Dossiê
Recepção: 09 Setembro 2017
Aprovação: 26 Outubro 2017
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de apresentar algumas observações a respeito de elementos constituintes do romance gráfico A arte de voar, de autoria de Antonio Altarriba e do cartunista Kim, entre eles o processo narrativo e o efeito de construção de imagens metafóricas para ilustrar pensamentos e sentimentos do protagonista, Antonio Altarriba pai. Aproveitando essa análise, pontuamos conceitos caros a autores espanhóis contemporâneos ao contexto histórico da obra em questão, a Guerra Civil Espanhola, como José Bergamín e María Zambrano, quanto a morte, tempo e paternidade.
Palavras clave: romance gráfico, memória, sonho, Guerra Civil Espanhola.
Abstract: This paper aims to present some observations about the constituent elements of the graphic novel The art of flying, by Antonio Altarriba and the cartoonist Kim, among them the narrative process and the effect of constructing metaphorical images to illustrate thoughts and feelings of the protagonist, Antonio Altarriba father. Taking advantage of this analysis, we punctuate valuable concepts to Spanish authors that are contemporary to the historical context of the work in question, the Spanish Civil War, as José Bergamín and María Zambrano, as death, time and fatherhood.
Keywords: graphic novel, memory, dream, Spanish Civil War.
Tragédia e representação infernal
A tragédia, como obra poética, se concretiza pelo fracasso. O mito de Perséfone, por exemplo, entre os domínios de Hades e a companhia de sua mãe, a deusa Deméter, só ganha vida pela dualidade entre vida e morte, pela impossibilidade de ela escapar definitivamente do Inferno. O herói Orfeu, da mesma forma, só consegue se relacionar com sua amada, Eurídice, no registro de sua chegada aos limites do reino dos vivos. Como afirma Duarte (2008, p. 15): “Orfeu só é Orfeu no canto, só pode relacionar-se com Eurídice no corpo do poema, só tem vida e verdade através da obra poética. Sua perda é necessária ao canto, que somente pode verdadeiramente existir a partir desse insucesso [...]”. Nesse tipo de fazer literário, é interessante observar o testemunho de uma experiência mítica ou heroica que não pode ser presenciada no plano real pela literatura, com a elaboração “a partir do neutro, da exterioridade e do vazio” (p. 16), em um discurso marcado por contrários: vida e morte, fertilidade e esterilidade, união e perda.
José Bergamín, em Fronteras infernales de la poesía, questiona a possibilidade de uma experiência poética, em seu âmbito criador, do Inferno. Ele menciona as ressonâncias ambíguas, antitéticas e equívocas de tal processo, mas, acima de tudo, destaca sua natureza humana e divina, além do risco de ser mal-interpretada por um excesso racional, ou mesmo, no outro extremo, imaginativo. Para ele, poesia é necessidade humana, um meio de perguntar pela morte. A resposta a esse questionamento, na visão de figuras como Sêneca – a quem Bergamín dedica um capítulo da citada obra, ao qual nos voltaremos aqui –, é a existência do Inferno, ou de Infernos, que são, ao mesmo tempo, realidade da verdade e ilusão do mito. O Inferno é uma atrocidade e, aceita como tal, é assumida com objetividade. É de onde o ser humano veio e para onde ele vai. É a constatação, pois, da própria solidão: a vida é o ciclo de uma peregrinação infernal e solitária que culmina com a morte. Bergamín menciona: “Morir es libertad humana, la única libertad verdadera del hombre, porque le libera de sí mismo, le desencadena de su sueño, de sus sueños” (p. 29). Nessa mesma linha, segundo Sêneca, a cada um é atribuído o Inferno que merece – a morada infernal da morte está no próprio indivíduo.
Sêneca e a morte
Antes de prosseguir com a questão da liberdade humana através da morte, cabe um parêntesis a respeito do estoico Sêneca. Grande orador e escritor cordobense, foi, entre outras funções, divulgador da filosofia grega e o principal autor de tragédias da época em que viveu, em um estilo rebuscado, aproveitando-se, por exemplo, do mito como alegoria, de acordo com Cardoso (2005, p. 24 e 31).
María Zambrano, escritora espanhola que, inclusive, conheceu Bergamín quando passou a colaborar com a revista Cruz y Raya, sob o comando desse autor entre os anos 1933 e 1936, também escreveu a respeito de Sêneca. Em suas palavras (2005, p. 28-29):
Séneca apuró sus propios límites; su figura tiene la corporeidad de una estatua; y su pensamiento el dibujo preciso de un estilo.
[...] Por eso, justamente, es Séneca una figura que necesita decifrarse. El clara, está perfectamente acabada y realizada; mas tiene misterio. Y tiene misterio, además, a causa de su seducción. Lo excesivamente claro no suele seducirnos tanto; tal vez por eso tendemos a ver misterio donde hay hechizo, aunque este hechizo provenga de algo claro o de la claridad misma. Séneca tiene una gran claridad; su pensamiento no necesita ser desvelado, como en general el de los estoicos. Su misterio y su sedución provienen de que, sin duda, nos proponen algo, algo de lo que querríamos librarnos, alguna solución para nuestra vida que querríamos evitar, algún camino que no acabamos de querer recorrer.
Mais adiante, ela ainda diz: “Séneca representa, para la cultura popular, la figura del sabio; así es como está dibujada en la imaginación española. Pero cuando renace, cuando viene a nuestra memoria, es también así, un sabio, es decir, algo que ya no hay” (p. 51). Essa figura sábia, ao contrário do que versa a tradição oriental e é seguido pelos filósofos gregos, não é um tipo pronto para a morte, satisfeito e aquietado. Para Sêneca, a aquisição de conhecimento não é válida pelo conhecimento em si, em uma postura contemplativa, e sim para ter ciência de como conduzir sua existência e sua morte – buscando o ponto de equilíbrio entre a razão e a não razão. De acordo com ele, “o pior dos males é estar morto antes de morrer”; trata-se de um “sábio na defensiva”, sempre em movimento (Zambrano, 2005, p. 53 – tradução livre). Essa é uma visão que reflete os tempos conturbados em que vivia: desesperançado, condenado à morte pelo imperador Nero, ele acabou cometendo suicídio, assumindo o protagonismo em seu último momento.
Sêneca via na dignidade diante da vida aquilo de que mais próximo havia de liberdade pessoal. E praticou esse ideal até o fim, suportando uma existência que culminou em sua postura resignada em relação à proximidade da morte. A partir dessa visão houve desdobramentos, ao longo dos séculos, daquilo que “há de mais impenetrável no ânimo espanhol” (Zambrano, 2005, p. 83 – tradução livre). Era um:
[...] ni creer ni no creer. Es ceder, ceder ante la muerte. Ceder a ser devorado por el tiempo o por el fuego. Eludir la existencia, que sale de sí afirmándose, el salir fuera venciendo los acontecimientos, en un acto de decisión. Es no querer alterar por nada el orden del mundo, por extraño que nos sea; mirarse sin rencor, haber cesado de verse y sentirse como algo que es. Es extirpar si lo ha habido, la tentación del yo, de la libertad. Es una especie de debilidad ante el cosmos; caer vencido por él sin rencor.
(p. 83-84)A sutileza com que Sêneca conduziu a própria morte veio da vontade de não alterar a ordem da natureza. Sem sinal de protesto, ele morreu em silêncio, mas de forma teatral – como não poderia deixar de ser, dada sua origem espanhola. Bergamín aborda essa questão quando fala desse autor: o suicida e o herói são uma mesma figura quando esse ato extremo se justifica moralmente – como ação heroica, portanto. “O herói é o justo. E o justo é aquele que se justifica a si mesmo pela morte e com a morte” (Bergamin, 2008, p. 29 – tradução livre).
Tempo e paternidade
O tempo como elemento determinante da vida tem grande papel na unidade do pensamento senequista. “Talvez não exista nenhuma experiência que proporcione maior maturidade ao homem que seu descobrimento do tempo” (Zambrano, 2005, p. 70 – tradução livre). Para que este seja plenamente percebido, é necessário outro elemento que o marque em contraste: muitas vezes isso se dá na percepção de uma parte de nossa própria alma, algo atemporal, como menciona Zambrano. Se o tempo é tão presente na vida do ser humano, esse algo atemporal surge de modo pontual, como um desprendimento, um abandono. Torna-se um vazio, um desengano, uma angústia a interromper a marcha lenta e constante do tempo.
Como defensor do tempo e da vida, Sêneca recomenda duas coisas: o monitoramento cuidadoso do tempo, para evitar o fado de se “estar morto antes de morrer”, e a entrega perfeita, pensada e cautelosa, sempre a considerar o pior dos casos nas diversas situações – espécie de pessimismo planejado que se torna poderosa defesa. Estar preparado para a pior condição torna o homem resistente a ela, que muda de natureza diante dele.
Entre tantos elementos de grande força na cultura espanhola, Sêneca exerceu uma paternidade transcendental que, acima da existência de filhos de carne e osso, é estabelecida na história: ele buscava exercer influência para o alcance de certa harmonia entre seus contemporâneos de época tão turbulenta. Nas palavras de Zambrano (2005, p. 64):
Ser padre en la historia es ser en la historia algo no histórico, ser en la historia lo permanente. Y ser dentro de la historia, ser dentro de la ley de la objetividad vigente en el mundo, dentro pues de la cultura, del derecho, de la ciencia, del saber y de la moral, de la religión; un padre tiene que estar dentro de todo eso y serlo para el hijo, representarlo tan verídicamente que se confunda con ello mismo, que sea su encarnación y como su puebra real, viva.
Partindo do âmbito histórico, tempos turbulentos também foram vivenciados na sociedade espanhola do século XX, contemporânea à produção de Bergamín. Com a proclamação da República em abril de 1931 e os desdobramentos da tensão decorrente das mudanças no cenário político europeu, em 1936, ano em que Bergamín deixava a direção da revista Cruz y Raya, um levante nacionalista liderado pelo general Francisco Franco em Marrocos invadiu o território espanhol, o que levou ao conhecido episódio histórico da Guerra Civil Espanhola. Tendo os republicanos sido derrotados em 1939, foi estabelecida a ditadura franquista, um período de repressão pós-guerra que se estendeu até 1975.
O verdadeiro significado dessas décadas para a população espanhola ainda não encontra lugar nos livros de História. Com o “êxodo dos vencidos” (Marco, 2011, p. 98) em especial para o México, país que ofereceu o maior suporte para os republicanos nesse pós-guerra, e mesmo durante os anos de conflito armado mais intenso, foi estabelecida, ao longo das décadas, uma memória desse vencidos,
[...] de modo continuo, plural y, se podría incluso decir, de modo sistemático; pero también varios escritores que no habían participado en la guerra y que escribieron sus obras durante el franquismo contribuyen a una reconstrucción de la memoria social. En el caso de los que se quedaron en la península, hay que considerar tanto la tensa lucha entre el texto literario y la actuación de la censura como la autocensura que ella generó. Dicha tensión llevó a gran parte de los escritores dedicados a las formas narrativas y al teatro o a los directores cinematográficos a buscar estrategias discursivas que les permitiesen plasmar las relaciones sociales de la época en la cual les tocó vivir.
(MARCO, 2014, p. 14)Esse processo de resgate histórico de vivências reprimidas, uma demanda social cada vez mais premente, deu mais um passo com a Ley de la Memoria Histórica, Ley n. 52, de 26 de dezembro de 2007, de fomento de valores e princípios democráticos, além de reconhecimento e ampliação de direitos daqueles que sofreram violência política, ideológica ou religiosa durante a Guerra Civil (1936-1939) e o franquismo (1939-1975). Após a instituição dessa lei, observou-se uma proliferação, ainda em curso, de romances gráficos ambientados nesses anos de guerra e de ditadura. São obras, em geral, escritas por descendentes daqueles que viveram os horrores do passado. Um dos mais conhecidos exemplos dessa produção, com publicação no Brasil pela editora Veneta, em 2009, é o premiado A arte de voar, de autoria de Antonio Altarriba e do cartunista Kim.
A criação desse romance gráfico partiu de um acontecimento trágico: o pai de Antonio Altarriba, de mesmo nome, cometeu suicídio se jogando do quarto andar da casa de repouso onde vivia. Ele tinha 90 anos à época, no dia 4 de maio de 2001. O filho, em meio ao choque emocional e à raiva pela intransigência da diretora da instituição, que insistia em cobrar pelos dias de maio em que o idoso ainda residiu no lugar, começou a escrever o roteiro. Adotando o recurso da narração em off, o autor, em simultaneidade aos supostos acontecimentos daquele dia – cuja descrição ele obteve por meio de conversas com funcionários do local – simulados pelas imagens e falas dos personagens, começa a dizer: “Meu pai se suicidou em 4 de maio de 2001. Ninguém sabe como um homem de sua idade e em seu estado pôde burlar os sistemas de vigilância, ir até o quarto andar, subir numa janela e se atirar ao vazio... Eu sim, sei como ele fez...” (Altarriba, 2012, p. 7). E, então, logo em seguida, ainda no Prólogo da obra, se inicia um processo de transferência de voz, em que narrador e personagem figuram como um só – o narrador se apropria da história de vida que será contada, passando o relato da terceira para a primeira pessoa:
[...] mesmo não estando lá, estava nele... Sempre estive nele, porque um pai é feito de seus filhos possíveis... E sou o único fiho que foi possível ao meu pai... Descendo de meu pai, sou seu prolongamento e, quando ainda não havia nascido, já participava, como potencial genético, de tudo que acontecia com ele... Por isso sei como morreu... E também como viveu... Várias vezes me contou suas peripécias... Inclusive, para atenuar os primeiros sintomas da depressão, insisti para que ele escrevesse. Deixou duzentos e cinquenta papeletes com letras espremidas e transbordantes de recordações. Mas o que sei dele não é por ter ouvido ou lido... O que sei de sua vida é porque, como disse, eu estava com ele ou, talvez, era com ele... E agora, já morto, ele está em mim. Por isso posso contar sua vida com a verdade de seus testemunhos e a emoção de um sangue que ainda corre em minhas veias. Vou contar, de fato, a vida de meu pai com seus olhos, mas a partir de minha perspectiva. Posso, portanto, afirmar que foi assim que ele se suicidou. Do mesmo modo, posso também afirmar que, mesmo que parecessem alguns segundos... Meu pai levou noventa anos para cair do quarto andar...
(p. 7-9)E ele prossegue, na primeira página da primeira parte, “3º andar 1910-1931 – O carro de madeira” (p. 13):

Até que a primeira pessoa assume definitivamente como foco narrativo (p. 13):

Aqui, já sabemos que não se trata do mesmo tipo de voz que falava no começo do Prólogo, graças a todo o processo de construção gradual do Prólogo e dos dois primeiros quadrinhos da primeira parte. O narrador não se limita a anunciar a mudança, ele a mostra na prática ao leitor. O gênero discursivo escolhido, pois, assim o permite, como será abordado adiante.
Todas essas reflexões do narrador durante o Prólogo são acompanhadas pelas imagens de seu ainda pai cumprindo rituais aparentemente inofensivos, como uma olhada no espelho para arrumar os cabelos; a constatação de que não há ninguém por perto; o andar furtivo pelo corredor deserto; a subida penosa pelas escadarias, uma vez que o elevador está ocupado; o posicionamento de uma cadeira perto da janela aberta, de onde as cortinas balançam pela ação da corrente de ar; a retirada das pantufas – porque o voo deve ocorrer descalço – e o apoiamento da bengala no batente da janela; e, por fim, o salto definitivo. Todas essas ações corriqueiras, aproximadas pelo zoom aplicado na reprodução dos pés, dos olhos, da janela, culminam naquilo que inicia a narrativa propriamente dita e, ao mesmo tempo, a encerra.
É bastante significativo o fato de a história começar e terminar na mesma ação, até mesmo no mesmo quadro: tanto o primeiro como o último enquadramento reproduzem um ponto de vista do alto e da parte de trás da cabeça de Antonio: não vemos seu rosto, não sabemos qual sua expressão momentos antes da morte. Ele diz as mesmas palavras diante da janela ainda fechada: “Chegou a hora de levantar voo” (p. 7 e 201).

A obra é circular não só nesse sentido, mas nas relações entre os personagens, como a aliança de sangue entre pai e filho; a aliança de ouro do casamento – que também é representado pela forma circular de uma roda gigante em que ele e a esposa passearam durante o primeiro encontro –; a aliança de chumbo da amizade com os camaradas anarquistas durante a Guerra Civil; a bolacha de ouro, Mariavedies, da fábrica Los Sitios, comandada por Antonio e mais três sócios em uma fase mais tardia da vida dele. O nome dessa bolacha, aliás, é um jogo de palavras entre Maravedis, uma moeda antiga da Espanha – outro elemento circular –, e Maria, um tipo de bolacha redonda e doce. Todo esse ciclo é, em seu conjunto maior, a peregrinação infernal com seu ápice na morte de que fala Bergamín.
Retomando a questão da paternidade abordada por Zambrano (2005) ao falar de Sêneca, encontramos um ponto pertinente à obra de Altarriba, conforme descrita até aqui: “[...] un padre tiene que estar dentro de todo eso y serlo para el hijo, representarlo tan verídicamente que se confunda con ello mismo, que sea su encarnación y como su puebra real, viva” (p. 64). Antonio pai e Antonio filho, pelo vínculo genético e de sangue que os une, se tornam uma só figura a testemunhar uma vida de privações, de tempos de guerra, de crise conjugal, profissional, entre tantos outros aspectos narrados na mencionada obra. O passado de um, pode-se dizer, é presentificado pelo testemunho do outro. Essa história, sob o olhar leitor, se torna real e concreta, ganha movimento, pelas imagens e pelos elementos gráficos do romance gráfico – da mesma forma como no caso da reprodução do mito de Perséfone e da história de Orfeu.
Ainda no foco da constituição desse protagonista, autores como Primo Levi e Dori Laub, de acordo com Márcio Seligmann-Silva (2008), analisaram questões concernentes ao testemunho, como a necessidade e a hibridicidade da escrita dele. O testemunho surge, nas palavras de Levi – convém lembrar, ele próprio, como Laub, sobrevivente do Shoá –, como atividade elementar, uma necessidade de narrar decorrente da sobrevivência daquele que retorna da experiência do campo de concentração ou de algum outro acontecimento de caráter violento. A narrativa se torna, portanto, uma ponte com “os outros”, aqueles que se colocarão no papel de leitores. Ela permite a queda dos muros do Lager, ou campo de concentração, uma visão de dentro (SELIGMANN, 2008, p. 102).
Laub, por sua vez, cunhou a expressão “an event without a witness” (um evento sem testemunha) para se referir ao fato de que aquele que esteve no campo, por sua proximidade aos acontecimentos, não tem condições de oferecer “um testemunho lúcido e íntegro” (p. 103) graças a sua, digamos, contaminação. Assim, esse testemunho, como documento válido e representativo de uma época, é algo a ser criado em momento posterior, de maior senso crítico, pode-se dizer, o que também é defendido por Levi. Uma imagem clara desse momento posterior é quando Altarriba filho menciona, em seu “Prelúdio à decolagem”, posfácio do citado romance gráfico, que seu pai lhe fizera relatos orais e deixara anotações confusas sobre seu passado, de caráter mais reflexivo que propriamente narrativo. Com a leitura delas, o autor ganha maior confiança a respeito da história a ser contada, a expressão daquilo que também é parte dele como prolongamento de seu pai. Ele se permite a reflexão e a nova experimentação dos fatos, dando-lhes, enfim, outra oportunidade de vida.
Imagens metafóricas
Um recurso adotado para a expressividade na obra é, em certos momentos, a construção de imagens metafóricas que, para além da mera descrição por palavras, ilustram de modo simbólico sentimentos e pensamentos do protagonista, sejam de angústia, sejam de solidão, sejam de libertação. Cabe dizer aqui, a propósito de certas escolhas efetuadas pelos autores de A arte de voar, que a intrincada relação entre palavra e imagem não tem potencial para ser, em qualquer outro gênero, “explorada de forma mais abrangente do que no quadrinho moderno” (McCloud, 2005, p. 149). Essas metáforas visuais se tornam, assim, dentro da produção de “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada”, definição conferida por McCloud (2005, p. 9) às histórias em quadrinhos, uma poderosa ferramenta para a aproximação do leitor ao que é narrado; ele é exposto, pois, ao que o protagonista vivencia internamente em certos pontos de virada de sua história.
Uma dessas passagens acontece, por exemplo, quando Altarriba, cada vez mais incomodado com a sociedade de contrabando de carvão com Pablo, seu ex-companheiro da aliança de chumbo, acaba sonhando com sua mãe, recém-falecida. Ele recebera uma carta de sua prima Elvira relatando o fato:
Querido Antonio, cumpro a penosa missão de comunicar-lhe a morte de tia Urbana, a melhor mulher de Peñaflor. Sua mãe faleceu do coração, que, como sabe, sempre foi delicado. Era de dar muito e receber pouco. Morreu perguntando por você, sentindo sua falta, te amava demais...
(p. 118).Logo em seguida à apresentação da carta, há um quadro totalmente preenchido de cor negra, marcando o vazio deixado por aquela perda para o protagonista. É uma pausa necessária para protagonista e leitor assimilarem a notícia trágica.
Na página seguinte (p. 119), dividida em doze quadros, o primeiro deles também é negro, mas desta vez com falas de desorientação: “Onde estou...? Não vejo nada...”, acompanhado de um terceiro quadro negro, mas que começa a se iluminar ao centro. A luz se amplia e uma figura aparece de costas e em plano médio no campo do próximo quadro, dizendo: “É o carvão mais preto e brilhante que vi em minha vida... Parecem diamantes negros...”. O negro da morte, do carvão, se materializa em uma espécie de túnel.

O personagem, que nos três quadros seguintes se revela nu, vulnerável e exposto, rasteja em direção à luz pelo espaço estreito, de aparência orgânica, como em um nascimento. Rompendo à superfície no terceiro desses quadros, a luz está forte demais, cegante – o personagem tenta proteger os olhos com a mão. Só é possível distinguir os leves contornos de uma cama e um chamado: “Filho...”. Sabendo o leitor que esse sonho ocorre logo após a notícia da morte da mãe, não é difícil deduzir quem é a figura que chama.
Uma vez que, nas palavras de Sigmund Freud (2014, p. 90), todos somos capazes de sonhar, e os sonhos são compostos de imagens justapostas – assim como são os quadrinhos, na concepção dada por McCloud –, somos capazes de aceitá-los como uma história por conta de seu conteúdo onírico manifesto, que podemos considerar, no nível do consciente, equivalente a uma narrativa; e do pensamento onírico latente, isto é, o enredo que concebemos em nosso inconsciente. Os sonhos se constroem de maneira semelhante à forma como são consumidos filmes, romances, contos, histórias em quadrinhos, entre outras formas de expressão. Quanto ao exemplo dado do encontro com a mãe falecida – viva em sonho, em um esperado fenômeno no processo de luto do protagonista – encontramos eco no conceito afirmado por Freud de que cada despertar é como um nascimento, na medida em que o indivíduo “vem à luz” quando acorda (2014, p. 95). É um novo nascimento para Altarriba, um ponto de virada em sua história não só no que diz respeito ao conteúdo dessas imagens, mas na própria forma orgânica como elas se apresentam.
A obscuridade total contrasta com a luz forte em outros momentos, indicando uma relação com figuras mortas. Um exemplo é quando o protagonista e seus sócios estão à procura da bolacha de ouro, que Antonio visualiza como um sol atrás de uma montanha, tão intenso que ele leva uma mão diante dos olhos (p. 160).

Essa visão ocorre após a representação de um funeral, o de Angel, um dos sócios que, mesmo morto, está presente nessa sequência posterior.
Mas logo Antonio percebe que aquilo que ele vê não é o sol, porque a sombra dele se projeta na direção errada. A bolacha dourada, o suposto sol, despenca de seu suporte junto à montanha e cai em cima de Antonio; ela tem um gosto amargo, e o rosto de outro sócio, Fernando, estampado nela – afinal é descoberto que Fernando desviava dinheiro e desaparecera sem deixar rastros, levando a fábrica à falência (p. 161).

Outro exemplo é ao final da obra, quando Antonio sonha estar diante de uma espécie de júri (p. 198): ele não consegue perceber de imediato onde está por ser impedido de enxergar pela claridade, e por fim vê todas as pessoas, já mortas, que foram significativas em sua vida, como seu primo Basílio. Elas lhe irão transmitir um veredicto: o de que Antonio, após 90 anos de condenação à existência forçada, está livre para morrer quando quiser, o que ele faz logo em seguida em seu voo final.

Voltando à passagem do sonho com a mãe, no primeiro dos últimos três quadros da página, o personagem ainda cobre os olhos com a mão, incomodado com a luz, mas já consegue visualizar a idosa deitada em uma cama. Ele chama: “Mãe...”. Na sequência, a claridade os envolve, eles se abraçam e vemos afinal o rosto de Antonio: “Mãe, eu sabia que você não tinha morrido... Que não ia morrer sem se despedir de mim...”. O alívio quanto a sua própria ausência no momento dessa morte se revela no abraço forte na mãe, na lágrima que ele solta. No último quadro, no entanto, a idosa reclama: “Olha como você me deixou... Toda manchada de carvão... Me deixou toda suja...”. E ele responde: “Oh, mãe, foi sem querer...”.

Na outra página, ela completa: “Agora vai ter que me lavar e não resistirei... Vou morrer com certeza...”. Antonio fica consternado: “Não, mãe, não vai morrer, não...”, e ele acorda, suando frio e de olhos arregalados. Somente aí temos uma evidência concreta do sonho: temos, junto ao protagonista, o mesmo estranhamento inicial com as imagens, surpreendemo-nos como ele no despertar súbito. O leitor não é deixado para trás, ele caminha lado a lado com o protagonista – proximidade essa que pode ter o efeito de envolvê-lo ainda mais no processo de leitura.
O contrabando de carvão torna Antonio sujo, e a culpa fica mais intensa quando ele chega a contaminhar a própria mãe. É como se a mãe fosse morrer por causa do envolvimento de Antonio com esse tipo de trabalho. Bastam alguns momentos de reflexão, sentado na beirada da cama, para Antonio se vestir e sair decidido a desfazer a sociedade com Pablo. O sonho é vívido o bastante para que ele afinal procure por uma mudança em sua situação.
Os exemplos aqui citados de sonhos do protagonista nos remetem ao conceito de deslocamento, bastante trabalhado por Freud ao longo de seus estudos. Nas palavras dele, “o deslocamento de ênfase é um dos principais meios de deformação do sonho” (2014, p. 153). Vemos aqui a censura realizada no sonho diurno (tradução mais literal de Tagtraum, na escrita original em alemão de Freud – o típico “sonhar acordado”) do protagonista sobre a bolacha que tem “um gosto amargo”, assim como é intragável para ele a forma como os negócios são conduzidos pelos sócios, sem que, no entanto, ele se posicione firmemente contra ela, deixando-se levar. No sonho com a mãe, ela é que se torna suja por conta dos negócios obscuros do filho, a “sujeira” de um aparece no outro. Aquilo que é condenável em certas ações de Antonio – afinal, ele faz parte de todo o esquema do negócio sujo, embora não tenha sido ideia inicial sua – é censurado, pois, nessa deformação manifesta da ideia de sujeira: o filho mancha a honra da família, e isso se reflete nas vestes sujas da mãe durante o contato com ele. Por causa dele, no sonho, ela vai morrer, por causa dessas ações erradas nos negócios a família é desonrada. Por fim, no terceiro exemplo, a decisão para o “voo final” é tomada em um julgamento organizado por todos aqueles próximos ao protagonista, que, no entanto, no mundo real já estão mortos. O deslocamento se concretiza no detalhe de que o protagonista não decide se matar, ele é “liberado” da vida por aqueles que o conheceram melhor. A vivência alucinatória, portanto, nesses casos, se torna benéfica no sentido de ajudar o protagonista na resolução de situações de maior angústia para ele no estado de vigília.
A memória se estabelece como o Inferno da consciência humana. Como disse Zambrano (2005, p. 26): “Pues todo lo que pertenece al pasado necesita ser revivido, aclarado, para que o detenga nuestra vida”. E esse reviver do Inferno, do grito do herói emudecido pela morte, tem função purificadora, é o voo transcendental e de liberdade tanto do protagonista como de seus prolongamentos. Pode ser a cura para a ferida aberta no peito de onde jorram as palavras, a ferida aberta pela toupeira que insiste em cavar cada vez mais fundo de que fala Altarriba no final de sua narrativa (p. 188-189).

Referencias Bibliográficas
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Autor notes
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