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DISCURSO OPOSITIVO E IRONIA NA PÁGINA "HUMANS OF PROTESTO"
OPPOSITIONAL SPEECH AND IRONY AT THE PAGE "HUMANS OF PROTESTO"
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 10, núm. 1, pp. 16-30, 2017
Universidade Federal de Minas Gerais

Análise Semiótica da Comunicação


Recepção: 27 Agosto 2016

Aprovação: 03 Outubro 2016

DOI: https://doi.org/10.17851/1983-3652.10.1.16-30

Resumo: A página do Facebook Humans of Protesto expõe de forma irônica os atores apresentados como mais incoerentes e bizarros das manifestações ocorridas principalmente em 15 de março e 12 de abril de 2015, lideradas pelo Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua e Revoltados On Line. A estratégia de argumentação realizada para desqualificar os protestos e qualificar negativamente seus participantes é analisada neste artigo com base nas definições de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) sobre os lugares comuns e os discursos retóricos, diferentes formas de argumentação. O estudo possibilita a compreensão de como as estratégias de discurso net-ativista promovidas pela página analisada são construídas para aumentar a adesão de quem acessa seu conteúdo.

Palavras-chave: argumentação, redes sociais, ironia, política.

Abstract: The Facebook page Humans of Protesto exposes in an ironic way the more inconsistent and bizarre characters of demonstrations mainly occurred in March 15th and April 12th of 2015, led by Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua and Revoltados On Line. The strategy of argumentation carried out to discredit the protests and negatively qualify its participants is analyzed based on the definitions of Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) about platitudes and rhetorical speeches, different forms of argumenting. The study allows the understanding of how speech strategies promoted by that page is built to increase the support of those who access its contents.

Keywords: argumentation, social media, irony, politics.

1 Introdução

O projeto artístico humanitário iniciado em novembro de 2010 pelo fotógrafo Brandon Stanton em Nova Iorque reúne retratos das pessoas que vivem nessa cidade, junto com citações e pequenas histórias que contam um pouco das suas vidas, chamado de HONY ou Humans of New York[1]. Cinco anos depois, em 12 de outubro de 2015, foram contabilizados mais de 15,7 milhões de seguidores na página do Facebook e 3,9 milhões no Instagram[2]. O sucesso da iniciativa inspirou a criação de dezenas de outros sites, como o Humans of Tel Aviv[3] e o Humans of São Paulo[4]. Essa ideia de apresentar imagens de pessoas para representar seu estilo de vida, a conjuntura em que vivem, como se relacionam e pensam também está presente na página Humans of Protesto[5], objeto de análise deste trabalho.

Na página do Facebook, e também no Tumblr, Humans of Protesto apresenta a sua opinião sobre recortes fotográficos e audiovisuais dos protestos que exigem a saída da presidente Dilma Roussef, reeleita em 26 de outubro de 2014. Liderados pelo Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua e Revoltados On Line, a insatisfação dos cidadãos resultou em duas grandes manifestações ocorridas em 15 de março de 2015 e 12 de abril de 2015 e a entrega do pedido de impeachment em 21 de outubro ao então presidente da câmara Eduardo Cunha, além de outros atos públicos mais pulverizados.

Sem posicionamento partidário, mas com claro posicionamento político contra as manifestações, a página Humans of Protesto expõe de forma irônica os atores apresentados como mais incoerentes e bizarros nesses atos públicos, posicionando-se de forma contrária ao intervencionismo militar e ao impeachment através de uma linha editorial que reduz ao absurdo as expressões públicas registradas em protestos (fotos de faixas ou mensagens em redes sociais). Também se utiliza da ironia e de outros argumentos como técnicas de refreamento para desqualificar o discurso empregado nas manifestações e aplicar a noção de grupo estendida aos participantes.

Os recortes dos atos públicos das manifestações objetivam o refreamento dos valores da manifestação, opondo-se a qualquer renovação de concepção que poderia ser formada sobre o evento, contribuindo para a estabilidade do sentido de desqualificação proposto pela página. Trata-se da utilização do preconceito ou do que Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005, p. 358) chamaram de prevenção.

Os casos em que a ação do ato sobre a pessoa ou da pessoa sobre o ato é completamente rompida são relativamente raros na prática argumentativa, pois são casos extremos. A maior parte das técnicas neles utilizadas não objetivam suprimir, mas restringir essa ação; é por isso que as chamaremos de técnicas de refreamento. Uma dessas técnicas é o preconceito, ou melhor talvez a prevenção. Interpreta-se e julga-se o ato em função do agente, fornecendo este o contexto que permite entender melhor aquele. Graças a isso, mantém-se uma adequação entre o ato e a concepção que tínhamos da pessoa.

As redes sociais digitais, por sua estrutura e organização, potencializam essa qualificação através de seus mecanismos de compartilhamento que conferem ao emissor a possibilidade de apresentar seu posicionamento ou comentário crítico em cada nova postagem destinada aos seus amigos nas redes, além de formular suposições sobre o que representam.

Os algoritmos que regulam a exibição de conteúdo para os usuários das redes sociais atuam de acordo com os critérios de relevância atribuídos a cada usuário da rede. Quanto mais o usuário curtir ou se engajar com algum conteúdo, mais esse conteúdo é considerado relevante para ele e mais informações e notícias desse tipo aparecerá em seu mural de notícias ou feeds de notícia.

Uma das principais razões que as pessoas vêm até o Facebook é para ver o que está acontecendo em seus Feeds de Notícia. Nosso objetivo com o Feed de Notícias sempre foi o de mostrar às pessoas aquilo que elas querem ver. Quando pessoas veem conteúdo que é relevante para elas, elas estão mais dispostas a se engajar com o Feed de Notícias, inclusive em conteúdos de negócios (FACEBOOK, 2014[6]).

O resultado dessa personalização de conteúdos promovida pelos algoritmos de seleção das redes sociais é a visualização seletiva de conteúdos que concordam com o ponto de vista do usuário da rede. Esse fenômeno foi chamado de “filtro bolha”, observado e relatado por Eli Pariser (2011), net-ativista e cofundador do site avaaz.org. Em seu livro The filter bubble: what the internet is hiding from you afirma que “nossos vizinhos virtuais estão cada vez mais parecidos com os nossos vizinhos reais, e nossos vizinhos reais se parecem cada vez mais conosco”[7](PARISER, 2011, p. 30).

Essa afirmação aponta para uma formação clusterizada[8] da rede social Facebook. Essa formação indica uma alta conexão entre grupos de pessoas que se conectam a outros grupos menores, são os chamados pequenos mundos (BARABÁSI, 2009; WATTS, 1999; RECUERO, 2004), muito comuns em redes sociais porque “os seres humanos possuem o desejo inato de constituir rodas e grupos que lhes proporcionem familiaridade, segurança e intimidade” (BARABÁSI, 2009, p. 44).

Para a página Humans of Protesto, ter um público que compartilha suas visões políticas e posicionamentos aumenta a facilidade de aceitação do seu conteúdo, uma vez propagado nas redes por pessoas com o mesmo posicionamento. Estando na mesma bolha de opiniões, os discursos hipotéticos atribuídos às pessoas fotografadas ou filmadas nos protestos, os julgamentos de suas atitudes ou a caracterização caricatural dessas pessoas são rapidamente aprovadas e compartilhadas por quem curte e segue a página.

Este trabalho faz uma análise do discurso publicado na página Humans of Protesto no intervalo de 15 março a 09 de novembro de 2015, procurando identificar as estratégias argumentativas de lugar-comum, reversão, ironia e ridículo utilizadas para aumentar a adesão à tese de que os protestos não têm fundamento e, assim, caracterizar negativamente as pessoas que deles participam.

A classificação dos lugares comuns e a conceituação dos argumentos de contradição, ironia, ridicularização e redução ao absurdo trazidos por Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) são utilizados como base referencial para o processo de identificação dos argumentos expostos nos discursos analisados, assim como o resgate à compreensão de conceitos clássicos da retórica na obra de Aristóteles (1983). Diferente da retórica de Aristóteles, aplicável a todos os campos da razão humana, a retórica de Perelman limita-se a estudar uma lógica específica para os valores.

O pensamento de Chaim Perelman ancora-se em conceitos filosóficos gregos, limitando-os devido ao racionalismo cartesiano, positivista, e aplicando-os na construção da chamada nova retórica. Apresentando-se como uma forma de fornecer critérios universais para a atribuição de valores, essa teoria foi utilizada nesta pesquisa para a identificação do processo de atribuição de valores no discurso da página analisada.

Constatou-se que a página Humans of Protesto constrói através da rede social digital Facebook um discurso contra-ativista direcionado à desqualificação das manifestações em virtude de sua ruptura com os valores universais, reduzindo o sentido do evento às contraditoriedades lógicas dos lugares comuns, ao ridículo, absurdo, e utilizando-se do humor provocado pela ironia do discurso de seus manifestantes.

2 Lugar comum

A utilização de pressupostos é, notavelmente, uma das técnicas da página para submeter o seu público num dado universo de valores, para que, partindo desses pressupostos entendidos como verdadeiros por ambas as partes, possa persuadi-lo de que os protestos são sem sentido ou irracionais. Tratam-se de técnicas argumentativas porque utilizam os valores de uma sociedade ou de um grupo que são entendidos como algo compartilhado por todos, como um senso comum para promover a adesão.

O objetivo de toda argumentação, é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará no momento oportuno (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 50).

Os pressupostos ou premissas de natureza muito geral são também chamados de “lugares”. O “lugar-comum” é entendido na retórica como “fonte geral de onde os oradores podem tirar argumentos e provas para qualquer assunto” (HOUAISS, 2009) e se caracterizam por grande generalidade, tornando possível a sua utilização em qualquer circunstância.

Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) apresentam no Tratado da Argumentação a existência de diversos lugares-comuns, como: lugar da quantidade; lugar da qualidade; lugar da ordem; lugar do existente; lugar de essência e lugar de pessoa. A partir de suas definições, os lugares comuns são identificados na página Humans of Protesto como forma de aumentar a adesão à tese contrária aos ideais selecionados nas fotografias e recortes das manifestações.

O lugar da quantidade afirma que uma coisa é melhor que outra em razão de sua quantidade. “Um grande número de coisas boas é mais desejável do que um número menor, quer absolutamente, quer quando um está incluído no outro” (ARISTÓTELES, 1983, p. 45). Aquilo que serve a um maior número de finalidades é preferível ao que serve menos; o que é mais duradouro é melhor do que é o que é menos duradouro. O lugar de quantidade afirma que o que tem mais é melhor do que o que tem menos. A sua utilização na página pode ser vista no exemplo da Figura 1.


Figura 1
Lugar de quantidade, argumentação quase-lógica.
Página Humans of Protesto no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: ago. 2016.

Alguns argumentos comparam-se a raciocínios lógicos ou matemáticos, mas que só se aplicam às certezas matemáticas sem rigor na maneira de julgar a questão; por aparentarem uma demonstração formal, possuindo uma natureza não-formal, são chamados argumentos quase-lógicos. A comparação feita no texto da Figura 1 parte de duas premissas verdadeiras para uma conclusão propositadamente absurda e que provoca um efeito cômico.

O lugar de qualidade é consequência da valorização daquilo que é único: “damos mais valor a posse das coisas que não podem ser adquiridas com facilidade” (ARISTÓTELES, 1983, p. 46). O valor do único constitui-se a partir da sua originalidade em distinção daquilo que é comum.

Mesmo o grande número aprecia o que se distingue, o que é raro e difícil de realizar. O mais difícil, dirá Aristóteles, é preferível ao que o é menos, pois apreciamos mais a posse das coisas que não são fáceis de adquirir. […] Apresentar uma coisa como difícil ou rara é um meio de valorizá-la (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 102).

Na página Humans of Protesto, algumas publicações utilizam o lugar de qualidade para atribuir características de prosperidade e riqueza aos manifestantes, o que desqualificaria os motivos para a queixa ou o desacordo com o status quo. A legitimação dos motivos pelos quais os manifestantes reivindicam a alteração do governo é questionado pelo pressuposto de que o ato de protestar deve servir à reparação de algo tido como injusto, o que não é entendido como correto para quem possui muitos bens ou muitas coisas de valor.

Diferentes postagens da página Humans of Protesto procuram retirar o caráter distintivo de reclamação ou queixa das manifestações, serve-se do lugar de qualidade para valorizar a posição privilegiada dos manifestantes.


Figura 2
Lugar de qualidade
Página Humans of Protesto no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: ago. 2016.

A Figura 2 apresenta um exemplo em que os manifestantes são registrados em posições privilegiadas, sorrindo e posando para fotos em locais VIPs ou gourmets de bairros distintos e prósperos, o que atribuiria valores positivos a essa posição e descaracterizaria a sua insatisfação.

O lugar de ordem é consequência da superioridade daquilo que vem primeiro sobre o que vem depois. Pode relacionar-se com fins causais; o que é anterior e desencadeia uma ação tem valor mais positivo do que o seu efeito. O lugar de ordem aparece em Humans of Protesto como uma estratégia de argumentação que busca atribuir o efeito, que é o próprio protesto a uma causa anterior: o resultado das eleições de 26 de outubro de 2014 que certificou a derrota do candidato Aécio Neves. Quando se tem dois acontecimentos relacionados por um vínculo causal é possível transferir os valores de uma consequência para a sua causa. Esse tipo de argumento é chamado argumento pragmático.

O argumento pragmático parece desenvolver-se sem grande dificuldade, pois a transferência para a causa, do valor das consequências, ocorre mesmo sem ser pretendido. Entretanto quem é acusado de ter cometido uma má ação pode esforçar-se por romper o vínculo causal e por lançar a culpabilidade em outra pessoa ou nas circunstâncias (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 303).

A Figura 3 apresenta a reprodução de uma notícia que identifica uma elevada quantidade de eleitores do candidato Aécio Neves e o comentário irônico “APARTHEIDÁRIO” procura negar a relação partidária que é afirmada estatisticamente na notícia. Ainda admite mais de uma leitura na referência ao regime de segregação racial instaurado na África do Sul de 1948 até 1994 “no qual os direitos da maioria dos habitantes foram cerceados pelo governo formado pela minoria branca” (APARTHEID In: WIKIPÉDIA, 2015).

A referência se confirma em outra publicação que apresenta uma imagem repleta de manifestantes de pele branca, em que se lê: “foto do protesto em Salvador, cidade onde 80% da população é negra, a cidade com maior população negra do mundo fora da África.........”[9].


Figura 3
Lugar de ordem, a causa é mais importante que o efeito
Página Humans of Protesto no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: ago. 2016.

O lugar do existente afirma a valorização mais positiva daquilo que existe em detrimento do que não existe ou que pode vir a existir. A vantagem do que existe sobre o que ainda vai ser realizado se relaciona com a concepção ou valorização do existente, uma vez que se o que existir for a falta, obviamente, a potencialidade da existência será mais valorizada.

O lugar do existente aparece de forma mais abstrata em publicações que defendem a manutenção do estado democrático, o modo de governo existente, e se posicionam contra a mudança para o governo em uma ditadura militar. A predominância da força da argumentação não se constrói pela vantagem de manutenção de um estado em virtude de um processo trabalhoso de modificação e sim através da qualificação negativa na essência do que representaria essa mudança. Sendo, portanto, o lugar de essência, o lugar-comum que em um nível concreto possuirá mais recorrências na análise da página Humans of Protesto.

O lugar de essência atribui um valor superior aos elementos de um grupo que são representantes de um valor superior, ou seja, carregam consigo a essência desse valor.

Se A é melhor do que B em sentido absoluto, também o melhor dos componentes de A é superior ao melhor dos componentes de B; por exemplo, se o “homem” é melhor do que o “cavalo”, também o melhor dos homens é superior ao melhor dos cavalos. E inversamente, se o melhor integrante de A é superior ao melhor integrante de B, então A é melhor do que B em sentido absoluto (ARISTÓTELES, 1983, p. 47).

A valorização da liberdade dos regimes democráticos contra a opressão dos regimes ditatoriais compõe o lugar-comum de essência na argumentação da página Humans of Protesto. As liberdades de imprensa, de opinião, direitos de cidadania, civis, direitos culturais, liberdade de ir e vir, que são características dos regimes democráticos, atribuem a essa forma de governo valoração positiva superior a qualquer regime ditatorial.

A Figura 4 apresenta um pedido de socorro dos manifestantes às forças armadas para a realização de uma reforma política. O comentário da página é uma transcrição do texto traduzido para o inglês no próprio cartaz da manifestação. A crítica ao apelo não é manifestada no comentário da página. Por usar o lugar-comum de essência, a crítica expressa torna-se dispensável, as características de clusterização da própria rede social, reunindo pessoas com o mesmo posicionamento político, também é um condicionante para que os membros seguidores da página compartilhem desse lugar-comum. Há evidência da corroboração desse posicionamento contrário nos comentários críticos a essa publicação, realizados pelos seguidores da página.

A página se exime da necessidade de afirmar o quão inapropriado é o pedido do cartaz, baseando-se nos pressupostos comuns compartilhados com seu público.


Figura 4
Lugar de essência
Página Humans of Protesto no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: ago. 2016.

O lugar de pessoa é consequência da superioridade do que está ligado às pessoas.

Quando um candidato a governador diz, por exemplo, que, se for eleito, construirá trinta escolas, seu opositor dirá, utilizando o lugar de pessoa, que não construirá escolas. Procurará, isto sim, dar condições mais humanas ao trabalho do professor, melhores salários, programas de reciclagem etc. Dará preferência ao homem, não aos tijolos (ABREU, 1999, p. 91).

Os valores atribuídos às relações e condições humanas são mais importantes do que qualquer outro valor. A Figura 5 apresenta um indivíduo com uma camisa amarela, característica dos manifestantes, tirando uma fotografia em pé sobre uma lixeira enquanto uma outra pessoa atrás dele está catando latas no chão. A ideia de que a pessoa que faz parte do protesto não está se importando com o catador de lixo é imputada no texto escrito pela página para atribuir ao homem fotografado a enunciação de um discurso que prioriza a posição privilegiada de uma fotografia para divulgação na rede social Instagram, na internet, em detrimento da preocupação com as péssimas condições do trabalho do outro homem agachado.


Figura 5
Lugar de pessoa
Página Humans of Protesto no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: ago. 2016.

As pessoas que têm acesso às publicações da página Humans of Protesto encontram argumentos baseados em valores universais, o que fortalece a possibilidade de adesão àquelas ideias. O público que já compartilha dos ideais contrários às manifestações encontra nas publicações motivos elementares para continuar com as suas posições.

Estar de acordo com os argumentos de valores comuns é um dever para qualquer indivíduo racional. Ao se utilizar de argumentos que fazem uso dessa valoração em contraposição aos enunciados dos manifestantes, a página Humans of Protesto estabelece a ideia de que aquelas pessoas que ali estão não possuem coerência ou lógica.

Os usuários da rede social Facebook que compartilham ou comentam as publicações da página podem utilizar essa qualidade, de um argumento que não se pode pôr em dúvida, para exaltar seus posicionamentos políticos como sendo superiores aos que lhes são comparados ou para depreciar seus opositores e incitar o riso às suas ideias.

3 Contradição, ridículo e absurdo

Além da utilização de lugar-comum, outras estratégias argumentativas foram identificadas nas publicações da página Humans of Protesto relacionadas exclusivamente à desqualificação do discurso dos manifestantes, como contradição, ironia, ridicularização e redução ao absurdo.

A contradição surge pela enunciação de uma afirmação que implica a negação de outra, duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras ou simultaneamente falsas.

A técnica argumentativa da retorsão consiste em uma contestação realizada com os próprios argumentos do interlocutor, evidenciando uma possível contradição no discurso. É um argumento quase-lógico porque depende da interpretação dos argumentos. Os casos em que é possível aplicar esse tipo de técnica, também conhecida como autofagia, enfraquecem a tese do interlocutor ao apresentar uma reflexão sobre as consequências de sua afirmação, ampliando-as e apresentando seu impacto na argumentação do próprio enunciador ou em um lugar-comum.

A asserção, dentro de um mesmo sistema, de uma proposição e de sua negação, ao tornar manifesta uma contradição que ele contém, torna o sistema incoerente e, com isso, inutilizável. Trazer a lume a incoerência de um conjunto de proposições é expô-la a uma condenação inapelável, é obrigar quem não quer ser qualificado de absurdo a renunciar pelo menos a certos elementos do sistema (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 221).

A Figura 6 apresenta uma imagem em que manifestantes pedem socorro para a democracia e a intervenção militar temporária. Na faixa fotografada está escrito: “SOS DEMOCRACIA: FORA COMUNISTAS, INTERVENÇÃO MILITAR TEMPORÁRIA JÁ”. A página Humans of Protesto comenta a imagem com um desenho feito em caracteres textuais que expressa uma reação de incapacidade para compreender o significado do cartaz dos manifestantes. Desse modo, declara a incoerência do que está sendo pedido.


Figura 6
Retorsão
Página Humans of Protesto no Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: ago. 2016.

Algumas publicações destacam manifestantes defendendo a sonegação fiscal, prática ilegal realizada para benefício próprio, em meio às outras manifestações contra a corrupção, por exemplo uma faixa com o escrito: “Sonegar é legítima defesa!”. Sendo a sonegação uma forma de corrupção, a prática admitida é colocada em contradição com o ideal de conduta ilibada também reivindicado.

A argumentação que utiliza ironia faz uso de um discurso que promove um sentido contrário ao que foi dito; em alguns casos, pressupõe um conhecimento contextual e complementar. Trata-se de uma técnica argumentativa que não pode ser utilizada em situações em que a opinião do enunciador não é conhecida, “apenas a concepção que se faz das convicções de certos meios pode fazer-nos adivinhar se determinados textos são ou não irônicos” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 236). Há na ironia um caráter social, pela necessidade de compartilhamento dos pressupostos.

É na construção do conhecimento contextual complementar necessário para o efeito da ironia que a rede social Facebook, através do fenômeno do “filtro bolha”, observado por Parisier (2011), reduz as lacunas e aproxima os pressupostos necessários para entender a ironia do que é postado.

A descrição da página Humans of Protesto é assim apresentada: “SO GENTE DE BEM PROTESTANDO CONTRA TUDO QUE TA AÍ, PELA DEMOCRACIA E PELA VOLTA DA DITADURA! FORA DILMA! FORA PT! FORA COMUNISTAS!”[10]. Enuncia-se uma contradição no discurso que tenta reproduzir o que é feito pelas pessoas dos protestos e expande o ridículo da contradição às outras reivindicações legítimas.

Uma outra técnica de argumentação encontrada na página Humans of Protesto é a utilização do ridículo, que acontece quando é criada uma situação cômica ou irônica utilizando o argumento do interlocutor.

O ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo riso […] Este é a sanção da transgressão de uma regra aceita, uma forma de condenar um comportamento excêntrico, que não se julga bastante grave ou perigoso para reprimi-lo com meios mais violentos. Uma opinião é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 233).

O efeito de ridicularização também pode ser atingido através da técnica de redução ao absurdo ou reductio ad absurdum. Trata-se da aceitação de uma proposição para a apresentação de uma situação que deriva de uma consequência absurda ou ridícula, concluindo então que a proposição inicial está equivocada.

Um vídeo compartilhado na página com a afirmação de que a próxima manifestação será em prol do impeachment do papa[11] caracteriza o efeito de ridicularização proporcionado pela redução ao absurdo. O conteúdo declamado no vídeo pelo ator Gregório Duvivier, caracterizado com camisa verde e amarela e apresentando-se como um manifestante, assume algumas hipóteses que motivam as manifestações em prol do impeachment como válidas e aplica as mesmas premissas para a obtenção de uma consequência absurda que no vídeo é a expulsão do líder da igreja católica, o papa Francisco, deixando implícito que se as motivações dos protestos fossem admitidas como verdadeiras as consequências poderiam ser absurdas.

4 Considerações finais

A análise de algumas das técnicas argumentativas utilizadas pela página Humans of Protesto torna possível a compreensão de como a página atua de forma essencialmente opositiva ao ativismo do Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua e Revoltados On Line.

O lugar de quantidade é utilizado para indicar quão pouco significativa são as manifestações, o que restringe os desejos reivindicados a uma minoria pouco representativa dentro de um estado democrático.

A posição privilegiada dos manifestantes através dos pressupostos oferecidos pelo lugar de qualidade é, também, uma forma de deslegitimar as reivindicações. A manifestação de desejos é apresentada como um excesso para aqueles que já conquistaram uma posição superior.

O pressuposto de superioridade da causa em relação ao efeito, lugar de ordem, foi explorado pela página para explicar o processo que dá ao comportamento dos manifestantes a intensidade observada. Ao apontar o resultado das eleições como motivo para a insatisfação, associa a imagem dos manifestantes às pessoas que não aceitam a regra previamente acordada pelo processo democrático. Isso é corroborado também pela quantidade de publicações contendo imagens de manifestantes pedindo impeachment ou intervenção militar.

A valorização do homem em relação a outros seres, objetos ou intenções, pressuposto do lugar de pessoa, também aparece como forma de caracterizar os manifestantes que em alguns registros em vídeo aparecem imersos em revolta e ódio. A exposição de seus desejos violentos em cartazes ou gritos contra opositores ou o descaso, como visto na Figura 5, materializa a compreensão de que os manifestantes desvalorizam o ser humano em virtude de sua opinião política ou do que representa.

O lugar do existente e o lugar de essência caracterizam o ativismo da página em favor da manutenção do estado democrático de direito, que garante os direitos e liberdades civis e em respeito ao próprio processo democrático estabelecido na legislação eleitoral. É através desses argumentos que a página defende a sua posição política de manutenção da ordem vigente.

As publicações conduzem a uma caracterização grotesca e cômica dos manifestantes e da manifestação, apresentando-os como pessoas sem discernimento, que agem de forma insensata e justifica essas características pela recusa aos valores universais. Não há na página Humans of Protesto a publicação de discursos sensatos, adequados aos valores universais, o que impede os visitantes de uma concepção holística das manifestações ou da identificação de uma motivação justa para aquele ato, fazendo com que a caracterização negativa dos manifestantes se estenda a todo o protesto em uma sinédoque ideológica que deprecia todos os seus participantes.

Referências

ABREU, A. S. A arte de argumentar: Gerenciando razão e emoção. São Paulo: Atelie Editorial. 1999.

APARTHEID. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2015. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Apartheid&oldid=43829484. Acesso em: 6 nov. 2015.

ARISTÓTELES. Retórica Livro I. Coleção Os Pensadores 3ª edição. São Paulo: Abril. 1983.

BARABÁSI, A. L. Linked, a nova ciência dos networks: como tudo está conectado a tudo e o que isso significa para os negócios, relações sociais e ciências. São Paulo: Leopardo, 2009.

FACEBOOK FOR BUSINESS. An Update to News Feed: What it Means for Businesses. 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/business/news/update-to-facebook-news-feed. Acesso em: 05 nov. 2015.

HOUAISS, A. Houaiss Eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva Ltda, 2009. CD-ROM.

PARISER, E. The Filter Bubble: What the Internet Is Hiding From You. New York: The Penguin Press, 2011.

PERELMAN, C. & OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

RECUERO, R. Redes sociais na Internet: Considerações iniciais. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, v. 2, n. 2003, p. 1-15, 2004. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/recuero-raquel-redes-sociais-na-internet.pdf. Acesso em: 27 ago. 2016.

WATTS, D. J. Small Worlds: The Dynamics of Networks between Order and Randomness. New Jersey: Princetown University Press, 1999.

Notas

[1] Disponível em: http://www.humansofnewyork.com/. Acesso em: 14 ago. 2016.
[2] Dados disponíveis em: https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Humans_of_New_York&oldid=730468470. Acesso em: 14 ago. 2016.
[3] Disponível em: http://humansoftelaviv.tumblr.com/. Acesso em: 14 ago. 2016
[4] Disponível em: https://www.facebook.com/humansaopaulo . Acesso em: 14 ago. 2016.
[5] Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/. Acesso em: 14 ago. 2016.
[6] Tradução livre para: “One of the main reasons people come to Facebook is to see what’s happening in their News Feeds. Our goal with News Feed has always been to show people the things they want to see. When people see content that’s relevant to them, they’re more likely to be engaged with News Feed, including stories from businesses”.
[7] Tradução livre para: “Our virtual next-door neighbors look more and more like our real-world neighbors, and our real-world neighbors look more and more like us”.
[8] O termo cluster é originário das ciências da informática e utilizado para definir um agrupamento (ou bloco) de dados. É aplicado no estudo de redes para definir o agrupamento de conexões ou nós da rede.
[10] Disponível em: https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/info/?tab=page_info. Acesso em: 28 ago. 2016.
[11] Disponível em https://www.facebook.com/HumansOfProtesto/posts/853410984750380. Acesso em: 27 ago. 2016.

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