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Phonodia: La voz de los poetas, uso crítico de sus grabaciones y entrevistas. Alessandro Mistrorigo. Venezia: Edizioni Ca’Foscari, 2018, 291 p.
Revista Caracol, núm. 17, pp. 583-588, 2019
Universidade de São Paulo

RESENHAS

Mistrorigo Alessandro. Phonodia: La voz de los poetas, uso crítico de sus grabaciones y entrevistas. 2018. Venezia. Edizioni Ca’Foscari. 291pp.

Recepción: 06 Agosto 2018

Aprobación: 26 Agosto 2018

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i17p583-588

Nas primeiras páginas de seu célebre Teoria da vanguarda, Peter Bürger distingue a “ciência crítica” da “ciência tradicional”. A primeira seria aquela que reflete sobre “o significado social do seu próprio fazer” (2008, 23). Muito livremente, permito-me a apropriação das palavras do pensador alemão para descrever a proposta de trabalho que Alessandro Mistrorigo expõe em seu Phonodia: la voz de los poetas, uso crítico de sus grabaciones y entrevistas, vindo à luz neste 2018. Trata-se, com efeito, de um estudo que propõe e enfrenta os desafios do que o autor denomina “escuta crítica” da voz de poetas que leem suas próprias composições. A empreitada implica – daí a remissão à distinção de Bürger – não só a apresentação de um campo pouco explorado pelos estudos literários hispânicos como a constante reflexão sobre os meios para levá-la a cabo e os sentidos desse fazer considerando a natureza da poesia e os mecanismos de que, tradicionalmente, os analistas e intérpretes se valem.

Com a clareza que pontua todo o livro, no que tange aos métodos, razões e justificativas das escolhas, o autor enumera na sucinta introdução as perguntas que movem seu estudo: o que exatamente seria o elemento voz e qual papel desempenharia na construção de um poema (9).

Diante da quase infinidade de materiais sonoros disponíveis atualmente na rede, os quais, muitas vezes, carecem de qualidade, de dados ou de fontes confiáveis, Mistrorigo estabeleceu parâmetros de gravação de áudios e delimitou-se à análise das leituras de poemas, em voz alta e executada pelos próprios autores. Dessa proposta, surgiu, em 2012, o projeto do arquivo digital Phonodia (http://phonodia.unive.it/), o portal que abriga os poemas lidos por seus autores – são quase cem poetas, de dezessete línguas diferentes – em áudios que podem ser ouvidos na própria página ou a partir da plataforma SoundCloud. Como interessa a Mistrorigo precisamente a relação entre meios que a escuta pode gerar, o poema pode ser ouvido e lido na mesma tela, já que cada registro traz uma pequena foto do autor à esquerda, ao lado da qual se encontra a gravação e, logo abaixo, o texto com a versão canônica do poema tal como publicada em papel. Essa concomitância de meios que Phonodia proporciona atua na recepção do poema e evidencia, segundo Mistrorigo, um trânsito complexo que envolve, de um lado, a transformação do autor em leitor e a conversão do leitor em ouvinte; e, de outro, a passagem da escrita, espraiada no espaço, à voz, que se coloca na dimensão do tempo. O pesquisador considera ainda que a simultaneidade entre a palavra escrita e a palavra declamada/ouvida pode significar para o poeta uma reescritura do poema ou uma espécie de diálogo consigo mesmo na medida em que promove uma experiência especular em que coincidem o eu que escreve, o que lê e o que ouve. Tais hipóteses foram investigadas pelo autor também em entrevistas com poetas, algumas das quais figuram na segunda parte do livro.

Atento ao fato de que a “escuta crítica” de todo esse material demandaria aportes teóricos de distintas disciplinas, Mistrorigo recorre a uma bibliografia consistente e oferece uma discussão densa em que coteja suas hipóteses com estudos filosóficos, linguísticos e psicanalíticos, sem descuidar da teoria literária. Na seção que lhe exige mais fôlego, “Sobre la voz en la poesía”, o autor assume o conceito polissêmico do termo “voz” para abarcá-lo em seu excesso de relações, inclusive as extralinguísticas. Assim, a voz não é considerada oposta à palavra escrita, mas como elemento que “penetra e invade” (26) o processo de escritura, em especial no que tange à dimensão rítmica e musical do texto. É tomada também como um gesto corporal forjado no interior do indivíduo e resultante do entrecruzamento de aspectos biológicos (a fisiologia da produção da voz) e psicológicos (a experiência de vida do sujeito). Mistrorigo observa igualmente os elementos paralinguísticos, como a melodia e a entoação, além das dinâmicas envolvidas no momento da vocalização e que conformam a “inteligibilidade linguística” (30). O autor não ignora ainda a questão da métrica do poema. Valendo-se das reflexões do crítico Nowell-Smith – referência a que sempre retorna – e do poeta norte-americano Charles Olson, assente à instigante hipótese de que a métrica seja um “vehículo para pensar” e não somente “una prótesis del pensamiento que le otorga una forma” (31). Nesse sentido, a voz seria a origem do poema, lugar para o qual ela é transcrita; mas também seria o seu destino, uma vez que o texto potencialmente geraria novas “sonorizações” ou “performances” no momento em que alguém o lê e instaura um novo trânsito através da voz (31).

Tendo apresentado a complexidade que envolve o termo de sua investigação, Mistrorigo convence no tocante à pertinência e relevância da atividade de escuta de um poema, a qual permitiria o exame da palavra e de sua relação com a voz e não somente com a linguagem como sistema abstrato (28). Entre o texto, a voz e a leitura em voz alta feita pelo próprio autor, momento em que atuam “sus competencias lingüísticas, su experiencia y percepción del propio lenguaje y la propia voz física” (35), Mistrorigo vê ainda as implicações e ressonâncias no processo criativo do artista. Por tudo isso, defende que é preciso considerar a gravação de áudio – e sua possibilidade infinita de reprodução, tal qual o poema no papel – da mesma forma como entendemos um texto impresso.

A “escuta crítica”, portanto, requereria e estimularia um “pensamento auditivo”, ou, em outras palavras, seria também uma “forma de pensar” (37-38). Este exercício demandaria a atenção ao modo como um poeta lê seu próprio poema em voz alta e lhe imprime movimento, executa ou respeita pausas (cesuras) ou opta por continuidades que ultrapassam o limite do verso (enjambement).

À esta altura do livro – e possivelmente já tendo acessado Phonodia –, o leitor espera uma demonstração prática dos procedimentos da “escuta crítica”. Mistrorigo opta por oferecer uma amostra de análises breves, que não se restringem aos áudios disponíveis no portal, deixando a indicação de seus artigos completos já publicados sobre tais questões. Essa escolha pode, eventualmente, frustrar o leitor que gostaria de encontrar ali um desenvolvimento prático mais demorado dos aspectos teóricos levantados na seção anterior. Ainda assim, os casos incorporados ao livro confirmam o “rigor filológico” (67) exigido pelo trabalho de “escuta crítica” e justificam, em certa medida a existência de Phonodia, pois se apontam as lacunas e imprecisões de outras gravações e de seus materiais de apoio (como encartes de CD), as quais podem comprometer o trabalho de pesquisa.

O primeiro exemplo é a escuta de “Alto jornal” (1958), poema de Claudio Rodríguez. Mistrorigo apresenta seu método de transcrição do poema ouvido, para o qual contou com o auxílio do software PRAAT, e chama a atenção para o movimento que o poeta confere ao texto em sua leitura, ora seguindo a métrica dos versos, ora inserindo cortes ou continuidades que concedem camadas de sentido ao texto. Seguindo com comentários acerca da audição de outros poemas de Claudio Rodríguez e de Manuel Vázquez Montalbán, Mistrorigo demonstra a possibilidade de que as gravações revelem distintos momentos do processo criativo de um autor na composição de um poema, já que detecta diferenças entre os registros sonoros e as versões canônicas publicadas em livro.

A única gravação advinda de Phonodia a que Mistrorigo se dedica no livro é a do poema “Manchas de voz”, de Juan Vicente Piqueras, talvez por essa razão a mais longa e detalhada do volume. Com efeito, o protocolo de gravação estabelecido pelo autor para a organização do site oferece-lhe elementos confiáveis para a investigação, outro ponto que corrobora a existência de Phonodia. A análise e a interpretação do poema e de sua leitura em voz alta por Piqueras transcorrem considerando diferentes níveis de significação do texto, como faria a crítica literária tradicional. Soma-se a ela, a observação do “movimento prosódico” (76) da voz do poeta, das pausas e acelerações do ritmo que executa, do modo como pronuncia determinados sons consonantais e vocálicos ou de como sua leitura ressalta os recursos sonoros que ele havia mobilizado na construção dos versos. Ao final, Mistrorigo consegue evidenciar o enlace entre os sentidos do poema e a leitura em voz alta de Piqueras. Ademais, a escolha deste poema para figurar em seu livro revela-se bastante propícia. “Manchas de voz” confirma, sublinha e ilumina os elementos que Phonodia: la voz de los poetas, uso crítico de sus grabaciones y entrevistas se esforça por apresentar e discutir. Alessandro Mistrorigo menciona a intenção de um segundo volume desses estudos. Com efeito, este primeiro parece deixar um convite para um campo de estudos que se mostra amplo, complexo e capaz de lançar novos olhares sobre o estudo de poesia.

Referências bibliográficas

Bürger, Peter. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

Notas de autor

Bolsista Capes. Vinculada ao projeto de pesquisa “Violência de Estado e Exílio: memória e testemunho”.


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