Resumo: Este artigo objetiva analisar o livro El juego de la viola de Guillermo Rosales (1946-1993), considerando algumas problemáticas identitárias (sociais) e diferentes reproduções traumáticas da infância (familiares) inseridas no contexto meta-ficcional da obra do escritor caribenho. Como estratégia metodológica, foram utilizados métodos descritivos e de caráter bibliográfico. O conceito de violência e trauma baseou-se no pensamento de Arendt (2003, 2005), Dorfman (1972), Assmann (2011) e Butler (2003, 2015), ao passo que a discussão sobre o espaço autobiográfico e a obra de Rosales teve como fundamento as obras de Martínez (2003, 2007, 2015), Simal (2012, 2017), Vila (2015) e Alfonso (2015); e finalmente, o suicídio no contexto histórico-narrativo cubano toma como base o pensamento de Cabrera Infante (2015). Assim, no romance, foi possível apreender determinadas marcas autobiográficas, relativas à trajetória autodestrutiva de Rosales, fragmentadas segundo os aspectos geográfico, psicológico e criativo. Também se destaca a presença de uma memória violenta, em que são recorrentes as alusões à tortura, ao suicídio e à morte associadas aos espaços individual, filial e social.
Palavras-chave:Guillermo RosalesGuillermo Rosales,Marcas autobiográficasMarcas autobiográficas,Violência familiar e socialViolência familiar e social,SuicídioSuicídio.
Abstract: This article aims to analyze the book El juego de la viola, by Guillermo Rosales (1946-1993), considering certain (social)identity issues and different traumatic reproductions of childhood (family) inserted in the meta-fictional context of the Caribbean writer’s work. As a methodological strategy, descriptive methods and of bibliographical character were used. The concept of violence and trauma was based on Arendt’ (2003, 2005) thought, Dorfman (1972), Assmann (2011) and Butler (2003, 2015), whereas the discussion on the autobiographical space and Rosales’ work were based on Martínez’ (2003, 2007, 2015), Simal’s (2012, 2017), Vila’s (2015) and Alfonso’s (2015) works; and, finally, the suicide in the historical Cuban-context narratives takes the thought of Cabrera Infante (2015) as a base. Therefore, in the novel, it was possible to apprehend certain autobiographical marks, referring to Rosales’ self-destructive path, fragmented according to the geographical, psychological and creative aspects. Also, the presence of a violent memory stands out, with recurring allusions to torture, to suicide and to death associated with individual, filial and social spaces.
Keywords: Guillermo Rosales, Autobiographical marks, Family and social violence, Suicide.
Dossiê
Jogo e morte na literatura cubana: reproduções da violência familiar e social em Guillermo Rosales
Game and death in Cuban literature: reproductions of familiar and social in Guillermo Rosales

Recepção: 28 Fevereiro 2019
Aprovação: 11 Maio 2019
Yo, confieso, solo recordaré con cierta amargura a un joven que abandoné a su suerte hace muchos años en una trinchera despiadada: yo mismo
Eliseo Alberto (1996, 41)
Guillermo Rosales é um escritor cubano possuidor de uma das vozes mais enigmáticas e rotundas da literatura recente cubana e que, por sua vez, constitui parte de um grupo de escritores do Caribe Insular cujas poéticas transitam por temas relacionados à memória e às subjetividades coletivas em vários contextos, entre eles, o da violência política, familiar e o exilio. El juego de la viola, romance curto que examinamos neste artigo, foi intitulado primeiramente como Sábado de gloria, domingo de resurrección, sendo finalista do Prêmio Casa de las Américas em 1968.O romance seria finalmente publicado, quase 25 anos mais tarde, em 1994, um ano após a morte do autor, sendo essa versão quase mimética com respeito ao livro original.
Neste artigo, analisaremos a referida obra com o objetivo de apresentar as múltiplas recordações violentas inseridas no contexto ficcional e pessoal de El juego de la viola. O processo metodológico do artigo toma por base o pensamento de Hissa (2013), que entende o processo da indagação de dados aberta e com inserção política em seu desenvolvimento e elaboração. Também serão utilizados métodos descritivo se de caráter bibliográfico para dar embasamento teórico ao componente autobiográfico e crítico que atravessa este texto.
Na narrativa, nota-se a presença de imagens tangíveis da infância do escritor, que pressupomos um alter ego do protagonista, cuja prosa oscila entre os planos da fantasia e do real, a qual registra passagens abruptas que podem gerar desconforto ao leitor devido à linguagem explícita inserida no contexto dramático-vivencial do relato. O livro reflete a crueza simbólica das letras de Rosales, cujos relatos experienciais revelam uma ligação íntima com sua doença mental, a esquizofrenia. A obra, portanto, contém uma forte expressividade, pois foi produzida num estado emocional alterado, o qual a preenche de um tom niilista. Tal aspecto, por sua vez, encontra-se presente em toda a produção de Rosales que, apesar de muito breve, possui grande intensidade literária, valor biográfico e histórico-político.
O sentimento de abandono físico e psíquico de um escritor estigmatizado foi projetado por Rosales em seu único romance publicado em vida, La casa de los náufragos,[1]que se ecoando na voz do protagonista declara: “No soy un exiliado político. Soy un exiliado total” (Rosales, 2003,11). Nesse sentido, o autor, ao longo de seu complexo trajeto vital, suportou um duplo exílio, ao fugir da ditadura de Fulgencio Batista e, posteriormente, ao escapar do sistema opressivo de Fidel Castro. O escritor, como aponta Alfonso (2015, 45), mantém-se por isso sempre caminhando num fio narrativo-vivencial, despossuído espacialmente, como membro de uma família disfuncional e sendo vítima de reiterados sinais de violência e obsessões familiares.
Rosales utiliza uma fórmula de “escrita de si mesmo”, a qual funciona como um ato performativo do autor, porque “dissolve sua interioridade e a reconstitui em sua exterioridade” (Butler, 2015, 146), fazendo uso de uma linguagem suja e irreverente, posto que o autor encontrava-se deslocado geograficamente, mas, principalmente, interiormente, da mesma maneira que outros escritores cubanos da geração de Mariel, o que suscitou posturas impregnadas de ódio nas duas obras mencionadas.
A fragmentação de Rosales, tanto territorial quanto existencial, propiciou que El juego de la viola, escrito quando ele tinha apenas 22 anos, em Cuba, pudesse ser interpretado como um exercício confessional literário ao redor de um ente desconstruído (Rosales) e que oferece, por esse motivo, uma narrativa sufocante que nos permite reconhecer o desmembramento físico-narrativo do escritor que explana diversas lembranças e lesões pessoais sem nenhum tipo de pudor. As marcas autobiográficas da violência dos relatos de Rosales são o resultado de sua exclusão pessoal, tanto externa quanto interna, pois como Arendt (2005, 17) nos descreve, qualquer um que procure sentido em sua história passada tem a obrigação de olhar para a violência como um fato marginal.
No artigo, o conceito de violência ao qual recorremos para analisar o texto baseia-se nas arguições de Hannah Arendt (1906-1975) sobre o assunto, que afirma que:
Es un lugar común el señalar que la violencia brota a menudo de la rabia y la rabia puede ser, desde luego, irracional y patológica, pero de la misma manera que puede serlo cualquier otro afecto humano. Es sin duda posible crear condiciones bajo las cuales los hombres sean deshumanizados(Arendt, 2005, 85).
Nesse caso, a violência sobre o sujeito faz parte de uma reprodução do maltrato herdado, no seio familiar que o afasta de sua humanidade original e que “da paso a la violencia física, la cual, em algún sentido, entrega el mensaje de deshumanización que ya está operando dentro de la cultura” (Butler, 2003, 90).O fato surpreendente em El juego de la viola é que os maiores portadores desta brutalidade serão as crianças, que tentam equilibrar o número de golpes recebidos, transferindo a dor sofrida para outros sujeitos que consideram inferiores. As particularidades do texto, assinaladas com anterioridade, fazem com que o romance e objeto desta análise se caracterize por:
Una literatura, finalmente, que con un lenguaje desmesurado, paródico y paradojalmente conciso, muestra repetidamente el desencanto y el desamparo de la vida cotidiana de protagonistas anónimos. Son relatos que no indagan el origen de la violencia sino, más bien, se ocupan de ficcionalizar los modos en que, quienes se ven afectados por ella, han sobrevivido o sobreviven en un mundo que les ofrece escasas alternativas(Vila, 2015, 141).
Além do suicídio, que se destaca como um assunto fundamental em sua escrita e neste artigo, finalmente, cabe ressaltar que a ficção autobiográfica manifestada na obra de estudo também coabita com a subjetividade, pois como Grandes (2002) declara, lembrar nem sempre significa ter vivido aqueles eventos de forma concreta no plano da realidade, uma vez que podem ser explanados num imaginário discursivo que obscureceria sua realidade ao te ntar restituiruma história pessoal traumática. Portanto, esse jogo de espelhos vivenciais “no es solo la vida vivida, es también la vida deseada, rechazada, las pesadillas. Así los miedos y todo eso nos marca tanto o más, seguramente mucho más, que los hechos objetivos de la vida de las personas” (Grandes, 2002, 356).
El juego de la viola, título da obra analisada, refere-se a um jogo de rua divertido e simples em sua concepção original, muito popular em Cuba e em outros países como na Espanha, onde é denominado vulgarmente como “El burro”. No conceito original, “la viola”,[2] era um passatempo inocente para compartilhar entre amigos, “no era más que saltar limpiamente sobre las espaldas de un muchacho encorvado, cantando el número de cada salto. Pero con el tiempo Los Chicos Malos la habían convertido en un juego macabro y doloroso” (Rosales, 1994, 63). O jogo, no livro de Guillermo Rosales, transforma-se numa forma de tortura infantil num meio social e familiar adverso. Nesse sentido, o jogo será utilizado como uma prática destrutiva, um pretexto lúdico para dominar e aniquilar o adversário, camuflando essa violência ao ser inserida numa atividade aparentemente inofensiva, num espaço de divertimento e de camaradagem. Para Simal (2012, 166), isso significa que:
El juego como agente transmisor y generador de violencia, destruye toda la inocencia del mundo infantil. Ahora los niños son los encargados de perpetuar el ciclo de la violencia con una crueldad que refleja la relación con sus mayores. La violencia como juego entra en una dinámica de poder, sometimiento y destrucción. […] Las reglas del juego reproducen las normas de una sociedad despiadada y de las más abusivas relaciones personales.
A obra se situa no período pré-revolucionário, em 1957, num momento de fragilidade histórico-política e de luta perante o poder do ditador Fulgencio Batista. Nas palavras de Rosales (1994, 7): “La isla era de corcho y no se hundía”. Seus habitantes mal conseguem se alimentar e vivem espalhando sua raiva, para, assim mesmo, justificar o universo atroz descrito pelo autor desde as primeiras páginas. Seus protagonistas (Agar, Los Chicos Malos, Papá Lorenzo, Toby, Lulú, Tía Dorita, Mamá Pepita, Abuela Ágata etc.) são apresentados com traços grossos –porém precisos– vítimas de sua própria condição humana, de seu abandono e de um horizonte funesto determinado pelo contexto de abusos que suportam.
Agar, a criança protagonista, será o alvo principal dos atos cruéis ocorridos no transcurso da narrativa. As lembranças de Rosales, que lidam com o plano meta-ficcional, desenham a trajetória vital e literária que em tantas ocasiões se confundem ao expurgar seus monstros interiores por meio de uma escrita mediada pelo trauma e a memória corporal violenta. Desse modo “as escritas do corpo surgem através de longa habituação, através de armazenamento inconsciente e sob a pressão da violência […]. O ato de memória é convertido com isso em uma cena escrita” (Assmann, 2011, 260-261). A narrativa expõe, assim, um relato direto, mas, sob um olhar riscado pelas feridas da infância e que apresenta um embate constante com o coletivo opressor, o que gera, por conseguinte, uma vulnerabilidade primária nos personagens-vítimas do texto, pois são apagados pela vontade do sistema de poder imperante, que os transforma em corpos oprimidos, e que, segundo Butler (2003), farão que esses entes inacabados, social e familiarmente, se transmutem em “cuerpos expuestos a otros, corriendo el riesgo de la violencia por el solo hecho de esa exposición” (Butler, 2003, 83).
No romance curto, o período de descobrimento e inocência da infância se perverte e envenena. Essa etapa, geralmente de ilusões e aprendizagem resulta, no entanto, no cotidiano desolador de Agar. No itinerário narrativo que registra seu trajeto diário, o jovem sente-se preso ao seu próprio destino, coagido pelos diferentes agentes opressores sociais e familiares do romance e pelas brutais ações cometidas sobre ele. Nessa relação assinalada por Assmann (2011, 264), entre a dor e a memória podem ser identificadas, no romance, as marcas violentas que impedem o esquecimento do autor-protagonista. A autora constata que “a memória corporal de feridas e cicatrizes é mais confiável do que a memória mental”, mas como ocorre em El juego de la viola, “ante o trauma, a linguagem comporta-se de forma ambivalente” (Assmann, 2011, 265-278).
Ao longo desse relato de iniciação com fortes sinais autobiográficos as lembranças de Rosales, localizadas no período de férias, transcorrem em dois únicos espaços nos quais prevalece a violência: seu lar e as ruas. Os dois hábitats “son espacios devastados y devastadores que en ocasiones conducen a los hombres a convivir con situaciones de extrema marginalidad y soledad aceptando o naturalizando las acciones perversas que suceden en la vida cotidiana” (Vila, 2015, 138). Assim, esses territórios vitais, exteriores e interiores, sociais e filiais condicionam que:
en la vida privada, al igual que en la pública, hay situaciones en las que el único remedio apropiado puede ser la auténtica celeridad de un acto violento[…]bajo ciertas circunstancias, la violencia –actuando sin argumentación ni palabras y sin consideración a las consecuencias– es el único medio de restablecer el equilibrio de la balanza de la justicia(Arendt, 2005, 86).
Com base no texto observado, encontramos tanto justiceiros quanto justiçados que, após serem abusados, reproduzem uma violência análoga à que foram vítimas, como já foi referido. Nesse caso, as figuras perversas e abusadoras são personificadas pelos Chicos Malos no meio social, um bando de crianças alienadas, um grupo já descartável desde o início de sua história pessoal, sem possibilidade de reinserção afetiva desde o berço e que confundem seu anseio de amadurecer com cometer ações fora das leis estabelecidas pelos adultos. Seus ataques em grupo e a violência exercida de forma coletiva lembram as atuações militares, aquelas que Arendt aponta (2005, 90) como uma ofensiva mais atrativa por aportar segurança aos seus movimentos hostis e em relação às quais observamos semelhança no modo de agir desses garotos. Por esse motivo, a matilha infantil, nessa etapa prévia à adolescência, rege-se somente pelo código primitivo da força para, dessa maneira, afirmarem-se como seres ripários num contexto excêntrico que já os aponta, arrasta, e os rejeita abertamente. O efeito dessa descarga pessoal e a energia presente na execução dos atos violentos poderiam nos levar a refletir: “¿No eslaacción violenta una prerrogativa de los jóvenes, de quienes presumiblemente se hallan completamente vivos?”(Arendt, 2005, 94). A violência nos jovens afetivamente órfãos é, de certa forma, inerente a sua natureza?
Por outro lado, no espaço familiar evidenciado no texto, Papá Lorenzo representa a figura patriarcal dominante que faz uso repetido da violência física e psicológica sobre Agar, da mesma forma que seu progenitor com ele. Na opinião de Arendt (2003), o pai de família é o grande criminoso do século, porque ao contrário da violência exercida na esfera pública, na esfera privada não existem regulamentos absolutos, visibilidade dos episódios, nem um controle sobre as agressões perpetradas na intimidade, mas sim um quadro revelador da importância dos abusos acometidos. O pai, nesse espaço patriarcal de impunidade, para a escritora, “ha de saber cómo ejercer autoridad y usar la violencia en su gobierno sobre los esclavos” (Arendt, 2003, 137). Reproduzem-se, assim, nas passagens da obra, de forma natural e cíclica, a violência transmitida no seio familiar, as agressões dos pais sobre os filhos e a repetição dos atos vexatórios sofridos geração após geração, o que aporta à narrativa uma grande veracidade e uma truculência insana. O encurralamento dos personagens nesse círculo de terror faz com que todos os membros desarticulados busquem um refúgio no plano irreal, longe de casa, do cotidiano, escolham escapar, perseguir universos ficcionais que aplaquem seus medos e iluminem sua inexistência.
Entre essas crianças sem perspectivas-seres falidos-, vislumbra-se que o mundo da fantasia é usado como o único refúgio possível para fugir do inferno pessoal de cada um deles. No texto analisado, a cultura pop, o cinema, os seriados, as tirinhas populares norte-americanas e os diferentes personagens que habitam em suas histórias fantásticas desenham outro território idealizado para se evadir do sofrimento e se revigorar como habitantes de outra ilha quimérica, “el refugio de ellos en mundos prefigurados e imaginativos […]en aras de hallar consuelo ante las agresiones recibidas del mundo real”(Alfonso, 2015, 44). Porém, o confronto por meio de uma super-realidade se trata só de uma vitória passageira, pois sempre é acompanhada de uma sensação de vazio, de não pertencimento a um solo abalizado, de uma caída no abismo apontada com insistência por Rosales: “caer, caer y después el brusco despertar” (Rosales, 1994, 9).
O universo da imaginação opera como um meio de resistência para suportar as lutas diárias num contexto vivencial perigoso. A narração, então, objetivada nas palavras e no relato experiencial direto e sem enfeites torna-se “una palavra, en este caso, cuya insistencia se opone al vacío, a la ausencia, al olvido. La palabra –la narracción – como acto de resistencia” (Arfuch, 2010,40). Agar, o protagonista, isolado, tenta imitar alguns dos episódios de seus heróis, ser partícipe de uma história extraordinária para abandonar uma vida de repetidas humilhações. Dissolve-se nessa irrealidade, fazendo parte de uma abstração que lhe permite se proteger de seu destino pessoal. Essa é a defesa da imaginação que o escritor cubano proclama para sobreviver e fazer sobreviver seus personagens. O uso da imaginação nos protagonistas de El juego de la viola, “las ensoñaciones del narrador funcionan en dos ejes: como transformación y como deseo. El niño tiene que recrearse a sí mismo a través de otro para sobrellevar la situación. La imaginación lo transforma […] es etéreo pero a la vez material” (Ruiz, 2008, 79). Butler (2003), nesse sentido, aponta-nos que os nomeados como excluídos são interpretados, ao mesmo tempo, como seres invisíveis, irreais na impossível constituição de seu percurso vital ou pela falta deste. Portanto, “si la violencia se ejerce contra aquellos que son irreales, entonces, desde la perspectiva de la violencia, ésta fracasa en herir o negar aquellas vidas puesto que éstas ya están negadas” (Butler, 2003, 90).
Para o ator principal do romance a negação de ser alguém, um sujeito respeitado pelos vencedores, torna imprescindíveis esses instantes de fuga, de abstração como refúgio. Ele precisa de um oásis de mentiras que projete novas cores sobre suas misérias, de experiências que abriguem as imagens afetivas ambicionadas por ele, de aventuras além do espaço asfixiante que o cerca, ou seja, precisa vislumbrar oportunidades para ser feliz mediante suas entradas no reduto imaginário. O ruído dos golpes recebidos, desse modo, parece apaziguar a dor ali, onde ninguém pode machucá-lo, mas, ao final, as quimeras se convertem em viagens sem retorno na busca dessas fronteiras inalcançáveis.
Nas folhas de El juego de la viola, Rosales detalha que o povo cubano sonha sem fé, “a este pueblo le gusta leer muñequitos” (Rosales, 1994, 19), escapa através das tirinhas para um mundo de aventura, para, ao mesmo tempo, tentar se visibilizar, existir, ser o “outro” de qualquer modo, numa terra que não admite qualquer traço particular fora do sistema ideológico revolucionário vigente. O cidadão e o conjunto familiar que o acompanha se sentem apagados ou anulados. Como Papá Lorenzo exclama: “¡Todos somos unos mierdas! ¡Tú!- dijo volviéndose al cuarto donde Mamá Pepita trajinaba con las fotos viejas-. ¡Yo! –dijo-. ¡Y hasta ese chiquillo desesperante que has parido!”(Rosales, 1994, 87).
Sobre sonhar sem fé, Papá Lorenzo, por exemplo, evade-se e sonha com a Rússia e a implantação do comunismo; Agar e Los Chicos Malos, com assassinar seus pais, de forma ilusória ou real e, para em consequência abolir seu mandato de opressão;[3] Mamá Pepita tenta recuperar seu passado e sua juventude, revolvendo o baú das fotos da infância, das lembranças irrecuperáveis. Mas, nessa perseguição das utopias disfarçadas de ficção nada se modifica, a adversidade e o presente de infortúnio seguem acompanhando todos os personagens desumanizados. Sendo nesse contexto de não pertencimento à vida que “la violencia contra aquellos que casi no cuentan como vidas, contra quienes viven en un estado de suspensión entre la vida y la muerte, deja un registro que no es un registro” (Butler, 2003, 92). Os partícipes da história são apenas espectros deambulando num campo minado. E, no jogo do assédio do relato, as vítimas serão, por conseguinte, as entidades díspares dentro de um núcleo sócio familiar normativamente estabelecido na Cuba pré-revolucionária.
Os indivíduos “fora de lugar” na narrativa de Rosales refletem a exclusão daqueles apelidados como “diferentes” segundo a perspectiva machista e homofóbica expressa e naturalmente aceita em Cuba, de forma naturalizada desde muito tempo. Assim sendo, Tía Dorita será o branco das burlas das crianças, assinalada como tortimáncula,[4]outio Quirilio, que é humilhado por ser um quebrado, o que segundo Rosales significa ser: “Un hombre inútil. Que no puede tener mujeres, ni hijos, ni nada” (Rosales, 1994, 28).
Os personagens censuram ou destroem o grupo dos marginais projetando sua existência estéril mediante bullying, agressões psicológicas tão ou mais dolorosas que os ataques físicos. Destarte, o “chisme”,[5] a agressão verbal, se revela como uma forma infalível de uso mal-intencionado do rumor convertido em um juízo popular de letal alcance. Sobre esse assunto, Tía Dorita diz: “Una pasa tranquila por un lugar decente, y allí están ellos riéndose bajito. Una va a un velorio y allí están ellos riéndose del muerto. […] Y una no puede tener ni una amistad, porque enseguida inventan alguna historia perversa” (Rosales, 1994, 60).
Por outro lado, não há um pensamento coesivo na estrutura familiar, de modo que até mesmo a ideia e a figura de Deus, no núcleo doméstico, são desiguais entre os diferentes membros e gerações da família de Agar. Para Papá Lorenzo, Deus é personificado em Stalin e, para a Abuela Agata, em Jehóva. As variadas deidades escondem os impulsos latentes e transtornos de cada personagem e “la violencia aparece, pues, como um dios, infernal y divino a la vez. Detrás de la enajenación social alienta la enajenación religiosa” (Dorfman, 1972, 14). Portanto, descreve-se na história movimentos ideológicos paradoxais, uma batalha dicotômica entre a religião e a sociedade, de duplos ou opostos movimentos e leituras pessoais, de eleições contraditórias e quase grotescas num espaço íntimo desestruturado.
As crianças deixaram muito cedo de ser crianças; transformam-se em filhos sem uma terra que os abrigue, sem uma família de verdade; tornam-se, então, filhos que deambulam no precipício, delinquindo no entorno social para se visibilizar; são órfãos de pais vivos, filhos perdidos, esboços da solidão. Mas, de forma paradoxal, “la soledad que la violencia engendra justifica más violencia: si el otro no existe, aniquilado por una voluntad que no lo toma en cuenta, no habrá tampoco castigo” (Dorfman, 1972,30).Dessa perspectiva, posto que não existe um preço que saldar pelo crime, no presumível diário de infância de Rosales,“los niños del trópico son engendros de la delincuencia” (Rosales, 1994, 22)que lhe torturavam dia a dia. Essas imagens obscuras autobiográficas fazem parte, nesse sentido, de seu universo particular que mostra uma infância roubada pelo exercício ininterrompido dessa violência perpetrada desde diversos ângulos e por diferentes responsáveis.
No romance descreve-se que a libertação se conecta de maneira essencial com o despertar sexual dos moleques. Mostra-se, destarte, que o machismo predominante na sociedade cubana é reconhecível na exaltação erótica que demarca a sexualidade dos sujeitos na construção do romance, sua possibilidade e consumação individual funcionam como um passo necessário para serem homens completos. Assim, o ato ejaculatório é considerado como sinônimo de fortaleza, de uma identificação como “machos alfa” no meio coletivo; trata-se do sinal de maturidade que, acreditam, transforma-os em corpos absolutos. A violência reverbera, novamente, nas práticas sexuais presentes no romance, que são detalhadas como ações abusivas. Toby, um dos meninos da história é a criança considerada mais fraca, e diante desse domínio de terror será, portanto, violentado pela manada que o assedia. Para fazer parte desse conjunto infantil desnaturalizado, as crianças imitam, entre elas mesmas, as ações perversas do líder do grupo por meio de jogos sexuais depravados e cujo alto grau de erotismo projeta um efeito amoral em algumas passagens do relato. Segundo Dorfman (1972, 29) “la violencia va atando y desatando a los hombres, en una macabra danza de la destrucción. No saben que están bailando: buscan una salida sexual; la agresión pequeña y absurda”, para, desta forma, serem aceitos e valorizados pelo grupo social que compartilha suas ações.
Ao longo do percurso do protagonista, os jogos das crianças são rudes e se baseiam na humilhação do outro, sendo a imposição de uma autoridade o jogo de poder, o atributo natural dessa aprendizagem edificada no escárnio alheio. Nesse sentido, estas ofensas físicas e psicológicas que procuram a submissão refletida do outro transformam-se em ocorrências naturais no romance que observamos, pois
resulta tan corriente como la combinación de violencia y poder, y nada es menos frecuente como hallarlos en su forma pura y por eso extrema […]Poder y violencia, aunque son distintos fenómenos, normalmente aparecen juntos. Siempre que se combinan el poder es, ya sabemos, el factor primario y predominante(Arendt, 2005,64-72).
El juego de la viola se resume, então, num jogo de assédio desenhado de formas variadas para inferiorizar o jogador mais débil. Nessa batalha de superioridade, persegue-se o aniquilamento da vítima escolhida, o que contribui para que o protagonista desse relato se subvalorize, diminuindo pouco a pouco sua autoconfiança, o que o faz abraçar a ideia de suicídio, pensamento repetido na vida de Rosales durante toda sua vida, e consumado por ele[6] e outros muitos autores cubanos rejeitados pelo regime castrista.
Foram muitos os escritores exilados cubanos que também decidiram pôr fim a sua própria vida. Entre eles, duas figuras destacáveis próximas a Rosales, Reinaldo Arenas (1943-1990) e Carlos Victoria (1950-2007). O acosso suportado pelos três autores dissidentes do sistema totalitário cubano e a denúncia inerente de seus escritos literários manifesta-se na escrita irada desses narradores, fazendo-os donos de um diálogo combativo e transformando-os em entidades reais-ficcionais em suas próprias obras. Os três escritores, inclusive, tornam-se protagonistas reconhecíveis de um conto de Carlos Victoria, La estrela fugaz, primeiro relato pertencente ao livro Resbaloso y otros cuentos (1997). Na referida narração, esses autores-personagens espelham diferentes representações da marginalidade: Arenas, o homossexual promíscuo e doente terminal de Aids; Victoria, um alcoólatra; e Rosales, que padecia, como já apontamos, de esquizofrenia. Victoria e Rosales, ademais, foram grandes amigos, ligados intimamente pela dor da perda e por seus vícios particulares, mas, sobretudo, “los unía una admiración mutua por el talento de cada uno, y a la vez, un profundo desarraigo” (Martínez, 2015, 25). Nesse sentido, Carlos Victoria foi um grande apoio afetivo e artístico nos últimos anos de vida de Rosales, tornando-se organizador e protetor dos manuscritos do escritor, da edição póstuma do livro analisado, El juego de la viola, além da tradução de Boarding Home e de facilitar a publicação de El alambique mágico[7](Rosales, 2013). Essas foram as únicas três obras de Rosales não destruídas pelo próprio criador.
A culminação da violência em morte se localiza no núcleo da narrativa analisada, El juego de la viola. O protagonista olha para o espelho e rejeita a imagem que encontra perante si mesmo. A pressão de seu entorno filial e social, portanto, venceu. Agar, o foco fundamental da violência no relato, sente-se uma criatura pequena e feia: “Se odió. Odió su cuerpo y su cara. Y se odió por dentro. – Debes morir –pensó. Y tomó una cuchilla de afeitar” (Rosales, 1994, 47). A ideia latente do suicídio, a imagen de autodestruição, presente em El juego de la viola, também se manifesta no citado romance de Rosales, La casa de los náufragos: “Cierro los ojos, hundo el mentón en mi pecho, y permanezco varios segundos así, sumergido en el enorme vacío de mi existencia. Cojo una pistola imaginaria y me la llevo a la sien. Disparo” (Rosales, 2003, 57).
A noção de suicídio não pode ser percebida somente como rendição, senão como defesa e declaração de princípios do indivíduo, como foi explicado por Guillermo Cabrera Infante em Mea Cuba (1993), e, em outras ocasiões, como um ato político de autoafirmação, uma prática que explicita uma definitiva ideologia insurgente cubana. Em relação ao romance observado e nos personagens silenciados das narrativas de Rosales, segundo o pensamento de Cabrera Infante (2015, 597): “La depresión y el suicida sólo se entienden en términos de impulsos contra el otro […]. El suicidio es un continuum de fuerzas de agresión y autoagresión”.Esse impulso autodestrutivo levou Rosales a eliminar sua produção narrativa, da qual o autor nunca realizava versões ou cópias dos textos originais. Rosales escrevia e destruía, como descreve Martínez (2003), com a mesma celeridade todas as folhas de suas obras, já que sempre estava insatisfeito com o resultado de seus escritos. O autor matava também suas criações porque, igualmente, as considerava defeituosas, imperfeitas como ele mesmo e como o protagonista de El juego de la viola.
Em Nadie es una isla, conto muito expressivo na produção de Rosales, o protagonista cuja voz se faz reconhecível, pois se transluz, mais uma vez, no autor Guillermo Rosales, diz: “Hace largos años que vivo em el infierno. ¿Qué puedo hacer ahora?” (Rosales, 2015, 36). Esse questionamento flutua nas descrições de cada capítulo de El juego de la viola, na mente disfuncional de Rosales, nas histórias agônicas que narra, no grito dos personagens, na atmosfera envenenada do livro.
Papá Lorenzo explode e diz: “Estoy asqueado […]y esta vida es una cabrona conmigo” (Rosales, 1994, 92). Se o inimigo, portanto, é a vida, que sentido tem lidar com ela quando tudo está perdido? As figuras dramáticas da narrativa não conseguem, enfim, encontrar uma saída, uma luz que ilumine seu calvário particular. Podemos observar, além disso, uma metáfora destrutiva nos textos destacados de Rosales, pois ilustra sua essencial travessia autobiográfica, projetada em sua obra completa. Entendemos, por isso, que o eixo central do romance observado é a violência refletida em outras narrativas brutais do escritor que, de maneira iterada, reproduzem a imagem deformada de seu artífice participando de um meio social e familiar que o subjuga e nas quais o suicídio planeja-se de forma repetida.
No romance examinado, verificamos, consequentemente, o fracasso inexorável do uso ininterrompido da violência nos espaços familiares e sociais já que: “La práctica de la violencia, como toda acción, cambia el mundo, pero el cambio más probable originará un mundo más violento” (Arendt, 2005, 110). O autor em El juego de la viola apresenta prováveis histórias de sua trajetória vital, sempre inconclusa, posto que nessa não conformidade dos personagens com seu destino aziago no relato, sua história se evidencia da mesma maneira que as figuras dramáticas do romance, uma vez que suportou– como aquelas, a violência que contornava seu próprio cotidiano.
As memórias familiares e sociais, no caso de Rosales, formam parte de seu construto pessoal doente e literário, sobrecarregado de imagens terríveis que esboçam uma história agônica tanto para o narrador quanto para o leitor da obra. Consequentemente, os dois universos, o ficcional e o real, de forma constante, colidem em El juego de la viola, e podem de alguma maneira formar parte desse mundo esquizofrênico que descobrimos em sua prosa alucinada, das explosões linguísticas e fantásticas influenciadas pela bipolaridade que Rosales padeceu desde jovem, morando entre dois mundos distantes e conexos, mas também sem saída, que acolhem a ideia do suicídio na ficcionalidade do escritor. A violência narrativa será desse modo, uma forma extrema de se manifestar. Como Dorfman (1972, 41) assinala: “La novela misma, el acto estético, es una protesta contra um mundo que trata de negar esa violencia, esperando tal vez que em el bombardeo de bofetadas lingüísticas, alguien se despertará para hacerse preguntas fundamentales”, questionando sua realidade e o sentido de tanta barbárie ao nosso redor.
Ao terminar a história, o protagonista descobre, por fim, o gozo sexual em seu corpo incompleto, libera-se, desprende-se de tudo o que lhe angustia num instante de prazer, de triunfo. Isso pode representar o fim dessa infância não vivida, o ato carnal, novamente violento, que o liberta, pois nesse instante de comunhão sexual, logra fugir de si mesmo. Porém, inexplicavelmente, o protagonista se sente tranquilo, porque: “Algo había hecho erupción en sus cavernas” (Rosales, 1994, 94).
Agar, o personagem principal de El juego de la viola, consegue escapar dessa sensação de fracasso que o acompanha. Rosales, na última página do romance capitula: “Y echó a correr para siempre” (Rosales, 1994, 95). A sobrevivência e morte ligam, então, as palavras contusas do autor desde o começo desse caminho vivencial e literário, momento em que Agar se despede mediante uma cabriola fantástica, enquanto se tenta esvaecer de maneira definitiva, mediante esse ilusório “para sempre”.