Resumo: O presente estudo faz uma análise de como se configura a produção da escrita e do discurso do surdo na rede social Facebook, a fim de compreender os processos linguísticos envolvidos nesse contexto. Especificamente, descreve-se a relação entre o texto escrito em Língua Portuguesa e o discurso produzido pelo surdo e se analisa se a organização da escrita implica a compreensão do discurso produzido. Para tanto, realiza-se um estudo qualitativo de cunho bibliográfico baseado em autores como Severino (2007), Lakatos e Marconi (2001) e Gil (2002), composto por três etapas, e faz-se a análise dos discursos produzidos a partir da Semântica Global proposta por Maingueneau (2008). Os resultados revelaram que o surdo considera fatores pertinentes ao contexto social em que ele está inserido, pois enuncia o fruto de sua interação com o mundo. Constata-se, nos enunciados produzidos, que elementos linguísticos como o tempo e a intencionalidade discursiva são utilizados e, ainda, a referência a outras obras e fatos exteriores. Conclui-se que a estrutura gramatical dos enunciados não compromete a compreensão do discurso do surdo, tampouco é fator delimitante da aquisição da segunda língua.
Palavras-chave:surdosurdo,escritaescrita,discursodiscurso,FacebookFacebook.
Abstract: The present study does an analysis of the written production and speech of the deaf on the social network Facebook, aiming at understanding the linguistic processes involved in this context. Specifically, it is attempted to describe the relationship between the written text in Portuguese language and the speech produced by the deaf, and evaluate whether the writing system implies the understanding of the produced speech. Therefore, a qualitative study of bibliographical nature was performed, based on authors like Severino (2007), Lakatos and Marconi (2001), and Gil (2002), consisting of three stages. The analyses of the speech produced were accomplished considering the Global Semantic proposed by Maingueneau (2008). The results showed that the deaf considers relevant factors of the social context in which they are inserted, because they speech their interaction with the world. It was observed in the produced utterances that linguistic elements such as time and discursive were intentionality used, and also reference to other works and external facts. It was concluded that the grammatical structure of utterances does not compromise the understanding of deaf’s speech, neither it is a limiting factor of the second language acquisition.
Keywords: deaf, writing, speech, Facebook.
Linguística e Tecnologia
ANÁLISE DA PRODUÇÃO DA ESCRITA E DO DISCURSO DO SURDO NO FACEBOOK
ANALYSIS OF THE WRITTEN PRODUCTION AND THE SPEECH OF THE DEAF ON FACEBOOK
Recepção: 04 Fevereiro 2017
Aprovação: 05 Março 2017
Sabe-se que a linguagem é a maneira com a qual o ser humano estabelece a comunicação e é para tal finalidade que ele a utiliza. Se antes as formas de manifestá-la já eram diversas, na era da Revolução Tecnológica essa manifestação amplia-se e resulta na necessidade de realizar pesquisas que abordem assuntos anteriormente discutidos por estudiosos, como, por exemplo, a escrita da Língua Portuguesa para surdos. Todavia, com um olhar atual, que considere um fenômeno também frequente no cotidiano das pessoas surdas: o uso das redes sociais, neste caso, o Facebook.
Os estudos referentes ao uso desse tipo de linguagem virtual e comunicacional são ainda muito recentes e pouco explorados, sobretudo com relação aos surdos que passaram a ser objeto de estudo com maior frequência após a implementação de leis e decretos voltados para a área da inclusão de pessoas deficientes como a Lei 10.436/2002, que dispõe sobre o uso da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e dá outras providências; do decreto nº 5.626/2005, que regulamenta a Lei no 10.436/2002 sobre a LIBRAS e o art. 18 da Lei no 10.098/2000.
Sabe-se, ainda, que a pessoa surda tem dificuldade de produzir textos na Língua Portuguesa, que é considerada para ela uma segunda língua (L2), e que muito se discute sobre a estrutura gramatical das produções textuais e pouco sobre o discurso produzido. Por esta razão, o seguinte questionamento norteia este estudo: como se configura a produção da escrita e do discurso da pessoa surda em redes sociais, tal como o Facebook?
Para tanto, adotou-se a linha metodológica referente ao tipo de Pesquisa Qualitativa de cunho Bibliográfico, que, segundo Severino (2007, p. 118, 121), Lakatos e Marconi (2001, p. 103-104, 182) e Gil (2002, p. 44, 133), corresponde, respectivamente, ao estudo aprofundado de um fenômeno no qual se prioriza o conteúdo e não os aspectos estatísticos, e à pesquisa de fontes, que aborda o conteúdo estudado.
Os procedimentos de pesquisa foram compostos por três etapas: na primeira, realizou-se a coleta dos enunciados produzidos no perfil dos usuários do Facebook, com o auxílio da tecnologia denominada Print Screen (“impressão da tela”), na segunda, realizou-se a seleção e análise dos discursos produzidos e, na terceira, os resultados do estudo foram discutidos a partir da Semântica Global, proposta por Maingueneau (2008).
O texto não é simplesmente uma sequência de palavras organizadas, elaborado para ser lido, pois é necessário que as palavras estabeleçam uma relação de sentido entre si, para que possam significar algo. A definição é ainda mais complexa ao se observar que os textos podem apresentar-se nas formas verbais e não verbais. Os textos verbais (falados ou escritos) estão relacionados à forma e ao sentido nele expressos. Os não verbais, às representações visuais, sonoras e corporais cujo sentido também configura sua construção. De acordo com Martelotta (2008, p. 194), “o texto é a unidade comunicativa básica, aquilo que as pessoas têm a declarar umas às outras”. Por isso, tal declaração pode ser feita nas diversas formas existentes de comunicação mencionadas anteriormente.
Martelotta (op. cit, p. 194) afirma que em geral as “articulações de forma e de sentido construtoras da malha textual […] se sobrepõem, se interseccionam, numa verdadeira confluência funcional”. Entende-se, deste modo, que a finalidade do discurso influencia ou mesmo direciona a construção do texto e, consequentemente, do sentido a ele empregado. Segundo Barros (2007, p. 9), o texto reúne os elementos que constituem o discurso, sendo a coerência, que a partir dele se configura, fruto da relação entre autores e leitores. Tece-se, então, uma relação de sentido que existe além da acomodação das palavras em um tópico, visto que parte da relevância do contexto no qual foram escritas. Para Bakhtin (1997, p. 36), “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” e a comunicação na vida cotidiana é uma parte importante da comunicação ideológica, igualmente rica, pois é nesse cenário que a conversação e as formas discursivas se situam. Assim, na era da Revolução Tecnológica, a produção textual surge inovadora e o discurso acessível aos usuários das chamadas redes sociais.
Atualmente, fala-se no gênero digital e no novo conceito de hipertexto surgido com o advento da internet. No Facebook, por exemplo, o usuário tem a possibilidade de compartilhar frases acompanhadas de símbolos denominados emotions, (“emoções”) para demonstrar o estado emocional do autor no momento da postagem. Além de compartilhar imagens como fotografias, vídeos, enfim, há uma série de conexões de escrita e leitura que permitem comunicação e informação entre os usuários da rede. De acordo com Fachinetto (2005, p. 4), as pessoas costumam no dia a dia acessar sites para ler algo e o fazem de maneira natural, sem que se deem conta dos processos que envolvem cada dinâmica dessa prática. Martins (2012, p. 12) ressalta que os surdos utilizam as tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) porque elas lhes possibilitam a interação e a troca de informação no meio social. Logo, com os surdos a prática não é diferente.
Para Silva (2001, p. 26), o sujeito backhtiniano é participante, atuante e faz parte de uma cadeia viva de enunciados, da qual é integrante e membro, sendo ele mesmo o sujeito da ação do outro. Dessa forma, o sujeito pertencente a uma determinada organização social encontra, no uso da língua, uma maneira de expressar-se e constituir-se como agente transformador. Ainda segundo Silva (2001, p. 91), com relação à construção do sentido da escrita do surdo, o leitor reconstrói o texto, não de maneira isolada, mas considerando a produção do autor e interagindo a partir das pistas colocadas no texto. Em síntese, é por meio da experiência da relação social que também o surdo significa o mundo e a si mesmo.
O desenvolvimento da análise do discurso (AD), segundo a teoria foucaultiana[1], deve considerar o enunciado, a prática discursiva, o sujeito do discurso e a heterogeneidade discursiva, sendo o enunciado constituído por quatro elementos básicos: o referente, o sujeito, o campo associado e a materialidade específica. Conforme afirma Fischer (2001, p. 202), o referente seria aquilo a que se pretendeu aludir, isto é, a referência. Enquanto o sujeito é caracterizado por alguém que afirma algo e o campo associado, a relação entre os enunciados, pois não pode haver uma construção isolada. Um enunciado sempre estará em cadeia com outros para expressar uma ideia, conceito, enfim, para coexistir. Já a materialização específica corresponde ao registro (em diversas formas) do enunciado.
Fischer (2001, p. 204) explica que no tocante à prática discursiva, as relações contidas dentro do discurso seguem uma determinada regra que indica um tempo e um espaço e, assim, definem o contexto no qual o enunciado foi produzido e para quem se dirigiu. O sujeito do discurso, portanto, é compreendido como o sujeito do enunciado e deixa evidências do entorno no que foi dito, refletindo, deste modo, a heterogeneidade discursiva que, por sua vez, é o acontecimento dos fatos.
Para Maingueneau (1997, p. 113), o que deve ser estudado é justamente a interdiscursividade proveniente dos variados discursos comportados em um mesmo enunciado. Maingueneau (2008, p. 75) propõe uma Semântica Global para a análise dos textos, com o intuito de integrar todos os planos do enunciado e da enunciação sem que haja, no entanto, a observação de um ou outro plano apenas, mas de todos ao mesmo tempo. Os planos em questão, segundo Maingueneau (2008, p. 75-97), correspondem à Intertextualidade, ao Vocabulário, à Temática e às Instâncias de Enunciação. Neste último, encontra-se ancorada a Dêixis, que “geralmente é classificada segundo três domínios constitutivos da enunciação: dêixis pessoal, espacial e temporal”. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2014, p. 148).
Para melhor compreensão dos planos, faz-se uma síntese dos conceitos: a Intertextualidade corresponde às relações intertextuais contidas no texto, isto é, de textos que tratam explicita ou implicitamente de outros preexistentes; o Vocabulário refere-se aos termos empregados no espaço discursivo; a Temática define-se como o tema abordado no discurso; e as Instâncias de enunciação correspondem ao efeito do enunciado e à dêixis enunciativa. Sobre a organização dos planos, Maingueneau (2008, p. 75) afirma que não há uma sequência definida, pois eles serão atribuídos de acordo com a ordem do enunciado e da enunciação. Assim, o que está em análise é a compreensão da relação semântico-discursiva resultante da unificação desses planos e não a língua em si.
A prática da escrita não se restringe ao agrupamento de palavras, símbolos e caracteres, tampouco ao domínio gramatical da Língua. Há também que se observar e compreender o sentido que resulta da relação entre os elementos linguísticos contidos no texto, isto é, da relação semântico-discursiva. No caso do surdo, a prática da escrita torna-se mais complexa pela diferença na forma de produção da L2 em relação à L1. Em outras palavras, na L1 não há representações gráficas padronizadas como na L2, o que resulta na distinção da escrita do surdo em relação à do ouvinte no momento da construção.
Quadros (2006, p. 34), Santos (2009, p. 87) e Salles et al. (2004, p. 35) apontam algumas dificuldades observadas na escrita do surdo em decorrência da diferença entre a estrutura das Línguas. Segundo as autoras, é comum na escrita do surdo a ausência de artigos e preposições, a utilização de verbos não flexionados, a falta de flexão de gênero, número e grau, entre outras características. Para alguns estudiosos, isso pode ser reflexo da L1 na aquisição da L2, uma vez que o ensino da língua portuguesa para surdos é realizado com o auxílio da LIBRAS. De acordo com Santos,
A escrita do surdo reflete os conhecimentos deste em relação a uma língua de sinais; apresentando características normais do aprendizado de uma segunda língua. Mas, à medida que o contato com a nova língua vai sendo intensificado, através de relações discursivas significativas, novas regras vão sendo aprendidas e os “erros” vão se transformando em “acertos” (SANTOS, 2009, p. 88).
Assim, entende-se que quanto maior for o domínio da L1, mais acessível será o aprendizado da L2. Além disso, o conhecimento da nova língua será desenvolvido na medida em que for exercitada. Se o contato com a modalidade escrita for frequente e trabalhado de maneira adequada, a compreensão do funcionamento linguístico da língua ocorrerá significativamente. Segundo Quadros (2006, p. 23), “entre os surdos fluentes em português, o uso da escrita faz parte do seu cotidiano por meio de diferentes tipos de produção textual, em especial, destaca-se a comunicação através do celular, de chats e e-mails”. Por isso, deve-se atentar para outros aspectos que constituem o aprendizado de uma segunda língua, não somente ao emprego correto dos elementos gramaticais.
Ressalta-se que não se pode limitar uma Língua a sua estrutura. Deve-se considerar também, no processo de aquisição da L2, fatores como a relação da escrita produzida com o contexto da atividade, a autonomia na realização da escrita e a manifestação de conhecimentos contidos no discurso. Outro fator que deve ser considerado é que a prática da escrita está associada à da leitura, conforme exposto por Fernandes,
Ler envolve compreender, identificar um significado global do texto, situando-o em determinada realidade social, fazendo parte de determinado gênero discursivo e atribuindo relações e efeitos de sentido entre as unidades que o compõem. Esse é um processo extremamente complexo que muitos falantes nativos do português ainda não dominam (FERNANDES, 2006 p. 14, grifos do autor).
Desse modo, escrever não é uma tarefa simples de ser executada. Requer consonância com a prática da leitura, conhecimento prévio do tema abordado, habilidade de atribuir intenções comunicativas e adequação ao gênero discursivo conforme o contexto social. Fernandes ainda pontua que
A pessoa letrada, portanto, é capaz de interagir com as numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita, que assume funções diversas em cada contexto. É possível que muitas pessoas alfabetizadas (dominam o código) sejam incapazes de compreender uma manchete de jornal, uma bula de remédio, ou uma charge de cunho político. Isso significa que, embora respondam às exigências da exercitação de textos escolares, como os livros didáticos e as gramáticas, muitos alunos são incapazes de entender um folheto de instruções para fazer funcionar um eletrodoméstico em sua casa, ou redigir um texto argumentativo, justificando sua contratação por uma empresa (FERNANDES, 2007, p. 5).
Então, não há como dissociar a leitura da escrita no processo de aquisição da língua, seja ela L1 ou L2. O domínio de ambas as habilidades é que torna evidente o aprendizado e potencializa o sujeito frente a situações sociais nas quais a modalidade escrita se apresente. Contudo, a diversidade dessas situações deve ser trabalhada previamente e enfatizado que para cada uma delas a produção da escrita e do discurso ocorre de um jeito diferente. Isso porque, quando se escreve, faz-se para alguém com alguma finalidade e o que se espera é que o leitor atribua os devidos sentidos à escrita para que, então, a finalidade seja alcançada.
Os dados para a realização desta pesquisa foram coletados no período de 07 a 17 de julho de 2015. O processo inicial de busca ocorreu a partir da indicação feita por uma surda, integrante do meu grupo de amigos no Facebook, sobre o perfil de outro surdo também usuário da rede. Por sua vez, o surdo indicado informou sobre outros perfis e, assim, foram totalizadas 7 indicações. Como a maioria dos perfis possui visualização pública, não houve a necessidade de enviar convite de amizade para todos os indicados. Desta forma, as postagens puderam ser observadas e selecionadas para coleta sem implicações.
O critério de seleção considerou os textos publicados na modalidade escrita, bem como as características da escrita de surdos apontadas por Quadros (2006), Santos (2009) e Salles et al. (2004). Sendo assim, apenas dois participantes foram selecionados para o desenvolvimento da análise proposta pela pesquisa. Ressalta-se que, para efeito de preservação da identidade, eles foram denominados Surdo A e Surdo B. As análises apresentadas correspondem à observação dos enunciados produzidos e compartilhados por cada participante em suas respectivas cronologias no ambiente virtual-comunicativo, realizadas com base nos estudos de Maingueneau (2008) sobre a Semântica Global na AD.
Apresentam-se a seguir as produções textuais referentes ao Surdo A, publicadas no perfil do usuário no Facebook e as análises dos discursos realizadas com base na Semântica Global (observação dos planos Intertextualidade, Vocabulário, Temática e Instâncias da Enunciação), proposta por Maingueneau (2008).
Surdo A
Na Figura 1, nota-se que a temática refere-se à viagem que o enunciador fará para a cidade de Belém, acompanhado pelo Sérgio Santos. O indicativo que o enunciador não viajará só é a utilização da preposição “com”, anteriormente ao advérbio de tempo, “hoje”, representado na linguagem virtual-comunicativa pela combinação das letras “hj”. Observa-se que a expressão “hj mais tarde pouco” denota que a viagem foi realizada no dia da publicação do enunciado (24/05).
Como o sujeito discursa sobre algo exterior, isto é, fruto da relação dele com o mundo, confere-se a intertextualidade do discurso. O termo “a viajar para a cidade de Belém”, ao final do enunciado, sinaliza a ação a ser praticada bem como especifica o destino da viagem em questão: o deslocamento será realizado para a cidade de “Belém” e não para quaisquer outras. Cabe ressaltar, no entanto, que a rede social do usuário disponibiliza um recurso de marcações após a utilização de imagens, que neste caso é a do avião, que pode ser editado pelo próprio usuário ou ser escolhido entre as opções disponíveis no caso do termo ter sido empregado por outro usuário da rede.
De qualquer forma, isso demonstra que o surdo consegue apropriar-se de certos usos da L2, uma vez que a utilização do termo foi realizada no contexto adequado. Denota, ainda, a compreensão das formas distintas de construção da L1 em relação à L2. Na língua de sinais, utilizar-se-ia primeiro o substantivo próprio “Belém” e depois o verbo “viajar”.
Na Figura 2, referente ao discurso do Surdo A, nota-se que a temática é a enfermidade do enunciador. Os termos “Deitado” e “cabeça de dor” expressam bem o estado do sujeito no momento em que o enunciado foi produzido. Observa-se que ele (o enunciador) está deitado em virtude do mal-estar sentido. Já a expressão “cabeça de dor” sequencialmente quer dizer “dor de cabeça”. A intertextualidade, neste caso, também ocorre considerando a exterioridade do discurso produzido, uma vez que o sujeito traz para o enunciado um fato resultante de sua relação com o mundo: a enfermidade. Para enfatizar que a dor de cabeça sentida não parece ser súbita ou passageira, mas fruto de uma enfermidade, o termo “a sentir-se doente” foi utilizado no final do enunciado. Isso sugere que no momento da publicação do texto, o enunciador de fato estava doente.
Na Figura 3, do discurso do Surdo A, observa-se que a temática refere-se a uma atividade de lazer, que neste caso é o passeio no “parque shopping”, onde pretende-se ir ao cinema. Essa atividade, porém, foi realizada em local específico com finalidade particular. O enunciador não estava indo a qualquer shopping, ele queria ir ao “parque shopping”; tampouco foi assistir a qualquer filme, foi ver “o exterminador do futuro Genesis”.
Nota-se no início do discurso que a utilização da expressão “Agora” evidencia que o enunciador estava de saída para o passeio no momento da publicação da postagem. Observa-se a intertextualidade no enunciado pela referência ao filme “o exterminador do futuro Genesis”, tanto por se tratar de citação de outra obra quanto pelo relato de uma ação proveniente da exterioridade.
Surdo B
Na sequência, apresentam-se as produções textuais referentes ao Surdo B, publicadas no perfil do usuário no Facebook e as análises dos discursos realizadas com base na Semântica Global, de Maingueneau (2008).
Na Figura 4, referente ao discurso do Surdo B, nota-se que a temática do discurso é a mãe do enunciador. É para ela que o sujeito dirige-se ao mencionar sua beleza no termo “Minha mãe muito gata”. Observa-se, ainda, que na expressão “mos te amamos bjs”, o sujeito evidencia falar por ele e por alguém, uma vez que se intencionou utilizar a primeira pessoa do plural “nós” em vez de “mos”. Outra característica observada é que foi utilizada a linguagem virtual-comunicacional “bjs” para fazer referência ao substantivo “beijos”, que no contexto analisado assume a função de saudação.
Ao atentar para a data da postagem (10/5), pode-se perceber que o enunciado foi produzido em comemoração ao Dia das Mães, ocorrido no mesmo dia da publicação. Fato, portanto, que evidencia a intertextualidade contida no enunciado.
Na Figura 5, do discurso do Surdo B, nota-se que a temática e a intertextualidade estão relacionadas, uma vez que ambas tratam da repercussão da morte do jovem “cantor Cristiano Araújo”, ocorrida no dia 24 de junho, mesma data da postagem. Nota-se que o sujeito demonstra ter ficado sensibilizado com a tragédia e aparenta ter admiração pelo cantor por meio da expressão “tristeza acabou com ouro de menino”. Observa-se que considerando todos os planos que compõem a Semântica Global mencionada por Maingueneau (2008), pode-se dizer que a intenção do enunciador foi dizer “tristeza! (a tragédia) acabou com o menino de ouro” e não, que em virtude da morte, a riqueza advinda do trabalho do cantor teria acabado.
Assim, a ausência do ponto de exclamação e a inversão da ordem substantivo + verbo não impossibilitaram o entendimento do discurso emitido. Na extensão do enunciado “você vai forçar um bem saudade” novamente a partir da análise de todos os planos da Semântica Global pode-se dizer que o intuito foi expressar “você vai deixar muita saudade”. O “bem” neste caso assume a função de advérbio de intensidade e não de modo, característica da fala paraense observada em expressões como “o açaí está bem grosso” e “você está bem bonita”.
Na Figura 6, referente ao discurso do Surdo B, nota-se que a temática do discurso refere-se a uma atividade de lazer realizada no dia anterior à postagem. O que torna isso evidente é a utilização do advérbio de tempo “ontem”, após a preposição “de”. Na expressão “gostou de ontem quinta feira” observa-se que a postagem ocorreu na sexta-feira, pois para o dia anterior atribuiu-se a “quinta-feira”.
É indicado na declaração “indo de shopping parque” que a ação realizou-se em um shopping específico da cidade, o “Parque Shopping”. No tocante à intertextualidade, observa-se que a finalidade do passeio foi assistir ao filme “Homem-Formiga”, referência, portanto, a outra obra e ação relacionada à exterioridade.
De fato, as questões que envolvem o ensino da Língua Portuguesa para surdos e os processos que constituem a aquisição da L2 vêm sendo discutidas em maior proporção após a implementação de leis e decretos que garantem às pessoas com deficiência o acesso à educação. Contudo, o que se observa é que os estudos realizados sobre a modalidade escrita da Língua Portuguesa por esses sujeitos centram-se mais na estrutura de funcionamento da língua (gramática) do que na análise dos discursos por eles produzidos. Por essa razão, o presente estudo objetivou analisar como se configura a produção da escrita e do discurso do surdo em ambientes virtuais e comunicacionais como o Facebook, para compreender quais os processos linguísticos envolvidos na produção textual desse sujeito, bem como analisar a relação entre texto escrito e discurso produzido e avaliar se a organização da escrita implica na compreensão de tal discurso.
Após a realização das etapas necessárias para a pesquisa, alcançaram-se os resultados que revelaram que o surdo considera fatores pertinentes ao contexto social em que ele está inserido, tendo em vista que enuncia o fruto de sua interação com o mundo. Isto é, ele socializa o cenário de suas experiências de vida conforme o tempo em que essas vivências ocorrem. Logo, o tempo foi um dos elementos linguísticos utilizados na produção textual do surdo nesse ambiente virtual e comunicacional. Constatou-se, também, a presença de outros elementos linguísticos como a intencionalidade discursiva e a referência a outras obras e fatos exteriores. Isso demonstra que, ao produzir os enunciados, os surdos o fazem intencionando comunicar algo que eles consideram relevante ser socializado, pois abordam fenômenos que situam algo histórico, social ou cultural.
Ademais, o uso da linguagem característica das redes sociais, como a abreviação de palavras, evidenciou a adequação textual ao gênero discursivo que vem sendo chamado de gênero digital. Isso indica que as denominadas TIC’s são, de certa forma, uma ferramenta importante para o exercício da modalidade escrita, uma vez que devido à quantidade de vezes que é possível praticá-la torna acessível ao usuário o desenvolvimento de tal habilidade. Cabe ressaltar que, embora esse tipo de ferramenta raramente seja utilizado no espaço escolar para a aquisição da L2, no cotidiano o uso é frequente e denota o grau de conhecimento do sujeito não apenas no âmbito da escrita, mas na comunicação daquilo que pensa, sente e apreende nos diversos contextos por ele vivenciados.
Diante dos fatos expostos sobre os elementos linguísticos encontrados nos enunciados produzidos pelos surdos usuários do Facebook e da relação entre a escrita e o discurso produzido por eles, conclui-se que a estrutura gramatical dos enunciados não compromete a compreensão do discurso do surdo, tampouco é fator delimitante da aquisição da L2. Pelo contrário, os resultados da pesquisa mostraram que muito há de ser pesquisado sobre o assunto, pois ainda há muito o que se discutir e questionar.
Aos meus pais Juares e Noélia pelo apoio dedicado ao longo de minha existência.
Às minhas irmãs Fernanda e Francileny pela concessão de recursos para a realização desta pesquisa e incentivo em todos os momentos de vida.
À professora Flávia Pieretti Cardoso, da Universidade Católica Dom Bosco, pelo profissionalismo, dedicação e disponibilidade com os quais conduziu a orientação deste estudo.
Aos professores Tânia Maria Filiu de Souza e Paulo Oliveira Barro pelas relevantes contribuições apresentadas na avaliação desta pesquisa.
Ao professor Waldemar dos Santos Cardoso Júnior, da Universidade Federal do Pará, por despertar em mim o espírito científico que deve ter um pesquisador e pelas interessantes conversas que me conduziram à escolha do tema de pesquisa.
À técnica da UFPA Maria Páscoa Sarmento de Sousa, pela análise do pré-projeto de pesquisa e suas proeminentes considerações realizadas.
Aos surdos participantes da pesquisa pelas postagens realizadas em seus perfis virtuais na página do Facebook, sem as quais não seria possível concretizar este estudo.
Aos autores citados, pelo legado deixado em suas obras que permitiram embasar meus estudos e conferir a devida legitimidade científica a cada passo realizado.
À UFPA pelos projetos de ensino, pesquisa e extensão aprovados na área de educação de surdos, dos quais pude participar e iniciar meus estudos referentes a esse público.
À UCDB pela excelência do curso de pós-graduação lato sensu em Educação Especial e pelos conhecimentos partilhados por docentes experientes em suas áreas de atuação profissional.
Aos colegas de classe pelos conhecimentos partilhados nos espaços destinados às discussões sobre o ensino-aprendizagem de pessoas com deficiência.
A todos que de alguma forma contribuíram para que esta pesquisa fosse realizada.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/16745 (pdf)