a finitude dessa pessoa e desse campo impessoal. Tal campo é impessoal porque não determina nenhuma estrutura a priori para a pessoa. E se dele o indivíduo se torna pessoal é por causa da condição de finitude de tal campo. Por isso não haveria contradição entre pessoa e a sua escolha, mas justamente por pressuporem um campo transcendental impessoal é que se pode fazer pessoa, isto é, como escolha. Em outras palavras, advindo de um campo impessoal, o indivíduo finito só pode manifestar-se como pessoa porque ele é escolha de si, num processo constante que vai desde a constituição primeira até o termo final a vida, cujo processo constante remente a um jogo de repetição do drama primeiro e de singularização desse. Tal singularização afere não a uma escolha determinada, mas a um modo de escolher. Como afirma Mouillie (2000, p. 106, negritos nossos), “é a necessidade de escolher que se determina em um sujeito, não um sujeito que se determina a escolher”. Por isso que é a partir do ser enquanto finitude que podemos pensar a singularidade de uma existência concreta, e dela como imagem singular da manifestação desse próprio campo.

É neste sentido que, embora se aponte a materialidade do indivíduo como aquilo que o determina como um, o corpo e o psíquico não estão separados do entorno, pois ambos correspondem ao conjunto da facticidade. Assim, se o singular é a situação total e o sujeito é a situação total, é porque a situação é transformada e singularizada enquanto novo possível, embora para o indivíduo isso seja vivido como seu drama. Por isso, ao mesmo tempo em que “o meio só poderia agir sobre o sujeito na medida exata em que ele o compreende, isto é, em que este o transforma em situação” (SARTRE, 2007, p. 618), a escolha mesma não é fixa, mas é movimento de vida tal como o indivíduo, isto é, “a escolha é vivente e, por conseguinte, pode sempre ser revogada pelo sujeito estudado” (SARTRE, 2007, p. 618). Assim, a psicanálise existencial também como atitude clínica seria uma ferramenta tanto de libertação e transformação individual quanto social, haja vista que para Sartre não há . indivíduo, mas tão somente a situação como universal singular expresso por um indivíduo. Desta feita, se o sujeito não é feito, mas se faz (SARTRE, 2007, p. 605), então é nessa “decisão” primeira que encontramos o primeiro e “verdadeiro irredutível”, isto é, a liberdade concreta e singular em seu movimento e começo de singularização. Ao se direcionar à constituição no momento regressivo da análise a psicanálise existencial está olhando a situação na história bem como os pontos de singularização que insurgem nela pelos indivíduos concretos que nela aparecem por seus nascimentos. Sob este primeiro aspecto já entrevemos o mote geral da psicanálise existencial:

Trata-se de recobrar, sob aspectos parciais e incompletos do sujeito, a verdadeira concretude (concrétion), a qual só pode consistir na totalidade de seu impulso (élan) rumo ao ser e de sua relação original consigo mesmo, com o mundo e com o Outro, na unidade de relações internas e de um projeto fundamental. Este impulso (élan) só pode ser puramente individual e único [...] nós descobriremos a pessoa no projeto inicial que a constitui. É por esta razão que a irredutibilidade do resultado obtido será desvelado com evidência; não porque seja o mais pobre e abstrato, mas por ser o mais rico: a intuição, aqui, será a captação de uma plenitude individual.” (SARTRE, 2007, p. 608, negrito meu).

Em suma, o indivíduo nascente é um movimento a partir de sua constituição e para além dela. Nesse caso a plenitude individual não é compreendida por Sartre como um dado, mas como um movimento. Por isso Sartre compreende a pessoa não a partir de uma estrutura psíquica dada, mas como um movimento de superação que pressupõe todo esse drama corporal, psíquico e social na unidade do indivíduo e seu meio. Assim, . pessoa é sempre singular, sempre uma pessoa, sendo a sua totalidade movente a maneira como se dá tal superação. Todavia, embora seja um movimento, isto não assegura que não haja indivíduos que venham a expressar tal maneira com um alto grau de adequação e assentimento para com os padrões já existentes, para com o prático-inerte, os quais diluirão sua singularidade no universal, como dirá Sartre: “Mas já sabemos, o universal singular pode corroer sua singularidade, incidir na universalidade pura, tornar-se máxima, axioma ou simples roubo teórico.” (SARTRE, 2014, p. 1502). Isso seria visível já na infância, com a qual é possível perceber os conflitos que emergem da forçada adequação à vida social mediatizada pela família, movimento este que se estenderá por diversos graus de liberdade e alienação durante uma vida toda, vida esta predominada pela alienação, cujo esforço denota um tempo próprio deste indivíduo, e que poderá nunca acender à outra espiral da vida. O resultado como totalidade do movimento ou imagem da singularização corresponde, assim, à própria pessoa. Por isso a pessoa está associada ao seu projeto de ser, e isto é a sua escolha fundamental, a escolha que fez de si mesmo, como a escolha de ser tal. E uma vez que ela se define como projeto, como um lançar-se para além do que ela é, esse impulso para-além que carrega e transforma o dado é considerado como o movimento de liberdade, Sartre chamará, sobretudo em O idiota da família, de personalização. Assim, se a constituição é o esforço prolongado na infância da superação sempre refeita e esforçada, a personalização seria esse salto espiral onde o sujeito se escolhecomo tal. Ele ainda pode ser o mesmo, sem uma metamorfose evidente como ocorre com Genet e Flaubert, mas ao se escolher a operação desta síntese que agora é assumida e consolidada como saber, tal mudança qualitativa na percepção de si fortalece a injunção de novas metamorfoses, como Roquentin ao descobrir que a náusea é ele e decide, a partir de então, pela construção de um livro. Assim sendo, a pessoa é um movimento e um processo, um esforço de superação e a variação singular que dele se sobressai. Portanto, escolha original, pessoa, liberdade, correspondem ao mesmo processo singular.

É sobretudo na obra O idiota da família que são mais bem expressos estes dois movimentos e momentos maiores do processo da liberdade como projeto e escolha, a constituição e a personalização. A constituição é caracterizada pela unificação da situação a partir do corpo nascente, pois este corpo é recebido no mundo a partir do que o mundo é em sua história e condição social, de modo que ele imprime neste corpo sua especificidade. Todavia, tal assentimento deste corpo não é feito sem alguma dor ou inadequação. E é este movimento entre o social que decai e o corpo que se apresenta em sua condição também impessoal e nadificante que configurará neste movimento a sua cristalização psíquica, eis sua situação primeira, eis como ele se constitui

Sartre procura resguardar nesse campo transcendental impessoal a condição pela qual a pessoa se manifesta como escolha e singularidade. Eis porque a constituição é já um movimento de singularidade embora sua estrutura arquetípica enquanto intuição fundamental se torne, aí neste movimento, invariável (SARTRE, 2013, p. 481). Essa condição ambígua entre fato e superação enquanto constituição é tomada como a chaga inicial, o ponto a partir do qual a existência se desvela como acontecimento primeiro e construção primeira de si: “a chaga é uma injúria sofrida, portanto, um acidente de sua temporalização, e, ao mesmo tempo, que ela faz a priori parte de seu ser intemporal” (SARTRE, 2013, p. 46). E é por ser esta constituição que o sujeito se compreende, uma vez que ele é essa escolha e manifesta esta escolha fundamental nas mais diversas escolhas empíricas. Ocorre neste primeiro momento um esforço desajeitado de superação, como Genet que chora e corre ao ser acusado. Sua vida e liberdade serão uma repetição deste ato bem como uma lenta metamorfose do mesmo até o salto espiral que dá um novo sentido, uma nova entonação a esta chaga sempre revivida, onde agora ele pôde dizer sou o ladrão, mas também pôde dizer, sou o poeta do crime.

Assim, por mais que seja apenas mais tarde que o indivíduo venha a conhecer o sentido total do movimento, ele já é compreendido desde o início na medida em que ele se faz nele e para além dele. Por isso “o significado do tempo vivido só aparece depois de os termos vivido, embora esse significado tenha sido sempre construído na imanência de cada presente vivido, vida projetada” (SILVA, 2004 p. 128). Isso porque sendo o indivíduo uma constante totalização, o sentido geral nunca é acabado, de modo que “a síntese compreensiva só se encerra na morte” (SARTRE, 2013, p. 54). Não há um tempo certo para esta síntese, para que a superação se dê, nem um termo final a se chegar. A singularidade da liberdade implica uma singularidade do tempo do indivíduo, de modo que a mudança do horizonte do projeto e a síntese compreensiva não tem tempo certo para se dar, ou plenitude final. Daí que muitos indivíduos tenham realizado por si tal psicanálise existencial, como pontua Sartre ao final de O ser e o nada. O que, então, uma psicanálise existencial revela tanto para o sujeito quanto para a análise antropológica e social é essa qualidade singular, esse modo singular de lidar com a situação, com o entorno a partir do qual ele se constitui, sendo esse modo de superar, a síntese sempre provisória de seu ser, a sua pessoa e liberdade. A exemplo de Flaubert, “ele ainda não compreende este homem, mas ele já o saboreia e adivinha que ele é compreensível; de todo modo, esse sabor que se mostra de imediato é o mesmo que deveria ser restituído ao fim de um longo convívio ou de um estudo biográfico” (SARTRE, 2013, p. 658).

Muito se confunde a ideia de projeto em Sartre com uma espécie de planejamento empírico da vida. Não que ao nível do desejo empírico este não possa ser tomado como uma expressão daquele mais fundamental, haja vista que projeto fundamental que é a pessoa expressa e singular, e o projeto original que configura a base primeira e ontológica, implicam a totalidade movente do indivíduo, cujos desejos empíricos devem ser subsumidos nessa totalização maior. Por isso que um indivíduo pode ser tomado a partir dos seus projetos empíricos, mas é o modocomo ele os constitui que configura seu desejo fundamental. Por isso, ainda, que conhecer o desejo fundamental não é fazer uma descrição objetiva, sobretudo de um desejo empírico, mas chegar à compreensão do sentido pelo qual se determinou e se constituiu tal movimento de totalização e personalização: eis o movimento progressivo da psicanálise existencial e ao qual Sartre acusa a psicanálise empírica de deixar de lado. É esse sabor, essa qualidade fundamental, que Sartre procura restituir com a ideia de pessoa e é ele o irredutível que qualquer psicanálise existencial e biográfica, como sua ferramenta, deveria poder restituir. Nesse caso, o próprio conhecimento da pessoa implica não apenas a sua descrição objetiva, mas, justamente, a compreensão que sua liberdade expressa como novo possível, nova maneira de ser, haja vista que o sujeito nunca é objetivável por absoluto, ele nunca se torna uma substância, de modo que a pessoaé processo movente, não uma substância fechada. A psicanálise existencial procura restituir nas lacunas da autocompreensão o movimento que o sujeito é, ou como dirá Sartre em outros momentos, sua melodia e seus ritmos. Assim,

Ser, para Flaubert, como para todo sujeito de “biografia” é unificar-se no mundo. A unificação irredutível que devemos encontrar, unificação que é Flaubert e que pedimos aos biógrafos para nos revelar é, portanto, a unificação de um projeto original, unificação que deve revelar-se a nós como um absoluto não substancial. (SARTRE, 2007, p. 606).

Ora, mas se a psicanálise existencial deve dar a conhecer tal qualidade singular, por que se trata então de compreensão?3. Uma vez que não há separação absoluta entre sujeito e objeto e eles se dão na unidade da consciência irrefletida ou situação, tal conhecimento não é uma apreensão do sujeito já dado, objetivado. Em O ser e o nada o conhecimento é visto como uma relação de ser, e tal como as categorias da mundanidade, espacialidade, quantidade, etc., “nada acrescentam ao ser, são puras condições nadificadas do “há”, nada fazem senão realizar o “há”” (SARTRE, 2007, p. 254). Assim, sendo relação, o que se desvela no conhecimento é esta própria relação: “Quero captar este ser e não encontro senão eu mesmo.” (SARTRE, 2007, p. 255). Não é a reflexão que revela o irrefletido. Nesse caso, se sou minha escolha e ela é meu ser, então é impossível que ela me seja estranha ou totalmente estranha em todos os momentos. A compreensão se torna assim um elemento que deve ser pressuposto à consciência irrefletida. Na Crítica da razão dialética Sartre volta a associar a compreensão à vida real enquanto ela . o “movimento totalizador que reúne meu próximo, eu próprio e o meio ambiente na unidade sintética de uma objetivação em andamento” (SARTRE, 2002a, p. 116). A síntese compreensiva não demanda uma objetivação sobre ela, já que esta qualidade . vivida. A objetivação é tomada como um momento, o momento analítico da compreensão, mas não é ela quem opera a síntese. Em outras palavras, a reflexão não traz inicialmente nada de novo sobre o meu ser que eu já não compreendesse antes. Ela auxilia na síntese compreensiva como sua imagem acabada, mas não a causa da síntese, nem a condição do processo que leva ao seu termo. Até porque se dizemos a alguém aquilo que ele não compreende por si, tal objetivação se torna inócua, não é assumida pelo indivíduo. Por isso não basta dizer você é ressentido, etc., pois a objetivação permanece externa. Assim, a objetivação é um momento da síntese compreensiva, sua imagem final e derivada, mas não sua natureza própria, ainda que vejamos expressa em sínteses objetivas, sou o ladrão, a náusea sou eu. Pois para nós tal objetivação só pode fazer sentido se compreendida na trama de nossa vida. No fundo, a objetivação é uma parte do processo analítico. Nossa hipótese aqui é que toda descrição objetiva sempre apela à síntese compreensiva. E, ao menos nas análises biográficas que Sartre faz, de psicanálise existencial, é à compreensão que ele se dirige, e não ao saber objetivo do autor que ele estuda. Daí o sabor e a qualidade singular que uma biografia deve apresentar mais que a mera descrição objetiva dos fatos e da vida do autor apresentado.

Assim, poderíamos dizer que o conhecimento objetivo auxilia no assentimento de tal compreensão. Deste modo, não se trata do que já é conhecido e do desconhecido relegado ao inconsciente, pois “tudo está aí, luminoso” (SARTRE, 2007, p. 616). A questão é, antes, o assentimento desta compreensão e deste movimento: este sou eu, assim eu me fiz. É o que encontraremos expresso na figura de Roquentin quando não apenas sente a náusea como um evento que vem de fora, como algo que ele tenta mas não consegue objetivar e objetivar a si mesmo a partir dela, já que não sabe ao certo o que se passa, embora o compreenda. Não se trata de dizer o que . a náusea, mas de assumir-se como ela em seu movimento totalizador: “a náusea sou eu” (SARTRE, 2006, p. 159). Agora sabeo que compreendia, mas este saber não tem outra função senão preencher as lacunas e auxiliar na síntese compreensiva, do contrário tal objetivação permaneceria inócua. Em outras palavras, sabemos para compreender melhor, e por esta objetivação operada para uma síntese compreensiva, sua visada sobre si, ele pode, assim, mudar, variar, transformar-se, como Roquentin que ao final planeja um livro e antes mal o entrevia, e se planeja não é porque agora sabe, mas porque compreende melhor e desliza melhor sobre a situação. É como se a compreensão correspondesse ao horizonte de sentido, de possibilidade e, portanto, de liberdade neste mesmo horizonte.

Para Merle (2005, p. 5), “o sujeito só descobre o que foi a sua escolha original por uma ‘intuição evidente’ obtida graças à psicanálise existencial”; psicanálise essa que muitos homens realizam sobre si, como já apontava nas conclusões de O ser e o nada (SARTRE, 2007, p. 675). Mas seria justamente a partir dessa intuição evidente, deste conhecimento e compreensão sobre seu ser que o sujeito teria mais condições de se transformar e realizar uma nova escolha, como aponta Merle (2005, p. 5), operar uma metamorfose sobre si. No entanto, Bourgault (2002, p. 51) aponta que a concepção de intuição de Sartre tal como se encontra em O ser e o nada é lacunar, de formulações apressadas e mesmo equivocadas, o que poderá ter levado Sartre nas suas primeiras tentativas biográficas (Baudelaire, diga-se de passagem) a uma insuficiência, assumida por Sartre mais tarde (SARTRE, 1972, p. 113). Isso não impede que tal tomada sobre o ser do indivíduo como o quer psicanálise existencial não traga uma nova força para ele, um novo sentido e ação para o sujeito.

Se a mudança sobre o ser é uma transformação sobre sua qualidade fundamental, sua singularização, então essa variação nos dá um outro gosto de viver. Por isso que tal conhecimento não é uma universalidade opaca, mas a própria compreensão em sua síntese e em possibilidade de uma nova variação. Em outras palavras, é compreensão porque não é para fechar o indivíduo em um saber sobre si, mas para libertá-lo. É mais um meio de libertação do que de objetivação. Podemos dizer que Flaubert escreveu Madame Bovary, mas o sentido e qualidade que envolve tal processo só o podemos compreender. Poderemos compreender os movimentos de sua vida que o levaram à Madame Bovary, mas não extrair dela a sua fórmula. Daí que tal movimento seja o próprio sentido da liberdade, jamais objetivável numa universalidade opaca, mas apenas numa síntese compreensiva, ainda que venhamos e tentemos materializá-la no signo (e por isso para Sartre a linguagem é vista como prático-inerte), mas para a qual só podemos senti-la, compreendê-la, inseri-la em nosso próprio movimento de compreensão e liberdade, como dentro da trama de nossa vida. Assim sendo, a liberdade enquanto movimento de uma vida é uma libertação:

só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade e mostrar essa liberdade em luta com o destino – primeiro esmagada por suas fatalidades, depois, voltando-se para elas, digerindo-as pouco a pouco – provar que o gênio não é um dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados, descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, da sua vida e do sentido do universo, até nas características formais do seu estilo e da sua composição, até na estrutura das suas imagens e na particularidade dos seus gostos, traçar detalhadamente a história de uma libertação: foi isso que desejei. O leitor dirá se consegui (SARTRE, 2002b, p. 546, negrito meu).

Cada pessoa expressaria uma cifra, uma forma única como realizou esta luta contra seu destino e esta forma não seria distinta da sua pessoa. Não teríamos uma estrutura psíquica a condicionar a personalidade sendo esta mera contingência empírica a despeito dessa estrutura. E se Sartre fala em acontecimento primeiro que gera tal estruturação psíquica (na constituição) e pessoa ou personalização o movimento de superação a partir desta é porque vê a constituição não como determinante, mas como momento da situação ou facticidade a partir da qual se desenvolverá tal personalização enquanto superação e singularização da constituição. Nesse sentido, há uma isomorfia entre libertação e personalização, de modo que podemos dizer que a personalização é a singularização da constituição. A história de uma vida é a história de uma libertação, e tal libertação é sempre singular porque implica uma invenção, uma criação de um caminho, de uma saída a tal conflito e luta contra o destino social, histórico, existencial. Deste modo, a psicanálise existencial restitui justamente este sentido de libertação à história de uma vida.

Tudo se passa como se a psicanálise existencial devesse suscitar, por insistência, uma forma de esquema dinâmico – não uma forma conceitual que permitiria de resolver uma personalidade em uma série de equações fechadas sobre si mesmas, mas uma forma de doação seguida de intuição (BOURGAULT, 2002, p. 53, negrito meu).

Tal esquema dinâmico como totalização afere ao sentido do movimento e é este sentido que compreendemos. Por isso que toda ideia de progressão dialética traz a imagem de “uma invenção teórica que deve e pode produzir, construir, uma réplica do – e para o – qual entrega uma experiência vivida, na singularidade das suas contradições e da sua unidade. A intuição que forja a psicanálise existencial é indissociável desta dialética singular” (BOURGAULT, 2002, p. 58). Essa reconstrução busca restituir aquilo que Sartre, ao final de Baudelaire, chama de uma “metáfora musical”, isto é, a unidade das vivências diferenciadas sob uma mesma unidade existencial. “Eis o fim da dialética: “não perder de vista” o tema, manter o movimento do pensamento na temática central que o organiza logicamente e em um ritmo de organização” (BOURGAULT, 2002, p. 58, negrito meu).

Não há, assim, ato isolado, atomizado ou desprovido de significação fora da trama vivida pelo indivíduo. Eles são inseridos e compreendidos pelo sentido total como ritmo de sua organização. Neste sentido, “essa intuição só pode ser prática: só apreendo com certeza a razão constituinte de uma construção se eu mesmo tiver construído” (SARTRE 2014, p. 1583), e é este solo constituinte que torna possível a apreensão do sentido de todos os meus atos na medida em que este sentido é “imediatamente dado à intuição como princípio de Unificação totalizadora” (SARTRE 2014, p. 1583). Isso porque como Sartre pensa a vida como “retotalização perpétua (horizontal e vertical)” (SARTRE 2002a, p. 189), ele assume que a psicanálise existencial, ao rejeitar o inconsciente, deve tomar o fato psíquico como coextensivo à consciência (SARTRE, 2007, p. 616) em sua temporalização. Assim, esta intuição prática é possibilitada pela compreensão desse projeto de ser que é totalizante e integrante na medida em que não aparece feito, mas é um constante fazer e re-fazer de si.

Nesse sentido, se a compreensão afere à temporalidade é porque “a compreensão refere-se sempre a um processo, e é a antítese do saber absoluto” (SILVA, 2003, p. 57). Deste modo, não sendo um saber absoluto, mas a condição de um conhecimento tético daquilo que integra a totalidade do indivíduo, a intuição apreende o sentido que transparece na compreensão do indivíduo. É pela compreensão estar disposta em cada ato que tal processo exigirá uma dialética, já bem distante daquela noção primária de intuição fenomenológica e acusada de insuficiente por Bourgault. Não que cada ato não revele o todo, mas sendo compreensão ela exige a explicitação da totalidade que ele envolve no movimento dinâmico. Em outras palavras, a melodia total implica os ritmos que a compreende. Por isso, a compreensão é “o movimento dialético que explica o ato por sua significação terminal a partir das suas condições de partida” (SARTRE, 2002a, p. 115), ou ainda, trata-se de “reproduzir por si mesma o movimento dialético que parte dos dados recebidos e se eleva à atividade significante” (SARTRE, 2002a, p. 127). Sartre reafirma essa condição nos estudos sobre Flaubert:

A compreensão dialética bem pode elevar-se progressivamente até os últimos momentos de uma vida: ela começa de modo arbitrário, com a primeira data mencionada pelos arquivos, isto é, ela se baseia no incompreensível. E este, ultrapassado mas conservado, mantém-se nela como seu limite permanente e sua negação interna: se o movimento não encontra seu verdadeiro ponto de partida, jamais encontrará seu objetivo (SARTRE, 2013, p. 54).

Trata-se de compreender o todo da melodia depois de reestabelecidos os seus elementos e o movimento que lhes cabe, isto é, seu sentido. São as metamorfoses pelas quais, por exemplo, passam Genet e Flaubert, como desdobramentos e reinvenções do seu projeto de ser na medida em que tal projeto vai se aprofundando com o seu desenrolar, isto é, na medida em que é vivido no tempo. É a passagem do ator para o escritor em Flaubert, ou do ladrão para o artista em Genet, tratando-se sempre de uma alternância de modo de vida a partir da maneira como ele passa a superar sua constituição pela personalização, ou melhor, pela forma com que a constituição se singulariza, eis a personalização. É nesse sentido que Sartre fala que a temporalidade concreta do indivíduo e seu projeto desenvolve-se em espirais.

Compreendemos, agora, o sentido da tendência totalizadora que observamos em Gustave: considerados isoladamente, os episódios de uma vida não o interessam: cada um reflete à sua maneira os precedentes e anuncia os seguintes; cada destino é ao mesmo tempo circular e irreversível: a cada instante todos os motivos estão presentes ao mesmo tempo: a morte no nascimento e o nascimento na morte, tudo é conhecido, previsto, inevitável; mas, ao mesmo tempo, voltar para trás é impossível: o que está feito está feito, não é possível fazer de novo; existem repetições, mas, apesar de a cada vez voltar igual a si mesmo, o acontecimento é novo a cada vez, seu retorno obstinado o torna cada vez menos suportável. Para Flaubert a “náusea de viver” decorre do fato de que cada destino é previsível para aquele que deve vivê-lo, e de que é preciso experimentar, em detalhes, aquilo que conhecemos como uma certeza geral (SARTRE, 2013, p. 390, negrito meu).

Portanto, cada ato não pode ser considerado isoladamente haja vista a circularidade renovada dos primeiros acontecimentos. Mas, ao mesmo tempo essa nova espiral é um movimento de singularização dos primeiros acontecimentos, enquanto esforço, tentativa, cujo tempo e dinâmica não podem ser deduzidos ou medidos, fazendo que essa repetição se transforme e promova uma diferença qualitativa com relação à repetição dos esquemas, agora já outros, embora a partir do mesmo acontecimento: o sentido é a singularização. Nesse caso o projeto não é uma projeção do futuro, mas essa superação do destino inicial que uma vida denota. Em outras palavras, a singularização sugere um processo que radicaliza a escolha original para a escolha fundamental, transforma a constituição numa personalização, radicaliza o movimento singularizante do aparecimento contingente numa escolha legítima na medida em que se legitima e se justifica ao querer ser o que se é. Isso aponta uma hierarquização própria desse todo ante a exigência totalizadora (SARTRE, 2002a, p. 106) desse projeto singular, o que faz também com que cada intersecção se resguarde numa finitude própria, uma opacidade particular (SARTRE, 2002a, p. 106), mas onde o indivíduo está sempre inteiro, e cujo estudo deve recuperar e recriar “a unidade transversal de todasas estruturas heterogêneas” (SARTRE, 2002a, p. 112), isto é, o projeto nas suas variações enquanto processo de singularização. Como comenta Danto:

Assim, a escolha original é feita em cada escolha. Pois as escolhas, lembremos disto, não são episódios isolados ordenados em série. Em cada escolha eu integro todas as escolhas anteriores numa totalidade. Então estou não apenas escolhendo tomar o ônibus, em vez de andar a pé: estou escolhendo a espécie de homem que sou, a espécie de vida que levo e a espécie de mundo em que vivo (DANTO, 1993, p. 109).

Por isso que a escolha de ser é um movimento totalizador. Nesse sentido a escolha coaduna com a pessoa em seu processo existencial, e a escolha de ser (escolha original) é a escolha da pessoa em sua totalidade (escolha fundamental), com todas as determinações fácticas e contingentes (constituição); e ainda que a escolha fundamental mude completamente o indivíduo ante sua forma de vida (suas metamorfoses) ou apenas assuma o que se é como projeto de ser (a personalização), ela o resguarda como o mesmo (na totalidade entre tempo e finitude). Daí que uma mudança de forma de vida possa acontecer, mas não de escolha de ser (não posso deixar de ser o que sou, na minha totalidade) pois se trata de um projeto que já não é apenas ruptura e liberdade, mas todo o ser do indivíduo, e marca própria de sua finitude. Totalidade e abertura, constituição e personalização, a finitude em seu sentido é a singularização. Assim sendo, seria possível aferir que a escolha fundamental é como a singularização da escolha original. Se essa singularização é a sua melodia, seu tema, as variações e ritmos (metamorfoses), então a finitude é esse movimento, e não apenas uma dimensão limitativa. E por isso que uma vez que tal escolha original como constituição primeira é vivente, móvel, esta estrutura implicará uma passagem do estrutural para o histórico (SARTRE, 2013, p. 50), singularizando a constituição pela personalização. Assim, a psicanálise existencial procurará

reencontrar o movimento de enriquecimento totalizador que engendra cada momento a partir do anterior, o impulso que parte das obscuridades vividas para chegar à objetivação final, em poucas palavras o projeto pelo qual Flaubert, para escapar à pequena burguesia, lançar-se-á, através dos diversos campos de possíveis, em direção à objetivação alienada de si mesmo, além de constituir-se, inelutável e indissoluvelmente, como o autor de Madame Bovarye como esse pequeno-burguês que recusava a ser. (SARTRE, 2002a, p. 111)

Segundo Mouillie (2000, p. 63), como fruto das suas autocríticas, consolidadas especialmente a partir de Genet, Sartre realiza uma reabilitação da vida psíquica, no sentido de que imbrica o indivíduo (ser um) com sua personalização (ser tal). Assentada agora na noção de vivência, “visar a existência sobre o aspecto de sua finitude” significará “aceitar uma personalidade” (MOUILLIE, 2000, p. 62). Melhor seria dizer construir uma personalidade, pois o indivíduo em sua vivência é “um processo dinâmico e dialético” (BORNHEIM, 1998, p. 50). Processo que se inicia a partir da constituição e que torna todo o movimento totalizador uma constante ratificação e transformação crescente da escolha, na medida em que “constituição e personalização perfazem uma totalização” (BORNHEIM, 1998, p. 50). E isso não é por uma sobreposição ou por uma evolução, é sempre o mesmo, mas assumido de forma diferente: “De fato, não se trata tanto dos acontecimentos de nossa vida, mas do modo como eles se dão e como nós os acolhemos” (SARTRE, 2014, p. 1382, grifo nosso). Modo este que não será mero ato gratuito, mas expressara justamente a liberdade, a maneira pela qual ele assume e supera tal acontecimento. Assim, no processo de constituição e personalização, “individuação e personalização se intercruzam. A impessoalidade da consciência absoluta se encontra ultrapassada pela historialização de cada um em sua práxis.” (MOUILLIE, 2000, p. 66). Portanto, a personalização figura uma forma de assumir a facticidade não apenas como negação do fato, que seria a da consciência transcendental como pura negação, mas como pessoa.

Por isso, o outro nome desta totalização a todo instante destotalizada e retotalizante é personalização. A pessoa, na verdade, não é nem totalmente sofrida, nem totalmente construída: de resto, ela não é ou, se preferirmos, ela nada mais é, a cada instante, que o resultado superado do conjunto dos procedimentos totalizadores por meio dos quais tentamos continuamente assimilar o inassimilável, isto é, essencialmente, nossa infância: o que significa que ela represente o produto abstrato e sempre retocada da personalização, única atividade real –isto é, vivida – da vida (SARTRE, 2013, p. 656, negrito meu).

Observe-se que a vivência enquanto totalização alude a esse modo de superar a facticidade como personalização uma forma de caráter (SARTRE, 2002a, p. 83). Caráter que não implica uma estrutura e, portanto, não é fixo, mas movente. Por isso que nem o desejo empírico e objetivo pode expressá-lo em seu sentido próprio, pois tal sentido não é a escolha objetiva, como em Flaubert, de escrever, o que muitos outros também o fazem, mas a maneira como escreve: “não é a pura e simples escolha abstrata de escrever que faz o caráter próprio de Flaubert, mas a escolha de escrever de uma certa maneira para manifestar-se no mundo de tal forma, em poucas palavras, é a significação singular (SARTRE, 2002a, p. 112, grifos meu). Certamente essa significação revela uma forma de superação, pois permite, ademais, a possibilidade de “tentar compreender este escândalo: um idiota que se torna gênio” (SARTRE, 2013, p 50). Bem como explicita o movimento cultural e histórico: como Madame Bovary foi possível? É este movimento que Sartre compreende como liberdade, e é esse movimento que a psicanálise existencial deverá explicitar pela constituição, personalização, singularização.

A personalização enquanto totalização “surge como uma defesa contra nossa destotalização constante” (SARTRE, 2013, p. 653). Sartre não deixa de postular a constante necessidade de unidade do indivíduo, onde a totalização aparece como um esforço de superação e de unidade do múltiplo disperso e inassimilável, isto é, aquilo que não configura ainda como parte assumida e superada de minha situação: “Chamaremos de stress a unidade do inassimilável e da defesa global que a totalização desenvolve contra ele, dado que esta é infectada na mesma medida em que tenta neutralizá-la: nesse sentido, a neurose é um stress tanto quanto os desvios de caráter” (SARTRE, 2013, p. 656). É por isso que a vivência e a totalização, enfim o mero viver, aparecer como um esforço sempre constante de superação dada a alteridade do mundo, também em seu vir-a-ser. Se tal esforço é uma tentativa de neutralizar, o que resulta no stress e na neurose, isso é expresso sempre numa luta para superar isso que, no fundo, se torna impossível de neutralizar, senão inserindo numa totalização, superação e transformação da situação e do sujeito.

Por isso Sartre entende que “que esse esforço totalitário para neutralizar as contradições ou para isolá-las só alcança seu objetivo ao custo de perigosos desvios que alteram o conjunto totalizado” (SARTRE, 2013, p. 656). É aqui que aparece o projeto. Projetar é adentrar ao que não sou, para além da situação atual, por algo que a ameaça. Ora, mas só é possível que este novo elemento adentre se eu mesmo me fizer diferente. Por isso, mesmo na mais forte opressão, toda nova necessidade de liberdade implica também uma forma de chance, de transformação de si, de ressingularização (eis as novas espirais). Assim, é preciso “assumir a situação superando-a rumo a um alhures definido e colocado por uma opção nova e espontânea, como se essa reviravolta devesse ser a chance de sua vida” (SARTRE, 2013, p. 905). Daí que a pessoa esteja sempre entre a passagem de uma alienação a outra, de modo que o que a define é justamente tal passagem, a maneira como ela ultrapassa o dado inicial visando um novo estado que integra e sintetiza na atual situação aquilo que era alheio e mesmo opressor. Por isso que apenas na singularidade encontramos o sentido sendo ela o próprio sentido: “há uma diferença entre a alienação do resultado objetivado e a alienação do resultado de partida. É a passagem de uma para outra que define a pessoa (SARTRE, 2002a, p. 82, nota 32, negritos meu). Nesse sentido, a liberdade é sempre um movimento de superação. E reiteramos:

Contudo, por mais perigoso que seja o stress, ele não deixa de ser uma superação do elemento perturbador, em particular na medida em que a totalização em curso se reexterioriza e se objetiva por meio de condutas; nesse sentido, foi possível dizer que todo projeto é uma fuga e toda fuga é um projeto. Por isso, o outro nome desta totalização a todo instante destotalizada e retotalizante é personalização. A pessoa, na verdade, não é nem totalmente sofrida, nem totalmente construída: de resto, ela não é ou, se preferirmos, ela nada mais é, a cada instante, que o resultado superado do conjunto dos procedimentos totalizadores por meio dos quais tentamos continuamente assimilar o inassimilável, isto é, essencialmente nossa infância: o que significa que ela representa o produto abstrato e sempre retocada da personalização, única atividade real – isto é, vivida – da vida. Ou melhor, é o próprio vivido concebido como unificação e voltando de modo incessante às determinações originais, por ocasião de determinações mais recentes para integrar o não-integrável como se cada nova agressão do exterior cósmico surgisse ao mesmo tempo como disparidade a ser reabsorvida e como a chance talvez única de recomeçar sobre novas bases a grande mistura totalizadora que visa assimilar as antigas contradições nunca destruídas, isto é, superá-las em uma unidade enfim rigorosa que se manifestaria como determinação cósmica ao objetivar-se por meio de um conjunto hierarquizado de empreendimentos (SARTRE, 2013, p. 656, 657, negrito meu).

Assim, a personalização constante afere que toda determinação no indivíduo é sempre ultrapassada com a sua maneira de vivê-la (SARTRE, 2013, p. 653), de modo que o dado é superado a todo instante pelo simples fato de vivê-lo (SARTRE, 2002a, p. 83). Instante porque esse movimento não encontra repouso, embora possa ser condensado segundo momentos maiores que integram um conjunto de elementos, condutas, significações. São as espirais, ou metamorfoses como podemos encontrar em Genet e no Idiota da família. Deste modo, “a noção de espiral busca mostrar como o movimento de uma vida repassa sem cessar pelos mesmos pontos, isto é, que ela experimenta os mesmos nós, embora em níveis diferentes de integração” (RIZK, 2011, p. 219). Se há diferentes níveis de integração do mesmo, é sobretudo na apreensão destas metamorfoses que melhor percebemos o movimento de singularização. Por isso que, ainda que se dê em uma totalização constante, uma mudança mais visível exige tempo, exige-se que se passe o tempo, sendo esta passagem o que o torna singular. Não que vá haver nelas uma causalidade necessária, por isso não se trata de uma evolução ou de um tornar-se melhor, como acontece com Genet ao abandonar a literatura e se dedicar ao teatro. Se “uma vida desenrola-se em espirais; volta sempre para o mesmo ponto, mas em níveis diferentes de integração” (SARTRE, 2002a, p. 86), seria de se pensar que se trata de uma resposta nova ao mesmo drama. Embora se trate do mesmo e primeiro drama, isto é, toda a proto-história e constituição, apenas a situação é que poderá decidir na sua nova criação o quanto retém ainda ou não dos círculos anteriores, e é nessa diferença que vemos as novas metamorfoses da personalização. Como em Flaubert, “nos elevamos de revolução em revolução sobre a espiral totalizante. Eu serei escritor. Esta é a resposta transformada do adolescente à sua falta de unidade íntima, este é seu engajamento, sua opção fundamental [...] uma nova metamorfose da personalização etc.” (SARTRE, 2013, p. 659).

As metamorfoses ocorrem quando a resposta primeira se mostra insuficiente e exige, para superar-se, uma mudança na própria modalidade da escolha, como a passagem do artista ao poeta em Genet. Mas sendo elas espirais, fazem parte da mesma totalidade de ser, são modos distintos da mesma escolha de ser. E veja que superar-se não é senão salvar-se do drama primeiro, e só podemos fugir dele reinventando-o, de modo que reinventá-lo é reconstruir o caminho de libertação. Por isso que mesmo se metamorfoseando, sendo elas espirais, voltam a integrar o drama primeiro numa nova resposta; daí que será sempre a revolta de Baudelaire contra a mãe, a destituição da família de Genet, ou Flaubert, para quem “será o “estilo” histérico ou a impossibilidade de viver” (SARTRE, 2013, p. 176). Sua histeria e neurose como “adaptação intencional da pessoa inteira a todo seu passado, a seu presente, às figuras visíveis de seu futuro” (SARTRE, 2013, p. 175) será a sua resposta exteriorizada da carência do afeto materno, que se resume, em termos mais gerais, de sua vivência na carência do Outro (SARTRE, 2013, p. 177), onde, sendo “mal-amado, o menino se encolheu em sua passividade, em sua contingência” (SARTRE, 2013, p. 177), cujo artista será uma readaptação e renovação das respostas que ele dá a essa situação. Assim, a passividade em Flaubert é uma escolha sua, um modo próprio de se projetar no mundo em resposta ao seu enraizamento contingente nele, por mais paradoxal que isso possa parecer, tal como Genet que assume como sua escolha o que lhe acusam de ser: serei o ladrão. Por isso, sem as espirais fica difícil compreender esse longo trabalho e seus momentos de especificidade que definem a personalização e seu movimento singularizante. Tal movimento não pode ser expresso unicamente numa linearidade narrada, mas exige que se expresse esses diferentes níveis, a partir dos quais será possível apreender essa singularidade em seu tempo próprio.

Repetindo as palavras de Mouillie (2000, p.85), para a psicanálise existencial uma vida será compreendida como “uma melodia em forma de fuga”, e em todos os seus movimentos e metamorfoses, as variações e ritmo de tal melodia, expressarão, pela compreensão, o sabor e a imagem de tal liberdade. A essas variações na unidade que define a pessoa, Sartre passa a se referir como sendo a coloraçãodo projeto, sua singularidade, sua qualidade fundamental: “vivemos nossa infância como nosso futuro. Ela determina gestos e papéis dentro de uma perspectiva por vir [...] Superados e mantidos, eles constituem o que chamarei a coloração interna do projeto” (SARTRE, 2002a, p. 86, negrito meu). Tal coloração corresponde à forma singular do projeto, sendo sempre latente e sempre manifesta em cada ato, mas que não corresponde a uma forma de identidade porque essa totalidade implica níveis e estruturas distintas que variam na medida em que a fuga exige uma metamorfose:

Mas sua coloração, isto é, subjetivamente seu gosto, objetivamente seu estilo, não é diferente da superação de nossos desvios originais: essa superação não é movimento instantâneo mas um longo trabalho; cada momento desse trabalho é, a uma só vez, superação e, na medida em que se apresenta para si, a pura e simples subsistência desses desvios em determinado nível de integração: por esta razão, uma vida desenrola-se em espirais; volta-se a passar sempre pelos mesmos pontos, mas em níveis diferentes de integração e complexidade (SARTRE, 2002a, p. 86, negrito meu).

Se a singularidade alude a escolha de ser, como aponta Danto, “em cada escolha, eu faço mais que escolher uma linha específica de ação; antes escolho um estilo de escolha. Assim, a escolha original é feita em cada escolha” (DANTO, 1993, p. 109, negrito meu). É este teor que encontramos em cada metamorfose e com elas o tema geral da melodia ou liberdade. Veja-se que com isso já passamos a apresentar uma outra imagem à liberdade. Ela deixa de ser apenas um nada nadificador para ser, antes disso, não só uma vivência que superpõe a consciência e o transcendente, mas a construção livre de um modo de se assumir no mundo e exteriorizar essa assunção segundo esse modo singular. A reflexão pura, a conversão moral, a experiência crítica, o procedimento da psicanálise existencial, são ferramentas de compreensão da singularização do indivíduo finito, ferramentas de tematização da sua aventura singular. Aqui a integração e complexidade aparecem como a fórmula da singularidade. Daí que essa coloração passe da aceitação singular como processo de interiorização à construção de um estilo de escolha, que ora reflete os modos de escolha, ora se reflete de maneira objetiva para uma exteriorização no mundo, isto é, pela produção de uma mudança objetiva, como a constituição de uma obra. As biografias de Sartre sempre revelam essa dinâmica: Flaubert é passivo, mas escreve Madame Bovary; Genet é mal, mas se conceberá artista.

Essa associação entre gosto e qualidade singular não é dada de maneira linear e cronológica, nem o passado na sua totalidade é apenas a ordem linear dos acontecimentos ou o resultado dessa linha invisível que sou (SARTRE, 2007, p. 544). Todas estas tentativas vividas, são processadas segundo níveis de integração que vão se condensando na totalidade da pessoa na medida mesma em que a modifica. Elas podem permanecer heterogêneas entre si, como por exemplo posso não me reconhecer mais uma das faces de como fui há cinco, dez anos. Todavia o lugar dela, sua superação, transformação, metamorfose, se integra ao conjunto atual não como resultado apenas, mas como constante reinvenção e escolha. Se para a psicanálise existencial e mesmo a análise antropológica o momento analítico e regressivo é necessário, o é justamente para melhor compreender o presente. Trata-se de que “com uma investigação regressiva, [seja] possível encontrar níveis de intenção cada vez mais profundos, cada um dos quais, mesmo conservando certa autonomia regional, simboliza o nível inferior e condiciona dialeticamente o nível superior” (SARTRE, 2014, p. 1821). É nesse sentido que as metamorfoses do indivíduo são elementos importantes na demarcação do processo, na medida em que esses níveis aprofundam o drama da época e denotam a invenção própria do indivíduo. Por isso não se trata somente de compreender as crises de Flaubert, como se se buscasse a determinação de uma histeria individual ou social, mas a preocupação dessa coloração. Como já apontado, o escândalo é Madame Bovary e se Sartre se fascina por Flaubert é por sua força no meio da queda. Sendo criança mal-amada, são as espirais, suas metamorfoses que Sartre procura desvendar para compreender tal impulso criativo e traçar assim o gosto desse movimento, a imagem desta liberdade. Da passagem da criança patética constituída sem a mediação do amor, ao adolescente auspicioso do infinito e sem afirmação prática, passa-se ao sonho de ser ator, fazer do mundo um centro de irrealização cuja ação propícia é o riso fúnebre do ridículo das coisas e das pessoas à, por fim, a passagem ao escritor. As metamorfoses de Flaubert levam sempre o mesmo tema, mas sobre uma variação que adquire tal virulência que produz consequências que sua fase inicial, por si mesma, não alcançaria. Comparadas às demais crianças normais, Flaubert era apenas um idiota; em seu processo, ele se torna cada vez mais distinto delas, e sua diferença é justamente a sua marca fundamental, sua finitude, o que faz dele tal indivíduo.

Ora, se a alienação não é somente opressão, mas também intensificação do transcendente, ao outro, se na infância o que se procura é sempre um meio de sair dela, então as metamorfoses, essas mudanças na variação da escolha, seriam justamente a marca do indivíduo na sua fuga da alienação, seu modo próprio de sair dela na medida em que cada uma ao atingir certo nível de intensidade na situação exige uma nova metamorfose como condição de fuga e liberdade, liberdade essa que não pode senão ser uma nova criação. Não que se escape da alienação total, uma vez que somos alienados por nossa singular facticidade envolvida pelo mundo, somos sempre uma singular paixão pelo ser. Todavia, há um saldo, um resíduo na passagem de uma alienação a outra, e não o mero transcorrer homogêneo entre elas, ou a espera por uma revolução que vem sempre de fora. Em outras palavras, se nos é impossível sair da alienação, ao menos nos é possível mudar a maneira com que nos relacionamos a ela, e é nesta maneira que se conglomera pelas metamorfoses tal colorido do projeto, seu jeito e gosto de trabalhar-se nesta alienação primordial.

É neste sentido que a passividade sendo uma característica de Flaubert nunca permanece a mesma, ou se permanece é sempre em singularização. Ser passivo para Flaubert não é tão somente um reavivamento do abandono materno. A princípio, enquanto stress e neurose, “a ação passiva torna-se tática, defesa elástica” (SARTRE, 2013, p. 52), mas a passividade não subsiste: ela precisa fazer-se de modo contínuo ou desfazer-se pouco a pouco. Se em cada refazer o papel das novas experiências é manter ou liquidar (SARTRE, 2013, p. 51) tal passividade, no entanto, essa repetição culminará nas metamorfoses. Não que repetir seja uma fórmula, pois cada um denota um tempo e um modo dessa repetição e superação. Ao contrário, nem sempre ela é visível ou atingida, de modo que poderíamos dizer, a nível hipotético, que muitos talvez nem tenham saído do seu drama primeiro, sendo tragados pela história e pela facticidade, ou simplesmente assumiram o prático-inerte a todo custo. Sim, a liberdade tem um preço, ela não sai barato, e custa a vida inteira do indivíduo. Em todo caso, o nível de alienação social e familiar em sua densidade podem superar em muito a parte desta luta. É por isso que Sartre verá na Crítica da razão dialética que é o grupo e não um indivíduo a condição de movimentação da História, embora a dialética constituinte do grupo seja o indivíduo. Sartre considera e muito o peso da História, mas principalmente a força da liberdade, e é nesta última que aposta.

Flaubert vive esta passividade e este stress por toda a sua vida. Genet e Baudelaire também o fizeram. Suas obras mostram, todavia, estas espirais diferentes sobre seus dramas e tais metamorfoses sempre numa relação dinâmica, de modo que colorem este drama com uma saída cuja simples repetição jamais nos apresentaria. Aqui reencontramos o papel do negativo, da nadificação. Esse abismo da angústia onde se transmuta a si mesmo, essa constante inadequação ao real fáctico e a tomada de sua contingência só nos são visíveis nestas lutas dos indivíduos contra seus destinos e a passagem que realizam. Poderíamos falar de uma negação primitiva ou fundamental enquanto negação do ser, mas apenas em um nível abstrato. Pois a negação em sua concretude não aparece sem uma densidade temporal e qualitativa, o que implica não apenas uma negação, mas uma qualidade, uma diferença, um sim que é sempre um não, e um não que vem sempre com um sim. O indivíduo singular é este resto, esta diferença e qualidade em tal passagem. E se o Ser em sua finitude é tomado como qualidade singular, então também já não nos assombramos frente à totalidade impossível da hipótese metafísica ou da necessidade do nada e do ser como princípios, senão como dimensões subsumidas à própria finitude.

Ora, aí onde a vivência se faz imperiosa em seu fluxo é que a negatividade mostra sua veemência, pois, se não obstante “ele vive, ele não pode impedir-se de viver” (SARTRE, 2013, p. 464), a negatividade adquire sua densidade nesta própria vida, e não tão somente num ato a cortar a alienação ofuscante na esperada e temida angústia. Se a angústia aparece como certo fenômeno privilegiado desta manifestação onde se percebe com maior força a liberdade em sua possibilidade de ruptura, no entanto, ela não é a sua fórmula ideal, nem a imagem própria da liberdade. Ela pode ser um elemento transversal integrante da ação, mas não sua condição única ou necessária, pois a ação livre já é um salto para além da angústia, uma vez que a liberdade é projeto, superação do dado e não apenas negação, pois para ser superação do dado essa negatividade precisa adquirir uma positividade, isto é, uma forma que demarque o ultrapassamento. Aqui a falta só pode ser uma falta qualificada, o ser contingente “Sustentando a falta ao ser, a qualifica com seu ser, ele a colore e lhe confere uma forma de gosto (goût) de ser.” (SARTRE, 1983, p. 544). Assim, a falta, condição da negatividade, na singularidade, “não é pura falta indeterminada e ela não pode se fazer uma falta qualquer. Ele é este ser como falta” (Idem, p. 547). E por ser este ser como falta e não um poder abstrato, ele se torna qualificado por sua negação, pois o para-si “não é dado de início para depois se constituir como negação” (MOUTINHO, 2003, p. 125). Daí que sendo escolha e negatividade, mas não uma negatividade nula, mesmo sendo a proto-história um momento onde a clivagem reflexiva não opera, há ali já uma constituição singular:

E, sem dúvida, nenhuma determinação é impressa em um ser vivo sem que ele a possa ultrapassar com sua maneira de vivê-la. No pequeno Flaubert, a atividade passiva e o voo sem motor são sua maneira de viver a passividade constituída: o ressentimento é sua maneira de viver a situação que lhe é atribuída dentro da família Flaubert (SARTRE, 2013, p. 653, negrito meu).

Neste sentido, já não nos parece tão estranha essa reabilitação da vida psíquica pela ideia de vivência, nem que na personalização encontremos o sujeito na assunção de sua liberdade. Na Crítica Sartre aponta essa variação mínima com o caso Flaubert trazendo o ressentimento de Flaubert pelo afeto paterno para com o primogênito. Para conquistar o mesmo afeto teria de ser como Achille, o que ele se nega. Quando entra no colégio, sofre da necessidade de se equiparar ao irmão, o qual obtinha sempre os primeiros lugares, “ele se recusa a isso, mas sem formular sua recusa [...] será um bom aluno o que, na família Flaubert, é uma desonra” (SARTRE 2002a, p. 86, negrito meu). Sartre vê nesse segundo ato de ressentimento não uma mera repetição do primeiro, mas uma acentuação(SARTRE 2002a, p. 87) dele. Isso porque acena-se ali a uma nova mediação realizada pela instituição que é o colégio. Essas mediações não só levam às modificações do problema base como são elas que de fato darão maior inteligibilidade a todo o processo e permitirão “engendrar o concreto singular, a vida, a luta real e datada,” (SARTRE 2002a, p. 55). Isso levará ao terceiro momento onde “para ter a certeza de se diferenciar de Achille, ele decide ser-lhe inferior” (SARTRE 2002a, p. 87) aceitando estudar Direito, resultado esse que se apresentará nas novas condutas que serão sua supercompensação idealista e nas crises “histeriformes” como forma de fuga. Sartre pensa essa trama como um “enriquecimento e acentuação das condições iniciais” (SARTRE 2002a, p. 87) porque haverá um ponto de culminação. Não que esse ponto seja uma consequência lógica, mas o comprometimento literário de Flaubert é suficiente para mostrar tal índice de progressão, pois “as novas determinações não são mais que as antigas consolidadas e exacerbadas, adaptadas às relações sempre mais ricas que são urdidas entre a criança que amadurece e o mundo que a cerca” (SARTRE, 2013, p. 52). Ela nos dá a imagem de que a vida tem uma orientação,esse túnel de fuga nunca terminado, pois o projeto expressa toda uma maneirade viver, isto é, o reflexo do que realizo como ser. Por isso, se este ressentimento é um drama, é um papel, é, todavia,

um papel que se inventa, que não se deixa de aprender em circunstâncias sempre novas e que só se fica conhecendo, mais ou menos, no momento de morrer. Complexos, estilo de vida e revelação do passado-a-ser-superado como futuro a criar fazem uma só e mesma realidade: é o projeto como vida orientada, como afirmação do homem pela ação e é, ao mesmo tempo, essa bruma de irracionalidade não localizável que se reflete do futuro em nossas lembranças de infância e de nossa infância nas nossas escolhas refletidas de homens maduros (SARTRE, 2002a, p. 87, negrito meu).

Aqui a ação desmente a repetição indefinida, pois não se trata de um ator encenando sempre a mesma peça, mas de toda uma coloração do passado e do projeto conforme se vive, e onde a nova ressignificação modifica todo o conjunto e assim dialeticamente. Sartre nesse ponto rejeita qualquer hipótese não sintética das ações ante a totalidade do ser, bem como à redução da significação vivida ao enunciado simples e linear que lhe é dado pela linguagem (SARTRE 2002a, p. 88). Daí a necessidade de considerar “as significações como objetos sintéticos, pluridimensionais, indissolúveis, que ocupam lugares singulares em um espaço-tempo com múltiplas dimensões” (SARTRE 2002a, p. 88). Ora, sendo a unidade da pessoa “assombrada e minada pelas determinações múltiplas e contraditórias” (RIZK, 2011, p. 220), a estabilidade também passa a ser um esforço de unidade, mas unidade que só pode se dar se singularizando, retotalização que pode acontecer de uma “infinidade de maneiras, variando com os indivíduos e, no mesmo indivíduo, variando com a idade ou com a conjuntura” (SARTRE, 2013, 645).

É sob essa multiplicidade que cada ato deixa de ser repetição, ainda que faça menção sempre ao acontecimento original da infância, pois ao se integrar na totalidade essa totalidade se faz totalidade na medida em que se faz sintética, mas pela sua condição mesma, ela é múltipla e indefinida, senão pela coloração que vai se tornando manifesta. Isso nos imputa que “a coesão de uma vida se efetua através de uma retotalização perpétua que se opõe à sua destotalização permanente” (RIZK, 2011, p. 220). Se o indivíduo é esta síntese, ainda que não a compreenda de maneira mais consistente, a psicanálise existencial e mesmo a experiência crítica possibilitaria uma consistência e compreensão maior, uma vez que “carecemos de outras informações, ignoramos justamente qual infância, qual experiência, quais condições materiais caracterizam o homem e colorem o projeto. No entanto, não há dúvida de que cada uma dessas determinações forneceria sua própria riqueza, conteria as outras em si” (SARTRE, 2002a, p. 89). Aí é mantida a heterogeneidade dos momentos, cuja repetição aponta para uma ritualização do drama, mas cujo projeto no mundo só pode resultar nessa acentuação sempre crescente como singularização desse conjunto em sua dinâmica dialética, isto é, na intensificação como qualidade singular para além dessa queda inicial:

A experiência de Flaubert, tal qual ele a relata, é ao mesmo tempo singular e completa: é um acontecimento vivido que diz tudo sobre ele mesmo e, em consequência, ultrapassa o presente para hipotecar o futuro ou – o que dá na mesma, aqui – para desvelá-lo. Isso se deve ao mesmo tempo à descoberta – no sentido em que, justamente, a experiência religiosa, a experiência mística ou a experiência neurótica descobrem um setor da existência que é qualitativamente irredutível e novo – e à totalização - no sentido em que a conversão é totalizante enquanto tomada de consciência das implicações contidas naquilo que nos limitávamos até então a viver no dia a dia. Por isso, justamente, esse desvelamento é vivido em sua singularidade como aquilo que não poderá ser colocado em questão a seguir (SARTRE, 2013, p. 481, negrito meu).

O problema do irredutível adquire, pelos níveis que ele denota, uma tomada de posição que se refere tanto ao processo no seu todo como singularização quanto à algum momento específico, uma fulguração. A personalização vai se constituindo a partir dessas ambiguidades que vão se formando na constituição até a coloração adquirir sua consistência: “aos poucos instala-se, portanto, no seio da constituição, uma certa ambiguidade, advinda já da personalização nascente. E acrescente-se que esta última, por sua vez, jamais dispensa ou supera totalmente o momento da constituição” (BORNHEIM, 1998, p. 49). Por isso que o processo é uma totalização e a determinação em espirais esboça todo o programa em seus momentos mais decisivos, momentos que expressam não tão somente a liberdade, mas seu conjunto inteiro interiorizado e singularizado, e fazem do indivíduo mesmo esse pêndulo entre liberdade e alienação cuja forma própria é sua vida singular.

Ora, se a passagemde uma alienação a outra é a pessoa, cada passagem representa um momento dessa personalização. Pela constituição os dados estão lançados, e estão lançados para todos. Mas a invenção singular faz com que cada novo passo essa perspectiva singular se enriqueça enquanto singularidade, de modo a confluir o processo de singularização ao de personalização, donde resulta que a finitude compreenda a pessoa do indivíduo. Daí que cada novidade intensifique essa singularidade. Por isso não cabe ali uma teoria geral das formas ou das estruturas psíquicas, embora Sartre mesmo esbarre nisso em alguns momentos, sobretudo com relação às interiorizações iniciais, como a frieza da mãe de Flaubert. Mas são tão somente os universais de uma época, portanto, noções, formas temporalizadas, e não uma estruturação a priori da formação do psíquico no humano. Ora, essas formas têm seu papel determinante e Sartre reconhece que “o novo acontecimento tenha apenas o efeito de ressuscitar a “cena primitiva”, na mesma unidade intencional da assimilação” (SARTRE, 2013, p. 657), mas no desdobramento da vida, ele se modula na singularidade cuja culminação é a assunção como escolha. Daí que a escolha não seja também uma aniquilação da alienação, mas sua assunção singular na medida em que reconhece essa assimilação da situação como “a chance talvez única de recomeçar sobre novas bases a grande mistura totalizadora que visa assimilar as antigas contradições nunca destruídas (SARTRE, 2013, p. 657). O que se exige, então, é sempre uma resposta nova à integralização constante da situação sempre modificada pelo mundo devido ao caráter de constante polivalência deste. Como não se trata apenas de um tempo linear, mas sobretudo dialético, esses pequenos acasos que poderiam fazer toda diferença no transcurso existencial são subsumidos pela espiral determinante e manifestados apenas ante a visibilidade de toda novidade no empreendimento: “Porque os dois tipos de constituição e a personalização estendem-se às fronteiras últimas de todo o processo, como que a esgotar o campo dos possíveis; poderíamos mesmo dizer que a trilogia e a vivência perfazem uma totalidade dentro da qual se processa a totalização. (BORNHEIM, 1998, p. 23).

No caso de Flaubert, na medida em que ele não consegue sair da sua infância, ele se faz herói trágico da repetição. Assumindo, a despeito de tudo, sua singularização, que implica também sua personalização, ele sofre na medida mesma em que a procura e a evita. Essa temporalização escolhida que parece não o conduzir a lugar algum (SARTRE, 2013, p. 780) se expressa na sua insistente reclusão familiar, seu retorno sempre a ela, seja como ódio que o conduz a se personalizar para a negar, seja pela continuidade da família que impede esse próprio movimento de fuga, e cujo deleite é escolhido pelo próprio Flaubert. Assim, essa forma se dá até a desintegração familiar, sobretudo com a morte do pai, em 15 de janeiro de 1846. Ela causa certa liberdade em Flaubert de sua neurose (SARTRE, 2014, p. 1169), embora o pai permaneça em Gustave como uma chaga (SARTRE, 2013, p. 499). Em todo caso, da constituição passiva até o ser-escritor de Flaubert, a libertação ocorre lentamente e se consuma justamente a partir da decisão de escrever. Decisão esta que acaba, no fundo, sendo aos poucos uma modificação da própria escolha passiva, sempre reavivada pelo meio familiar. Sendo escolha lenta, nas suas primeiras obras o menino que ali se encontra nada mais é que sua própria família (SARTRE, 2013, p. 330), o que faz do indivíduo um modo essencial e passageiro, para o qual “a comunidade familiar é a substância que produz e reabsorve em si os modos” (SARTRE, 2013, p. 91). Aqui a qualidade singular do indivíduo se dissolve na unidade sintética e positiva das qualidades familiares (SARTRE, 2014, p. 1195), o singular ainda se apequena frente ao universal.

E sendo a família o “universo cerimonioso da repetição” (SARTRE, 2013, p. 149) ele sabe que “tudo se repetirá como todas as vezes” (SARTRE, 2014, p. 1205). Mas sendo uma determinação histórica, de escolha na família, lugar da repetição por excelência, no caso Flaubert, ela se confunde com “o horror puro e simples de tornar-se adulto” (SARTRE, 2014, p. 1666). Essa recusa é a escolha dentro do seio familiar da dimensão que sua temporalidade implica na sua constituição e na sua personalização, qual seja, de estar “voltada para o paraíso perdido dos amores infantis” (SARTRE, 2014, p. 1892) o que faz que mesmo no transcorrer temporal fáctico, nada lhe seja totalmente novo (SARTRE, 2014, p. 1892). Sartre mostra que Flaubert tem toda uma determinação negativa acerca do transcorrer temporal, “a duração vetorial é nele como que uma força inimiga, confunde-se com a autoridade do pai simbólico e, ao mesmo tempo que o reduz à senilidade precoce pelo desgaste, carrega-o com velocidade mortal para aquele ser-outro que o espera e o horroriza: seu destino burguês, de medíocre” (SARTRE, 2014, p. 1892). Mas na opressão do espírito objetivo ocorre a sua revolução personalizante. Ali a personalização designa o tempo orientado e ascendente do projeto contra o tempo cíclico da repetição, trazendo uma nova densidade ao espírito objetivo e fazendo girar a roda da história.

a cada dia ele acredita ter chegado ao fundo e a cada dia seguinte sofre um pouco mais, a morte se espalha por sua alma, devastando regiões cada vez mais vastas. Em suma, é preciso substituir as repetições – que são a negação da história - por um processo orientado, ou seja, forjar uma subjetividade histórica que, ao mesmo tempo, seja particularizada pelos detalhes e se revele como esse universal: a história de toda subjetividade (SARTRE, 2014, p. 1510, negrito meu)

Ora, a aventura individual vai do nascimento até a morte (SARTRE, 2013, p. 297) ao menos enquanto condição de possibilidade de transcendência. Há, segundo Sartre, ao menos no caso Flaubert, um desgaste em cada novo gesto em que se retorna às determinações primeiras, à mesma cerimônia, de modo que mesmo padecendo de tédio, ele não implica apenas o assentimento amorfo da cerimônia, pois as crises teriam o mesmo conteúdo, mas não a mesma intensidade (SARTRE, 2013, p. 297). E essas variações dos detalhes podem ser suficientes para desencadear uma intensificação e mudança de percurso. E aqui voltamos a associar essa intensidade pelo termo que a designamos para melhor expressá-la, qual seja, como qualidade fundamental. Tal qualidade que é forjada por pequenos movimentos da sua subjetividade até tomar uma consistência maior e proporcionar as condições e forças suficientes para a guinada à outra metamorfose e a uma variação dessa coloração do projeto, até que, algum momento, a virada se completa e a metamorfose se torna inevitável. Tudo se passa, como aponta Bornheim (1998, p. 47), como se o momento da personalização levasse quase que por definição à rebeldia e tendesse a extravasar a rigidez constituinte, mesmo que para isso fosse necessário assumi-la até o extremo possível. Ressentido, Gustave não consegue fazer “o sangue escorrer”, ele está preso por seu ressentimento, requerendo uma nova queda, um novo gesto de ser. Por isso que num determinado momento Sartre mostra que Flaubert não se liberta, mas se perde mais, e é nessa intensificação que cairá novamente, mas de modo diferente:

Mas o que se deve ver agora não é uma libertação, mas uma contra-alienação. Determinado, bem antes de nascer, pelo bel-prazer de um pai que o quis burguês e caçula, constituído pelos cuidados de uma mãe como atividade passiva, Flaubert não pode, de modo como esta o fez, combater com eficácia a maldição daquele. Durante toda a sua vida ele jamais se sentirá livre; jamais sua vontade escapará à heteronomia. No entanto, é preciso salvar-se. Mas, como a revolta é velada, ele só escapará à alienação alienando-se a outro objeto. Só pode substituir o ser-burguês por um ser-para-a-Arte, e só pode substituir a profissão, futuro fatal e definido pelo Pai, por outra fatalidade. Assim, a salvação lhe aparece como outra, ou seja, como outra danação (SARTRE, 2014, p. 1603, negrito meu).

Por isso que este momento fulgurante seja uma nova queda, onde desabará na forma de neurose (SARTRE, 2014, p. 1205). Nessa intensidade que se revela no instante e elege um instante específico (SARTRE, 2014, p. 1882), é todo o acúmulo de uma situação, de uma temporalização que é expresso, no seu caso, nas relações com sua família na recusa do retorno à Paris. É, como aponta Sartre, uma singularização de 22 anos de vida já estruturada por todo seu passado e que faz da crise de Pont-l’Évêque “a conclusão de uma guerra: há o que faziam dele e o que ele mesmo fazia daquilo que haviam feito, cada uma dessas determinações tentando superar a outra” (SARTRE, 2013, p. 190). Sartre coloca essa crise como uma “resposta tática” que é preparada há muito ante a necessidade e impossibilidade de ser artista (SARTRE, 2014, p. 1931). Ela é uma conversão não pelo momento imediato, mas porque sendo fulminante e instantânea é preparada há muito tempo (SARTRE, 2014, p. 1890), cuja origem visa “senão a tentativa espantosa, rigorosa e, por fim, malograda de mudar de ser. Isso significa mudar de fim” (SARTRE, 2014, p. 1489). Esse duplo fim, um pelo qual ele se torna objeto de cuidados, curando seu ressentimento dos pais, na representação do cuidado presente como os cuidados maternais nunca recebidos (CASTRO, 2011, p. 7); outro sendo, então, o momento em que se consolida a personalização de escritor de Flaubert, cujo esplendor maior resultará em Madame Bovary. Assim, a crise de Pont-L’Évêque “é uma maneira de Gustave se escolher como artista, isto é, de viver a impotência para atuar no imaginário” (RIZK, 2011, p. 214). Ante isso,

podemos compreender como um primeiro resultado positivo da crise, visualizado como fundamento do “quem perde ganha” flaubertiano, esta tentativa de recuperação da neurose que não se encerra apenas no passado, mas se projeta no futuro por meio de uma nova atitude estética. Este movimento leva Gustave a suspender provisoriamente seu tormento e a reinventar a arte de escrever, pela radicalização da imaginarização, ao ponto de se transformar inteiramente em sujeito imaginário. Ele dissimula dessa forma o fato neurótico, racionaliza e universaliza por meio da escritura a sua experiência inefável, que se manifesta na sua narrativa, apesar dele. Tal é o sentido do “quem perde ganha” na primeira Educação Sentimental: “Se eu perco sobre o quadro do real, eu ganho, por via de consequência direta, sobre aquele da irrealidade”. Produz-se assim uma inversão dialética onde o fracasso radical do homem se transforma em vitória do Artista (CASTRO, 2011, p. 9).

Assim, entre o perde e ganha de Gustave, uma diferença se introduz, uma liberdade se condensa em um gosto. Ele ainda é o mesmo, fruto das primeiras chagas, intensificadas, mas orientadas pelo projeto de ser escritor, cujo fim é ele mesmo ante sua irrealização estética: ele se torna outro permanecendo o mesmo. Sartre expressa pelas tramas da vida de Flaubert como ele pode se tornar escritor, como o idiota virou gênio, como um ser sem ação produziu uma grande obra. Esse ser paradoxal que não implica uma genialidade latente, mas toda uma forma de responder à facticidade do mundo, de transcender a sua própria condição, é explicitada pelo processo de personalização do indivíduo. Processo que subsume o tempo singular desse ser atrasado na história e descolado na família, “feita e padecida, a temporalização é a trama da vivência, sua lei” (SARTRE, 2014, p. 1878, negrito meu). Se a vivência como progressiva singularização implica o tempo, então ele não é apenas um aspecto do indivíduo, mas a conditio sine qua non da sua finitude.

A expressão de tal temporalidade não é medida pela linha cronológica da vida em sua relação com o tempo da história, mas expressa pela coloração que ela denota, com seu estilo e gosto, de modo que “o estilo é justamente a imagem da pura Criação: ele dá a ver a linguagem, conjunto prático-inerte que se impõe ao homem, como se fosse produto de uma liberdade” (SARTRE, 2014, p. 1626). É por isso que a liberdade não pode ser considerada apenas um corte de alienação, um movimento nadificador. É “um processo dinâmico e dialético” (BORNHEIM, 1998, p. 50) que envolve tanto a liberdade nadificadora quanto a facticidade e alienação por se tratar de uma composição de ser, que se afirma sempre mais na medida em que se faz. O fazer, assim, é ratificação crescente da escolha porque “constituição e personalização perfazem uma totalização” (BORNHEIM, 1998, p. 50). Nesse sentido a personalização pressupõe a constituição, embora a passagem de uma para outra não seja pautada por uma cronologia de acontecimentos, senão de constituição de si, dos gostos subjetivos como maneira de assumir e, portanto, superar, os acontecimentos de nossa vida.

Maneira de ser que se inventa, mas que não é uma invenção absoluta senão gradual na medida em que o movimento é dialético, e sendo “processo dialético exige, por sua vez, mediações que possibilitem a passagem da constituição à personalização” (BORNHEIM, 1998, p. 51). Essas mediações expressam a construção desse caráter em suas espirais e metamorfoses. Nesse sentido a subjetividade é muito mais marcada pela constituição de sua singularidade que se expressa como sua personalização do que só pela ideia de uma negatividade pura. Trata-se, assim, de uma liberdade que cria uma imagem, uma forma para si, e que não se resume apenas ao ato nadificador, já que se trata sempre da negação singular de um ser singular. Em outras palavras a finitude não é a negatividade, mas é esta enquanto desejo der que é envolvida por tal finitude. O ser como aventura individual é finitude, cujos dois sentidos, em-si e para-si, são dados na sua relação sintética não como fundamento absoluto, mas assunção singular de si, isto é, a finitude não realiza outra coisa senão a si mesma, mas tal realização implica que ela se faça singularidade. A elucidação concreta revela, por sua vez, os processos e mudanças que essa negatividade envolve, dando sua coloração própria na medida em que tal processo é singularização desse nada, confluindo liberdade e finitude: “Portanto, o próprio ato de liberdade é assunção e criação da finitude. Se eu me faço, faço-me finito e, por esse fato, minha vida é única” (SARTRE, 2007, p. 591).

Assim sendo, o mote da obra de Sartre é compreender a liberdade de um indivíduo e explicitar seu projeto e personalização, isto é, restituir o gosto e estilo, o caráter que lhe é próprio, expressar o que ele fez daquilo que fizeram dele, isto é, a maneira pela qual ele superou seus acontecimentos primeiros. Certamente isso só é possível pela negatividade imanente que possibilita essa distância ao ser e ao mesmo tempo à impossibilidade de ser. Mas também não pode se resumir apenas na angústia insurgente. É preciso que se façaalgo a partir dela, e é justamente neste fazer que compreendemos a liberdade em sua concretude e na sua condição humana. Já não se trata de considerar apenas o homem alienado, mas seu como, sua determinação singular, de modo que podemos dizer que a “progressiva desalienação” do homem (BORNHEIM, 1998, p. 14) é proporcional à sua personalização. Entre seu gosto e seu estilo,construindo a coloração do projeto, Flaubert se faz único, singular. Tal singularidade alude ao tempo próprio e por ele a expressão dessas variações e metamorfoses fazendo da liberdade na história o próprio motor do real pela diferenciação que se expressa num indivíduo: “é a diferençaentre os “comuns” e a ideia ou a atitude concreta da pessoa estudada, seu enriquecimento, seu tipo de concretização, seus desvios, etc., que devem antes de tudo nos iluminar sobre nosso objetivo. Essa diferença constitui sua singularidade” (SARTRE, 2002a, p. 106, negrito meu). Eis o ser enquanto finitude, enquanto aventura individual.

Material suplementar
Referências
BORNHEIM, Gérd Alberto. O Idiota e o Espírito Objetivo. Rio de Janeiro: UAPÊ e SEAF, 1998.
BOURGAULT, R. La question de l’intuition dans l’élaboration de la psychanalyse existentielle. In: Alter – Revue de phénoménologie. Sartre phénoménologue. Dijon: Éditions Alter nº 10, 2002.
CASTRO, Fabio Caprio leite de. Dialética e hermenêutica no Idiota da Família de Sartre. Intuito, Porto Alegre, Vol. 4, nº1, p. 3-14, 2011.
DANTO, A. As ideias de Sartre. Tradução: James Amado. São Paulo: Cultrix, 1993.
MERLE, Jean-Christophe. La psychanalyse existentielle et morale chez Sartre. Le Portique [En ligne], 16 | 2005, mis en ligne le 15 juin 2008, consulté le 19 août 2015. URL: http://leportique.revues.org/731
MOUILLIE, Jean-Marc. Sartre – conscience, ego et psyché. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.
MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Negação e Finitude na Fenomenologia de Sartre. Discurso. Departamento de Filosofia da FFLCH da USP, São Paulo, v. 33, 2003.
RIZK, H. Comprendre Sartre. Paris: Armand Colin, 2011.
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.
SARTRE, JEAN-PAUL. A transcendência do ego. Seguido de Consciência de si e conhecimento de si. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa: Edições Colibri, 1994.
SARTRE, JEAN-PAUL. Crítica da Razão Dialética – Tomo I: Teoria dos conjuntos práticos, precedido por Questão de método. Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002a.
SARTRE, JEAN-PAUL. Critique de la raison dialéctique – tome II - l’inteligibilté de la históire. Paris: Galimard, 1985.
SARTRE, JEAN-PAUL. Cahiers por une morale. Paris: Gallimard, 1983.
SARTRE, JEAN-PAUL. L’être et le néant – Essai d’ontologie phénoménologuique. Paris: Gallimard, 2007.
SARTRE, JEAN-PAUL. O Idiota da Família – Gustave Flaubert de 1821 a 1857. Tradução Ivone C. Benedetti. Vol. 1. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.
SARTRE, JEAN-PAUL. O Idiota da Família – Gustave Flaubert de 1821 a 1857. Tradução Julia da Rosa Simões. Vol. 2. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.
SARTRE, JEAN-PAUL. Saint Genet – ator e mártir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002b.
SARTRE, JEAN-PAUL. Situations IX. Gallimard, Paris, 1972.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e Literatura em Sartre – Ensaios Introdutórios. São Paulo: UNESP, 2004.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Conhecimento e identidade histórica em Sartre. Trans/form/Ação, São Paulo, 26(2): 43-64, 2003.
Notas
Notas
2 Vale lembrar que não há separação entre o corpo e o psíquico, entre a facticidade que sou e a sua superação constante. Assim, “o corpo é objeto psíquico por excelência, o único objeto psíquico” (SARTRE, 2007, p. 387).
3 Se trata de compreensão porque o movimento totalizador que passa a ser associado à nadificação a partir da Crítica pressupõe a relação imediata e irrefletida dessa guinada totalizante que é a vida do indivíduo. Isso é legitimado sobretudo quando Sartre assume principalmente em O idiota da família e nas entrevistas desse período, a noção de vivência: No livro que eu escrevi sobre Flaubert eu substitui minha antiga noção de consciência – ainda que eu utilize muito esta palavra, pelo que eu chamo de vivido. Eu vou tentar neste momento explicar o que eu entendo por este termo, que não designa nem os refúgios do pré-consciente, nem o inconsciente, nem o consciente, mas o solo sobre o qual o indivíduo é constantemente submergido por ele mesmo, por suas próprias riquezas, e onde a consciência tem a astúcia em se determinar, ela mesma, pelo esquecimento.” (SARTRE, 1972, p. 108, negrito meu). E ainda: “O que eu chamo de vivido é precisamente o conjunto do processo dialético da vida psíquica, um processo que permanece necessariamente opaco a si mesmo, pois ele é uma constante totalização, e uma totalização não pode ser consciente do que ela é. Com efeito, podemos ser conscientes de uma totalização exterior, mas não de uma totalização que totaliza igualmente a consciência. Nesse sentido, o vivido é sempre suscetível de compreensão, jamais de conhecimento.” (Idem, p.111, negrito meu). Assim, a consciência transcendental é “reconduzida ao vivido” (MOUILLIE, 2000, p. 90). Ademais, em sua autocrítica, Sartre afirma que a concepção de vivido marca uma “evolução” depois de O ser e o nada. (SARTRE, 1972, p. 112). Se a compreensão é um movimento inacabado como a totalização, então ela está sempre se fazendo. Nesse sentido, a totalização atual influi sobre a totalização vivida tal como essa reflui sobre a totalização atual. Por isso é sempre possível novas sínteses compreensivas, estas agora objetiváveis e cognoscíveis, as quais, no limite, possibilitam uma nova metamorfose e uma nova espiral no movimento total, radicalizando a singularidade do movimento e dando um novo sabor a esta singularização. Nesse caso, podemos aferir que a psicanálise existencial não apenas dá a conhecer o movimento primeiro como pode possibilitar novas sínteses compreensivas. Assim, a clínica da psicanálise existencial pode ser uma clínica ou ferramenta em certo sentido transformadora e libertadora. Vale lembrar que Sartre afere que muitos indivíduos fazem sobre si mesmos esta psicanálise no sentido justamente de que no seu movimento de compreensão chegam a uma nova síntese ou metamorfose.
Autor notes
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba – PR, Brasil. Professor substituto da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava – PR, Brasil.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc