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ANNA KARENINA NO CINEMA: O PRIMEIRO ENCONTRO DE ANNA E VRONSKI NOS FILMES DE 1935, 1948 E 2012
Juliane Bassanufa Oliveira; Carlos Francisco de Morais
Juliane Bassanufa Oliveira; Carlos Francisco de Morais
ANNA KARENINA NO CINEMA: O PRIMEIRO ENCONTRO DE ANNA E VRONSKI NOS FILMES DE 1935, 1948 E 2012
ANNA KARENINA ON THE CINEMA: THE FIRST ENCOUNTER OF ANNA AND VRONSKI IN THE MOVIES FROM 1935, 1948 AND 2012
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 10, núm. 2, pp. 254-270, 2017
Universidade Federal de Minas Gerais
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Resumo: Este estudo surgiu da participação no grupo de pesquisa intitulado Literatura em Diálogo, que tem como objetivo o estudo e a pesquisa sobre as diversas adaptações cinematográficas do romance Anna Karenina, de Leon Tolstói. Neste estudo, em particular, é feita uma análise da primeira cena de encontro entre Anna Karenina e Alexei Vronski, nas adaptações cinematográficas de 1935 (Clarence Brown), 1948 (Julien Duvivier) e 2012 (Joe Wright), e no texto literário de Tolstói (1877). A apropriação do texto literário pelo cinema fez com que os olhares de teóricos de ambas as artes se voltassem para a relação entre elas. Sendo assim, há diversos conceitos a serem analisados e articulados, entre eles: fidelidade, tradução, elementos fílmicos e intertextualidade. Nesta pesquisa, investiga-se o material literário, sua recriação cinematográfica e as múltiplas possibilidades que surgem dessa relação de linguagens artísticas diferentes e com particularidades específicas. Dentro das próprias produções fílmicas serão apontadas, ao longo do artigo, as diferentes formas de realizar adaptações, que carregam as ideologias do seu realizador, condições de realização e contextos históricos diferentes. A perspectiva teórica que norteia esta pesquisa é a literária em conjunto com a cinematográfica, segundo os estudos de Stam (2006), Pereira (2009), Hutcheon (2011) e outros. Em outras palavras, investiga-se qual(is) representação(ções) pode(m) ser percebida(s) nessas adaptações fílmicas feitas através da apropriação do texto. Pretende-se observar não somente o deslocamento do literário para a obra cinematográfica, mas também as diferentes formas de se fazer a adaptação dentro das próprias produções para a tela do material ficcional, pois não existe uma única maneira de produzir adaptações.

Palavras-chave:Anna KareninaAnna Karenina,adaptaçõesadaptações,cinemacinema,literaturaliteratura,pesquisapesquisa.

Abstract: The origin of this study is the participation in the research group Literature and Dialogue, that seeks to study and research the many filmic adaptations of the novel Anna Karenina, by Leon Tolstoi. In this particular study, an analysis of the first encounter between Anna Karenina and Alexei Vronski was conducted, as it was portrayed in the filmic adaptations from 1935 (Clarence Brown), 1948 (Julien Duvivier) and 2012 (Joe Wright), as well as in the literary text by Tolstoy (1877). The appropriation of the literary text by the cinema made the theoreticians from both fields turn their attention towards the the relationship between them: fidelity, translation, filmic elements and intertextuality. In this research, the literary material was investigated, as well as its filmic recreations and the multiple possibilities that come from the relationship between different artistic languages with specific particularities. Within the filmic productions themselves, throughout the article, different ways to conduct adaptations are going to be pointed at, as they carry the ideologies of their auteurs, the conditions in which they were produced and their different historical contexts. This study was informed by literary and cinematographic theoretical perspectives, according to the studies of Stam (2006), Pereira (2009), Hutcheon (2011) and others. In other words, this study investigates which representations may be found in the filmic adaptations conducted through the appropriation of the text. The study aims not only at looking at the movement from literature to cinematographic work, but also at the different ways to conduct an adaptation within the productions of the fictional material for the screen, since there are many possible ways to produce adaptations.

Keywords: Anna Karenina, adaptations, cinema, literature, research.

Carátula del artículo

Semiótica e Tecnologia

ANNA KARENINA NO CINEMA: O PRIMEIRO ENCONTRO DE ANNA E VRONSKI NOS FILMES DE 1935, 1948 E 2012

ANNA KARENINA ON THE CINEMA: THE FIRST ENCOUNTER OF ANNA AND VRONSKI IN THE MOVIES FROM 1935, 1948 AND 2012

Juliane Bassanufa Oliveira
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
Carlos Francisco de Morais
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 10, núm. 2, pp. 254-270, 2017
Universidade Federal de Minas Gerais

Recepção: 31 Julho 2017

Aprovação: 11 Setembro 2017

1 Introdução

Esta análise surgiu da participação no grupo de pesquisa intitulado Literatura em Diálogo, realizado na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, que tem como objetivo o estudo sobre as diversas adaptações cinematográficas do romance Anna Karenina, de Leon Tolstói. O trabalho é importante tanto para a literatura quanto para o cinema, pois, assim como várias obras oitocentistas, Anna Karenina foi utilizada para um número relevante de roteiros fílmicos. Esse romance já foi adaptado por cineastas de diversos países, havendo no total treze apropriações de 1911 a 2012. Em vista disso, não é possível observar no período dos séculos XX e XXI uma única passagem dessas décadas em que não ocorra a releitura dessa importante obra.

O episódio escolhido é de grande importância, tanto para o âmbito fílmico quanto para o literário, por estar no centro das duas principais cidades presentes na narrativa (São Petersburgo e Moscou), sendo esse o momento em que diversos personagens são apresentados entre si, como a própria Anna e Vronski. Além disso, é através dessa primeira cena, na estação, no capítulo XVIII, parte I, que outros núcleos vão ganhando forma no enredo e são iniciados os presságios dos dilemas vividos por Anna ao longo da trama. Essa passagem do livro está no início dessa complexa história com situações de alto peso psicológico para a protagonista, como o barulho do ferro, a emblemática figura do trem e o acidente fatal de um maquinista que sintetiza o trágico final de Anna. Nesse momento da narrativa, é possível sentir o que se passa na cabeça da personagem que dá nome ao romance e o símbolo familiar do matrimônio para ela. Iniciam-se também nesse capítulo os dramas de Anna, nessa passagem que explica perfeitamente a paixão da personagem por Vronski a partir do primeiro encontro na estação de trem em Moscou.

Ao falar sobre as adaptações de Anna Karenina, torna-se impossível não lembrar da atriz sueca Greta Garbo, na atuação fílmica de 1935. Garbo, considerada pelo Instituto de Cinema Americano como uma das maiores lendas da cinematografia, foi a protagonista que primeiro encenou a personagem feminina de Tolstói (AMERICAN FILM ASSOCIATION, 1999). Na época em que atuou no filme, passado na Rússia czarista, Greta era considerada uma mulher extremamente reservada e misteriosa, e foi transformada em Garbo por Mauritz Stiller, um conhecido cineasta e pioneiro da indústria cinematográfica nesse período. Mas é o diretor americano Clarence Brown quem dirige a nova atriz na versão norte-americana, com outro autor de peso (Frederic March) na pele do conde Vronski, o que garantiria sucesso, público e bilheteria para a produção.

Em outra versão, Anna Karenina, e agora Alexei Karenin, marido de Anna, são interpretados por outra dupla de astros do período de estreia em 1948: Vivien Leigh e Ralph Richardson. É uma produção britânica com direção de Julien Duvivier, um dos cineastas franceses contemporâneos de maior prestígio no cinema. Vivien Leigh adquiriu características em sua carreira artística muito semelhantes às de Garbo, sendo também exaltada por sua beleza e talento.

Da parceria entre Joe Wright e Keira Knightley surge uma nova intérprete de Anna na versão cinematográfica de 2012. Keira, atriz e modelo inglesa, é filha de diretores de cinema e foi indicada ao Oscar de melhor atriz aos vinte anos por sua atuação em uma das adaptações fílmicas de Orgulho e Preconceito. A atriz teve várias participações em diversos filmes desde muito pequena, sendo o seu primeiro grande papel no filme Bend It Like Beckham em 2001. Essa versão de Anna Karenina teve quatro indicações ao Oscar em 2013, levando o prêmio de melhor figurino. Nessa moderna adaptação, há ainda nomes como Jude Law (Karenin) e Aaron Johnson (Vronski).

Considerado atualmente como um dos romances mais populares da história, o contexto da narrativa acontece durante as transformações das reformas liberais e emancipadoras de 1861. Esse ambiente aborda a antiga aristocracia e a ascensão de uma nova elite. Os personagens do livro embarcam nesses acontecimentos históricos e, com isso, surgem na narrativa temas que tornam o romance atemporal, como: liberdade feminina, família, fidelidade, política, educação e religião.

Em resumo, o enredo é dividido em oito partes e toda a história é desenvolvida em torno do caso extraconjugal de Anna e Vronski, mas também de Lievin e Kitty, com igual importância para a narrativa. A personagem principal choca a sociedade Russa ao abandonar sua família para viver com Vronski, enfrentando os costumes vigentes. Posteriormente, temos os dilemas de Anna como uma mulher desonrada, passando pelos valores sociais e políticos também desse período. Sua suposta felicidade nos braços de Vronski parece não chegar, tornando-a paranoica quanto à infidelidade de seu amante, fato que culmina no trágico final que, por sua vez, demonstra bem o fio condutor dos exageros sociais do romance russo.

No final do romance, o que se percebe é que o triângulo amoroso composto por Anna, Karienin e Vronski permanece em segundo plano, cedendo espaço para outro polo de atenção. A narrativa passa então a explorar o processo de amadurecimento pessoal, filosófico e social de Lievin, no qual a articulação de contrastes entre a cidade e o campo, alta sociedade e camponeses, erudito e prático, intercala exterior e interior nos personagens (contraponto entre Anna e Lievin). O camponês mostra na obra a valorização dos ambientes abertos, liberdade da encenação aristocrata e a legitimidade do matrimônio sem adultério, ou seja, o oposto dos dramas de Anna quanto ao casamento ilegítimo, adúltero, e os lugares fechados do círculo social teatral.

Esta pesquisa consiste em estudar um dos episódios literários mais importantes desse romance, Anna Karenina, e três das suas adaptações cinematográficas (1935, 1948 e 2012). O principal objetivo é analisar, comparativamente, como foi representada a primeira cena de encontro entre os protagonistas Anna Karenina e Alexei Vronski, nas diferentes adaptações fílmicas e no texto romanesco. Em outras palavras, investigaremos qual(is) representação(ções) pode(m) ser percebida(s) nessa comparação. Pretende-se pesquisar não apenas o deslocamento do texto escrito para a obra cinematográfica, mas também as diferentes formas de se fazer a transposição, que resultam em diferentes filmes, de uma mesma narrativa. Conforme Morais explica:

[...] a estrutura narrativa do texto literário, tomada como base para a criação das obras cinematográficas, deu origem a cenas e sequências de imagens e sons diferentes e peculiares, comprovando que um mesmo romance, levado da página à tela, sempre resultará em filmes tão diferentes quanto sejam seus diretores, elencos, equipes técnicas, condições de produção e contexto sociocultural de sua época de criação (MORAIS, 2014, p. 3).

Os objetivos específicos deste estudo são: observar a apropriação do texto literário pelo cinema e os olhares teóricos de ambas as artes sobre a relação cinema e literatura (fidelidade, tradução, elementos fílmicos e intertextualidade); estudar o material literário (sua exposição cinematográfica e as múltiplas possibilidades que surgem dessa relação de linguagens artísticas diferentes e particularidades específicas); observar as diferentes formas de realizar adaptações (que carregam as ideologias do seu realizador, condições de realização e contexto histórico) e apontar a importância da liberdade cinematográfica do diretor em impor sua autonomia.

Para realizar este artigo, foi adotado um método básico de pesquisa bibliográfica e análise fílmica. Quanto ao percurso do trabalho, primeiramente, foram realizados levantamentos bibliográficos, leituras teóricas e produções de resenhas. Após esse processo, houve a seleção da cena a ser analisada e, assim, a interpretação com base nos referenciais teóricos supracitados. Concluídas essas etapas, se finalizou a redação do artigo que relata os resultados obtidos e as considerações finais sobre filmes e obra, sendo o principal objetivo analisar como as adaptações retratam a primeira cena de encontro entre Anna Karenina e Alexei Vronski na heterogeneidade da fusão cinema e literatura. Esperou-se responder a alguns questionamentos que foram feitos na medida em que se contemplou os textos teóricos, a obra literária e as adaptações cinematográficas. Portanto, o corpus deste estudo inclui o livro Anna Karenina, de Tolstói, e as adaptações cinematográficas dos anos de 1935, 1948 e 2012.

2 Adaptações literárias cinematográficas

Essas duas artes comparadas, cinema e literatura, possibilitam observar pontos em comum e também diferenças, sendo a influência da literatura no cinema algo inegável quando olhamos para as adaptações. O fílmico retira da letra dura uma parte significativa do contar histórias, fazendo da narrativa literária um traço hegemônico da cinematografia desde seu início, como, por exemplo, as treze adaptações de Anna Karenina em diferentes países. Essas duas formas de arte são capazes de recriar o mundo real. O cinema vê na literatura um universo de temas, estruturas narrativas e uma verdadeira fonte de inspiração para seus trabalhos, graças a uma característica textual semelhante. Algumas análises mostram que as estruturas narrativas podem ter um funcionamento análogo nesses dois sistemas, que a princípio, parecem ser distintos.

A expressão literária na cinematografia pode ser julgada com dois sentidos opostos, sendo eles, o pejorativo (onde há uma denúncia da falta de integração entre os elementos visuais e a retórica) e o sentido legítimo, no qual os recursos literários e os cinematográficos se complementam. Como o cinema exprime-se por meio de imagens em movimento e conta sua história através destas, um romance não poderá ser filmado com absoluta fidelidade à obra literária original. O cinema “mostra” e a literatura “narra”; por isso, uma descrição muito longa sobre um determinado ambiente ou caráter psicológico de um personagem não pode ser feita oralmente no filme. O livro sofrerá mudanças ao ser adaptado ao cinema e essas mudanças não necessariamente precisam ser em sua forma. O público fílmico exigirá um respeito do filme aos seus mecanismos de enunciação, como: decupagem, continuidade, regras de montagem, sistema de estrelato e outros.

O filme, ao contrário do livro que narra, dramatiza, sendo feito tanto de silêncios como de diálogos. Cada imagem tem o poder gerador de uma nova experiência, não por retratar a vida real, mas por engendrar um mundo novo à imagem do real – entendido ao longo desse trabalho como o mundo e as pessoas que servem de base ao processo de referenciação mimética, que não simplesmente copia personagens e histórias que ocorreram fora da obra artística, mas cria representações que procuram ser verossímeis em relação à visão de mundo de uma sociedade e de uma época histórica específicas. No livro, as palavras acionam os sentidos e se transformam, na mente do leitor, em imagens; o cinema, por sua vez, abriga imagens em movimentos que serão transformados em palavras na mente do telespectador.

O cinema, para Pereira (2009), é um sistema de signos naturais que atinge a sensibilidade perceptiva do seu público antes de falar com sua mente, como faz a literatura. A literatura se caracteriza pela sequência e sucessão, enquanto o cinema, pela simultaneidade da representação de uma realidade objetiva. A melhor forma de julgamento de uma adaptação, dessa forma, não é pelo grau de fidelidade ao livro, mas por sua eficácia na adequação de uma estética para outra.

Vários teóricos abordam os aspectos relevantes das adaptações literárias no cinema com o objetivo de analisar e problematizar essa prática intermidiática. Uma das questões problematizadas na relação cinema e literatura são os quesitos influência e fidelidade na transposição da obra escrita para a tela. Utilizando os estudos de André Bazin (1991) e Robert Stam (2009 apud SCHLÖGL, 2011), observa-se importantes reflexões sobre o diálogo das formas narrativas citadas nesta pesquisa.

André Bazin, segundo Schlögl (2011), é um dos teóricos do meio acadêmico favoráveis aos roteiristas de adaptações em seu estudo Por um cinema impuro: defesa da adaptação (1950). Robert Stam (2009), por sua vez, também é um realizador de diversos estudos sobre o fílmico literário. Ao observar esses dois teóricos, nota-se que há uma percepção de distintos períodos sobre os vários olhares da história do cinema fundido à literatura e a problematização do conceito de fidelidade. Além disso, outra ressalva feita por esses autores é de que há influência de outras artes sobre a literatura e o cinema.

Schlögl (2011) fala sobre o caráter narrativo dos dois tipos de arte e sobre as teorias cinematográficas que apontam continuamente tanto suas semelhanças quanto particularidades. Para essa autora o que ocorre é o fato de o cinema ser uma arte de contar histórias e por isso sua familiaridade com o romance e o teatro em 1950. Por essa mescla, o cinema é considerado uma arte impura nesse período, ou seja, uma arte que apresenta aspectos de outras mais antigas como a música e a pintura. Havia nesse tempo outro grupo de autores divididos entre aceitar ou não a referência literária nessa arte que os grandes nomes da nouvelle vague ansiavam fosse mista, uma mescla de audácia formal com os prazeres do cinema dominante (STAM, 2008 apud SCHLÖGL, 2011).

Na década de 1950, Bazin (1991) escreve o artigo “cinema impuro”, em que considera inevitável o diálogo entre essa nova arte e as outras “importantes” para um processo de evolução. Outros teóricos, ao contrário, apontavam a adaptação como uma vergonha para a cinematografia, interessando-lhes um distanciamento do fílmico das artes anteriores e que o mesmo buscasse sozinho suas especificidades.

Quando se trata de adaptações, a fidelidade à obra original não pode ser determinante como princípio metodológico. Não é uma opção para o autor transcrever o que o texto induz literalmente. O filme não oferecerá essa margem, mas terá outras possibilidades de sentidos.

Stam (2008 apud SCHLÖGL, 2011, p. 72) repete a questão de Orson Welles: “por que adaptar uma obra, dizia ele, se você não pretende modificar nada nela?”. O que se observa é o interesse na criação de uma nova obra sobre uma já existente e, por isso, a necessidade da adaptação que, caso contrário, não precisaria de modo algum ser realizada. Schlögl (2011) retoma o conceito de dialogismo de Bakhtin, para melhor debater a questão literatura e cinema, e o associa a Stam pela relação sobre a possibilidade de diversas leituras em uma obra ou diversas adaptações de um mesmo romance. O dialogismo intertextual pode ser pensado nas adaptações como uma forma de transcender a fidelidade por um processo de transformação e transmutação de referências intertextuais.

O raciocínio de Schlögl (2011), citando Stam (2008), enfatiza a relação do espaço e temporalidade distintos entre filme e livro. Nos filmes, diversos recursos auxiliam para não só contar como entremear espacialidades e temporalidades, além das ferramentas de montagem e filmagem. No processo artístico, Stam (2008) dá a entender que as adaptações são um diálogo intertextual dos artistas de forma consciente ou explícita, já que o intertexto é sempre iminente. Stam (2008) fala ainda em fluxo intertextual, que seria suscitado em novas versões de um filme anterior, pois, como no caso das versões para o cinema de Anna Karenina, cada época possui um determinado olhar para o texto literário adaptado. Schlögl (2011) diz que são determinantes os contextos sociais da obra escrita, assim como o momento em que é adaptada, lembrando que sempre haverá a possibilidade de novas adaptações ou variações hipertextuais.

Bazin (1991 apud SCHLÖGL, 2011) considera a adaptação cinematográfica uma tendência no cinema contemporâneo. Para o teórico, o autor de cinema não se contenta com o plágio e o romance é capaz de dar a liberdade procurada pelo roteirista. Schlögl (2011) complementa dizendo que a necessidade do cinema em não se contentar com as influências foi o que o levou a buscar também as suas próprias particularidades. Houve algumas interferências reversas, ou seja, o cinema no literário; isso ocorre com romances americanos serie noir escritos para adaptações hollywoodianas.

Stam (2008), ao contrário de Bazin (1991), não se preocupa com a defesa da adaptação e sim em analisar como ocorre essa transposição da página para a tela, ou seja, já não há um questionamento da “influência” literária no cinema. Stam (2006), porém, aponta que essas críticas são principalmente de caráter discriminatório e não teórico. Outra lembrança inevitável é a comparação do tempo de leitura de uma determinada cena ao de uma tomada que pode, ao contrário de minutos de leitura, levar segundos. Sendo assim, todas as adaptações, de acordo com Schlögl, serão infiéis por serem obras distintas.

Um conceito repreensível seria o de “romance cinematográfico”, que está relacionado a como o autor do livro conduz sua narrativa. O que esse termo diz é que a obra é muito parecida a um roteiro fílmico por suas descrições, personagens e atitudes. O roteirista pode aproveitar-se dessas qualidades de determinados livros para elaborar sua adaptação, mas a redução continuará a restringir detalhes da história.

Bazin (1991 apud SCHLÖGL, 2011) e Stam (2009 apud SCHLÖGL, 2011) explicam que todo texto será um diálogo intertextual e uma obra sempre gerará obras distintas de variadas leituras e interpretações, em que “as adaptações se constroem a partir da destruição da fonte literária. Porém, é este massacre que é a ponte que leva ao lugar da leitura” (DURAS apud SCHLÖGL, 2011). Os posicionamentos citados até o momento mostram-se favoráveis à adaptação, conhecendo a discriminação do diálogo da literatura com o cinema para a possibilidade de novas versões sem se preocuparem com o cinema puro ou o cânone da literatura, que a eleva como inatingível. Schlögl (2011) mostra que as adaptações foram garantias de progresso ao cinema e de público novo para a literatura, sem a preocupação dos teóricos com a influência ou fidelidade em relação à obra origem.

A adaptação dos romances em filmes, segundo Stam (2006), sempre foi observada como uma perda de algo antes icônico e de lugar privilegiado, que é o livro. A partir do momento em que se pensa sobre a concepção da transposição – mesmo que por prismas diferentes, tais como o dialogismo de Bakhtin ou a intertextualidade de Genette – esse olhar volta-se para a prática intertextual, como neste artigo. A crítica sempre retomou esse conceito de literário e fílmico de forma moralista e elegíaca, ou seja, supervalorizando o que se perde e ignorando por completo os ganhos com essa retórica padrão, precisando “desconstruir a doxa não declarada que sutilmente constrói o status subalterno da adaptação” (STAM, 2006, p. 20).

O que Stam mostra, de modo geral, e que embasa este artigo, é que o estudo das adaptações é algo importante e central, por elas constituírem uma alta porcentagem do cinema existente. Todos os filmes de certo modo são adaptações com fontes literárias ou sub-literárias. Os filmes históricos adaptaram a história, os biográficos as biografias, outros, textos de jornal, quadrinhos, músicas populares e trabalhos de não ficção. Toda obra adapta, modela e transforma algo já existente, ou seja, toda obra de arte é derivada em algum nível, e são estudos como esses que causam impacto nessa percepção. Dessa forma,

[…] o romance original ou hipotexto é transformado por uma série complexa de operações: seleção, amplificação, concretização, atualização, crítica, extrapolação, popularização, recentuação, transculturalização. O romance original, nesse sentido, pode ser visto como uma expressão situada, produzida em um meio e em um contexto histórico e social e, posteriormente, transformada em outra expressão, igualmente situada, produzida em um contexto diferente e transmitida em um meio diferente. O texto original é uma densa rede informacional, uma série de pistas verbais que o filme que vai adaptá-lo pode escolher, amplificar, ignorar, subverter ou transformar. A adaptação cinematográfica de um romance faz essas transformações de acordo com os protocolos de um meio distinto, absorvendo e alterando os gêneros disponíveis e intertextos através do prisma dos discursos e ideologias em voga, e pela mediação de uma série de filtros: estilo de estúdio, moda ideológica, constrições políticas e econômicas, predileções autorais, estrelas carismáticas, valores culturais e assim por diante. Uma adaptação consiste em uma leitura do romance e a escrita de um filme […] (STAM, 2006, p. 50).

Falaremos aqui sobre adaptações bem feitas ou não, mas sem comprometimento com hierarquias moralistas de discussão fundamentadas pelo conceito de fidelidade. O que interessa a essa avaliação é como foi feita a transferência de forma criativa, resposta dialógica e interpretação da reelaboração do romance de Tolstói, Anna Karenina, com uma análise que considera literatura e cinema como artes de especificidades diferentes de expressão.

3 Intertextualidade e transposição

A cena analisada começa no capítulo XVIII, primeira parte, da página 56 até o início da 60, mostra o primeiro encontro de Anna e Vronski na emblemática estação de trem que será significativa por toda a história. Como toda adaptação, essa parte importante sofre mudanças em relação ao original, que são inevitáveis devido às diferenças semióticas dos dois gêneros, isto é, modificações, acréscimos e principalmente subtrações.

A passagem escolhida se trata, basicamente, de Stiva buscando Anna na estação de trem de Moscou e encontrando, também, Conde Vronski, que está à espera da chegada de sua mãe. Quando os familiares se reúnem, Vronski vê Anna pela primeira vez, enquanto recebem a notícia que um dos trabalhadores da estação, acidentalmente, caiu na linha ferroviária e faleceu. Anna Karenina interpreta isso, aos seus acompanhantes, como um mau presságio, expressando, ainda, sua tristeza ao deixar pela primeira vez o filho Serguei em sua viagem. Ao seu lado, Vronski se sente encantado por sua presença e, diante dos seus apelos, deixa 200 rublos para a viúva do trabalhador, cativando ainda mais a Anna.

Nessa parte, alguns dos elementos fílmicos mais importantes são o trem e a sonoplastia do barulho originado pelo ferro, que percorre todo o enredo até a trágica morte da protagonista. A locomotiva, nas três adaptações, aparece como um fator estético positivo do livro para o filme e possui a função de associar, marcar e caracterizar outras cenas e memórias de forma complementar e sinalada. Esse dado diegético é uma pontuação memorável entre as sequências e de grande efeito visual no destino de Karenina do começo ao fim. Os atores nos três filmes, em especial os representantes de Anna e Vronski presentes na cena analisada, mesmo considerando o pequeno tempo de transição da página para o livro, fazem justiça à intensidade dos personagens literários, mas para uma maior intensidade psicológica talvez fosse necessário no mínimo quatro horas, ou seja, o dobro da média de duração dos filmes, suposição que nos parece justificada graças à quantidade e à profundidade de descrições no romance em que Tolstói retrata o lado psicológico de seus personagens.

Geralmente as análises que comparam cinema e literatura focam as dessemelhanças semióticas, ou seja, a especificidade de cada linguagem. O que precisa ser ressaltado aqui é que o cinema nunca teve a vocação literária como objetivo. A primeira adaptação de Anna Karenina surge em um momento de cinema como paralepse, em que esse é uma arte representacional nadando contra o literário modernista. Muitas das obras do grande cinema da atualidade não vêm, no entanto, de adaptações como a de Tolstói, e sim de roteiros cinematográficos originais. Essas formas de narração, como as das duas primeiras adaptações aqui pesquisadas, estão entre convenções dos séculos XIX e XX. As afinidades são inegáveis, pois são duas grandes narrativas, obras e filmes, com públicos fiéis nesse período. O cinema tem uma dívida histórica com a literatura, pois foi essa a inspiração que o fez construir uma nova linguagem. A adaptação é a forma mais evidenciada da diferença entre as duas artes e o resultado estético de ambos os trabalhos nas suas especificidades. A narrativa da situação da mulher casada, porém apaixonada no exterior de sua relação, é uma temática comum no romance do século XIX e no cinema do século XX.

A arte cinematográfica em adaptações sempre será distinta da literária. Em Anna Karenina não é diferente; a estruturação é oposta e um caminho narrativo completamente independe do outro. O olho da câmera é o substituto do narrador onisciente e o mostrado demonstra uma força maior do que o discurso lido, que carrega marcas do enunciador. Essa voz é diluída pelo telespectador ao assistir ao filme em uma construção sua através do movimento e da imagem que trazem essa ilusão.

A obra de Tolstói, como livro, ganha o status de cartorial ou documento legislativo que pode sofrer contradição ao ser filmado. A paralepse do romance para os filmes é Anna que, como personagem, parece fornecer informações possíveis realisticamente de forma natural à semiótica do cinema. Esse procedimento narrativo vem de maneira onisciente com informações técnicas limitadas e não lógicas.

As semelhanças temáticas unem romance e filme, assim como a natureza histórica da literatura ficcional e o cinema como arte. A pintura, a dança, o teatro, esculturas e até mesmo a literatura são também artes representacionais de imagem. Na primeira adaptação de Anna Karenina, o cinema era uma arte nova em formação como linguagem. O romance do século XIX, com começo, meio e fim é o modelo narrativo copiado mesmo com a influência das tendências abstracionistas e surrealistas, essas mais presentes na adaptação moderna de 2012.

A representacionalidade é a inclinação histórica do cinema como movimento que imita a vida de forma semiótica mesmo quando não copia propriamente o factual. Ainda quando não real, as referências não são abstratas e sim imagens trabalhadas em ambiente artificial do estúdio. As três características básicas do cinema consagrado são a representacionalidade, a ficcionalidade e a narratividade. Anna Karenina é uma adaptação que demonstra os limites do exibido, suscitados pelas próprias convenções sociais moralistas nas épocas de 1935 e 1942. Além disso, outra mostra de limites é o gênero, além dos códigos que muitas vezes coincidem com o contexto social real daquele período que sobrevive do valor artístico de consumo. A verdade é que as diferenças históricas, estruturais, temáticas e semióticas entre literatura e cinema são muito menos óbvias e mais profundas do que as teorias existentes.

Tamanha é a polêmica dessa relação que um ensaio como este se torna limitado para recobri-la, mesmo com um corpus de literatura e cinema. Quando se compara a obra Anna Karenina em livro com a adaptação no cinema é impossível não observar o enorme espaço e vazio semiótico que separam essas duas modalidades. A cena escolhida nunca terá no livro a plasticidade que possui nos filmes, e nem no roteiro o nível da abstração conseguido na página. A comparação é de extrema importância, pois nos faz entender na prática a expressão do cinema que é icônica tanto quanto a linguística no discurso da literatura.

Há ainda na observação da adaptação algumas semelhanças que podem ser apontadas. Ao contrário do pensado, a literatura pode ser, também, considerada uma obra visual e responsável pela herança técnica do cinema por existir como uma arte universal anterior. Anna Karenina é uma obra de vanguarda, ao mesmo tempo clássica, consagrada pela história, ou seja, uma verdadeira metáfora cinematográfica de adaptações. Uma das críticas possíveis dessa análise seria a setorização semiótica dos filmes ou “decupagem clássica”, isto é, o modo de corte e edição dos três filmes que parece negativo e influi na narração da história, criando uma tensão de sentidos.

Nos três filmes há alguma similaridade que se multiplica na escolha central do enfoque em Anna. A adaptação de 2012 é a que mais dá destaque às especificidades do cinema, em modalidades influentes como: plasticidade da pintura, movimento da música e coreografia da dança. Nessa transposição observa-se, ainda, a tridimensionalidade da influência de escultura, arquitetura e dramaturgia teatral em conjunto com a narrativa da literatura. Qualquer que fosse a arte comparada, nessa análise, haveria semelhanças de relações desvendadas. A cinematograficidade do romance Anna Karenina é inegável, assim como a qualidade fílmica de suas descrições consumadas na tela. Esses recursos de linguagem são elementares para a adaptação e sua realização, ou seja, há uma grande tipologia de plano cinematográfico em Tolstói.

Alguns momentos presentes no episódio aqui analisado são centrais para comparar as adaptações com a obra literária. Observemos o seguinte trecho retirado do livro:

Com sua velha experiência de homem de sociedade, bastou-lhe um olhar para compreender, pelo aspecto da desconhecida, que pertencia à alta-roda. Curvou-se e ia entrar no vagão quando sentiu necessidade de voltar a olhá-la, não atraído pela sua beleza, nem pela sua elegância, nem pela singela graça que se desprendia de toda a sua pessoa, mas apenas porque a expressão do seu rosto encantador, quando passara junto dele, se mostrara especialmente suave e delicada. No momento em que se voltou, também ela olhara para trás. Seus brilhantes olhos cinzentos, que pareciam escuros graças às espessas pestanas, divertiram-se nele, amistosos e atentos, como se o reconhecessem, e imediatamente se desviaram para a estação, como que procurando alguém. Naquele rápido olhar, Vronski teve tempo de lhe observar a expressão de uma vivacidade contida, os olhos reluzentes e o sorriso quase imperceptível dos lábios rubros. Parecia que algo excessivo lhe inundava o ser e, a pesar seu, transbordava ora do olhar luminoso ora do sorriso. Não obstante ter velado intencionalmente a luz dos olhos, ela transparecia através do leve sorriso (TOLSTÓI, 2002, p. 56).

Nesse trecho, temos a descrição do primeiro encontro de Anna e Vronski, estando presente em todas as três adaptações selecionadas para a comparação. Nas adaptações de 1935 e 2012, são resguardados certos detalhes da cena descritos na obra literária, como o encontro na entrada do trem e a troca de olhares intensos – um momento crucial, pois percebemos que em poucos segundos, Vronski consegue captar uma infinidade de detalhes de Anna. Já na adaptação de 1942, tal cena apresenta-se alterada, visto que primeiro Vronski a vê através da janela do trem, para somente depois ter um contato mais próximo.

Ainda no que diz respeito à cena do primeiro encontro entre Anna Karenina e Vronski nas adaptações de 1935, 1942 e 2012, é possível analisar que o processo da narração visual desse capítulo combinou planos diversos de um elemento ficcional para o outro. Dentro dessa cena, um fator de grande importância é o início do capítulo, uma vez que esse trecho do episódio condensa uma grande quantidade de informações. A cena do primeiro encontro entre Anna e Vronski na estação é marcada no livro por vários momentos de introspecção que duram todo o capítulo XVIII da primeira parte. São reflexões de caráter abstrato que não podem ser transportadas para uma cena que dura apenas alguns minutos ou, mais precisamente, os segundos em que ocorrem a troca de olhares e reações.

Na adaptação de 1935 a cena em questão é condicionada a uma breve passagem dos mesmos pelo corredor com sorrisos correspondidos. Anteriormente, Vronski observa Anna maravilhado e em ambos os momentos não há falas e apenas a atuação dos personagens cuja expressão se altera para contemplação e deslumbramento. Na adaptação de 1942, observa-se também a predominância dessa passagem para encenação dos sentimentos transcritos no livro, mas igualmente sem menção de palavras na sua primeira troca de olhares. O restante da adaptação do capítulo para o filme apresenta apenas minimização das falas ou alteração na pronúncia dos personagens em relação ao texto de Tolstói, ou seja, nada de tamanho impacto. A adaptação de 2012, por sua vez, no que diz respeito à cena sendo discutida, é ainda mais breve e pouco intensa, reduzindo-se a segundos de relances dentro do vagão e posteriormente fora dele.

Um fator a ser observado é que, nas três adaptações, esse olhar acontece em dois momentos singulares, sendo um externo e depois outro interno e em ambos sem a presença de fala para esse acontecimento, ou seja, apenas sentimento transposto para a face dos atores. O capítulo, que possui aproximadamente quatro páginas, dura aproximadamente três minutos e sessenta e sete segundos na primeira adaptação de 1935, e apenas três minutos e um segundo na segunda versão, de 1948. Já no filme de 2012, a cena tem o menor tempo de transposição, sendo as quatro páginas transportadas em dois minutos e onze segundos.

Apesar da rapidez, a troca de olhares que Tolstói ressalta aparece em dois momentos distintos nas diversas versões e, apesar da ausência de fala, o estilo apaixonado e intenso da personagem transparece na cena, que já demonstra a paixão dos dois como mera e inevitável consequência desse momento. O cenário da estação nas três adaptações recria com vigor a Rússia do século XIX, com ambientes que se movem de forma natural, com continuidade ritmada e intensa na valsa de atores, gerando uma enorme fluidez e trazendo beleza à cena, que parece não conceder tempo aos telespectadores, ou melhor, termina quando menos esperamos. Ainda assim, a permeação da exacerbada carga emocional dos personagens torna o trecho marcante na memória. Cada frame da troca de olhares parece soltar suspiros orgásticos que pioram no momento de sofrimento pelo falecimento do maquinista.

Garbo, na cena analisada, confere a Karenina um tom maduro e sensato como mulher, enquanto Vivien Leigh parece apostar no aspecto forte e determinado da personagem. No sentido oposto, Keira Knightley parece resumir Anna em uma mulher imatura, insegura e inocente. Vronski, por sua vez, nas três adaptações, mostra um excesso de virilidade que se intensifica na troca de olhares. Por outro lado, na versão de 1935, aparece como algo mais caricato e difícil de ser visto com seriedade. Os exageros sociais da encenação em questão também nos levam à fluidez das edições posteriores a esse capítulo narrado.

Ainda em relação aos personagens que aparecem especificamente no capítulo analisado, a criada e o mordomo mencionados no livro foram subtraídos no filme por uma questão lógica de tempo e redução de personagens, o que contribuiu para o engrandecimento de Anna e Vronski. O cachorro que aparece junto à mãe de Vronski nessas quatro páginas de transposição também é subtraído na cena das três adaptações. O cadáver do maquinista, por sua vez, apontado nas páginas como mutilado, é exibido nos filmes com uma preservação que pouco choca o telespectador.

Na obra literária encontramos descrições que nos levam a pensar que a atenção de Vronski fica totalmente presa em Anna em alguns momentos, como nos seguintes trechos: “Vronski, sem a perder de vista, olhava-a, sorrindo sem saber por quê” (TOLSTÓI, 2002, p. 57) e “Seguiu-a com os olhos até lhe perder de vista a graciosa figura, e só então o sorriso lhe desapareceu dos lábios” (TOLSTÓI, 2002, p. 58).

Outro momento relevante no episódio da estação é a despedida entre Anna e Vronski. Observemos o seguinte trecho: “[...] estendeu a mão a Vronski. Este apertou aquela pequenina mão, muito feliz, como se fosse uma coisa extraordinária poder àquela pressão firme e energética” (TOLSTÓI, 2002, p. 58). Nas adaptações de 1935 e 2012, esse momento acontece, enquanto na adaptação de 1948 Vronski não se despede de Anna, apenas entrega-a para seu irmão sem voltar a vê-la na estação.

Com as considerações mostradas nos parágrafos anteriores, o que se nota é que, apesar do pouco tempo para transpor as quatro páginas do capítulo analisado para o fílmico em uma média vista de dois a três minutos, a cena a que o autor parece dar mais destaque foi mantida nas três adaptações. Ausentam-se nos filmes apenas ocorrências pontuais que não parecem influenciar na história desse momento, ou seja, dois personagens secundários (mordomo e empregada) e a condensação das falas, de modo que se mantêm apenas o essencial. Outras condensações são o animal que não aparece e a introspectividade de Vronski a respeito do primeiro encontro de Anna, que é descrita em um longo parágrafo.

A influência da literatura no cinema ainda é atual, mas tem seus limites assegurados pela vasta possibilidade da técnica semiótica para o cineasta-narrador que tem a desenvoltura do escritor aliada a efeitos nunca sonhados pelo literato. As artes são, assim, intercomunicáveis, e a frequência de adaptações de Anna Karenina é uma grande prova disso. O cinema de arte europeu é distinto do clássico americano e Anna Karenina carrega em suas diversas adaptações, além das mencionadas aqui, uma fragmentação de cada uma dessas modalidades.

Ao mesmo tempo em que as adaptações de 1935 e 1942 são redundantes, lineares e fechadas, a de 2012 mostra-se fragmentada, aberta e imprevisível, ao contrário da estrutura do romance original. Levando em consideração a noção do contraste artístico entre o enquadramento aprendido com a literatura e a montagem, há na versão de 1935 um exemplo de cinema de atração com Greta Garbo. Essa técnica encantou a plateia da época pelo poder fotográfico, movimento e pela própria Greta, que garantiu o sucesso de bilheteria.

Sendo assim, através desta pesquisa, percebe-se que houve dois momentos entre cinema e literatura: negação e aproximação. As adaptações fílmicas de Anna Karenina colocaram seu centro narrativo na protagonista de foco limitado para o roteiro de cinema ostensivo ficcionista. Através disso, ocorre a objetificação da narração de Tolstói, que é levada ao extremo da influência romancista no cinema. Os filmes, ao contrário do literário, estão impossibilitados de tratar o invisível. A busca da interiorização da literatura foi o que mais a afastou em um determinado período do cinema e a posicionou contrária à adaptação por alguns; porém, é importante frisar novamente que depois do cinema a literatura nunca mais foi a mesma e vice-versa. É com a imagem na tela que surge a experiência da ação vivida no romance pelo catalisador da adaptação.

Virgínia Woolf (1950) preferiu pensar as adaptações de Anna Karenina como um desnível qualitativo e com alta rejeição. O trecho a seguir reflete essa sua opinião:

O olho diz: “eis Ana Karenina”. Uma pessoa voluptuosa, vestida em veludo negro com pérolas, aparece diante de nós. Mas o cérebro retruca: ‘tanto pode ser Ana Karenina quanto a Rainha Vitória’. Pois o espírito conhece quase inteiramente Ana pelo seu retrato interior: seu charme, sua paixão, seu desespero. Ao passo que o cinema põe toda ênfase nos seus dentes, suas palavras e seus veludos. (...) É assim que nós cambaleamos entre os escombros dos mais célebres romances do mundo. É assim que nós os soletramos em palavras de uma sílaba, rabiscadas por um estudante iletrado. Um beijo é o amor. Uma taça quebrada, o ciúme. Um sorriso, a felicidade. A morte, uma coroa de flores. Nenhuma dessas imagens tem a mínima relação com o romance de Tolstói (ASTRE, 1958 apud BRITO, 2006, p. 69).

A escritora é um exemplo da opinião literária do momento de lançamento da adaptação de Anna Karenina em 1935. Ocorre que nessa versão há uma perda de sentido que não é compensada de nenhuma outra forma pelo cineasta. O desprezo do livresco pela imagem era algo comum nesse período e tinha no cinema a visão de algo faltoso com o signo verbal de referentes semânticos. O que Virgínia Woolf parece esperar é que o diretor Clarence Brown coloque em imagens todo o mundo de significado existente em Anna Karenina sem criar os seus próprios sentidos, ou seja, tomar o romance servilmente ao filmá-lo. O que se pretende recordar com as três adaptações aqui citadas, em contraposição à obra de Tolstói, é que todas as versões, assim com o livro, são obras pessoais com sentidos próprios.

A diferença estrutural entre o romance de Tolstói e os filmes adaptados por roteiristas e cineastas dificulta a análise de intersecção. A oposição mais básica entre os filmes, por outro lado, é o uso do espaço e tempo nas suas diferentes formas. A versão de 2012 é um espetáculo atual, moderno e revolucionário. Ao passo que as de 1935 e 1942 respondem a uma mesma vocação do realismo. Virgínia Woolf nos mostra o pedantismo literário falado por Bazin do intocável romance de Tolstói. O fato é que o cinema parece ter conseguido naquele século o que nenhuma outra forma de arte alcançou: a popularidade social, pois nem todos tinham acesso aos grandes romances literários e seus escritores.

O conceito de fidelidade almejado em Anna Karenina por Virgínia Woolf é ilusório e nem mesmo desejável. Só há no cinema a possibilidade de equivalentes do original através da produção estética de Tolstói em outra linguagem que não a literária. O talento necessário para uma adaptação equivale ao de Tolstói como escritor do original ao passo que deixa de considerar tal original como intocável, através de um novo conceito de obra aberta e móvel. As fronteiras semióticas são quebradas e por isso tantas adaptações de uma mesma obra como Anna Karenina.

A cena analisada mostra a intransponibilidade através do conceito de especificidade, recíproco na relação cinema e literatura. O cinema possui uma linguagem específica, e é também difícil encontrar seu equivalente em outra forma de expressão quando se pensa em termos práticos, como agora, na comparação da cena de encontro entre Anna e Vronski nos capítulos iniciais.

O sucesso dos três filmes está ligado à criatividade do cineasta e não necessariamente à de Tolstói pela sua criação original. São várias as características que merecem atenção na transposição da cena escolhida e do filme como um todo. Romances em geral têm longa duração, maior do que o cabível em um filme e por isso a redução é extremamente frequente, como em Anna Karenina.

Nas três adaptações há uma inclusão de elementos novos que permitem a tradução não literal dos aspectos desse momento. Um desses elementos é a sonoplastia muito marcante da cena que será relembrada por todos os três filmes. A sonoplastia, o jogo de câmera e a expressividade dos personagens são os principais equivalentes cinematográficos desse importante momento no livro, que culmina em uma tragédia. A adição, que é a inclusão de algum elemento, ou um acréscimo, ao mesmo tempo em que se remove algo que havia anteriormente, está presente nessa cena pela dilatação de Anna e Vronski como os personagens quase únicos do momento que é referente ao capítulo considerado o deflagrador semântico.

O destino da personagem Anna nos filmes ganha um desenvolvimento muito maior para recobrir as narrações abstratas desse discurso literário. Além disso, os recortes são recorrentes nos monólogos interiores não só de Anna, mas de personagens como Lievin. A natureza intersemiótica desses procedimentos acaba por reduzir a adaptação de Anna Karenina a uma simplificação do romance volumoso, cortando trechos inteiros e condensando episódios.

O recurso da dicotomia estilística, categoria estética, ora transforma uma adaptação do clássico em moderna e ora o moderno em clássico de Anna Karenina através da apropriação que integra e assimila essa obra nos anos de 1935, 1942 e 2012. O que se diz é que Anna Karenina, nas três adaptações, se integra ao período em que tal adaptação foi realizada, ponto de vista e ideologia aos contextos da época dos adaptados. A neutralidade do filme de 1935 também é uma atitude estética dos seus recortes ideológicos, não mostrados propositalmente nos quatro níveis: histórico, cultural, social e individual.

Sem os romances vitorianos não se teria chegado à linguagem cinematográfica atual, que é fundamental à narrativa moderna do cinema. O público dessa nova arte entendia as técnicas como lia os procedimentos narrativos romanescos até o surgimento da linguagem cinematográfica específica. Um dos repúdios à adaptação de Anna Karenina veio de uma literata, Virginia Woolf, que afirmava achar a reprodução das características psicológicas pelo roteirista impossível, sendo uma pessimista da adaptação e ignorando a defesa semiótica das duas linguagens. Cabe ao cineasta escolher as atitudes que melhor representam seu momento de filmagem, talento, e também intuição artística.

O romance clássico, como se vê em uma das versões de Anna Karenina, pode transformar-se em moderno nas mãos de um cineasta, ou até mesmo assumir a ideia do original adaptado quase como plágio. Conclui-se que são várias as operações básicas de uma passagem literária para fílmica (adição, redução, deslocamento, transformação, simplificação, amplificação) que podem acontecer em vários níveis distintos. Essas subdivisões podem acontecer a partir de elementos como: enredo, linguagem, personagem, espaço, tempo, caracterização física ou psicológica, diálogo, descrição e até figuras.

Nesse processo adaptativo, o mais comum será a redução, pois o romance será sempre, no que diz respeito ao tempo que leva para ser apreciado, maior que o filme, graças a uma linguagem verbal que é inviável na cinematografia. Mesmo em aspectos comuns, nos dois âmbitos analisados, cinema e literatura, haverá diferenças. Um exemplo disso é a descrição, ou seja, o contar passa a ser obrigatório para a adaptação que é feita por meio de um roteiro, a primeira versão já não literária da obra que surge como cinematografia. É nessa etapa, como visto, que ocorrem a montagem e os cortes necessários para a viabilização do filme, mesmo que de forma não tão visível em termos de quantidade (por ser menos óbvia e demarcável). Há ainda no novo texto influências relacionadas a dinheiro, atores, cultura, nível de interesse e protagonismo. Além dos cortes, ocorrem adições decisiva, ainda que em menor grau, podendo servir como compensação de elementos perdidos.

O deslocamento ocorre quando os mesmos elementos são colocados em ordem diferente da história do romance, remontagem que tem grande influência na significação final da adaptação. Ainda, é possível que ocorra a transformação, que consiste em transformar recursos literários verbais em não verbais através de ferramentas substitutivas. Isso pode ocorrer de forma muito mais ampla por meio de temáticas incluídas na transposição e atualização como, por exemplo, o mesmo esqueleto de enredo com aspectos completamente diferentes de tempo e espaço.

A simplificação é o contrário da ampliação e pode ser observada várias vezes em Anna Karenina quando os ambientes do romance são resumidos em um, assim como o personagem de Lievin, que por ser muito complexo no livro é simplificado no filme. Uma simplificação mal-sucedida torna-se algo confuso, como a primeira adaptação analisada de 1935 com Greta Garbo, e pode ser resultado da inexperiência. Anna Karenina mostra ser um romance sistematicamente simplificado por meio de suas adaptações, ao menos no que diz respeito às versões aqui analisadas. Ao mesmo tempo, as figurações foram ampliadas, de maneira que o tempo e espaço da tela transformaram-se em simples metáforas.

4 Considerações finais

Este artigo mostrou um ponto direto de discussão entre semiótica, literatura e cinema, refletindo sobre a adaptação como uma questão de linguagem na passagem do romance para a tela. O fosso semiótico entre as duas é indiscutível no discurso e em suas especificidades. Alguns estudos se concentraram mais no filme, outros na obra e outros em uma didática teórica. O conceito de adaptação foi aqui revisado e problematizado, contribuindo para o diálogo de forma interdisciplinar entre as duas artes comparadas. Espera-se ter colaborado para a desmitificação do filme como inferior ao livro, e ressaltar as afinidades semióticas – não só separá-las.

Alguns procedimentos tidos como cinematográficos estão presentes em obras literárias como: montagem, angulação, fotografia e enquadramento. Algo pode funcionar nos dois discursos e é importante ressaltar que o cinema também ensinou à literatura, assim como o romance do século XIX foi fundamental para a nova arte que surgia. Esse modelo literário foi fundamental para a tradicional maneira cinematográfica de contar histórias com começo, meio e fim, ou, ainda, com narração, ficção e representação ao mesmo tempo.

O quadro apresentado aqui não esgota o fenômeno da adaptação e fornece apenas o mínimo necessário dessas adaptações, que merecem um trabalho mais extenso e aprofundado. Procurou-se apenas estabelecer algumas das muitas relações entre os recursos escolhidos e o conteúdo literário, mostrando que, ao contrário de uma crença comum, quando o filme adaptado é bem realizado, independe do texto “original”. Essa comparação lança luz sobre ambas as linguagens, cinema e literatura, como obras autônomas que funcionam ou devem funcionar independentemente uma da outra.

Material suplementar
Referências
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