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Entre o cristianismo e uma tradição forjada: a Jerusalén conquistada, de Lope de Vega
Wagner Monteiro
Wagner Monteiro
Entre o cristianismo e uma tradição forjada: a Jerusalén conquistada, de Lope de Vega
Between Christianity and a project of a tradition: Jerusalén conquistada, by Lope de Vega
Revista Caracol, núm. 22, pp. 366-387, 2021
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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Resumo: Este artigo tem como objetivo localizar a Jerusalén conquistada de Lope de Vega dentro de sua produção religiosa e dos Séculos de Ouro na Espanha. Publicada em 1609, a Jerusalén é fruto do mais ambicioso projeto de Lope de Vega, escritor espanhol famoso pelo teatro, mas que escreveu diversos poemas épicos entre o final do século XVI e nas primeiras décadas do XVII. Lançando mão do modelo italiano de Torquato Tasso, com sua Gerusalemme liberata (1581), Lope construiu sua narrativa para enaltecer a corte espanhola dos Austrias e, ao mesmo tempo, para adquirir em solo espanhol o status que Luís de Camões havia alcançado em Portugal.

PALAVRAS-CHAVE: Lope de VegaLope de Vega,Jerusalén ConquistadaJerusalén Conquistada,poesia épicapoesia épica.

Abstract: This article aims to locate the Jerusalén conquistada, by Lope de Vega within his religious production and the Golden Centuries in Spain. Published in 1609, Jerusalén is the result of the most ambitious project by Lope de Vega, a Spanish writer famous for theater, but who wrote several epic poems between the end of the 16th century and the first decades of the 17th. Using the Italian model of Torquato Tasso, with his Gerusalemme liberata (1581), Lope wrote his narrative to praise the Spanish court of the Austrias and, at the same time, to acquire on Spanish soil the status that Luís de Camões had achieved in Portugal.

KEYWORDS: Lope de Vega, Jerusalén conquistada, epic poetry.

Carátula del artículo

VÁRIA

Entre o cristianismo e uma tradição forjada: a Jerusalén conquistada, de Lope de Vega

Between Christianity and a project of a tradition: Jerusalén conquistada, by Lope de Vega

Wagner Monteiro
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Revista Caracol, núm. 22, pp. 366-387, 2021
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Recepção: 10 Dezembro 2020

Aprovação: 13 Dezembro 2020

1. A BÍBLIA E O CRISTIANISMO COMO TEMA DE POESIA ÉPICA

Gorga López (2008) destaca que rapidamente, na Itália renascentista, os autores aproveitaram temas do cristianismo e presentes na Bíblia e os adaptaram como mote para poemas épicos do XVI. Girolamo Vida (1535) e sua Christias, ou De partu Virginis (1526), de Jacopo Sannazaro, são algumas obras que serviram de exemplo para poetas espanhóis. A inserção da literatura italiana na Península Ibérica era tão grande ao longo de todo o século XVI ao ponto de De partu Virginis ser traduzida ao castelhano por Hernández de Velasco em 1554.

A penetração da temática bíblica na épica culta foi tamanha ao ponto de a crítica literária criar a nomenclatura épica sacra. La creación del mundo (1615), de Alonso de Acevedo, foi uma das épicas sacras mais lidas nas primeiras décadas do século XVII. A obra está dividida em sete cantos e a narrativa se centra na criação de animais e plantas por Deus até o surgimento do homem com o mérito de produzir uma detalhada descrição do corpo humano em diversos cantos. Essa temática também foi explorada por Lope de Vega no romance “A la creación del mundo”, publicado em suas Rimas sacras, em 1614. Lope, assim como Alonso de Acevedo, acaba por evocar as maravilhas naturais do planeta, feitas minuciosamente por Deus, destacando a exuberante criação divina em detrimento do pecado original.

Outrossim, não foram apenas Lope e Alonso de Acevedo que se dedicaram ao tema da criação do mundo. Escudero Baztán (2017) lança mão de diversos exemplos do que o autor denomina paradigmas hexaemerales, terminologia usada pela primeira vez por Fílon de Alexandria e séculos mais tarde por Teófilo de Antioquia, para denominar os textos que se inspiram sobretudo no primeiro capítulo do livro bíblico de Gênesis. Ainda no século XVI, um dos livros mais influentes entre os escritores dos Séculos de Ouro foi Introducción del símbolo de la Fe, publicado em 1583 por Fray Luis de Granada. No teatro, já no século XVII, La madre de la mejor (1621), de Lope de Vega, é um exemplo bastante bem sucedido sobre o tema. Esta temática foi uma constante na obra de Lope:

Aparece, por ejemplo, en algunos contextos narrativos, como la Arcadia, donde se pueden rastrear enumeraciones semejantes a las contenidas en el romance «A la creación del mundo». Son, en su conjunto, referencias explícitas a series de plantas, elementos del mundo mineral, animales y diversos enseres producidos por el ingenio humano (el romance de «El gigante a Crisalda» pp. 100-106; el romance de Anfriso desesperado, pp. 336-342, o el de las quejas de Anfriso a la conclusión del libro cuarto, pp. 377-380). También en Los pastores de Belén donde el inicio del relato comienza rememorando la estirpe ancestral del pastor Aminadab (Escudero Baztán, 2017, 427).

É relevante salientar que, embora o livro de Gênesis seja uma das principais referências para os poemas épicos de temática bíblica da época, os autores espanhóis acabam por interpretá-lo a luz de obras como Le Sette Giornate del Mondo Creato (1600) e Sepmaine ou creation du monde (1578), de Torquato Tasso e Guillaume de Saluste, respectivamente (Gorga López, 2008, 57). Essa interpretação acaba por ser imbuída das Metamorfoses de Ovídio, já que esses autores fazem uma mescla de passagens com referência à Bíblia e, ao mesmo tempo, com uma insistência na desordem da criação.

Os poemas épicos dos Séculos de Ouro não se detêm apenas no livro de Gênesis. A obra mais conhecida, e protótipo do que se costuma estabelecer como épica cristã na literatura espanhola, é Christiada, de Diego de Hojeda, publicada em Sevilha em 1611. Como o próprio título aponta, o poema trata de uma parte da vida de Jesus Cristo, especificamente a Semana Santa:

La Christiada está impregnada de fuentes escriturísticas - también apócrifas -, asimiladas y mezcladas con otros materiales devotos, legendarios y religiosos, especialmente de procedencia patrística y dominica. Con todo, los cuatro Evangelios constituyen la materia prima a partir de la cual Hojeda elabora su canto. Pero esos evangelios serán sometidos a un constante proceso de amplificación e hiperbolación, siempre con vistas a suscitar la conmoción admirativa del lector (Gorga López, 2008, 58).

A Christiada tem o mérito, segundo a crítica - especialmente Frank Pierce (1968) - de ser o poema épico de temática bíblica mais bem acabado esteticamente nos Séculos de Ouro. Embora a temática da paixão de Cristo passe a ideia de uma linearidade narrativa, Diego de Hojeda faz com que diferentes tempos narrativos se entrecruzem com ações retrospectivas e prospectivas. Outros autores, segundo Pierce (1968), não conseguiram o mesmo efeito ao tratar a paixão de Cristo. Tanto a Christopathia, publicada em 1555 por Juan de Quirós, quanto a Victoria de Cristo (1576), de Benito Sánchez Galindo, são livros que se destacam muito mais pela temática da vida de Cristo do que por qualquer mérito artístico.

2. O CAMINHO PELO CRISTIANISMO DE LOPE DE VEGA

Félix Lope de Vega y Carpio nasceu em Madri, em 1562. Essa data é especialmente importante ao verificarmos que sua ordenação como sacerdote se deu apenas em 1614, ou seja, mais de cinquenta anos após seu nascimento. Muitos se questionam por que Lope, famoso por suas inúmeras relações amorosas, se ordenou sacerdote. Seria um arrependimento tardio pela busca da salvação eterna? Não é o que afirma o professor Antonio Sánchez Jiménez na biografia mais completa sobre a obra de Lope de Vega, publicada em 2018: “La ordenación sacerdotal puede entenderse como parte de una estrategia muy común en estos años del reinado de Felipe III, en los que la piedad se convierte en valor social” (Sánchez Jiménez, 2018, 223). A Lope, que não tinha título universitário - já que entrara na Universidad de Alcalá, mas não terminara o curso universitário - e tampouco título de nobreza, lhe restava a carreira eclesiástica. Durante estes anos, Lope se dedica a importantes obras de cunho religioso. Em 1609 já havia escrito sua epopeia trágica, a Jerusalén conquistada. Em 1612 publicou os Cuatro Soliloquios y Pastores de Belén. Já em 1614, ano de sua ordenação, publica uma de suas obras mais importantes: Rimas Sacras; e se nota que entre 1611 e 1620 toda sua produção não dramática tem como temática questões religiosas.

As Rimas Sacras são consideradas talvez os mais bem acabados poemas de cunho religioso do século XVII. A temática da paixão de Cristo é recorrente, assim como a angústia do pecador é fortemente explorada. Dentro da obra se destacam especialmente os sonetos, como este a seguir, que dialoga com o Soneto primeiro de Garcilaso de la Vega e, ao mesmo tempo, acaba por apresentar um eu-lírico que remete a um Lope com cinquenta anos que busca - teoricamente - uma retratação na época de sua ordenação:



Cuando me paro a contemplar mi estado,
y a ver los pasos por donde he venido,
me espanto de que un hombre tan perdido
a conocer su error haya llegado.
Cuando miro los años que he pasado,
la divina razón puesta en olvido,
conozco que piedad del cielo ha sido
no haberme en tanto mal precipitado.
Entré por laberinto tan extraño,
fiando al débil hilo de la vida
el tarde conocido desengaño;
mas de tu luz mi escuridad vencida,
el monstro muerto de mi ciego engaño,
vuelve a la patria, la razón perdida.

Fonte: (Vega, 2006, 170)

Neste soneto, Lope destaca a escuridão vencida de seus anos passados, quando estava preso no amor profano. Esta temática se repete em diversos poemas ao longo das Rimas Sacras, fazendo com que haja uma recorrência temática. No poema abaixo também se nota uma referência à “verde primavera”, numa referência explícita à sua juventude e aos amores carnais:



La verde primavera
de mis floridos años
pasé cautivo, amor, en tus prisiones
y, en la cadena fiera,
cantando mis engaños,
lloré con mi razón tus sinrazones;
amargas confusiones
del tiempo que has tenido
ciega mi alma y loco mi sentido.

Fonte: (Vega, 2006, 220)

Além de produzir uma expressiva quantidade de poemas sacros, também devem-se destacar suas comédias sagradas. Destaca-se, nesses textos dramáticos, a fundação de povoados espanhóis por santos e membros de ordens religiosas, que tinha como principal objetivo informar as pessoas dos grandes e surpreendentes milagres dentro do seio do cristianismo. Entre os inúmeros textos, podemos citar El Cardenal de Belén (1610), La bienaventurada madre santa Teresa de Jesús (1638), e La juventud de San Isidro (1622), este último que dialoga com o poema épico Isidro (1599) e que foi idealizado por Lope como homenagem ao primeiro santo nascido em solo espanhol e patrono de Madri.

Na próxima seção, faremos uma breve análise de como Lope desenvolveu a temática religiosa em seu poema épico mais famoso - embora não mais aclamado -, a Jerusalén conquistada.

3. A JERUSALÉN CONQUISTADA COMO PROJETO DE ÉPICA NACIONAL

Após se distanciar de uma épica mais tradicional com a publicação de poemas como Isidro (1599), escrito em redondilhas, e La hermosura de Angélica (1602), cuja temática não se aproxima das batalhas que o gênero épico preconiza, ainda restava no autor o desejo de fazer uma épica nacional definitiva - como Luis de Camões havia feito em Portugal - e que Fernando de Herrera havia demonstrado enorme interesse em produzir, mas sem conseguir. Foi com esse plano inicial que Lope escreveu a Jerusalén conquistada, poema épico de grande envergadura, publicado em 1609, e que se alinhava a uma característica marcante na obra de Lope: seu enorme talento para tratar de temas nacionais, que sempre foi notório, principalmente, em sua concepção de teatro.

Quatro anos antes da publicação, Lope trocava correspondências com o Duque de Sessa e anunciava que enviaria sua Jerusalén para aprovação - o que conseguiria em 1608 - e ressaltava os versos escritos em uma época de grande criatividade, além de destacar que tentaria imprimir a obra o mais rápido possível.

Mi Jerusalén enbié a Valledolid para que el Consejo me diesse liçençia; ymprimirela muy aprissa, y el primero tendrá Vex.ª; es cosa que he escrito en mi mexor edad y con estudio diferente que otras de mi jubentud, donde tiene más poder el apetito que la razón (Vega, 1954, textos preliminares).

Para elaborar uma épica nacional, Lope defendia, sobretudo, a historicidade, embora tivesse em mente que para contar uma história era mais importante a verossimilhança que a correspondência exata da realidade histórica. Ao mesmo tempo, valia-se da Poética de Aristóteles para justificar seu desejo de misturar fábula (poiesis) com a narração de um fato (factum): “Y cuando todo fuera distinto de la verdad (que no debe ningún español creerlo), basta haber dicho Aristóteles, Non Poetae esse facta ipsa narrare, sed quemadmodum, vel geri quiverint, vel verisimile, vel omnino necessarium fuerit” (Vega, 1954, textos preliminares). Para tal, uma história das Cruzadas, mote de Jerusalén conquistada, serviria como pano de fundo para enaltecer dois valores fundamentais em uma época em que era importante firmar os ideais nacionalistas: a fé e o orgulho de ser espanhol.

Entre os intelectuais espanhóis via-se uma necessidade de que a Espanha também tivesse uma épica culta relevante no contexto literário do país e que cantasse o orgulho nacional. Tal comparação não se dava com a Eneida, por exemplo, mas com obras mais recentes, como as de Camões e Torquato Tasso. Essa pode ter sido uma motivação de Lope, além de uma possível encomenda feita pelo rei Felipe III - que ostentava o título de rei de Jerusalém - e que veria uma obra como essa, que mesclava cristianismo e orgulho nacional, como perfeita para representar seus ideais.

O poema está composto de vinte cantos em oitava real, em mais de oitocentas páginas, o que faz de Jerusalén conquistada a maior épica de Lope. A narrativa se centra na Terceira Cruzada e apresenta o rei Alfonso VIII de Castilla como principal partícipe e tem como alvo Felipe III, que Lope acredita ser descendente direto de Ricardo da Inglaterra e do próprio Alfonso VIII. Aqui se destaca o que foi dito acima: que o autor mistura fábula e fato histórico, pois se sabe que Alfonso VIII não estava presente na conquista de Jerusalém, como consta na obra, mas era importante para que o tema funcionasse.

A influência de Torquato Tasso em Lope é clara não só pelo título - Tasso publicou a Gerusalemme liberata (1581) - como também no uso recorrente das digressões, que se ajustam à narrativa, além da construção de um narrador culto e eloquente, como Tasso preconizava. Nesse ponto, Lope lança mão de um narrador culto, erudito e repleto de referências para narrar seu poema épico. Para Tasso também era importante que o relato procedesse da história do cristianismo, opinião que Lope não teve dificuldade em acatar para formular o argumento central de Jerusalén conquistada.

4. UMA ÉPICA CRISTÃ DE LOPE DE VEGA?

O projeto épico definitivo de Lope de Vega é inegavelmente sua obra que mais se aproxima das características canônicas do gênero. A começar pela métrica utilizada: novamente a Oitava real, ou oitava rima, seguindo a metrificação espanhola. Lope manteve a métrica utilizada na épica culta e já ao princípio da narrativa invoca o tradicional início da Eneida, de Virgílio, para poder cantar não ao herói Eneias, mas ao rei Alfonso VIII, o varão que no poema épico será decisivo na conquista de Jerusalém. Destacam-se nesse trecho inicial três componentes da épica de Virgílio e uma constante em diversas épicas cultas: varón, armas e as musas:



Yo canto el celo, y las hazañas canto
de aquel varón soldado y peregrino
que, al ser de Asia universal espanto,
desde la selva Caledonia vino;
el que al tirano del Sepulcro Santo
venció en los campos del Belén divino,
haciendo a un tiempo (de Minerva infusas)
llorar las armas y cantar las Musas.

Fonte: (VEGA, 1954, livro 1, vv. 1-8)

Lope conta a história de Alfonso VIII para, entre várias razões, vangloriar o rei Felipe III - apresentado como um herdeiro direto de Alfonso VIII - e deixa isso claro já nas primeiras estrofes, assim como havia deixado claro na dedicatória, ao destacar o fato de os estrangeiros terem esquecido o papel dos espanhóis na conquista de Jerusalém:



Católico Filipe coronado
de dos mundos que el sol apenas mira,
siendo desde otra eclíptica mirado
de un sol que al cielo nace, a España expira;
si parte de este honor os ha tocado
en la empresa mayor que el Asia admira,
vereislo aquí, y escrito en el acero
que os hizo de estas glorias heredero.

Fonte: (Vega, 1954, livro 1, vv. 33-40)

Essa supervalorização de Felipe III e o adjetivo católico também apontam para o papel central que o catolicismo mantém na Jerusalén. Tal estruturação fez com que o padre Hortensio Félix Paravicino aprovasse a obra, em Madri, com grandes elogios à postura de Lope, visto por ele como um grande defensor do catolicismo: “[...] no hallo en él cosa que ofenda a la doctrina católica y piedad de costumbres, antes una lección muy grande, con no menor seguridad de las letras sagradas” (Paravicino apudVega, 1954, textos preliminares). Essa superioridade do catolicismo cristão aparece em quatro momentos ao longo do livro I: primeiramente, Norandino afirma: “yo soy la envidia del valor cristiano”. Em seguida, Cristo é exaltado e apresentado como o profeta que supera turcos, mouros, persas e egípcios:



Ármase todo, y el arnés lucido
de púrpura cubrió, bañada en oro;
honró el laurel sus cienes y ceñido
resplandeció con militar decoro;
discurrió la vergüenza el ofendido
pecho, de ver que tanto turco y moro,
tanto persa y egipcio hubiesen visto
pisar sus lunas el pendón de Cristo.
Venciole aquella ilustre y Santa Escala
del pastor que a Raquel ganó dos veces,
cuyo cenit los ángeles iguala,
cuyos brazos del Aries a los Peces,
cuyo título abrió del sol la sala,
cuyo nadir los ínfimos jueces
hizo temblar, pues vieron en la suya,
Cristo inmortal, la luz eterna tuya.

Fonte: (Vega, 1954, livro 1, vv. 249-264)

A cruz de Cristo é aclamada e colocada como aliada dos espanhóis, na luta para reconquistar Jerusalém. Esse primeiro livro se mostra, ainda mais que os seguintes, um intenso elogio à fé católica:



La cruz de Cristo, cuya roja lista
que por en medio a dividirla viene,
parece por la blanca del Bautista
senda de sangre a quien rendirla tiene;
el caballo español de feroz vista,
acepillando el suelo se entretiene:
que la espuma que argenta suelo y planta,
vuelve a cubrir la arena que levanta.
[…]
En una tienda a treinta y dos soldados
misa decía en alta voz Marcelo,
sacerdote latino, en los sagrados
dedos el pan, que descendió del Cielo;
los hombros muestra el ornamento armados,
símbolo de su fe y ardiente celo;
todos piensan morir, todos han visto
la muerte antes amarga, dulce en Cristo.

Fonte: (Vega, 1954, livro 1, vv. 513-520, 1065-1072)

Além de Jesus Cristo, é Alfonso VIII de Castilla, que Lope projetou como um Vasco da Gama na épica espanhola, que será exaltado na narrativa e apresentado como Alfonso Castellano, um aliado do rei Ricardo I da Inglaterra:



Veréis como os juntó, Fénix dichoso
del águila de Carlos soberano,
con el inglés Ricardo generoso
el español Alfonso castellano;
Ricardo ilustre, asunto glorioso
de mi mejor edad, si vuestra mano
al alma de mi pluma infunde aliento,
que iguale la esperanza al pensamiento.

Fonte: (Vega, 1954, livro 1, vv. 41-48)

No livro II, a figura de Ricardo I, rei da Inglaterra, ganha destaque. Historicamente, foi Ricardo I quem teve um papel preponderante na Terceira Cruzada. No trecho a seguir, o rei visita Santiago de Compostela, na Espanha, em um fragmento cuja função é destacar a religião e o solo sagrado espanhol:



mas ya cuando esto pasa en el Oriente,
el príncipe Ricardo, rey famoso
de Inglaterra, y claro descendiente
de aquel segundo Enrique generoso,
con su hija Leonor, y con la gente
más noble de su reino belicoso,
a España vino en voto a ver el suelo
que su primero apóstol volvió Cielo.

Fonte: (Vega, 1954, livro 2, vv. 49-56)

A figura de Santiago de Compostela é invocada pelo aedo mais de uma vez, numa tentativa de Lope de apresentar o santo espanhol como símbolo da fé, mas também para inserir na narrativa referências católicas de proteção, retirando as referências greco-romanas de deuses e trocando-as pelas cristãs:



Por vos ha de vivir la fe que disteis
en tanto que pagare en cristal y oro
tributo el Duero al mar que ennoblecisteis
con las reliquias de tan gran tesoro;
el nombre soberano en que infundisteis
tal valor en España, al trace, al moro,
al apóstata fiero, será estrago
y el quitarles la vida dar Santiago.

Fonte: (Vega, 1954, livro 2, vv. 81-88)

Vimos destacando nessa análise as referências a Cristo, a Santiago e, de uma forma geral, ao catolicismo. Aliadas a esses componentes estão as referências bíblicas. Em importante ensaio sobre a Bíblia na poesia lírica e épica do Século de Ouro, a professora da Universidad de Barcelona, Gemma Gorga López, destaca que a cultura ocidental se sustenta sobre dois pilares fundamentais: o legado clássico greco-romano e o bíblico:

A lo largo de varios siglos, las Sagradas Escrituras han contribuido a la configuración y mantenimiento de la identidad cultural de Occidente, a pesar de las inevitables turbulencias y cambios históricos. La Biblia ha ido destilando un sustrato de motivos, imágenes, personajes y relatos que ha nutrido nuestro imaginario colectivo e individual. Como no podía ser de otro modo, en el ámbito del arte la influencia de este libro de libros ha resultado también increíblemente fértil: son muchos los creadores que han sentido la necesidad de dialogar con dicha tradición, de verificarla, de cuestionarla incluso (Gorga López, 2008, 17).

A inserção de temas bíblicos é, segundo Gorga López (2008), condizente com a concepção estético-literária de imitatio, que começou no século XVI e seguiu de alguma maneira pelo século XVII e que proclamava abstrair o máximo possível da herança recebida:

Así pues, el poeta hará bien en conocer a esas otras “doncellas” que, sin duda, contribuirán a enriquecer su obra, ya procedan del ámbito de la ciencia (el escritor tiene que ser versado en botánica, geografía, en astronomía), de la literatura (tiene que poseer una amplia cultura clásica) o de la religión (debe dominar la historia sagrada para poder llevar a cabo una imitación fidedigna) (Gorga López, 2008, 18).

Essa preocupação em inserir temas bíblicos, além do alinhamento com o pensamento de imitatio, vai ao encontro da teoria de Luis Alfonso Carvallo, no Cisne de Apolo, como foi demonstrado na primeira parte. Para o preceptor, era necessário substituir o conteúdo profano da poesia épica pelo cristão. Não se poderia recorrer a uma inspiração divina segundo os moldes greco-romanos, mas ao Deus cristão, único e onipotente. Ainda no século XVI, em 1536, Girolamo Malipiero publicara Petrarca spirituale dando o pontapé inicial à interpretações imbuídas de moral bíblica na literatura. Isso chegou à Espanha por meio de Sebastián de Córdoba, que tentou interpretar os versos de Garcilaso de la Vega tendo em vista motivações religiosas.

Lope tinha consciência da necessidade dessa reestruturação temática e em 1619 já havia dado mostras de sua veia católica através do Romancero espiritual, obra inicialmente publicada dentro das Rimas sacras. Lope não chegou a produzir uma épica definitivamente sacra, mas a inserção da temática bíblica é primordial para entender sua produção e o contexto católico em que está inserido. Por exemplo, vejamos no trecho a seguir o claro diálogo entre a estrofe 67 e o capítulo XVII do Êxodo, na Bíblia:



No quiere Dios hacer milagros claros
mientras que puede obrar por instrumentos
de la naturaleza, que es mostraros
que os defendáis a la oración atentos;
mientras que Josué con hechos raros
mostró sus varoniles pensamientos,
Moisés oraba, porque quiere el Cielo
Las obras y la fe con igual celo.

Fonte: (Vega, 1954, livro 2, vv. 529-536)

Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e relata-o aos ouvidos de Josué; que eu totalmente hei de riscar a memória de Amaleque de debaixo dos céus.

E Moisés edificou um altar, ao qual chamou: O Senhor é minha bandeira.

Êxodo 17:14,15

No final do quarto livro, o diálogo é com o capítulo dezenove do Evangelho de Lucas. Nele, é narrada a passagem de Jesus Cristo por Jerusalém e seu pranto entre os fariseus por prever que a cidade, nesse momento gozando de dias de paz, ainda sofreria com aqueles que a sitiariam e estreitariam todos os lados da Terra Santa. Lope, a partir da passagem bíblica, narra o momento em que o prenúncio de Jesus se havia concretizado:



¡En qué tragedia dolorosa y fuerte,
en qué persecución y nuevo asedio,
Santísima Ciudad, esperas verte
de tantos pretensores puesta en medio!:
¡llora Jerusalén!, llora y convierte
tu rostro a Dios, que es último remedio,
y dile: “Tiempo fue que dio mi suelo
con vuestro llanto y sangre envidia al Cielo”.

Fonte: (Vega, 1954, livro 4, vv. 1185-1192)

O tom bíblico, aliado à figura de Moisés e de Josué, é um prenúncio para a entrada do Saladino em Jerusalém. A figura do conquistador muçulmano é inserida como uma personagem que vai contra a ordem cristã, instaurada pelos profetas - como Moisés - e, finalmente, com Cristo. A partir desse momento, o poema épico ganha seu grande vilão e a obra começa a contar a reconquista que os cristãos e as Cruzadas empreenderiam. Na estrofe abaixo fica clara a descrição imperiosa e, ao mesmo tempo, cruel do guerreiro muçulmano:



En turca alfana que con varias pintas
la piel de letra arábiga manchaba
sobre color overa, que en dos cintas
verdes crin y cordón negro enlazaba,
que arzones, frente y ancas, en distintas
piezas de conchas de oro puro armaba,
entró feroz, porque en sus pies altivos
parece que eran mundos los estribos.

Fonte: (Vega, 1954, livro 2, vv. 769-776)

Michael Rank (2015) destaca a fama que o Saladino obteve em toda a Europa. Sua reputação chegou aos ouvidos dos europeus como a de uma figura sobre-humana, além de se destacar como um guerreiro justo e fiel a seus ideais. Sua boa reputação estava relacionada ao fato de o guerreiro haver vencido a Cruzada conclamada pelo Papa Gregório VIII e por haver doado ainda em vida todo seu dinheiro aos pobres. Na Europa, sua figura aparece já na Comédia de Dante, mas ainda seria relembrado por Walter Scott, em The Talisman, quando o autor britânico resolve fazer sua versão das Cruzadas.

Com a chegada do Saladino, ao final do segundo livro, o aedo destaca que Jerusalém fica cativa. A partir desse momento, a cidade sagrada, em mãos muçulmanas, sofre à espera de sua salvação cristã:



[…]
¿Cómo llena de pueblo, aunque desierta,
yaces, Sión, Jerusalén esclava?;
vuélvete a Dios, y llora convertida,
que es Autor de la paz y de la vida

Fonte: (Vega, 1954, livro 2, vv. 1045-1048)

A figura do Saladino continua causando medo ao longo do livro III. Sua descrição não é feita apenas como a de um anti-herói, mas como a de alguém que tentou destruir o legado cristão na Terra Santa. No trecho abaixo, o vilão é descrito como cruel, fraudulento e um ladrão que usurpou as relíquias e o ouro de Jerusalém:



“Tirano”, - dice el patriarca anciano -,
¿no basta que por ti la ciudad santa
al yugo crudelísimo persiano
rinda (cien años libre) la garganta,
sino que aquí con fraudulenta mano,
que contra la inocencia se levanta,
a las reliquias míseras vencidas
quites el oro y las amadas vidas?

Fonte: (Vega, 1954, livro 3, vv. 521-528)

No início do terceiro livro, o aedo afirma que espera que venha da Inglaterra o santo indomável para salvar a Terra Santa do cativeiro em que foi colocada, em uma clara referência a Ricardo I, quem teria a honra de repatriar os cristãos que fugiram de Jerusalém ao terem de se defrontar com a espada do Saladino:



“Adiós Santa Ciudad” - disse llorando
la miserable gente fugitiva -,
Jerusalén hermosa y fuerte, cuando
ciñó tus blancos muros verde oliva;
ya te vimos pacífica triunfando,
segura humilde, vencedora altiva,
y ya por nuestras culpas derribada
vaina de sangre a la persiana espada.

Fonte: (Vega, 1954, livro 3, vv. 41-48)

A figura do Saladino é apresentada como um antagonista cristão que faz com que a vitória da armada espanhola seja ainda mais valorizada. Em outras palavras, a incursão na narrativa de uma figura tão emblemática e, até mesmo, “mitológica” em solo europeu, valoriza uma vitória espanhola forjada para a construção de um imaginário triunfante na Península Ibérica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, tentamos demonstrar como as referências bíblicas são significativas na obra de Lope de Vega. Mesmo na obra teatral de Lope são diversos os momentos em que essa temática aparece ou adquire status de tema central. Na poesia lírica, as Rimas Sacras são o exemplo máximo dessa produção, mas na poesia épica também podemos observar as referências cristãs de forma explícita, sobretudo em Isidro e Jerusalén conquistada.

A Jerusalén conquistada se mostra um poema extenso emblemático na produção de Lope de Vega por diversos fatores. Seja pelas incursões de personagens históricos quem nem sequer participaram dos conflitos narrados - em uma época em que muitos leitores tomavam o texto ficcional como documento histórico - seja pela tentativa de criar um imaginário histórico vitorioso, como Camões havia feito no século anterior em Portugal. No entanto, a obra não obteve a acolhida que Lope esperava de seus coetâneos. Lope alcançou mais sucesso maiormente em sua produção menos ambiciosa, como o poema épico La Gatomaquia, publicado vinte e cinco anos após a Jerusalén.

Finalmente, deve ficar claro que a produção de temática bíblica teve enorme acolhida nos Séculos de Ouro. Não em vão, diversos autores se arriscaram pelos Autos Sacramentais, sendo Pedro Calderón de la Barca o maior expoente. Do mesmo modo, os autores recorreram a outros gêneros para tratar de temas religiosos. Lope se lançou tanto pelo drama como pela poesia e a Jerusalén conquistada acaba por ser um dos exemplos mais emblemáticos.

Material suplementar
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Escudero Baztán, Juan Manuel. “Algunos ejemplos de paradigmas hexaemerales en la poesía de Lope”. In: Anuario Lope de Vega. Texto, literatura, cultura, XXIII, 2017, pp. 422-440.
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Notas
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