Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Medo: o novo mal-estar da humanidade
Pilar Sousa Lima Damião de Medeiros; Paulo Vitorino Fontes
Pilar Sousa Lima Damião de Medeiros; Paulo Vitorino Fontes
Medo: o novo mal-estar da humanidade
Fear: the new malaise of mankind
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 191-198, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Incerteza, insegurança e vulnerabilidade tornaram-se lugares comuns nas sociedades contemporâneas. Este artigo pretende uma reflexão interdisciplinar sobre a construção social e política do medo na modernidade líquida. Zygmunt Bauman, Leonidas Donskis, Martha Nussbaum, Hannah Arendt, Ulrich Beck, Boaventura de Sousa Santos, Bernard Henry-Levy e Umberto Eco são alguns dos autores que iremos colocar em diálogo para melhor compreender as múltiplas narrativas do medo numa era profundamente marcada pela destruição das certezas sociais, pelo agravamento das desigualdades sociais, pelas lógicas de um capitalismo predador, pelo ressurgimento de nacionalismos de exclusão, bem como de particularismos étnico-culturais, que se movem a partir de discursos xenófobos e racistas e, por fim, pelos novos riscos, como a degradação ecológica e como a pandemia COVID19, que atualmente assola as sociedades contemporâneas e domestica os comportamentos sociais.

Palavras-chave:IncertezaIncerteza,RiscoRisco,MedoMedo,Retóricas de ÓdioRetóricas de Ódio,“Outro”“Outro”.

Abstract: Uncertainty, insecurity and vulnerability have become commonplace in contemporary societies. This article aims an interdisciplinary reflection on the social and political construction of fear in liquid modernity. Zygmunt Bauman, Leonidas Donskis, Martha Nussbaum, Hannah Arendt, Ulrich Beck, Boaventura de Sousa Santos, Bernard Henri-Levy and Umberto Eco are some of the authors that we will put into dialogue to better understand the multiple narratives of fear in an era deeply marked by destruction social certainties, the worsening of social inequalities, the logic of predatory capitalism, the resurgence of nationalisms of exclusion, as well as ethnic-cultural particularisms, which move from xenophobic and racist discourses and, finally, new risks , such as ecological degradation and the pandemic COVID19, which currently plagues contemporary societies and domesticates social behaviors.

Keywords: Uncertainty, Risk, Fear, Hate Rhetoric, “Other”.

Carátula del artículo

Artigos

Medo: o novo mal-estar da humanidade

Fear: the new malaise of mankind

Pilar Sousa Lima Damião de Medeiros1
Universidade dos Açores, Portugal
Paulo Vitorino Fontes2
Universidade de Évora; Universidade dos Açores, Portugal
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 191-198, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 14 Janeiro 2021

Aprovação: 18 Abril 2021

O medo veio para ficar” (BAUMAN, 2016: 124)

Pese embora o diferente olhar disciplinar sobre o mesmo objeto de análise, neste caso o medo, tanto Zygmunt Bauman em Medo Líquido [2008], como Martha Nussbaum em A Monarquia do Medo [2018] anunciam que vivemos numa nova era de temores e de fabricações maniqueístas que criam uma dança macabra entre “Nós” e o[s] “Outro[s]”. “Os Outros”, afirma Bauman [2008, p. 92],

na maioria das vezes exceto por breves orgias de ‘solidariedade direcionada” [...] (aqui entendidos como estranhos, anónimos, os sem face com que cruzamos diariamente ou que giram em torno das grandes cidades) são fontes de uma ameaça vaga e difusa.

O “Outro”, o diferente, o estrangeiro, o unheimlich, o indesejado é muitas vezes o bode expiatório de cidadãos amedrontados com o seu futuro e facilmente manietados por políticos que convertem o pânico e a impotência na exclusão de grupos mais vulneráveis como os imigrantes, as minorias étnico-raciais e as mulheres. Bem sabemos que quando um país passa por momentos de maior instabilidade, quer social, quer económica e/ou política acentuam-se as retóricas de ódio e as distorções propositadas da realidade, muitas vezes difundidas na forma de fake news. Viajemos, por exemplo, para países como os EUA, Inglaterra, Brasil, Índia, Hungria e Filipinas, onde as extremas-direitas tem sucessivamente vindo a crescer. Seus líderes recorrem a discursos xenófobos e racistas, a um receituário fascista, a um nacionalismo de exclusão – que ressoa os velhos tambores tresloucados das reivindicações territoriais – menosprezam os seus adversários, concebidos como inimigos, desacreditam os media convencionais e são movidos por uma pulsão anti-sistema e pela manipulação grosseira dos instrumentos democráticos, incluindo o sistema judicial [SANTOS, 2020]. Concomitantemente, muros são erguidos e assistimos àquilo que António Campillo [2015] apelida como a "globalização amuralhada". Algo curioso e inquietante: quando pensamos que nos livramos dos nacionalismos depois da Segunda Guerra Mundial, depois da experiência vivida durante a primeira metade do século XX, esquecemos e voltamos a uma renacionalização. Afinal de contas, os monstros que julgávamos extintos parecem estar a acordar.

O caminhar sonâmbulo na neblina do desconhecido e o sentimento de vulnerabilidade tendem a reforçar uma política do medo, ancorada em discursos de vitimização, por um lado, e na criação de um inimigo, por outro. Pois como dizia Umberto Eco [2011], quando não há um inimigo, nós inventamos um [...]. Os protagonistas que encabeçam as novas extremas-direitas, como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán, Matteo Salvini, Recep Erdoğan, entre outros, estão constantemente a fabricar inimigos: sejam os refugiados e migrantes que, num arremesso macabro, são ilustrados ora como terroristas, ora como ladrões de empregos, ora como uma mancha negra que irá corromper os valores democráticos do mundo Ocidental; sejam os chineses como os propagadores do novo coronavírus; sejam os negros os como os principais responsáveis dos crimes nos EUA, para não falar de muitas outras minorias e subgrupos historicamente oprimidos e humilhados. Tais distorções culturais materializam o espírito de uma época marcada pelo medo e angústia social. Medo este que subestima a fraternidade e envenena a cooperação.

Para Bauman, o medo surge como um dos mais importantes elementos no mundo líquido-moderno, na qual novas configurações e práticas sociais da vida quotidiana passam a ser geridas e alimentadas pela sensação de ansiedade. O sociólogo [2016, p. 124] afirma que existem três razões para se ter medo:

Uma delas era [é e continuará a ser] a ignorância: não saber o que vai acontecer em seguida, o quanto somos vulneráveis a infortúnios, que tipo de infortúnios serão esses e de onde virão. A segunda era [é e continuará a ser] a impotência: suspeita-se que não há nada ou quase nada a fazer para evitar um infortúnio ou se desviar dele, quando vier. A terceira era [é e continuará a ser] a humilhação, um derivado das outras duas: a ameaça apavorante à nossa autoestima e autoconfiança quando se revela que não fizemos tudo o que poderia ser feito, que a nossa própria desatenção aos sinais, a nossa indevida procrastinação, preguiça ou falta de vontade são em grande parte responsáveis pela devastação causada pelo infortúnio. Como é totalmente improvável que se venha atingir o conhecimento pleno do que está por vir, e como as ferramentas disponíveis para prevenir essa chegada dificilmente podem ser consideradas seguras, um certo grau de ignorância e impotência tende a acompanhar os seres humanos em todos os seus empreendimentos. Falando claramente, o medo veio para ficar.

Neste sentido, podemos afirmar que o motto da sociedade industrial “eu tenho fome” transforma-se, nas sociedades da modernidade líquida, em “eu tenho medo”. Para Leonidas Donskis [2016, p. 123] nós

não temos exatamente medo, mas temos medo. Tenho medo, logo existo. Outro lado da mesma moeda, o medo alimenta o ódio e o ódio alimenta o medo. O medo fala a língua da incerteza, da insegurança e da falta de proteção que a nossa época fornece em grandes quantidades e até abundância.

De facto, as incertezas incrementam o novo mal-estar da Humanidade e é precisamente a partir deste sentimento de desamparo que alguns políticos aproveitam para legitimar as suas políticas populistas, nomeadamente ao colocarem pensos rápidos nas feridas da economia, ao anunciarem a retirada dos “extraterrestres” étnicos e refugiados como forma de reparar toda a ansiedade sentida pelos seus concidadãos, e ao promoverem causas que podem ser vistos a combater. Assim, ao mesmo tempo que extraem medo do seu eleitorado, vão musculando o seu poder político.

Nas sociedades contemporâneas, onde se multiplicam os riscos, a cultura do medo tem vindo a exacerbar a política do medo. Os riscos de hoje não só dizem respeito aos Estados, eles tornaram-se constantes e globais: as alterações climáticas, as migrações, o terrorismo em redes transnacionais, o enorme fosso entre Norte-Sul, a pandemia e as crises económicas. Ulrich Beck [2010] já havia avançado que viver no mundo contemporâneo [pós-tradicional] significa aprender a viver com a possibilidade de surgirem perigos de grande escala que põem em questão os imperativos do sistema económico, o status quo burocrático e a segurança dos cientistas. O atual cenário de pandemia tem sido um exemplo da incapacidade humana perante os riscos da nova modernidade, sejam eles manufacturados e/ou naturais. Num mundo sobrecarregado de medo,

cada novo fenómeno pode causar um surto de pânico moral e uma reação exagerada. Podemos ver aqui uma espécie de medo controlado ou domesticado. A questão é que o medo se tornou desde então parte da cultura popular, nutrindo a nossa imaginação perturbada e apocalíptica: terramotos, tsunamis, outros desastres naturais e crimes de guerra deixaram de se situar num plano remoto da realidade. Agora estão permanentemente connosco [DONSKIS, 2016, pp. 122-123].

Hoje, enquanto se torna evidente uma mudança radical nas coordenadas básicas do nosso mundo da vida, os sujeitos deparam-se com a ubiquidade dos medos, sentindo que eles podem vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e do nosso planeta. Para Bauman [2008, p. 8],

[o] medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço, nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda a parte, mas em lugar algum se pode vê-la. ‘Medo’ é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la pensar ou enfrentá-lo, se cessá-la estiver além do nosso alcance.

Os medos, inflamados nas sentenças das novas Cassandras, que atualmente nos aterrorizam, tornam os Sujeitos inquietos com o seu futuro e, no caso da epidemia, com a salvaguarda do seu próprio corpo. Com a ameaça do novo Coronavírus, assevera o intelectual público Francês Bernard-Henri Lévy [2020, pp. 9; 93] surgiu o “primeiro medo mundial”. O mais grave, salienta, “é a epidemia não somente da Covid, mas do medo”. Na sua mais recente obra, Este Vírus que nos Enlouquece [2020], conta que na altura em que o mundo entra num estado de Epochê, entre parêntesis, as atitudes egocêntricas tendem a agudizar-se. Porém, enquanto os media enaltecem uma maior coesão e solidariedade entre os membros das comunidades, há simultaneamente um visível encolhimento do Sujeito no seu Eu e uma preocupação extrema na proteção do seu corpo. Para o filósofo, o que lhe suscita mais desconforto é, acima de tudo, a forma como os media ocidentais, e a população em geral, tornou-se indiferente ao sofrimento alheio, ao sofrimento dos “Outros” [sejam os refugiados, sejam os sem-abrigo, sejam os precários, entre muitos outros]. Desde a epidemia, afirma,

[...] só tínhamos olhos para as máscaras, o álcool-gel e para os testes que ‘oferecia’ à Europa [...] os migrantes tinham desaparecido. O aquecimento global já não existia. A desflorestação da Amazónia [...] ninguém se preocupava. A guerra do Iémen não estava a decorrer. A Síria era uma miragem [...] [HENRI-LEVY, 2020, pp. 93; 91].

Noutras palavras, e tomando de empréstimo as palavras de Boaventura de Sousa Santos, o “Sul”3, as “populações descartáveis”, foram apagadas e esquecidas. Sobretudo em face do pânico, as consciências parecem ter adormecido e, subitamente, os mais frágeis do mundo global tornaram-se invisíveis.

Nesta era de Globalização negativa4, habitada pelo homo consumericus e agora assombrada pelos efeitos perversos da epidemia, instala-se uma maior indiferença e anestesia moral. Tal inanidade manifesta o carácter obsceno do despreendimento, do enfraquecimento das responsabilidades e a frivolidade perante as narrativas de sofrimento dos “Outros”, que agora aparecem como acessórias, ou meras abstrações. A banalidade do mal, que Hannah Arendt noutros tempos e noutras circunstâncias se referia, parece não estar alheia ao novo modus vivendi. Bauman [2008: 89] interroga-se sobre a possibilidade de, em nome do medo e da indiferença, os indivíduos, mesmo que indiretamente, sejam capazes de cometer atos moralmente horripilantes. O sociólogo recorda que

visão mais devastadora de Auschwitz, do Gulag ou de Hiroshima, do ponto de vista moral, não é que poderíamos ser postos atrás do arame farpado ou enviados à câmara de gás, mas que (nas condições adequadas) poderíamos ficar de sentinela ou espargir cristais brancos em chaminés. E não que uma bomba atómica pudesse cair sobre nossas cabeças, mas que (nas condições adequadas) nós poderíamos lançá-la sobre as cabeças de outras pessoas. Um terror ainda maior, verdadeiramente um metaterror, uma incubadora em que todos os outros horrores são gestados, deriva da perceção de que, enquanto escrevo estas palavras ou você as lê, ambos, do fundo dos nossos corações, desejamos que tais pensamentos se desvaneçam, e quando eles recusam a fazê-lo nós permitimos que os males ‘se avolumem e se ampliem’, seguros na sua invisibilidade – deixando de refutá-los, questionando-lhes a credibilidade [...].

Bem sabemos, diz-nos Martha Nussbaum, que uma vida socialmente desprendida é mais fácil e segura. Porém, e recorrendo à posição de Cícero, salienta que estas pessoas deverão ser acusadas de “injustiça passiva”. Bauman denuncia que

a tecnologia emancipada de nossos tempos líquido-modernos obtém efeitos similares por meio de uma espécie de ‘tranquilização ética’ de tudo [...] Oferece aparentes atalhos para os impulsos morais e soluções em doses rápidas para os dilemas éticos, enquanto livra os atores da responsabilidade por ambos, transferindo-a para artefactos técnicos e, no longo prazo, ‘mecanizando moralmente’ os atores, anestesiando sua consciência moral, cultivando a insensibilidade ao pleno dos desafios morais e, de modo geral, desarmando moralmente os atores quando se trata das difíceis escolhas que exigem certo grau de auto-negação e auto-sacrifício [...] [BAUMAN, 2008, p. 125].

É aqui que recai o carácter profundamente crítico de Bauman, quando assume que a insustentável leveza do ser, aliada à individualização, a um silêncio cúmplice da indiferença e à degradação das solidariedades poderá permitir que o mal volte a espreitar com rostos de fúria e abra as portas do inferno de Dante.

Não obstante, esperança é também um dos vocábulos que surge nas proposições teóricas dos autores aqui citados. Martha Nussbaum, sob um prisma filosófico-psicológico, e Zygmunt Bauman, com o seu aguçado olhar sociológico, mantêm esperança numa sociedade mais justa e humana. Ambos apresentam propostas práticas capazes de desconstruir a fabricação de medos nebulosos. Nussbaum, por exemplo, concorda com Kant quando assegura que temos o dever de trabalhar para o aprimoramento das sociedades, sendo que a ação energética para servir o bem público não é possível sem esperança5. Reitera a relevância de construir uma esperança prática, não uma ociosa, em que as estratégias devem ser pessoas e locais. Apela a uma variedade de instituições e ações que podem ajudar neste processo, nomeadamente a religião, as artes, a educação em artes liberais, os movimentos de protestos pacíficos [por exemplos os liderados por Martin Luther King e Nelson Mandela], o cultivo de um espírito de deliberação socrático e o estudo de teorias da justiça. Propõe, ainda, um serviço nacional [serviço comunitário] que exija que os jovens entrem em contacto com pessoas de diferentes classes sociais, grupos étnicos e idades com o intuito de compreender e mais facilmente respeitar o “Outro” na sua totalidade. Para alcançar uma sociedade mais humana, a “filósofa das emoções” alega que a democracia requer que todos nós tenhamos a capacidade de limitar o nosso narcisismo e abraçar a reciprocidade, pois afinal de contas o medo é monarca6 e a reciprocidade democrática uma concretização difícil. Considerando o atual contexto de incerteza, vulnerabilidade e inconsistência, Nussbaum [2018], apoiada nos estudos do psicanalista Donald Winnicott, salienta que ultrapassar o medo é uma questão relacional e sugere que, tal como a relação entre criança-pais, quando existe um “facilitating environment” que fomente confiança, segurança, reciprocidade e amor, o “bébé monarca”7 dá lugar ao “democratic and moral self”. Para a filósofa, “a democracia exige que pensemos que toda a vida é valiosa e também exige um conhecimento da situação das diferentes classes sociais e grupos na sociedade”. É também com Boaventura de Sousa Santos que encontramos a valorização da dimensão humana no salto qualitativo de uma democracia. Tal como Nussbaum, o sociólogo destaca o papel das micro-instituições sociais numa altura em que as democracias são progressivamente esvaziadas pela ortodoxia neo-liberal do poder económico e do calculismo financeiro, ao mesmo tempo que são mordidas por protagonistas sinistros de pretensões fascistas. Aponta, assim, para “[...] soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo o custo” [SANTOS, 2020, p. s/n].

Para além de delinear um paradigma democrático assente na dimensão humana, torna-se urgente incluir no próprio discurso democrático novos conceitos como a dúvida e a incerteza [BECK, 2010, p. 40]. O discurso político necessita de ser transparente e de se adequar às novas vulnerabilidades, pois só assim consegue desconstruir os mitos das extremas-direitas que ameaçam as democracias contemporâneas. Boaventura de Sousa Santos, em tom de esperança na sua mais recente obra, A Cruel Pedagogia do Vírus [2020, p. s/n], chega mesmo a afirmar que estas posições extremistas poderão sair enfraquecidas como resultado da má gestão política durante a presente crise humanitária. Afirma que

os governos de extrema-direita ou de direita neoliberal falharam mais do que os outros na luta contra a pandemia. Ocultaram informação, desprestigiaram a comunidade científica, minimizaram os efeitos potenciais da pandemia, utilizaram a crise humanitária para chicana política [...].

Pese embora saibamos da necessidade de um maior distanciamento temporal para uma análise mais precisa e rigorosa dos acontecimentos, a verdade é que o diálogo terá de surgir como alternativa viável para ultrapassar os medos construídos. Uma ação comunicativa que possibilite um discurso democrático deliberativo, livre, reflexivo e crítico [HABERMAS, 1981]. Para Bauman [2016, p. 133] este é um dos exercícios mais desafiantes do nosso tempo por necessitar

de muita dedicação, boa vontade, disponibilidade para chegar a acordo, respeito mútuo e aversão a todas as formas de humilhação humana; e, evidentemente, a firme determinação de restaurar o equilíbrio perdido entre o valor da segurança e o da adequação ética. Cumpridas todas essas condições, e só dessa maneira, o diálogo e o acordo [a ´fusão de horizontes’ de Hans Gadamer] podem [apenas podem], por sua vez, transformar-se no novo ‘movimento perpétuo’ predominante nos padrões de coexistência humana. Essa mudança não fará vítimas, só beneficiários.

Em tempos adversos parece-nos que o caminho a percorrer deve passar pela mobilização de consciências e por posições firmes e decididas dos Governos democráticos a favor da solidariedade, da paz, da justiça social e dignidade humana. Para Umberto Eco este percurso terá de ser feito pela via do silêncio e não do ruído que obstrui o pensamento e atordoa os valores ético-morais. Propõe o silencio como via para tornar visíveis e audíveis as experiências humanas removidas da consciência pública:

Eis que, portanto [...] direi que um dos problemas éticos que se põe é como voltar ao silêncio. [...] Abordar uma semiótica do silêncio: pode ser uma semiótica da reticência, uma semiótica do silêncio no teatro, uma semiótica do silêncio em política, uma semiótica do silêncio no discurso político, isto é, uma longa pausa, o silêncio como consenso, o silêncio como negação, o silêncio na música” [ECO, 2011, pp. 200-201]8.

Enfim, o silêncio na Humanidade...

Material suplementar
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, [1949] 1973.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2008.
BAUMAN, Zygmunt. A Chronicle of Crisis 2011-2016. Social Europe Edition, 2017.
BAUMAN, Zygmunt & DONSKIS, Leonidas. Cegueira Moral: A Perda de Sensibilidade na Modernidade Líquida. Lisboa: Relógio D’Água, [2013] 2016.
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.
CAMPILLO, Antonio. Tierra de nadie. Cómo pensar (en) la sociedad global. Barcelona: Herder, 2015.
ECO, Umberto. Construir o Inimigo e Outros Ensaios Ocasionais. Lisboa: Gradiva, 2011.
HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handels Bd. II: Zur Kritik der funktionalistischen Vernunft. Frankfurt am Main, 1981.
LÉVY, Bernard-Henri. Este Vírus Que Nos Enlouquece. Lisboa: Guerra e Paz, 2020.
NUSSBAUM, Martha. The Monarchy of Fear: A Philosopher Looks at Our Political Crisis. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Lisboa: Almedina, 2020.
Notas
Notas
3 Boaventura de Sousa Santos [2020, p. s/n]: “[...] o Sul não designa um espaço geográfico. Designa um espaço-tempo político, social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual. (as mulheres, os trabalhadores precários, os trabalhadores da rua, os sem-abrigo, os moradores nas periferias pobres das cidades, os refugiados, imigrantes indocumentados, populações deslocadas, os deficientes, os idosos”.
4 Bauman [2008, p. 126]: “Globalização altamente seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da coerção e das armas, do crime e do terrorismo, todos os quais agora desdenham a soberania nacional e desrespeitam quaisquer fronteias entre os Estados”.
5 “Hope is not and cannot be inert. It requires action, commitment.” Hope has placebo effect… keep love and trust alive [NUSSBAUM, 2018, p. 208]. “Kant is right: good works need hope. When you have a child, you have no idea, really, what sort of person your child will become, or what sort of life he or she will have. But you know that you want to be a good parent: so, you embrace hope. Practical hope, not idle hope, since you get to work to produce a good future for your child” [NUSSBAUM, 2018, p. 209].
6 Nussbaum [2018, p. 82]: “[…] in our monarchical way we expect the world to be made for our service. It gratifies our ego: (…) the act of pinning blame and pursuing the ‘bad guy’ is deeply consoling. It makes us feel control rather than helplessness”.
7 Seguindo a linha de pensamento de Rousseau – que uma criança nasce na monarquia – está desamparada e só pode sobreviver se ‘escravizar’ as pessoas, mas ela evolui e torna-se um ser humano maduro quando deixa de ver os seus pais como extensão de si mesmo e passa a respeitá-los e a retribuir.
8 Ver Eco [2011, p. 200]: “É apenas no silêncio que funciona o único e verdadeiramente poderoso meio de informação que é o murmúrio. Cada povo, mesmo que oprimido pelo mais censurador dos tiranos, sempre conseguiu saber tudo aquilo que acontece no mundo através do murmúrio. (...) Perdendo a condição do silêncio, perde-se a possibilidade de captar o murmúrio, que é o único meio fundamental e fidedigno de comunicação.”
Autor notes
1 Doutora em Sociologia da Cultura pela Albert-Ludwigs Universität Freiburg, Alemanha. Professora da Universidade dos Açores (UAc), Ponta Delgada, Portugal. Investigadora efetiva do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – CICS.UAc/CICS.NOVA.UAc.
2 Doutor em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais pela Universidade de Évora (UÉVORA), Évora, Portugal. Investigador do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade dos Açores (UAc) e do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora (UÉVORA).
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc