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A (des)politização do futebol nas narrativas sobre a Copa na Argentina de 1978
História Unisinos, vol. 25, núm. 1, pp. 122-132, 2021
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Artigos

Concedo a Revista História Unisinos o direito de primeira publicação da versão revisada do meu artigo, licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution (que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista). Afirmo ainda que meu artigo não está sendo submetido a outra publicação e não foi publicado na íntegra em outro periódico e assumo total responsabilidade por sua originalidade, podendo incidir sobre mim eventuais encargos decorrentes de reivindicação, por parte de terceiros, em relação à autoria do mesmo. Também aceito submeter o trabalho às normas de publicação da Revista História Unisinos acima explicitadas.

Recepción: 09 Septiembre 2019

Aprobación: 01 Diciembre 2019

Resumo: Considerando o ambiente intelectual, político e esportivo dos anos 70, o presente artigo analisa algumas narrativas em torno da realização da Copa do Mundo de Futebol na Argentina, em 1978. Imprensa e partidos políticos de esquerda são os discursos priorizados na análise. A partir da relação futebol, história e política, o artigo problematiza a tensão entre uma visão racional e objetiva dos discursos políticos e a passionalidade imposta pelo futebol. Os ambientes são os confrontos intelectuais e políticos na Argentina e na França, de onde se propagava um movimento internacional de boicote à realização da Copa do Mundo.

Palavas-chave: Copa de 1978; futebol; política; Argentina; França.

Abstract: Considering the intellectual, political and sportive environment of the 70's, this article analyzes some narratives around the realisation of the Football World Cup in Argentina, in 1978. The narratives found in the media and in left-wing political parties are those prioritized in the analysis. Based on the relation between football, history and politics, the article problematizes the tension between a rational and objective vision of political discourses and the passion imposed by football. The environments are the intellectual and political confrontations in Argentina and in France, where an international movement of boycott to the World Cup spread from.

Keywords: 1978 World Cup, football, politics, Argentina, France.

Introdução

Na Argentina ou no estrangeiro, o dilema da Copa foi marcado pela politização, fosse dos dirigentes da ditadura que queriam a Copa como vitrine do sucesso do regime, fosse das oposições de esquerda, que sucumbiram em defesa da Copa pela paixão das massas e passaram a justificá-la como vitrine de denúncia ao regime. O lado racional da política sucumbiu ao da paixão.

A conjuntura dos anos 1970 é particularmente rica para uma leitura política do futebol, em especial na América Latina. Os regimes autoritários de extrema-direita que se impuseram em grande parte do continente envolveram as principais nações futebolísticas, como Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Nossa análise se concentra na experiência que foi a realização da Copa do Mundo de Futebol de 1978 em uma das ditaduras mais violentas, a da Argentina.

Mas a escolha dos anos setenta não se deveu apenas a isso, mas também à coincidência de nesse contexto estar se desenvolvendo, no ocidente, uma formidável mudança de paradigmas, tanto políticos quanto epistemológicos. É no escopo desse cruzamento que nos interessa discutir o encadeamento futebol, história e política.

A singularidade dessa relação não se dá apenas quando discutimos os regimes autoritários, como regularmente encontramos na literatura sobre esportes. O recorte que propomos é, numa conjuntura autoritária como a da Argentina de 1978, descartar a tese do futebol como apolítico e naïf, como tendo sido meramente manipulado pelos ditadores. Nossa postura na relação futebol e ditadura é dialógica. Uma dialogia que implica diversos sujeitos históricos agindo, seja no campo político, seja no esportivo.

Esse esforço de uma leitura crítica de algumas narrativas que construíram o evento Copa do Mundo de 1978 nos coloca como devedores do debate teórico dos anos setenta. Para tanto organizamos o artigo em três momentos: um primeiro que capta as mudancas teóricas e epistemológicas da História, em torno dos anos 1960 e 1980. Há uma dupla consequência desse movimento, pois, ao mesmo tempo que intelectualmente instala uma crise ideológica na esquerda marxista que está lendo e atuando nos movimentos políticos, instaura uma crise nos paradigmas explicadores da História, abrindo brechas para novas fontes e novos objetos. É quando o futebol, de forma incisiva, inicia sua inscrição como objeto de interesse de estudos acadêmicos.

O segundo e terceiro momento estão focados nas narrativas tensas que discutem a realização da Copa de 1978, tanto no interior da Argentina quanto em Paris, França, onde se sediava o principal comitê de boicote à Copa do Mundo.

Como as críticas em relação à realização da Copa vinham sobretudo da oposição ao regime, nos concentramos em alguns discursos da esquerda, tais como os grupos peronistas argentinos MPM-Movimiento Peronista Montonero e PRT-Partido Revolucionario de los Trabajadores, os partidos da esquerda tradicional francesa como o PCF-Partido Comunista Francês e o PS-Partido Socialista, além dos pequenos grupos da extrema esquerda francesa e que fundamentalmente defendiam o boicote à Copa.

Esses discursos revelavam, de um lado, o esforço de ações políticas objetivas e concretas e, de outro, a subjetividade da paixão advinda do campo esportivo e que envolvia tanto as massas quanto os militantes de esquerda.

A virada epistemológica: uma abertura imaginativa para o estudo político-afetivo do futebol no contexto do Mundial de 1978

Enquanto fenômeno social e cultural, o futebol está estritamente conectado às tensões e transformações que permearam o século XX. Assim como outras práticas desportivas, desenvolveu-se em consonância com o capitalismo (Ribeiro, 2007, p. 11), no que se verificou sua consolidação como espetáculo de massas e midiatizado. Exemplo disso é a rápida afirmação do futebol como palco de representações nacionais, particularmente nos jogos e torneios envolvendo as seleções (Hobsbawm, 1990, p. 171), entre os quais a Copa do Mundo emergiu e se cristalizou como grande expoente.

Sob essa ótica, restringir a análise do futebol apenas ao jogo dentro de campo, ou aos personagens diretamente ligados a ele, como jogadores, técnicos e dirigentes, é negar grande parte de seus desdobramentos e significados. Entretanto, mesmo que as dimensões econômicas, sociais e políticas do esporte tenham ganhado abrangência e visibilidade, sua análise como objeto sério de estudo e lugar de estudo relevante tardou a ganhar espaço. Não por falta de interesse sobre a modalidade, mas porque questionava-se a relevância de investigações que atentassem para aspectos culturais, afetivos e subjetivos que pudessem contrariar os paradigmas fundantes do indivíduo moderno e de suas instituições (Hall, 2005). Nesses termos, quando visitado, o futebol era comumente observado à luz de algumas leituras restritivas, tributárias de certa tradição marxista e frankfurtiana (Ribeiro, 2004, p. 101), nas quais a compreensão hierárquica das estruturas socioeconômicas delimitava sua interpretação política como simples mecanismo de alienação e manipulação. Como veremos, parte significativa das narrativas políticas articuladas sobre o futebol no contexto da Copa de 1978 reiteravam essa percepção.

Não por acaso, as décadas de 1970 e 1980 delimitam a paulatina abertura das humanidades para a construção de análises renovadas sobre o esporte. A experiência histórica recente, marcada pelos traumas e desdobramentos do pós-guerra e pela profusão de movimentos sociais e políticos – pautados, por exemplo, por negros, jovens e mulheres –, atestava a incapacidade dos modelos explicativos sedimentados em traduzir a multiplicidade da experiência humana.

Ainda que recorrentemente negligenciadas, tais movimentações já estavam alocadas, mesmo de forma incipiente, entre as ranhuras do projeto moderno. Sua irrupção demonstrava a dificuldade de categorias fixas, sectárias de um racionalismo estreito, em lidar com os problemas emergentes. De forma análoga, enquanto uma produção da modernidade, o futebol também abrigava contradições similares que não poderiam ser reduzidas a interpretações hegemônicas produzidas a partir de referenciais fechados, como o marxismo e o estruturalismo.

Diante da insuficiência dos paradigmas macroexplicadores modernos, a virada epistemológica dos anos 1970/1980 aquiescia a um necessário esforço de revisão e superação dos processos de produção dos saberes instituídos até então. Tornava-se imperativa a formulação de novas hipóteses e perspectivas de investigação que alargassem as possibilidades de abordagem frente a questões insistentemente ignoradas nas relações tecidas entre grupos e indivíduos. Destituído de sua imaginada unidade, o sujeito coeso e ciente de si legado pelo iluminismo se via agora ante uma concepção fragmentada, múltipla e diversa (Hall, 2005). Em contraponto ao pragmatismo de normas e regras previamente enunciadas, adquiria crescente relevância o olhar sobre as subjetividades, as construções psíquicas, as emoções e sentimentos como aspectos importantes na formação dos indivíduos, na afirmação de identidades, bem como em seu reconhecimento mútuo.

A História não ficou inerte perante essas discussões. Assim como outras disciplinas, verificou o ruir das fundações que sustentavam suas edificações seguras de estudo, desgastadas em meio a fenômenos para os quais não havia atentado, ou cujas perguntas não conseguia responder. A revisão do conceito de fontes e do próprio ofício do historiador foram duas das ações centrais em sua reorganização. Nesse processo, a consolidação da chamada História Cultural, ao final do século XX (Burke, 2008), junto à paralela renovação de sua variante Política (Rémond, 1996), alargaram os horizontes do olhar historiográfico de modo a enquadrar objetos, temas e sujeitos até então renegados, vistos como irrelevantes ou marginais.

Mais eclética do que outras formas precedentes, a História Cultural tanto aprofundou o intercâmbio disciplinar quanto aumentou a abrangência dos olhares possíveis a serem direcionados sobre o indivíduo e a coletividade. Para Burke (2008, p. 69), em comparação com outras modalidades, ela se mostrava “mais imaginativa”, com maior afinidade para tratar aspectos relacionados às sensibilidades, aos afetos e sentimentos.

Em relação à sua vertente política, a discussão do conceito de poder, análoga à crise dos paradigmas e da virada epistemológica, foi fundamental para a reavaliação de seus terrenos potenciais de exploração (Barros, 2005, p. 128). A reavaliação da política enquanto espaço encarregado de gerir a sociedade (Rémond, 1996, p. 23-24) também contribuiu para que a percepção de suas relações e, consequentemente, lugares de análise se tornassem mais porosos e difusos.

Ao elencar o poder, e as relações de poder, como objeto central de análise, a História Política ramificou-se para além de seus locais comuns, como o Estado, os partidos e as instituições, e passou a dividir as atenções com análises interindividuais e subjetivas, a exemplo do exercício dos micropoderes no interior e entre os grupos (Barros, 2005, p. 129-130).

Concomitantemente, ganharam margem os estudos das representações, das construções simbólicas, do discurso, dos afetos e paixões políticas. Pierre Ansart foi um dos autores a enfatizar a análise do político a partir de suas dimensões afetivas em contraponto a um racionalismo pragmático. Para o autor, “as emoções, os sentimentos, as paixões encontram-se presentes nas instituições, nos fatos políticos e fazem parte da experiência cotidiana”, de modo que não podem ser desconsideradas nos esforços de compreensão da experiência política (Ansart, 2000, p.146). Ao contrário, acompanham-na em todos os momentos, desde a irritação com uma modesta discussão em torno da escolha de um candidato até as angústias e embriaguezes ocasionadas por uma vitória militar – ou mesmo esportiva –, ao constantemente colocar em jogo a afetividade individual e coletiva (Ansart, 1997, p. 7).

É justamente a partir dessas brechas, com uma nova percepção dos sujeitos em suas correlações subjetivas e afetivas com o universo cultural, que o estudo político do futebol se viabiliza. Se as dimensões políticas do futebol eram tidas como uma espécie de desrazão, na qual seria nublada a capacidade crítica dos sujeitos, tais perspectivas evidenciavam justamente como as paixões e os sentimentos permeiam o envolvimento e engajamento políticos. As narrativas produzidas sobre o esporte não apenas buscavam desviar o olhar dos sujeitos para o “não político”, mas também capitalizar o envolvimento afetivo com o esporte em prol de concepções políticas próprias, com ideais, intenções e objetivos particulares.

Os sentimentos de pertença e representação nacional, particularmente visíveis nos embates e discursos articulados durante competições como a Copa do Mundo, constituem casos exemplares da capacidade de mobilização política do esporte em locais onde o futebol se fixou como significativo traço cultural. Ainda que o Mundial de 1978 retratasse essas tensões no mesmo momento em que as humanidades começavam a questionar suas ferramentas de análise e seu campo de atuação, foi somente nas décadas seguintes que passou a figurar efetivamente como objeto de estudo relevante.

Ao discutir sobre o futebol na Argentina no decorrer do século XX, Pablo Alabarces (2002) observou como as narrativas construídas sobre a modalidade no país passaram a atuar como importantes operadores de nacionalidade no âmbito de uma sociedade de massas, destacando em particular o torneio. Diego Roldán (2007) atentou para aquilo que chamou de espontaneidade regulada, analisando como a ditadura buscou associar o êxito esportivo à exaltação nacional do país, nutrindo-se de certa adesão passiva ou, ao menos, de uma indiferença momentânea da população. Já Eduardo Archetti (2004), um dos precursores na investigação do esporte no país platino, abordou as memórias produzidas sobre o torneio, identificando uma espécie de ambivalência moral vivenciada pelos sujeitos ao confrontar a paixão esportiva com a apropriação, tanto simbólica e discursiva quanto operacional, realizada pela ditadura.

No Brasil, também encontramos produções recentes que se debruçaram de forma consistente sobre a experiência argentina em vista de suas significações políticas e nacionais, dentro e fora do país. Sob perspectivas distintas, Lívia Magalhães (2014) e Álvaro do Cabo (2016) atentaram em suas produções para análises comparadas entre os cenários brasileiro e argentino.

O trabalho de Cabo volta-se para as representações simbólicas enunciadas sobre o futebol e a Copa de 1978 em variados veículos de imprensa no Brasil e na Argentina. Nesse processo, atesta como essas representações dialogam com certa tradição atribuída ao esporte em cada país e pretendem compor alguns dos traços culturais imaginados para as respectivas comunidades nacionais. Ao contrapor as diferentes representações sobre os personagens políticos e esportivos do período, evidencia também a amplitude dessas representações para além do mero uso político pelos regimes políticos vigentes.

Já Magalhães utiliza um variado acervo documental, com atenção também aos depoimentos e memórias produzidos a posteriori, para retratar as distintas manifestações sociais expressas a partir do esporte nesse contexto. Ao observar a relação dos sujeitos com o futebol em meio a quadros autoritários, seu estudo acaba por evidenciar as contradições de uma análise política estreita, exemplificando a recorrente dificuldade dos atores do período – como os partidos e agremiações políticas de esquerda – em conciliar o genuíno vínculo afetivo dos sujeitos com o futebol ou a seleção nacional com as exigências de uma racionalidade política absoluta.

Ainda que distanciadas temporalmente do debate epistemológico que marcou o terço final do século XX, essas produções são, de algum modo, devedoras dele. Paralelamente, as dimensões políticas das narrativas construídas sobre o futebol no contexto singular da Copa de 1978 na Argentina evidenciam alguns dos embates e percepções sobre a pluralidade das experiências políticas e intersubjetivas que desafiavam os saberes instituídos no período. Ou seja: retratam, de certo modo, como os paradigmas de análise do período eram incapazes de traduzir por completo os fenômenos sociais, culturais e políticos que escapavam da lógica moderna e racional sobre a qual haviam sido fundados e se estabelecido.

Na sequência, nos dedicaremos a analisar algumas das narrativas tecidas a partir do futebol ou sobre ele, no contexto do mundial de 1978, dentro e fora da Argentina. Para isso, nos voltamos, primeiramente, para parte dos discursos públicos divulgados por alguns dos atores argentinos do período, como o próprio governo, expoentes da imprensa local e alguns grupos de oposição organizada ao regime que, desde o exílio, participaram ativamente do debate. Sob diferentes frentes, esses enunciadores delinearam distintas correntes de opinião (Tarde, 2005, p. 6-7)[3], que versaram não apenas sobre as dimensões e o uso políticos do esporte, mas demonstraram a importância de seus vínculos culturais e afetivos com os sujeitos, com inegável potencial de mobilização política e social.

Entre a herança peronista e a realização nacional (1975-1978)

Após o acirramento das tensões e da ampla crise institucional que se impôs durante a gestão de Maria Esther Martinez de Perón, o golpe deflagrado em 24 de março de 1976 colocou a Argentina sob o juízo de uma junta militar composta pelo brigadeiro Orlando Ramón Agostí, o almirante Emilio Eduardo Massera e o tenente-general Jorge Rafael Videla, que assumiu também a cadeira de presidente. A implantação e manutenção do autoproclamado Proceso de Reorganización Nacional ocorreram sob a difusão da violência, sobretudo no enfrentamento com organizações de esquerda e luta armada, tanto peronistas quanto socialistas, dando continuidade a diversas ações repressivas, que precederam o próprio golpe em vias institucionais e marginais (Novaro e Palermo, 2007). O intervalo imposto até 1983 deixou chagas ainda abertas e irresolutas sobre diversos aspectos da vida social e política argentina, palpáveis, por exemplo, nos saldos de presos, mortos, torturados e desaparecidos.

Como fenômeno cultural massivo de grande apreço no país, o futebol não passou incólume pelas disputas que percorreram os anos de ditadura. Ao contrário: evidenciaram-se também as dimensões políticas que permeiam o esporte, seja como espaço próprio ou como expressão sociocultural capaz de reverberar disputas e representações de poder. Nesses termos, a Copa do Mundo de 1978 emerge como um ponto de inflexão onde as tensões políticas articuladas ao esporte se mostraram mais evidentes e incontornáveis.

Como pontuam Pablo Llonto (2005, p. 12-15) e Fernando Gotta (2008, p. 20-21), os intentos para que a Argentina sediasse o certame remontavam às décadas anteriores e ligavam-se também ao peronismo. Entretanto, desde a indicação do país, em 1966, e a reafirmação do compromisso, em 1972, as obras para a realização da Copa pouco haviam avançado (Gilbert e Vitagliano, 1998, p. 11). Proliferava no espaço público local, sobretudo entre a mídia esportiva, o debate em torno da realização ou não do evento, fosse pela instabilidade do quadro institucional e econômico do país, que poderia ser agravado pelo golpe, ou pela ineficiência e desorganização no processo de preparação. Ao final de 1975, por exemplo, o semanário de humor Chaupinela condensava as opiniões divergentes de dois dos principais expoentes da mídia esportiva argentina: o radialista José Maria Muñoz e o jornalista Dante Panzeri. O primeiro, um dos narradores mais populares do país, assumia a defesa intransigente do evento como um compromisso nacional e uma oportunidade única de projeção internacional:

Em primeiro lugar, o Campeonato Mundial de 1978 é o evento mais importante em termos de divulgação do país, que pode ser produzido no século XX para a República Argentina. Só é comparável ao fato de enviarmos um satélite tripulado para a Lua ou para o Sol... como isso não vai acontecer, até o momento não há nenhum fato mais importante em termos de difusão do que a Copa do Mundo. A Copa do Mundo será vista por mais de UM BILHÃO E CEM MILHÕES DE SERES HUMANOS.

[...] Em uma palavra: vamos vender a imagem do país através de uma partida de futebol.

[...] Meu desejo é que o Mundial seja realizado na Argentina. Se não, seria uma grande frustração. Eu continuarei vivendo igual, mas para o povo se formou uma grande ilusão (Muñoz, 1975, p. 6-7).

A argumentação de Muñoz representava não apenas um discurso comum entre os defensores do certame, mas também uma leitura corrente que, embora reconhecesse o potencial do evento e a representatividade do esporte, eximia-se de qualquer análise mais aprofundada sobre suas articulações políticas. Um esforço em despolitizar o esporte e a Copa, sobretudo em vista de suas articulações com o Estado e o conturbado cenário político argentino. Não por acaso sua confiança na capacidade da “gente que governa para solucionar a crise” (Muñoz, 1975, p. 7) seria facilmente transferida às lideranças do Proceso após a tomada do poder pelos militares.

Já Panzeri, talvez a principal voz opositora ao evento desde a imprensa esportiva, utilizava-se justamente de uma leitura sobre o conturbado quadro político e econômico para sustentar sua argumentação (Panzeri, 1975, p. 7).

Com uma postura liberal combativa ao peronismo, Panzeri desconstruía a justificativa do compromisso e da frustração nacionais, sobretudo porque, diante da crise institucional e da evidente falta de recursos públicos, não haveria razão de empreender esforços com um evento que não era prioritário e cujas perspectivas de retorno eram baixas:

Desafio? Prestígio nacional em jogo? [...]

Eu não sei de onde. O desafio nunca existiu. É tão inexistente quanto o desejo do povo de fazer a Copa do Mundo com seu dinheiro. O povo nunca foi consultado, nem votou. Ninguém nos desafiou. Nós nos desafiamos. Ninguém aposta seu prestígio no futebol se todos os dias o está perdendo como país. Já se jogou o prestígio (Panzeri, 1975, p. 8).

Enquanto Muñoz reverberava uma postura hegemônica entre os veículos de mídia, que se manteria praticamente inalterada pelos anos seguintes, Panzeri emergia como uma das poucas vozes dissonantes no espaço público local, não apenas por externar sua oposição ao certame, mas por fazê-lo a partir de uma ótica que evidenciava o viés político e econômico correlato ao discurso nacional atrelado ao esporte.

As opiniões de ambos evidenciavam o dilema da ditatura recém-instituída em 1976 com relação ao evento: uma decisão quanto à sequência da Copa no país relacionava-se a uma tomada de posição ante uma herança, até então identificada com o peronismo. Por um lado, reconhecer a falta de condições do país poderia ser uma forma de tornar públicas as dificuldades econômicas, reforçar um discurso que prometia reorganizar a economia, reduzir a inflação e equilibrar as finanças, além de atribuir o ônus da decisão à falta de compromisso da gestão peronista. Em contrapartida, uma opção pró-Copa do Mundo poderia ser convertida discursivamente na afirmação da capacidade de realização da Argentina sob a nova administração, com a superação das dificuldades recentes e a expressão de suas potencialidades nacionais, devidamente coordenadas pelos militares que expurgavam o país de suas debilidades políticas e ideológicas.

Ainda que nas primeiras reuniões da Junta a opção pela segunda narrativa tenha predominado, houve reservas entre alguns membros do governo que, em diferentes momentos, criticaram publicamente a organização do torneio. Entre os militares, o almirante Massera foi o maior defensor da competição, na qual enxergava profícuo espaço de promoção política e pública, e buscou colocá-la sob os cuidados da Marinha (Gotta, 2008, p. 42).

O regime não apenas reiterou o compromisso junto à FIFA, de João Havelange, como tomou a responsabilidade definitivamente para si como uma atribuição de Estado (Archetti, 2004). A Associação do Futebol Argentino (AFA), entidade que deveria ser autônoma na gestão do esporte, reestruturou-se internamente logo após o golpe. Alavancou à presidência um personagem alinhado ao novo governo, Alfredo Cantillo, e incumbiu-se apenas da preparação da seleção, que tinha como técnico César Luis Menotti.

A lei 21349/1976 declarou de “interesse nacional a organização e realização do XI Campeonato de Futebol pela Copa do Mundo da F.I.F.A. 1978” e delimitou a criação do Ente Autárquico Mundial 1978 (EAM 78), órgão sob jurisdição direta do Poder Executivo que centralizaria todas as ações relacionadas ao torneio. Com o general Antonio Merlo como presidente e o capitão de navio Carlos Lacoste como vice, o EAM 78 tornou-se uma marca indelével da ingerência do regime sobre a Copa, bem como do intento de controlar as narrativas nacionais atreladas ao futebol.

Ainda que grande parte dos veículos de imprensa tenham sustentado a decisão com entusiasmo, caso da revista El Gráfico, principal publicação esportiva do país, que incorporaria não apenas o discurso oficial como se converteria em espaço privilegiado de circulação das ações publicitárias do EAM 78, Dante Panzeri não se furtou em expressar sua indignação com a decisão. Ao contrário, foi um dos poucos com voz pública a explicitar e questionar a intencionalidade política do evento:

O Mundial se faz por necessidade POLÍTICA. E parte de duas ordens-objetivos a extirpar: a guerrilha e o sindicalismo. Contra os dois inimigos não se pode lutar ao mesmo tempo e seria estúpido tentá-lo. Por isso, sendo agora a guerrilha o primeiro objetivo, trata-se de hibernar ou congelar o segundo objetivo (o sindicalismo) mediante feitos que não despertem frustrações sociais. Dá por certo que tirar o Mundial do cidadão argentino é fomentar uma frustração (Panzeri, 2013, p. 283).

Embora fosse notória a preocupação do regime em combater a guerrilha e o sindicalismo, tais elementos eram praticamente ignorados nas apreciações produzidas sobre a Copa dentro país. Panzeri seguia em sentido oposto: relacionava diretamente tais objetivos com a intencionalidade política do evento. Por um lado, o relato produzido pelo jornalista pode ser lido como um exemplo da percepção do esporte como mecanismo de alienação, uma vez que a realização da competição seria vista como uma forma de alheamento que permitiria o “congelamento” do inimigo sindical. Por outro, pode ser tomado como evidência de seu latente potencial político na condição de cativar e mobilizar afetivamente a população, sobretudo ao salientar que a não realização do certame poderia “fomentar uma frustração”, subententendo a preocupação do governo com os prejuízos de uma decisão contrária.

Entre os adversários do Proceso, o Movimiento Peronista Montonero (MPM) foi quem se debruçou de forma mais evidente sobre o futebol e a Copa. À medida que avançavam os preparativos sob os cuidados do EAM 78, também cresciam as acusações sobre as violações dos direitos humanos pela ditadura comandada por Videla.

Entre o final de 1977 e o início de 1978, enquanto a publicidade oficial, amplamente circulante na imprensa, anunciava “25 milhões de argentinos jogaremos o Mundial” – e reforçava: “não voltaremos a ter esta oportunidade em 100 anos” (El Gráfico, jan. 1978) –, proliferavam desde o exterior movimentos que condenavam a Copa na Argentina e pleiteavam o boicote ao torneio (Franco, 2005, p. 27-28). Além do evidente esforço do regime em filtrar e desqualificar as acusações, grande parte dos veículos de imprensa, como o semanário esportivo El Gráfico, principal publicação esportiva do país, a revista de informação e análise política Somos, ou a revista de diversidades e entretenimento Gente y la Actualidad, reverberaram e reforçaram a locução oficialista e não se furtaram em denunciar o movimento como uma desesperada “campanha antiargentina” propagada pela subversão e pela esquerda peronista (Somos, abr. 1978).

Contrariando essa leitura, o MPM adentrou no debate com um posicionamento flutuante entre a acusação do uso do torneio pela ditadura e a valorização da paixão esportiva como legítima manifestação popular. Com parte significativa de seu corpo diretivo fora do país, o MPM também se manifestava desde o exterior, com suas posições reverberando principalmente entre os veículos de mídia estrangeiros ou em documentos e publicações circulantes entre seu quadro de apoiadores.

Assim como muitos dos militantes e exilados políticos argentinos alocados na Europa (Franco, 2005; 2008), para os quais o vínculo cultural com o esporte e o sentimento de pertença correlato ao selecionado nacional permeavam sua percepção política sobre a modalidade, o grupo foi contrário ao boicote. Em vez disso, defendia que a Copa abria uma oportunidade única de ação, pois forçaria o regime a afrouxar os mecanismos repressivos e possibilitaria que “os olhos do mundo se fixem na Argentina e observem com imparcialidade a tragédia que padece nosso Povo” (Consejo Superior del Movimiento Peronista Montonero, 1978, p. 2) . Ao se posicionar para sua militância, as lideranças do grupo convocavam a oposição aberta à ditadura, mas sem que isso implicasse torcida contrária ao desempenho da seleção, destacada como efetiva representante nacional e popular:

O que queremos no mundial? Queremos que a Argentina seja campeã. E que todo o mundo saiba que repudiamos Videla e seus comparsas como gorilas.

Companheiros: preparem-se para a Copa do Mundo, para que nas arquibancadas se cante a marcha peronista; para se juntar no estádio e pedir para que se abram as portas no segundo tempo; para contar a quantos estrangeiros tenhamos por perto o que pensamos de Videla e Martínez de Hoz; para aproveitar a margem de legalidade e mobilizar-se por aumentos salariais, pela libertação dos presos e a aparição dos sequestrados, pela normalização sindical, para que o Mundial não seja uma grande operação de propaganda gorila, mas um grande triunfo popular, na política e no futebol. Argentina Campeã, Videla ao Paredão! (Movimiento, jan. 1978, p. 3).

Embora o MPM afirmasse que não criaria obstáculos à realização do evento, o grupo não deixou de expor sua contrariedade à organização do evento sob a tutela militar. Ao início de 1978, o grupo anunciou a criação de uma Comissão Especial Mundial 78:

Assim como a ditadura institucionaliza suas ações neste campo através do EAM 78, o Movimento Peronista Montonero faz isso através desta Comissão. É outra expressão do poder paralelo do Povo, que vai forjando organismos opostos às instituições do regime. (Consejo Superior del Movimiento Peronista Montonero, 1978, p. 2-3).

A noção de povo, adotada pela organização, é fundamental para compreender a maneira como o MPM percebia a Copa da Argentina. Diferentemente de outros grupos, particularmente aqueles tributários de uma tradição marxista limítrofe, cujo posicionamento era de uma espécie de vanguarda revolucionária, plenamente ciente de seu papel político e distante das massas alienadas, os Montoneros buscavam se colocar como representantes do povo e parte indissociável deste. Desse modo, em consonância com suas raízes peronistas, singulares à experiência argentina e carregadas de afetividade, o grupo reivindicava o termo para si, distinguindo tanto na política quanto no futebol a paixão popular. Um eventual posicionamento avesso ao futebol e à Copa do Mundo, sob a ótica cultural e esportiva, poderia ser apreendido como uma espécie de oposição ou distanciamento desse mesmo povo, que bradava representar.

O cenário futebolístico na Argentina, longe de servir como um mero instrumento de distração para as massas populares, tem sido em muitas ocasiões uma caixa de ressonância do descontentamento social. Essa mesma ditadura tem visto como as grandes multidões dos estádios, movidas por uma genuína paixão esportiva, também têm sido capazes de expressar sua paixão política em refrões que condenam a minoria no poder.

Nada, pois, tem a temer o povo da realização da Copa do Mundo. Não há razões que possam levar o Movimento Peronista Montonero a impedir que os argentinos – com todas as restrições econômicas e controle impostos pela ditadura – sejam espectadores da Copa (Consejo Superior del Movimiento Peronista Montonero, 1978, p. 1).

Sob vias distintas, tanto a narrativa produzida pelo MPM quanto a visão oficialista pretendida pelo Proceso, predominante entre os veículos de imprensa, reproduziam a leitura fornecida por Panzeri ao temer a frustração popular e buscar, à sua maneira, capitalizar os sentimentos atrelados ao futebol em favor de suas posturas políticas particulares. Em ambos os casos, ainda que o cenário econômico não fosse favorável, a defesa da Copa no país e a valorização da seleção como legítima representante nacional surgiam como formas de buscar uma proximidade com a população que não eram capazes de emular por si.

A experiência do boicote internacional à Copa de 1978

Outra narrativa sobre a Copa de 1978, realizada na Argentina, pode ser analisada desde a Europa, mais especificamente a partir de comitês criados com o propósito de boicotar a realização do evento.

O fato é que, entre meados dos anos sessenta e final dos setenta, a Europa recebeu uma grande quantidade de exilados da América Latina, que migravam em função de perseguições políticas dos regimes autoritários de direita que se instalaram no continente. A estimativa é que, nesse período, cerca de 10 mil indivíduos foram beneficiados com o estatuto de refugiado político, tendo Paris se constituído na principal concentração.

Assim é que, desde 1975 – ainda na vigência do peronismo –, refugiados argentinos se reuniram em torno do Comité de Soutien aux Luttes du Peuple Argentin (CSLPA). Após o golpe de 24 de março de 1976, comandado pelo general Videla, aumentou o número de refugiados. É no contexto do CSLPA que se instituiu em 17 de dezembro de 1977 o C.O.B.A. – Collectif pour le boycott de l’organisation par l’Argentine de la coupe de monde de football.[4] O C.O.B.A. se instalou em diversas cidades francesas e europeias, mas o comitê de Paris foi politicamente o mais relevante (Franco, 2008; Alabarces, 2002)

A motivação inicial do movimento é referência para se compreender a complexidade da proposta de boicote. Em outubro de 1977, após tomar conhecimento do assassinato na Argentina de sua sobrinha e do marido, o romancista judaico-polonês Marek Halter, refugiado na França por conta das perseguições nazistas, lança no jornal parisiense Le Monde um manifesto de boicote à Copa do Mundo de Futebol, prevista para ocorrer no ano seguinte na Argentina (Halter, 1977).

O impulso inicial é claramente de condenação ao regime autoritário argentino e defesa de direitos humanos, sem qualquer discussão com a questão esportiva. A perspectiva era combater o regime, e o fator Copa era apenas uma oportunidade. A proposta inicial não contemplava a complexidade e a força subjetiva que envolviam o futebol.

Uma rápida análise da composição da militância do COBA nos ajuda a compreender os seus objetivos e suas estratégias. O COBA foi instalado na sede do CEDETIM, grupo militante francês autodenominado de “Centre d’études et d’initiatives de solidarité internationale”, que tinha uma postura de esquerda radical e anti-imperialista, em especial nas questões relacionadas ao colonialismo francês na Argélia. Apesar de diversas discordâncias quanto à condução dos trabalhos, o COBA teve entre seus principais apoiadores grupos de esquerda, tais como o Parti Socialiste Unifié (PSU), a Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), um grupo de militantes autodenominados de École Émancipée, um segmento da Fédération de l’École National (FEN), setores do Syndicat Général de l’Éducation Nationale-Confédération française démocratique du travail (Sgen-CFDT) e intelectuais ligados à revista de “crítica radical do esporte” Quel Corps?, liderada por Jean-Marie Brohm (Dietschy, 2006, p. 153). Do lado argentino, a maioria era militante do MPM-Movimiento Peronista Montonero e do PRT-Partido Revolucionario de los Trabajadores.

As atividades do COBA foram diversas, desde publicações de manifestos, envio de cartas a autoridades francesas e a realização de manifestações de rua e diversas ações de abaixo-assinado em apoio ao boicote.

O que é visível no movimento é a ambiguidade, pois ao mesmo tempo que teve uma excelente repercussão na imprensa e na opinião pública francesa, a proposta do boicote fracassou. Além de publicações de manifestos em jornal, o movimento foi capa nos principais jornais e teve a adesão dos principais intelectuais franceses, como Sartre, Aragon, ou Jean-François Revel.

O movimento exibia também algumas contradições políticas: a clareza da denúncia em relação à violência do regime, exigindo uma ação política concreta, era borrada pelo envolvimento passional das massas e dos militantes com o futebol; outra era que tanto os grupos de esquerda argentinos – como o PRT e o MPM – quanto a extrema-esquerda francesa, todos imbricados na proposta de boicote, encontravam-se politicamente isolados e em crise ideológica (Franco, 2008).

Se, por um lado, a violência do regime na Argentina – tortura, campos de concentração e de extermínio, roubo de crianças de pais assassinados – não deixava espaço para negociações reformistas ou conciliação e era o que estimulava a proposta do boicote, por outro ela se desvanece na pressão subjetiva da paixão esportiva. No limite era como se todos dissessem: é preciso fazer algo contra a violência do regime, mas a Copa precisa ser realizada.

Pelas condições políticas que os argentinos encontravam no exílio, acirravam-se as discordâncias. O peronismo dos Montoneros e do PRT nunca foi bem compreendido pelos europeus. Era difícil explicar as relações de uma esquerda revolucionária com um caudilho de tradições fascistas, como Perón, assim como era pouco assimilável a defesa da luta armada entre as esquerdas tradicionais francesas.

Predominava na Europa central de meados dos anos setenta a confluência de um discurso antitotalitário. Aliás, desde 1956, com o Relatório Khrushchov e a invasão da Hungria pela União Soviética, que a esquerda europeia vivia sua crise ideológica. Uma crise que se acirrava com a modernização das relações sociais impostas pelo Estado do bem-estar social. O nível de inclusão social e a diminuição do tamanho e da importância da classe operária nos movimentos sociais europeus deslocavam as lutas sociais para além da tradicional luta de classes. O “maio de 68” expressa em parte a estabilidade econômica vivida pela classe trabalhadora europeia. As questões centrais não se restringiam mais à “luta de classes”, mas claramente à disputa democrática por direitos individuais e/ou de minorias. No campo sindical, o debate político era a autogestão, forma de enfrentamento ao engessamento ideológico e burocrático, tanto do campo sindical, da sociedade europeia que vivia um capitalismo consolidado, quanto o imenso edifício estatal soviético.

Quando, em 1967, Cornelius Castoriadis, editor da revista francesa Socialisme e Barbarie – dissidência trotskista autodenominada “órgão de crítica e de orientação revolucionária” – anuncia o encerramento das atividades do grupo, o argumento era o esgotamento da luta política enquanto luta de classes. Por isso, Castoriadis se perguntava qual o sentido de se manter uma organização de luta operária:

E quem, nessas circunstâncias, se unirá a uma organização política revolucionária? Nossa experiência nos tem demonstrado que os que têm vindo até nós – essencialmente os jovens – frequentemente o tem feito a partir, se não de um malentendido, ao menos por motivações que dependem muito mais de uma rebelião afetiva e da necessidade de romper com o isolamento a que a sociedade condena hoje os indivíduos do que por uma adesão lúcida e firme a um projeto revolucionário (Castoriadis, 1979, p. 421).

E do mesmo modo critica a mística revolucionária terceiro-mundista. É evidente que essa análise não era apenas histórica e conjuntural, mas uma crítica profunda aos metateoremas revolucionários das vanguardas marxistas, embasada também no embotamento burocrático e autoritário do bloco soviético.

Para Marina Franco, os grupos radicais peronistas viram-se na contigência de mudar de posição, e o debate sobre boicote ou não da Copa na Argentina foi a vitrine dessa mudança. Os fracassos de sua proposta de luta armada na Argentina pressionaram os peronistas para o campo da solidariedade e a defesa dos direitos humanos, e é isso, em boa parte, que explica o sucesso de opinião pública do COBA, bem expressa pela Unión de Periodistas Argentinos Residentes en Francia:

Nós não queremos tomar posição na polêmica que apaixona hoje a opinião pública francesa. Consideramos que se trata de um tema que diz respeito aos franceses e, como jornalistas argentinos, nos parece necessário fornecer aos nossos colegas periodistas esportivos um conjunto de informações que lhes permitam desempenhar melhor sua tarefa (UPARF, carta pública, 7.2.1978, apud Franco, 2008, p.184).

Mas, tanto quanto uma mudança de posicionamento imposta pela derrota no campo político, era o entendimento claro do sentimento das massas argentinas sobre a realização da Copa. PRT e MPM afirmavam a estratégia de realizar a Copa como uma forma de espaço de denúncia, pois, dada a grande mobilização popular, “promover o boicote era desconhecer o sentimento das massas” (Franco, 2008, p. 188)

A posição dos principais partidos da esquerda francesa – PCF-Partido Comunista Francês e do PS-Partido Socialista – era coincidente, apesar de portar argumentos diferentes. 1978 era um ano eleitoral na França, e ambos os partidos tinham expressão no meio operário e popular, francamente contrários ao boicote.

Em entrevista realizada em Buenos Aires pelo correspondente do jornal L’Humanité, órgão oficial do Partido Comunista Francês (PCF), de um membro local da Liga Argentina de Direitos do Homem, este se posiciona contrário ao boicote e acusa os defensores dessa proposta de fascistas:

Eu pude constatar que na Europa certas organizações e personalidades, de boa-fé sem dúvida, desejariam, em nome da solidariedade, isolar o governo argentino. Por exemplo, preconizando o boicote à Copa do Mundo e ao Congresso Internacional de Cancerologia, que devem acontecer na Argentina em 1978. Mas, nesse caso, o que significa “isolar”, senão que o próprio povo argentino? Em que isso ajudará em suas lutas? Os que desejam que a Argentina seja isolada do mundo são conspiradores fascistas que, para conquistar o poder pelo terror, querem que seja escondida a realidade do país, que ninguém venha para ver e impedir os seus planos. Os democratas, ao contrário, precisam da presença da opinião mundial, vigilante e exigente em matéria de direitos do homem... (COBA, 1978a).

É difícil concluir sobre a efetiva autonomia desse representante dos direitos humanos, na Argentina, ao dar esse pronunciamento. Mas o mais relevante é que o PCF repercutiu através de seu jornal essa opinião na sociedade francesa. E, mais do que isso, em declaração publicada em 18 de novembro de 1977 no L’Humanité, o secretáriogeral do PCF, Georges Marchais, se declara frontalmente contrário ao boicote:

Se a próxima Copa do Mundo de futebol fosse na África do Sul, eu diria não. Mas, quando se coloca o problema de direitos humanos em certos países, eu penso que é preciso ter mais atenção, pois corre-se o risco, tanto a leste quanto a oeste, de não se ir a país algum.

É por isso que eu defendo a ideia de que a França deve ir à Argentina. Acrescentaria o argumento de que o esportista é um cidadão como qualquer outro; ele deve se utilizar de todos os meios para defender a liberdade, lá onde ela estiver em perigo. Se estimamos que é esse o caso na Argentina, tudo bem, defendamos as liberdades lá como em qualquer lugar! (apud, COBA, 1978b).

Nesse posicionamento do líder do PCF, diversos elementos encontram-se em jogo. O grupo que liderava o COBA estava à esquerda do PCF – assim como do PC argentino. Ou seja, a linha do PCF era mais de caráter solidário, pois, como já vimos, os espaços na França para discursos radicais ou evolucionários estavam restritos a grupos minoritários. E mais, os PCs de Argentina e França não eram críticos do governo Videla, com o qual imaginavam a possibilidade de diálogo (Franco, 2008).

Pesquisas de opinião pública realizadas a respeito da participação do selecionado francês na Copa da Argentina apontavam apenas 20% favorável ao boicote, enquanto mais de 65% da população era favorável à participação. Segundo Breuil, essa era uma tendência evidente, sobretudo no meio operário. Nessas condições, os partidos políticos não tinham interesse em afrontar seus eleitores, e a discussão sobre a realização da Copa do Mundo na Argentina tornou-se uma questão eleitoralmente tensa (Breuil, s/data).

Outro fator que pesava na decisão do PCF era o fato de que a União Soviética deveria sediar os próximos Jogos Olímpicos, de 1980. Certamente não interessava aos comunistas acirrar qualquer relação entre direitos humanos e a realização de eventos esportivos.

Desse modo, apesar das adesões ao movimento – a maioria em defesa da liberdade política na Argentina, mas não necessariamente favorável ao boicote à Copa do Mundo – o sucesso da proposta do boicote esteve longe de se efetivar.

Corroborando essas posições, pronunciamentos de alguns jogadores do selecionado reproduziam certo lugar-comum ao afirmar o alheamento político do futebol, como nesse exemplo de Michel Platini, jogador do selecionado francês:

Os que nos pedem para não irmos não são sérios. Podemos imaginar qualquer coisa, menos o boicote. Faz quatro anos que nos preparamos [...] Há doze anos que a França não é selecionada. Desta vez, enfim nós somos selecionados. E há quem nos pede para não irmos. Não dá para aceitar. Eu irei a nado a Buenos Aires (Contamin e Le Noé 2010).

Considerações finais

Na leitura política que fazemos do futebol, percebe-se que há um jogo: ele se politiza na medida em que enfatiza a sua neutralidade. Ou, dito de outra maneira, a sua forma de ser político é exatamente a de negar a política. E esse raciocício é devedor do debate teórico conceitual dos anos sessenta/setenta, que problematizou o lugar da política. Um debate que deixou de ver a política exclusivamente no centro, localizando-a também nas fronteiras, de tal modo que núcleo central e bordas se dissolvem como significados fixos. É nessa perspectiva que o futebol é descoberto e pensado aqui enquanto política.

A mesma crise que fraturou o pensamento estruturalista construiu espaços para a leitura política do futebol. E, nesse sentido, a forma como nos dispomos a ler os acontecimentos da Copa de 1978 é devedora tanto da crise política das esquerdas quanto do esgotamento das correntes teórico-explicadoras estruturalistas.

Assim, concomitantemente a essas rupturas, o futebol mundial experienciava uma transformação significativa. Desde o início da década de 1970, como acontecera nas Copas de 1970 e 1974, os jogos mundiais de futebol coordenados pela FIFA vinham passando por um processo de modernização e mercantilização, estimulado sobretudo pelo redimensionamento das transmissões ao vivo na televisão e pela associação a empresas multinacionais como patrocinadoras. A posse de Havelange em 1974 acelerou a estratégia de transformação do futebol e as Copas em produto cultural de mercado. As inciativas da FIFA foram, nesse sentido, vanguardistas em relação ao processo de globalização, que será a característica central das décadas seguintes. Portanto, não havia em 78 qualquer tendência na entidade máxima do futebol em acatar as pressões de esquerda, fossem elas de caráter classista ou humanitário. Em nenhum momento a realização da Copa na Argentina foi colocada em discussão pela FIFA. Pelo menos não por motivos políticos, pois a entidade obviamente era fiel à tese da neutralidade política do futebol. A versão corrente na FIFA, como a da maioria dos agentes envolvidos, é que se ia à Argentina jogar futebol, não fazer política. Acreditava-se que esse discurso dissimulava a decisão ideológica.

O que estava subjacente – e aí reside a força política do futebol – era a passionalidade pelo desejo esportivo de que a Copa se realizasse. Mesmo forças de esquerda, como os Montoneros, renderam-se à vontade popular de se jogar a Copa, mesmo que ela se realizasse em estádios que há pouco tinham servido como campos de concentração de prisioneiros políticos.

Na Argentina ou no estrangeiro, o dilema da Copa foi marcado pela politização, fosse dos dirigentes da ditadura que queriam a Copa como vitrine do sucesso do regime, fosse das oposições de esquerda, que sucumbiram em defesa da Copa pela paixão das massas e passaram a justificá-la como vitrine de denúncia ao regime. O lado racional da política sucumbiu ao da paixão.

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Notas

1 Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Humanas. Departamento de História. Rua General Carneiro, 460 – 6o andar. 80.060-150 Curitiba, Paraná, Brasil.
2 SAE Digital SA. Rua João Domachoski, nº 5, Mossunguê. 81200-150 Curitiba, Paraná, Brasil.
3 Para Gabriel Tarde (2005, p. 63), a opinião “é um grupo momentâneo e mais ou menos lógico de juízos, os quais, respondendo a problemas atualmente colocados, acham-se reproduzidos em numerosos exemplares em pessoas do mesmo país, da mesma época, da mesma sociedade”. Já as correntes de opinião delineadas pelo autor contemplam o conjunto de enunciados projetados e propagados, mesmo à distância, entre as massas, de forma a aglutinar ideias, juízos, convicções e paixões de um determinado público.
4 Em alguns documentos a grafia aparece como “Comité de Boycott au Mondial de Football en Argentine”. Na Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine, Universidade de Paris X – Nanterre (França) encontra-se um dos mais completos dossiês sobre o movimento.


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