Resumo: Neste estudo são analisados marcadores da violência de gênero contra a mulher no período da ditadura militar brasileira. Através da análise crítica do discurso da narrativa de Cecília Coimbra, fundadora do “Grupo Tortura Nunca Mais/RJ” e vítima sobrevivente do regime, problematiza-se os recortes intersecionais e de colonialidade presentes neste universo de violências. Os resultados alcançados neste estudo apontam que as violências perpetradas contra as mulheres pelos órgãos de repressão do Estado Ditatorial Brasileiro, além de se fundarem politicamente no combate às manifestações contra-regime, transpareciam violências baseadas no gênero e pautadas nas construções sexistas vigentes no sistema patriarcal. Embora esse entendimento parta primariamente da vivência de apenas uma das diversas mulheres que passaram por esses órgãos, o depoimento de Cecília Coimbra é dotado de potencialidade capaz de abrir caminho para a identificação de diversas outras violências institucionalizadas durante o Estado de exceção brasileiro, a depender dos sujeitos e das suas subjetividades.
Palavras-chave:Ditadura MilitarDitadura Militar,BrasilBrasil,Cecília CoimbraCecília Coimbra,ViolênciaViolência,GêneroGênero.
Resumen: En este estudio se analizan marcadores de la violencia de género contra la mujer en el período de la dictadura militar brasileña. A través del análisis crítico del discurso de la narrativa de Cecilia Coimbra, fundadora del "Grupo Tortura Nunca Más" y víctima sobreviviente del régimen, se problematiza los recortes interseccionales y de colonialidad presentes en este universo de violencias. Los resultados alcanzados en este estudio apuntan que las violencias perpetradas contra las mujeres por los órganos de represión del Estado dictatorial brasileño, además de fundarse políticamente en el combate a las manifestaciones contra-régimen, evidencian violencias basadas en el género y pautadas en las construcciones sexistas vigentes en el sistema patriarcal. Aunque este entendimiento parta primariamente de la vivencia de apenas una de las diversas mujeres que pasaron por esos órganos, el testimonio de Cecilia Coimbra está dotado de potencialidad capaz de abrir el camino para la identificación de diversas otras violencias institucionalizadas durante el Estado de excepción brasileño, los sujetos y sus subjetividades.
Palabras clave: Dictadura militar, Brasil, CecíliaCoimbra, Violencia, Género.
Abstract: DICTATORSHIP, TORTURE AND GENDER VIOLENCE IN BRAZIL: INTERSECTIONAL REFLECTIONS BASED ON CECÍLIA COIMBRA’S NARRATIVE This study analyses markers of gender violence against women in Brazil’s military dictatorship years. Through a critical discourse analysis ofCecília Coimbra’s narrative, founder of “GrupoTorturaNuncaMais/RJ” and a regime Survivor, the paper will problematize the intersectional and colonial frames presentedby this universe of violence. The results indicate that the violence perpetrated against women by the repressive mechanisms of the Brazilian dictatorial state, were not only politically founded in the fight against anti-regime demonstrations, but also presented gender violence based on the sexist constructions of the patriarchal system. Although this understanding derives primarily from the experience of a single case among many, Cecília Coimbra’s testimony is endowed with a potential capable of opening the way for identification of other forms of institutionalized violence for subjects andsubjectivities,during the Brazilian State of Exception.
Keywords: Military Dictatorship, Brazil, Cecília Coimbra, Violence, Gender.
Filosofía, Política y Economía
Ditadura, Tortura e Violências de Gênero no Brasil: Reflexões Interseccionais a partir da Narrativa de Cecília Coimbra

Recepção: 07 Janeiro 2019
Aprovação: 21 Março 2019
O fenômeno das violências deve ser entendido a partir da ideia de que a pluralidade dos contextos sociais acarreta em sua construção multifacetada. O afastamento da crença na homogeneidade da sua manifestação traduz a natureza complexa das relações de poder, sobre as quais se sustentam as diversas violências surgidas na sociedade. Isso se deve por ser a violência uma questão social, não devendo o estudo dela estar desvinculada das várias nuances e individualidades que perfazem os sujeitos.
No entanto, essa realidade não exclui a possibilidade de enfoque em alguma (s) das suas manifestações, com o objetivo de aferir – naquilo que chamamos de estudo micro a partir do macro – de que forma materializações específicas da violência se fazem presentes em dados contextos sociais. Nesse sentido, adotamos como ponto de partida a figura feminina para estudar a violência de gênero, especificando o objeto de análise e adotando um posicionamento onde se considera as diversas formas de ser mulher, de ser vista mulher e de sofrer com uma estrutura patriarcal que normatiza códigos de conduta eminentemente machistas e sexistas.
A quebra da dicotomia agressor/vítimaamplia o olhar crítico do pesquisador e insere o lugar de enunciação dos corpos, no sentido em que cada pessoa representa uma construção histórico-social, formada a partir das vivências que estruturaram a sua subjetividade. Assim, um mesmo acontecimento adquire diferentes perspectivas a depender da proximidade que o pesquisador social mantém com o fato histórico.
No presente estudo, voltamo-nos à análise da violência de gênero perpetrada no Brasil durante o regime militar (1964-1985), período marcado pelo totalitarismo e por práticas de governo autoritárias,construídas sob o argumento da luta contra práticas consideradas subversivas. A ditadura militar brasileira implantou um cenário de repressão onde ações violentas comandadas pelos agentes estatais foram utilizadas como método de subalternização daqueles que enfrentaram os padrões ideológicos, políticos e econômicos impostos.
Assim, neste estudo nos propomos a refletir sobre o seguinte problema de pesquisa: até que ponto o discurso da mulher vítima da violência da ditadura militar brasileira é capaz de apontar marcadores de gênero interseccionais? A análise foi feitaà luzdos estudos subalternos/pós-coloniais/decoloniais e do conceito de interseccionalidade proposto por Kimberlé Crenshaw e sistematizados a partir da análise crítica do discurso.As informações necessárias foram colhidas a partir de uma entrevista e da catalogação do depoimento de Cecília Maria Bouças Coimbra, fundadora do “Grupo Tortura Nunca Mais/RJ” e vítima de torturas por agentes atuantes na ditadura militar brasileira, para a Comissão Nacional da Verdade.
Objetiva-se, de forma geral, compreender até que ponto o discurso da mulher vítima da violência da ditadura militar brasileira é capaz de apontar marcadores de gênero interseccionais. A estruturação do texto contempla os seguintes objetivos específicos: identificar a importância do lugar de fala do sujeito e dos estudos subalternos/pós-coloniais/decoloniais na análise do discurso; discorrer acerca de noções de interseccionalidade e de eixos de opressão; apresentar os marcadores de violência de gênero presentes no discurso de uma mulher vítima de violências no período militar brasileiro.
Com a redemocratização veio à tona a necessidade de se construir uma justiça transicional ampla.No entanto, ainda perduram resquícios colonial-autoritários que perpetuam violências gestadas desde a ditadura militar e que ainda demonstrama incompletude da transição democrática brasileira. Ao lado desse aspecto, se a violência de gênero é marcada pela dinamicidade, se faz necessário compreender a sua construção histórico-social.
Nesse sentido, as relações de poder presentes em cenários ditatoriais, caracterizados pelas práticas opressoras direcionadas, de modo particular, contra minorias marcadas por questões de gênero e continuadas após o fim do militarismo, são um importante campo a ser problematizado. Assim, a experiência de vida de uma mulher que resistiu e resiste às opressões legitimadas pelo Estado e por ideologias seletivas e antidemocráticas é um campo que pode significar na construção de uma outra narrativa, marcada pelo desvelar da resistência feminina e subalterna.
Quando nos propomos a trabalhar com circunstâncias fáticas que, de certa forma, são moldadas por fatores que não se comunicam em completo com àqueles que circundam o autor da análise, podemos incorrer no erro de crer em assertivas universalmente verdadeiras, traçadas por uma perspectiva considerada imutável. Essa crença representa uma das maiores críticas à forma como as ciências, em especial aquelas Humanas e Sociais, se desenvolvem hoje. Comumentemente, nos deparamos com pesquisadores que promovem um estudo não convalescente aos diferentes olhares que se têm sobre um mesmo cenário, desprezando o subjetivismo inerente aos agentes sociais.
As subjetividades humanas se consubstanciam nas vivências, crenças e relações sociais que traduzem experiências formadoras do ser. Foucault apud Mendes (2006, p. 168), ao trazer a conceituação de corpo como sendo um ente apto a sofrer os efeitos causados pelas relações de poder que estruturam política e historicamente um dado momento da sociedade, abriu espaço para se considerar os processos de subjetivação como aqueles influenciados por fatores externos; por refletirem marcadores de poder, fomentam a estruturação de seres afetados de diferentes formas, a depender do lugar em que ocupam nessas mesmas relações.
De forma análoga, a especificação de sujeitos subalternos[3] no seio dos chamados estudos pós-coloniais fez surgir a possibilidade de se desenvolver uma história apta a fomentar a identificação de realidades não transparecidas. O sujeito tido por subalterno é aquele que, segundo Gramsci, tende a se unificar ao restante do grupo no qual é posto pela atuação das classes dominantes do poder (Ballestrin, 2013); ou seja, são aqueles tornados invisíveis pela construção ideológica de poder que justifica atitudes de hegemonização.
A contingência ou não de se instituir um cenário onde o subalternizado possa adquirir voz frente às narrativas feitas em seu nome, mas que de modo algum o representa, é uma das questões mais desafiadoras no que tange aos estudos pós-coloniais. Em uma das obras mais conceituadas neste campo, Pode o Subalterno Falar?, GayatriSpivak (2010)[4] expressamente conclui pela impossibilidade de se retirar o sujeito subalternizado da condição de silêncio que foi imposta a ele, uma vez que o cenário moderno estruturado sobre relações de capitalnão oferece espaço para um reconhecimento das narrativas por manter heranças coloniais que aprofundam o discurso hegemônico do intelectual que fala. Assim, mesmo o pesquisador que se debruça sobre a história não oficial tenderia, em algum momento, a se impor e a ultrapassar os limites da representação.
Essa permanência das atitudes coloniais é resultado direto do que se convencionou chamar de “colonialidade do poder”. Expressão cunhada por Aníbal Quijano, representa um fenômeno onde a estrutura mundial capitalista que vige acaba por considerar como apagados processos que continuam a estruturar a modernidade e as relações sociais estabelecidas em seu contexto (Quijano, 1992, p. 14). De forma extensiva e complementar, Mignolo (2010, p. 12) traz uma noção de colonialidade que engloba as dimensões do poder, do saber e do ser, sendo responsável pelo controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade, e da subjetividade e do conhecimento, setores que formam níveis entrelaçados de dominação.
A ideia de colonialidade proposta por Mignolo permite considerar enquanto resquícios hegemônicos práticas entre e inter sociedades, onde as microrrelações e as circunstâncias opressoras que se fundamentam em parâmetros individualizadores também geram sujeitos subalternizados e subalternizadores. Quando se trata da participação feminina em espaços de patriarcalismo, por exemplo, a noção de gênero conforme foi construída pela sociedade traduz o falocentrismo que autoriza o discurso de dominação masculina (Spivak, 2010), causando um anonimato ainda maior da linguagem que não seja expelida por um homem cis, branco, burguês e heterossexual.
Contrariamente ao resultado encontrado por Spivak em seus estudos, cremos ser possível vocalizar sujeitos subalternizados através do reconhecimento de que as vivências pessoais perfazem a estrutura humana. As informações que permeiam as entrelinhas do conhecimento que, por não se expressarem na linguagem objetiva e nos discursos oficiais priorizados, não são considerados na análise dos fenômenos sociais, representam uma gama de categorias que alteram a substância do acontecido.
No que tange à colonialidade do gênero, fica clara a posição de subalternidade que geralmente permeia as mulheres. A imposição de um modelo hegemônico de família, eminentemente burguês, abriu espaço para a incorporação de padrões de comportamento a serem seguidos por elas(Quijano, 2014, p. 322). Embora critique em partes a perspectiva adotada por Quijano, Lugones (2014) aprofunda o olhar ao trazer uma visão histórica da colonialidade do gênero e aponta na colonização imposta pelos homens ocidentais a formação de outras distinções hierárquicas, inclusive daquela estabelecida entre homens e mulheres. Para ela, não há “mulheres colonizadas”, mas uma estrutura social que contém permanências coloniais, a exemplo da intersecção gênero-classe-raça (Lugones, 2014, p. 939).
O estudo das opressões ocorridas na ditadura militar brasileira, através do discurso de vítimas, se fundamenta,precisamente, na capacidade de que a fala subalternizada tem de trazer à tona categorias de análise invisibilizadas pela oficialidade dos fatos. Mulheres militantes foram torturadas e sofreram violências de formas distintas. Cada uma delas viveram circunstâncias que socialmente são objetos de opressão e que foram utilizadas enquanto métodos de tortura. Essa interseção de fatores é explicada pelos teóricos da interseccionalidade e contribuem para o aprofundamento de conceitos base debatidos nos estudos pós e decoloniais.
As descobertas teóricas adquiridas no campo da Teoria da Interseccionalidade vêm sendo cada vez mais incorporadas aos movimentos e práticas feministas, bem como às pesquisas feitas pelas Ciências Humanas e Sociais. Cunhado inicialmente por Kimberlé Crenshaw, o termo “interseccionalidade” representa a tentativa de se capturar a interação entre dois ou mais eixos de opressão responsáveis por discriminações distintas, porém interseccionais (Crenshaw, 2002). As categorias de diferença interagem com as relações de poder existentes na sociedade e acabam por gerar processos de violências plurais, onde uma mesma pessoa, a depender do papel social que seja imposto a ela e das características marginalizadas que a represente, sofre com n[5] formas de opressão.
A visão tradicional do fenômeno da discriminação ignora e, na verdade, exclui essas sobreposições. Ao contrário, a análise sob a ótica da interseccionalidade identifica esses grupos sobrepostos e produz uma teoria que, ao mesmo tempo em que não os reduz a um princípio unificador comum, também não relativiza as relações de poder ao ponto de deslocá-las das formas de opressão que geram (Rodrigues, 2013).
Há de se considerar, segundo Crenshaw (2002), os diferentes problemas e as vulnerabilidades exclusivas de mulheres que formam grupos sociais específicos. Essa possibilidade de expansão considera a noção de diferenças em sentido amplo, identificando aquelas que geram processos de violação dos direitos humanos. Nem toda diferença se enquadra enquanto eixos de opressão, porém somente a análise dos contextos é apta a demonstrar aquelas que se mostram relevantes para determinado objeto de estudo (Piscitelli, 2008). Em cada situação, estão envolvidas violências epistêmicas que agem com base em ideologias discriminatórias pré-dispostas no âmbito social; no entanto, apenas a especificação contextual provém de elementos que permitem a delimitação de quais influenciam em violências singulares e pontualmente observáveis.
O discurso do subalternizado consegue transparecer os diferentes eixos utilizados no processo de subalternização, assim como permite-nos identificar as violências interseccionais aos quais foi submetido para que vigorasse a ascensão da classe dominante. Em um estudo preliminar (Pavão; Cardoso, 2017), onde se analisou um dos documentos produzidos por instituições sem fins lucrativos em comunhão com os órgãos estatais e que traz uma lista de mulheres mortas e desaparecidas na ditadura militar brasileira, se tornou notória a potencialidade das versões não-oficiais em expressar eixos de opressão. Quando os organizadores do compilado relatavam as torturas pré-morte ou desaparecimento, no caso de mulheres que não puderam ser ouvidas, a condição de vítima, embora clara, não situava o gênero, homogeneizando todos os métodos de tortura como aplicados perante quem enfrentasse o regime. De forma contrária, quando destrinchamos os poucos relatos, presentes entre os capítulos, de mulheres sobreviventes que foram torturadas, conseguimos identificar violências de gênero, de raça e oriundas da nacionalidade da vítima, que interseccionaram para potencializar as torturas perpetradas.
A postura que uniformiza as vítimas de quaisquer práticas autoritárias influi indiretamente na perpetuidade dessas mesmas práticas após o período de autoritarismo. O exercício da memória transicional importa na lembrança constante dos abusos e violências praticadas nas ditaduras, e ela só se efetiva quando os eixos de opressão que foram aprofundados enquanto métodos subalternizadores e, por vezes, instrumentos que fortificaram a aplicação de torturas, são considerados.
Para a consecução dos objetivos pretendidos no presente estudo, utilizamos enquanto método de pesquisa o dialético, por ser capaz demarcar as características base do fenômeno social estudado a partir da consideração da natureza dinâmica dos fenômenos sociais (Marconi, Lkatos 2003). A abordagem utilizada foi a qualitativa, onde a investigação da essência do fenômenonão se reduziu à simples produção de dados numéricos. Por fim, dispomos das técnicas de coletas de dados (GIL, 2008) bibliográfica, através de autores como Saffioti (2015; 1987), Spivak (2010), Mignolo (2010), Quijano (2014; 1992), Crenshaw (2002) e outros/as, e entrevista semiestruturada.
Visando alcançar o objetivo de realizar uma análise crítica do discurso, reconhecendo a linguagem como responsável pela naturalização implícita de proposições que contribuem para a manutenção das posições dos agentes sociais (Fairclough, 2005), utilizaremos enquanto abordagem teórica a chamada Metodologia Feminista Decolonial. Os resultados foram oriundos das análises das estruturas que compõem e afetam a sociedade como um todo e dos sujeitos, mais especificamente dos lugares de fala deles através do reconhecimento de um lugar de fala não-comum. A estruturação de tal caminho metodológico se deu pela observância das noções de conhecimento situado enquanto proposta de relevância das circunstâncias subjetivas que circundam o objeto da pesquisa.
A proposta de nos utilizarmos da Análise Crítica do Discurso (ACD) enquanto técnica de análise dos dados aparenta esbarrar, a priori, na proposta de efetivar um estudo pautado na perspectiva decolonial e na fuga da ciência hegemônica[6] enquanto único modelo epistemológico válido na produção do conhecimento, uma vez que foi pensada inicialmente no cenário europeu, território que estrutura uma visão etnocêntrica e que figura, juntamente com os demais do norte global e a partir dos conceitos da Decolonialidade, enquanto dominadores políticos e culturais na Modernidade.
Dessa forma, a dificuldade em preservar os lugares de fala dos sujeitos – existente por si só no campo da produção científica, uma vez que a colonialidade se encontra imbricada na forma como o pesquisador conduz as suas pesquisas, realidade que vence com o mito da objetividade plena do conhecimento científico – é potencializada quando utilizamos a ACD em razão do seu contexto de origem. Porém, ao mesmo tempo, a proposta que fundamenta a sua aplicação e a forma como os resultados são obtidos abre espaço para a inserção dos estudos subalternosno processo de análise dos dados, no sentido de propiciar o reconhecimento de subjetividades nos discursos proferidos pelos sujeitos subalternizados.
De acordo com Fairclough (2005), o termo “discurso” pode ser entendido a partir de duas óticas diferentes: a primeira, lato sensu, considera a interação entre signos linguísticos – a fala propriamente dita – e não linguísticos – gestos, comportamentos, expressões etc. – enquanto formadores do sentido; a segunda, pensada de forma menos abstrata e considerada no presente estudo, o define enquanto modos particulares de representações da vida social, cada qual representando formas distintas de absorver e verbalizar um determinado fenômeno.
Dessa forma, a ACD perpassa, necessariamente, pelo julgamento dos seres humanos a partir de sua socialização e pela observância das subjetividades humanas, da efetivação de contextos sociais e culturais, e das ideologias e desigualdades que vigem nesses contextos (Pedro, 1997), evidenciadas a partir dos usos linguísticos adotados involuntariamente no discurso por quem o profere.
O objetivo principal desta técnica é desvelar fatores e contextos ocultos na opacidade da língua, possibilitando diferentes interpretações surgidas através das diversas formas possíveis de interação entre os sujeitos do discurso (Fairclough, 2001). Assim, não apenas os fatores subjetivos de quem fala devem ser considerados; a interpretação por parte do pesquisador também se encontra repleta de aspectos sociocognitivos interiorizados no processo de formação da identidade e da sua visão individual de mundo. Isso possibilita, por exemplo, o surgimento de novos resultados a partir das mesmas informações colhidas na presente pesquisa, a depender do olhar de quem as aprecia.
Como forma de utilizarmos a ACD em prol do exercício de preservação dos lugares de fala dos sujeitos subalternizados, realizamos o processo de desvelamento do discurso a partir da enunciação do corpo emissor das falas, qual seja a entrevistada Cecília Coimbra. Os termos, as entrelinhas e o contexto sitiados nos signos linguísticos, em comunhão ao estudo das relações de poder existentes na prática discursiva e na prática social, permitiram a análise de um discurso que revelou os eixos de opressão interseccionais utilizados pelos agentes atuantes na ditadura militar brasileira para subalternizá-la enquanto militante política e mulher. Esses eixos de opressão foram transmutados nas seguintes categorias de análise:


A análise com base nessas categorias analíticas proporcionou a construção de unidades de registro que representassem as diferentes circunstâncias motivadoras das violências, indo de encontro aos estudos transicionais que desconsideram as circunstâncias pessoais da vítima e se aproximando da ideia de violências interseccionais, expostas no próprio discurso da entrevistada, como veremos adiante. Os pontos da análise foram organizados a partir da categorização proposta, replicando as unidades de registro nos subtítulos referentes a cada uma das expressões das violências.
Cecília Maria Bouças Coimbra, carioca, foi presa, juntamente com o seu esposo, José Novaes, em 1970. Passaram dois dias detidos no Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DOPS/RJ) e foram posteriormente encaminhados ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), permanecendo incomunicáveis por três meses. Essa experiência fez com que criasse, juntamente com outros ex-presos políticos que vivenciaram situações de tortura, o “Grupo Tortura Nunca Mais/RJ”, o qual até hoje promove ações de proteção aos Direitos Humanos voltadas à defesa da memória enquanto instrumento de combate às torturas, inclusive daquelas perpetradas na atualidade.
Tendo prestado depoimento em junho de 2013 à Comissão Nacional da Verdade (CNV), foi elaborado um documento contendo 11 (onze) laudas de descrição narrativa dos fatos vivenciados enquanto presa. Somando-se a isso, outras 13 (treze) laudas foram obtidas em entrevista realizada em julho de 2017, onde se procurou obter um discurso livre de quaisquer limitações estatais, possibilitando a expressão do discurso subalternizado.
A escolha por uma vítima mulher foi proposital, uma vez que pretendemos enfocar o lugar de fala enquanto importante requisito na quebra dos parâmetros de opressão do discurso e na especificação de eixos interseccionais de violências. Fato é que o sexismo afeta tanto homens quanto mulheres (SAFFIOTI, 2015), porém há de se reconhecer que as consequências do patriarcalismo são aprofundadas quando diante de vítimas que, por serem mulheres, são naturalmente enquadradas em uma posição de subalternidade. A simples existência de características fisiológicas pertencentes ao sexo feminino gera, como consequência do sexismo, expectativas comportamentais de subalternidade a serem cumpridas pelas mulheres e mantidas por relações de violência.
Para enquadrar os pontos percebidos na análise das falas da Cecília Coimbra que direcionam à violência de gênero, nos utilizamos do conceito trazido pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), documento internacional que limita o seu âmbito de aplicação a “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (Brasil, 1996).
Para fins didáticos, e tendo por base essa definição, Falcón (2008), identifica, dentre tantas outras, as seguintes expressões da violência contra a mulher, onde destacamos a terceira no presente trabalho: 1) A violência física, sexual e psicológica na família; 2) A violência física, sexual e psicológica ao nível da sociedade em geral; e 3) A violência física, sexual e psicológica perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que esta ocorra.
Vale ressaltar ainda que, uma vez que adotamos uma Metodologia Feminista Decolonial, organizamos a análise dos trechos trazidos de forma a contemplar apenas os aspectos estruturais da violência, que afetam a todos os membros da sociedade, incluindo a presente pesquisadora. No entanto, não há o que se falar em traduzir as opressões e torturas sofridas pela entrevistada, já que isso extrapolaria os limites adequados da representação e acarretaria uma invisibilidade do lugar de fala, consequência terminantemente contradita à proposta da pesquisa.
Primeiramente, se faz importante mencionar que, embora todas as violências sofridas sejam consideradas tortura latu senso, a classificação em torturas físicas, psicológicas e sexuais possibilita uma análise mais detalhada das diversas facetas da violência de gênero, eliminando a criação de uma hierarquia entre os métodos de tortura que, evidentemente, não existe. Todos os meios empregados tiveram como objetivo a inferiorização da mulher, a tentativa de manter as facetas potência-impotência visivelmente estruturadas. A experiência vivida pela Cecília Coimbra sintetizou uma cadeia de violências que se expressaram das mais diversas formas.
Cecília adentrou na militância política ainda no Secundário, hoje conhecido por Ensino Médio, quando estudante do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro. No início sem qualquer vinculação partidária, se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) somente após ingressar na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi/UB), atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro, para cursar a graduação em História, com aproximadamente 18 anos.
Antes da conclusão do curso e já depois de algum tempo de militância, adveio o golpe civil-militar, circunstância que a obrigou a ficar escondida. Nesse meio tempo, dois inquéritos policiais militares (IPMs) foram movidos em seu desfavor: o primeiro relacionado à sua participação no PCB e à sua inserção na FNFI/UB; o segundo, à sua relação com o Programa Nacional de Alfabetização, implementado durante o governo João Goulart com o apoio de Paulo Freire.
Próximo ao final dos anos 1960, Cecília Coimbra voltou à Universidade, onde concluiu a graduação em História e se matriculou em Psicologia. Nesse momento, já havia se desvinculado do PCB por discordar da linha política defendida, considerada por Cecília pacifista, institucional e parlamentar de oposição.
A busca pela punição dos filiados a organizações políticas como o Partido Comunista Brasileiro encontrava razão na capacidade que esses tinham em resistir às medidas arbitrárias adotadas pelos militares, tendo sido um dos maiores desafios enfrentados pelo regime a atuação dos movimentos sociais e de cunho político voltado à Esquerda (PRIORI et al., 2012). Essa resistência era feita em conjunto aos movimentos estudantis, que representou uma das maiores forças contra-regime insurgidas durante a ditadura militar.
Nesse sentido, Cecília Coimbra se encontrava totalmente à vista dos militares. Além de possuir um histórico político de filiação ao PCB[7], estava matriculada em um curso de graduação onde figuraram intensos debates acerca da utilização do ensino da história enquanto instrumento de transformação social, razão que fez com que a FNFi/UB se tornasse, na época, um espaço de diversos embates políticos, o que provocou a aproximação de grande parte dos seus estudantesa ideologias de Esquerda (FERREIRA, 2014).
A importância desse ponto na formação de uma figura “subversiva” por parte dos militares é aferida a partir da informação trazida por Cecília Coimbra. Diversos Inquéritos Policiais Militares foram abertos para apurar aquilo que se chamada de “infiltração comunista” da FNFi/UB, a partir da formação de dossiês onde se reuniam informações a respeito dos atos e dos atuantes em eventos que “propagavam ideias extremistas” (FERREIRA, 2014). Um desses Inquéritos foi aberto contra a própria Cecília, por razões relacionadas à sua militância política e à sua vinculação estudantil.
Essa categoria, embora guarde relação direta com a primeira – a participação em movimentos contra-regime era a “formalização” da subversão, se volta precipuamente aos momentos posteriores à saída da Cecília Coimbra do quadro de membros do PCDB e aos acontecimentos que levaram diretamente à sua prisão arbitrária, fatores desvinculados aos grupos organizados de militância política.
Embora não tenha mais se filiado organicamente a qualquer grupo de combate à ditadura militar, porém, Cecília acabou por apoiar o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), que carregava esse nome em memória ao dia do assassinato do líder revolucionário e guerrilheiro cubano Che Guevara.
Em razão disso, abrigou muitos companheiros em sua própria residência – onde a dividia com o esposo, José Novaes, e o primeiro filho do casal – já inseridos na clandestinidade, bem como passou a contribuir economicamente com a manutenção de algumas famílias de companheiros presos pelas forças ditatoriais.
Após o sequestro do embaixador norte-americano, Cecília também cedeu abrigo a alguns dosparticipantes do ato. Isso ensejou uma denúncia anônima pelo Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), que passou a monitorar a casa durante cerca de um mês. Em 26 de agosto de 1970, o Serviço de Buscas do DOPS/RJ invadiu a sua residência, apreendeu dezenas de livros, alguns documentos e levou-a presa, juntamente com o seu marido.
Eles invadiram a minha casa, levaram centenas de livros, livros que não tinham nada a ver, com [risos] o que era subversivo, dito subversivo à época [...]. Então, eles levaram obras do Pavlov, romance russo, “Memórias de um Sargento de Milícias”. Foram quase 200 livros que eles levaram; óbvio que nunca devolveram. [8]
Em prefácio do livro Subversivos: 50 anos após o golpe, de Joana Rozowykwiat, Rosa Maria Cardoso da Cunha, membra integrante da Comissão Nacional da Verdade, nos dá uma definição plenamente válida do que seria “Subversão”:
[...] é uma palavra que remete a algo situado fora e além da ordem existente. Remete ao desconhecido, ao incriado. À descoberta, à invenção. Remete, também, à magia, ao esotérico. As associações que estimula emprestam, portanto, um fascínio à expressão, que independe das conotações adquiriu na prática política nacional (CUNHA, 2016).
Ao associá-la ao período da ditadura militar brasileira, Cunha (2016) atribui essa característica aos que participaram do processo de resistência ao regime, insurgindo-se. Assim passaram a ser chamados os militantes pelos militares, uma vez que se desvencilhavam da ordem imposta enquanto lema e diretriz do período. Esses atos de subversão iam desde aqueles mais simplórios e indiretos, como a manutenção e leitura de livros que representavam uma ameaça à ideologia que deveria prevalecer, até a própria ação dos grupos armados, das organizações políticas e dos movimentos sociais.
No entanto, esse fato não foi o primariamente responsável pela prisão arbitrária de Cecília Coimbra e do seu esposo. A respeito disso, nos relata:
Quando fizeram esse roubo de livros lá em casa, fizeram uma vistoria e encontraram um documento na minha casa; um documento que não tinha nome de organização. Eles ficaram dois dias no DOPS, interrogando a gente. Foi uma tortura já, psicológica, sem deixar a gente dormir, interrogando o tempo todo, e não conseguiram identificar de onde era o documento.Nós fomos pro DOI-CODI, órgão que centralizada todos os serviços de informação e segurança, sob a coordenação do Exército [...]. Então, eles identificaram imediatamente de onde era aquele documento, que era relativo ao sequestro do embaixador norte-americano, porque nós tínhamos ficado com algumas pessoas ligadas ao sequestro do embaixador: o Fernando Gabeira, o Franklin Martins, tinham ficado na nossa casa escondidos, né?! Então eles identificaram, só que o processo do embaixador norte-americano, do sequestro, já tinha acabado, e eles não sabiam onde enfiar a gente, porque a gente não tinha realmente nenhuma outra ligação com nenhuma outra organização.
O acontecimento a que se refere ocorreu em setembro de 1969, onde a AçãoLibertadora Nacional (ALN), organização promotora de ações de guerrilha durante a ditadura militar sob o comando do Carlos Marighella, juntamente ao Movimento Revolucionário 8 de Março (MR-8), sequestrou o então embaixador norte-americano para posteriormente libertá-lo em troca da libertação de presos políticos (ROZOWYKWAT, 2016).
Embora não tenha participado diretamente do ato, a simples vinculação aos sequestradores, conhecida por meio do documento coletado quando na investidura militar, somado a todo o seu percurso de militância já conhecido pelos órgãos repressores, fizeram com que Cecília Coimbra fosse presa sob o pretexto da “Subversão”.
A noção de que às mulheres era atribuído um papel duplamente transgressor fez com que a subversão de natureza política, que ensejou a prisão arbitrária da Cecília, fosse somada à outra, identificada a partir das práticas de tortura perpetradas contra ela. Para o regime, as militantes rompiam com o padrão de gênero socialmente imposto, acusadas por serem, ao mesmo tempo que “terroristas”, mulheres (Ferreira, 1996). De acordo com o Relatório da Anistia Internacional (2004), a utilização de estereótipos de cunho sexista é reforçada em contextos de conflitos e de militarização, realidade que faz com que a forma de tratamento desumano e as torturas sofridas por mulheres sejam aprofundadas pelas questões de gênero.
Grande parte dessa violência era manifestada através de expressões verbais. No caso da Cecília Coimbra, é claro perceber que, desde os primeiros momentos no DOPS/RJ, a sua condição de mulher foi diretamente atacada. Ela nos diz que foram recebidos pelo delegado Mário Borges da seguinte forma:
Eu era chamada de 'puta', 'vagabunda', 'com quantos você trepou, sua "vagabunda'? Inclusive, quando eu estava lá na frente do Novaes, lá já no DOI-CODI, na Polícia do Estado, quando eles me levaram para ver o Novaes sendo torturado, eles me diziam: "esse corno manso", "com quantos você trepou? Diz pra esse corno manso com quantos você trepou".
A utilização de xingamentos e impropérios era constante durante o desenrolar do interrogatório, pensados como forma de degradar a imagem feminina. Grande parte das violências expressas verbalmente, quando direcionadas a mulheres, possuem essa conotação.
A distinção entre mulher casta e mulher sexualmente ativa embasa a construção social de feminilidade, sendo merecedora de respeito apenas aquelas que não exercem a sexualidade da forma como, socialmente, é conferida aos homens. No entanto, a contradição se encontra quando na objetificação do corpo feminino, uma vez que à mulher compete a satisfação de todos os desejos masculinos, inclusive aqueles sexuais. Ou seja: ao mesmo tempo em que o exercício da sexualidade por parte das mulheres é condenado, também o é impelido.
O posicionamento do patriarcado no que tange à atividade sexual feminina dicotomiza a mulher, construindo duas características da feminilidade que levam a essa contradição: ao mesmo tempo em que é um ser frágil, assexuado e totalmente passivo em relação ao homem, a mulher é portadora de um excesso sexual capaz de aniquilar a construção familiar considerada de matriz burguesa (Nunes, 2002, p. 39). Assim, ao mesmo tempo em que a mulher “respeitável” é casta, também o seu corpo deve ser objeto de satisfação masculina, criando uma contradição que impele e restringe o exercício sexual.
Embora não tenha mantido contato com o esposo durante os dois dias em que permaneceu no DOPS/RJ, Cecília conseguia ouvir os gritos e impropérios direcionados a ele, sendo comum o chamarem de “corno manso”, inclusive posteriormente, já no DOI-CODI.
Mesmo voltada a um homem, a utilização de termos como esse representam violência de gênero em, ao menos, duas perspectivas: 1) esta não afeta apenas às mulheres. O sexismo produz efeitos também em homens, no sentido em que estabelece padrões contrapostos a ambos os polos. A noção de quea mulher deve ser inteiramente pertencente ao companheiro, não sendo o contrário verdadeiro, transmuta em sentimento de humilhação qualquer conduta feminina que fuja a esse compromisso social de monogamia. A denominação de “traído” representa uma violação do poder que o homem deve exercer nas relações de gênero; 2) Indiretamente, as ofensas são remetidas às mulheres, refletindo os efeitos na figura masculina. Busca-se atingir o homem através de assertivas que denigrem a imagem feminina, especificamente aquela de cunho sexista que deriva e, ao mesmo tempo, embasa o sistema patriarcal.
Ao chegar no DOI-CODI, Cecília foi mantida inicialmente isolada por cerca de um mês e meio, sendo posteriormente posta em uma cela com outras presas políticas de onde era deslocada apenas aos locais onde as torturas físicas costumavam acontecer, a exemplo da “sala roxa”[9]. As medidas de isolamento do preso político, principalmente quando mulheres, representavam uma tentativa de fragilizá-las. Vínculos afetivos, conjugais e familiares, perfaziam as violências e traduziam a mulher a partir da estruturação do patriarcalismo, cujos efeitos podem ser depreendidos da experiência de Cecília Coimbra:
Falar daqueles três meses em que fiquei detida incomunicável sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero; é falar da "separação entre corpo e mente", como afirmava Hélio Pellegrino.[10] (p. 4)
Dessa forma, as estruturas sociais são pautadas na construção social da supremacia masculina, de um lado, e na construção da subordinação feminina enquanto ponto contraposto. Assim, para cada homem racional há uma mulher emotiva, frágil, dotada de docilidade e incapaz de utilizar a razão, uma vez que a emoção excluiria essa possibilidade (Saffioti, 1987).
Sabendo-se que o único contato das presas políticas era com elas mesmas dentro das celas comuns, podemos aferir o desenvolvimento de uma sororidade voltada para a militância e para as relações interpessoais. Embora seja mais comum a utilização de um conceito macro de sororidade, qual seja a ideia de um pacto político e ético entre as mulheres, buscando enfrentar juntas o patriarcado opressor (Penkala, 2014), utilizamos uma ideia mais prática e identificável em realidades micro de convivência feminina, onde prevalece o compartilhamento das vivências e das formas de resistência contra agressores comuns. Uma vez que todas passavam por circunstâncias semelhantes, sozinhas, o desenvolvimento de relações de confiança e de afetividade entre elas representava uma forma de resistir mais facilmente às torturas perpetradas.
Asororidade era vista como uma maneira de tentar fortalecer as mulheres e, assim, dificultava o objetivo da utilização dos atos violentos, qual fosse a coisificação das vítimas e aaniquilação das personalidades; o isolamento era o primeiro passo para tal, sendo as demais torturas responsáveis por aprofundar o sentimento de não-humanidade nos torturados. A construção de relações interpessoaisretirava o caráter de seres inanimados que se desejava incutir nas mulheres e se preocupava em manter existentes os resquícios de humanidade através do contato com outras pessoas.
A realidade desse cenário é aferida por uma das formas de tortura empregada contra as mulheres, chamada pelos militares de “bate-papos”. Cecília Coimbra nos explica:
[...] O que eles faziam com a gente era tortura. Quando eles não tinham o que fazer, geralmente era madrugada; eles não tinham o que fazer, eles chamavam as mulheres. Eu soube depois, conversando com os nossos companheiros homens que estiveram presos, que raramente algum homem era chamado. Nós não tivemos nenhuma notícia de nenhum homem ser chamado; eram as mulheres que eram chamadas, normalmente de madrugada, quando eles não tinham o que fazer. Eles colocavam: “vamos bater um papo”, que era uma forma de tortura. E aí eles começavam a jogar uma contra a outra: “mas você sabe que a fulaninha de tal...”, “você tem confiança?”, “você tem quantas mulheres na cela hoje, nesse momento, com você?”, “você confia em todas?”, “será que não teria alguém infiltrado?”, “será que nós não infiltramos alguém lá?”
Embora vissem a sororidade como ameaça, de igual forma o patriarcado estabelece o mito da rivalidade feminina, onde disputas entre as mulheres são naturalizadas e responsáveis pela manutenção da estrutura de dominação masculina (Tiburi, 2016, p. 8). Assim, se fazia necessário evitar que a união das presas políticas se concretizasse, e isso era feito através de tensões provocadas.
De igual forma, essa mesma tática era muito utilizada quando algum casal era preso, na tentativa de que um dos companheiros acreditasse que o outro havia passado informações e acabasse revelando o que se buscava. No caso da Cecília Coimbra, além de ter passado por essa experiência, foi levada várias vezes para assistir às sessões de torturas físicas perpetradas contra o José Novaes, seu marido:
O meu marido à época não foi levado para me ver sendo torturada, mas euera frequentemente levada para vê-lo sendo torturado [...]. Quer dizer, eles colocavam justamente você totalmente nu, o Novaes também, totalmente nu, levando inclusive choques nos órgãos genitais. E me levaram para vê-lo. Os gritos que ele dava. Eu até coloco isso no meu depoimento; eram gritos, assim, que durante meses me acompanharam.
Como resultado da naturalização de processos socioculturais (Saffioti, 1987), a mulher é considerada como naturalmente sensível e responsável pelo care, ou seja, é um ser predestinado e absolutamente adequado a proporcionar aos outros o devido cuidado e atenção. Ao homem, compete ser cuidado por ela, pois não é dotado dessa capacidade, cabendo a ele a realização das “atividades pensantes”.
Nesse sentido, Jung apud Penkala(2013, p. 221) elabora o arquétipo de “grande mãe” como formado por duas vertentes que concorrem entre si: 1) enquanto figura do imaginário e do inconsciente; e 2) enquanto resultado das estruturas patriarcais. Assim, passou-se a vincular o gênero feminino às práticas de cuidado e proteção.
Essa concepção deve ser considerada quando na análise deste método de tortura; somado a isso, o enquadramento da mulher como parte sensível das relações, já debatido anteriormente. Cecília, além de ter sido levada para ver o marido sendo torturado, também assistiu às torturas praticadas contra dois de seus amigos, Marlene e Marcos. A intenção era justamente provocar essa necessidade de care e fazer com que a impotência da mulher em proteger os seus amigos e familiares a agredisse psicologicamente. Ela os via nus, pois a nudez, além de aumentar os efeitos dos choques elétricos no corpo de quem está sendo alvo, também coloca a pessoa em um lugar de fragilidade, de subordinação.
É um equívoco pensar que as torturas psicológicas ocorriam de forma isolada às demais. Principalmente quando as vítimas eram mulheres, grande parte das torturas físicas ocorriam concomitantemente às primeiras, e vice-e-versa. Era comum a utilização de métodos de violência psicológica que antecediam as torturas físicas e que objetivavam a potencialização dos efeitos dessas últimas. Nesse sentido, Cecília fala sobre o Cabo Gil, conhecido por utilizar-se dessas táticas:
Ele [Cabo Gil] era um assessor de tortura. Ele torturava junto, mas ele não era graduado. Ele era um cabo, e ele vinha cantando justamente como forma de tortura; aquilo já era uma tortura. E ele balançava as chaves; o balanço das chaves, as diversas chaves das celas ele vinha balançando. Isso outros se utilizavam também, outros “soldadinhos” também utilizavam, como forma de anunciar “alguém vai descer”, “alguém desse andar vai descer”. E a medida que isso se aproximava da gente, a chave se aproximava, a tortura aumentava. Ele vinha cantando, que era uma música muito comum na época [...]. Era uma música romântica da época; ele já vinha cantando pelo corredor, de uma forma bem, bem... Bem sádica, digamos assim, e terrorista mesmo, né?! Obviamente que eles sempre anunciavam: “olha, você vai agora pro pau de arara”, “olha, se você não falar, olha aí, ó! Olha o que tá acontecendo com...”
A intenção de afetar a consciência e sanidade da vítima mulher fica clara quando na escolha da música cantada pelo Cabo Gil. Em total acordo com Saffioti (1987), o organismo feminino é considerado como mais resistente fisicamente que o masculino, fator que fazia com que os torturadores se utilizassem de métodos antes, durante e após as agressões voltados ao psicológico, classificado como frágil e irracional pelo patriarcado. Cantar uma música romântica, balançar as chaves, avisar previamente eram formas de torturas perpetradas principalmente contra as mulheres.
Embora perante grande maioria dos homens e mulheres detidos na ditadura brasileira tenham sido deferidos choques e demais agressões contra a integridade física, não há como negar a relevância dagendrificação do corpo para definir os meios e locais do organismopor onde as agressões eram conduzidas. Cecília nos relata um desses momentos:
De capuz, tive minhas roupas arrancadas e meu corpo molhado. Fios foram colocados e senti os choques elétricos: no bico dos seios, vagina, boca, orelha e por todo o corpo. Gritavam palavrões e impropérios, chutavam-me [...]. Em dado momento, não sei precisar quanto tempo decorreu (encontrava-me sem controle da bexiga e do ânus), tiraram-me o capuz e vi vários homens (p. 4-5).
A escolha de locais como os seios e a vagina para a aplicação dos choques, além de serem regiões sensíveis e, no caso dessa última, úmida, também demonstra a interferência do gênero na prática da tortura. Em algum momento, todas as mulheres vítimas dos militares tiveram suas vestimentas arrancadas a força; o corpo feminino, objeto de curiosidade, foi sendo “invadido” pelos torturadores das mais diversas formas (ARANTES, 2010, p. 30).
Como método de dominação, quase todas as mulheres – e alguns homens – que passaram pelos porões da ditadura sofreram a prática de violências sexuais, inclusive de estupros. “Os guardas que me levavam, sempre encapuzada, percebiam minha fragilidade. Constantemente praticavam vários abusos sexuais”[11], revela Cecília.
A noção desvinculada do conceito de sexo ou de relação sexual e ligada um método de dominação, geralmente utilizado contra as mulheres, permite o conhecimento da intenção dessas práticas, qual fosse a subalternização do outro e a desumanização do sujeito, aniquilando toda a autonomia que porventura pudesse ainda existir.
Como a mulher, em uma divisão sexista, deveria sempre ocupar uma posição de inferioridade, grande maioria das violências de cunho sexual eram direcionadas às presas políticas. O ódio que nutriam contra essas, uma vez que, além de serem oposicionistas, eram mulheres que subvertiam aos padrões impostos pela ordem patriarcal, se envolvendo em lutas políticas (Teles, 2015, p. 507), fazia com que desejassem “coisificá-las” de todas as formas, inclusive por meio de abusos sexuais.
Falcón (2012) nos diz que a violência sexual, além de representar uma das violações de Direitos Humanos mais frequentes perpetradas contra mulheres em períodos de “normalidade”, tem sua prática agravada em casos de conflitos armados e de períodos de exceção, onde os corpos das mulheres se convertem em “territórios e botas de guerra”.
Nesse mesmo sentido, em informe especial sobre a violência de gênero em conflitos armados ocorridos na América Latina, a Consejería deProyectos(PCS) - organização de cooperação internacional que atua em países que viveram esses conflitos – apontou para a natureza continuada da violência sexual perpetrada contra as mulheres, fazendo com que, em períodos de exceção, saia do âmbito privado e passe a se instalar no espaço público institucional. Isso se dá em razão da crença reafirmada diariamente pelo poder sexual patriarcal de direito de acesso livre aos corpos femininos (Consejería de Proyectos, 2006).
Assim como em diversas outras mulheres que passaram pelos porões da ditadura, o corpo da Cecília Coimbra foi gendrificado a partir dos parâmetros sexistas de fragilidade psicológica e de objetificação do físico. A identificação deste viés nas torturas permite que identifiquemos a institucionalização das violências de gênero surgidas em relações interpessoais e construídas a partir de um sistema onde o feminino é subalternizado em razão da crença na superioridade masculina, estando os homens localizados no polo de dominação das estruturas de poder.
Embora representem a experiência vivida por uma das centenas de mulheres mortas, desaparecidas e/ou torturadas neste período de terror da história brasileira, as falas de Cecília Maria Bouças Coimbra revelam o que acontecia nas sombras da ditadura, informações que são homogeneizadas pelos discursos oficiais que representam sem considerar o lugar de fala das vítimas.
Os resultados aqui obtidos não excluem os demaisderivados de outras experiências e, inclusive, da mesma aqui exposta. Uma vez que a ciência não é absolutamente objetiva, e que a objetividade é formada pelo subjetivo de quem pesquisa e de quem fala, diversas perspectivas podem ser válidas enquanto verdades dos fatos.
Buscou-se desenvolver no presente trabalho um olhar que expandisse a noção de interseccionalidade a partir do discurso da mulher subalternizada. As características formadoras da feminilidade foram utilizadas enquanto práticas de tortura essencialmente gendradas pelos militares que atuaram na ditadura brasileira, fazendo com que, embora igualmente vítimas, às mulheres fossem direcionadas violências interseccionais em razão dos eixos de opressão que nelas concorriam: além de enfrentarem o regime a partir da militância ativa, seja participando de grupos de esquerda, sendo nutrindo autonomamente ideologias combatidas pelo autoritarismo ditatorial, eram mulheres não do lar, mas das ruas, das universidades, dos bares; eram mulheres que enfrentavam os padrões de gênero porque a autonomia delas era maior que a imposição social.
A esses dois eixos tantos outros somavam-se, a depender das circunstâncias pessoais formadoras do ser. Não se trata, assim, de fragmentar as violências, mas de expandir as suas diversas expressões de forma a reconhecer as variações condicionadas aos sujeitos e suas identidades. A identificação desses pontos só é possível através dos estudos que reconheçam o avanço científico provocado pela perspectiva decolonial, enquanto posicionamento que se afasta das – e reconhece as- estruturas coloniais fundadoras da modernidade.
Para a efetividade da justiça transicional e o fortalecimento de uma democracia voltada à inclusão das minorias sociais, se faz essencial a atenção aos dos discursos das vítimas de períodos de exceção, como ovivenciado pelo Brasil entre 1964-1985. A tortura não é passado; ao contrário, todos os dias instituições estatais se utilizam desses mesmos atos violadores dos direitos humanos contra as camadas subalternizadas da sociedade. Vivenciamos uma nova ditadura, aquela onde a “luta contra as práticas subversivas” se volta ao açoite do “PPP”: dos “pretos”, dos “pobres” e das “putas”. A esses, somam-se os homossexuais, os criminosos, todos os outros grupos não reconhecidos pelas instituições autoritárias que ainda vigem. São resquícios de um passado bem próximo, que só podem ser combatidos quando as vítimas puderem tomar parte na luta contra quem as tem violentado.

