RESENHAS
| Marçal Maria-MercèMarsal Meritxell Hernando, Barboza Beatriz Regina Guimarães. Desglaç/Degelo. 2019. Bragança Paulista. Urutau. 214ppp. | 
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Recepção: 01 Janeiro 2020
Aprovação: 18 Março 2020
Se perde o amor até seu nome 
onde toda coisa recomeça 
saberei te falar dele com a pele 
e com o fogo novo de uma outra língua.
( 203)
Desglaç, de Maria-Mercè Marçal, foi publicada em catalão no ano de 1989, período em que a obra assume extrema importância como forma de revolução frente a um passado atroz vivido na Espanha, que tenciona entre o esquecimento e a memória. Esta é resguardada, em grande medida, pela criação literária que lança luz sobre um outrora asfixiante, diverso de um presente de suposta liberdade. É nessa esteira que a construção poética de Marçal se insere: na riqueza composicional que não se furta às intransigências de ontem, pois hoje busca se transformar.
Desfeita a geleira marcada no título de sua obra, com tradução de Meritxell Hernando Marsal e Beatriz Regina Guimarães Barboza publicada em 2019, em Degelo, o que era líquido solidificado deságua nas múltiplas formas que os oitenta e cinco poemas assumem, como já se evidencia na variedade de número dos seus versos e de suas estrofes - desde a estruturação de um único terceto (“No encalço, o inferno e o paraíso”, 75, e “Dor de ser tão distinta de você”, 165), até a construção de uma longa estrofe de cinquenta e dois versos (“Punk is not dead”, 85). Em sua grande maioria, os poemas não têm títulos, no entanto, dividem-se em três grandes: “Daddy”; “Sombra de presa” e “Contrabando de luz”. A segunda simboliza no signo da “sombra” os desdobramentos da relação entre a voz poética e a figura do pai, que encabeça a obra na primeira parte como protagonista de um passado perturbador, peremptório no tempo presente daquela que fala. Por sua vez, a terceira parte - pelo menos três vezes mais ampla que as duas primeiras - evoca o amor lésbico em suas nuances de comunhão e exílio do corpo diante de uma história de imposições à própria manifestação íntima do humano, aqui, mais precisamente da mulher.
Marçal é, como se expressa em sua elaboração lírica, figura que subverte padrões e reconfigura noções até então assentadas pela sociedade espanhola de fins de século. É nos anos de 1970 que inicia sua produção literária, embora seja também de grande relevância para o campo das letras por conta das traduções que realizou ao longo de sua carreira, sempre se voltando para obras de mulheres e indicando com essa postura seu posicionamento combativo a partir do seu próprio sexo. São experiências particulares suas que propulsionam a produção de seu livro de poemas de 1989. Não obstante, é o tratamento dado às manifestações do desejo que, atendidas, resultam na comunhão poetizada dos corpos de duas mulheres, o que coloca a autora em posição de vanguarda em relação à literatura produzida na Espanha dos anos de 1980.
O PESO DO SEXO MULHER
Trinta anos depois da publicação em catalão dessa obra poética, Marsal e Barboza brindam leitoras e leitores lusofalantes com o cuidadoso e denso trabalho de tradução de Desglaç, possibilitando-nos reconhecer o nome de Maria-Mercè Marçal como uma das grandes poetas catalãs do século XX. É, ainda, em 2019 que ambas tradutoras participam do TREMA: Primeiro Encontro de Mulheres, Tradução e Mercado Editorial. Realizado em dezembro, na Universidade de São Paulo, possibilitou o diálogo e o incessante objetivo de emergir vozes e figuras femininas muitas vezes ofuscadas pelas padronizações e enrijecimentos do próprio meio acadêmico. Pela Editora Urutau, Marsal e Barboza transfiguram aquela que Montserrat Roig denominaria como língua literária: a catalã. Esta que foi segregada durante o franquismo a ponto de ser proibida, retoma sua força ao longo dos anos de 1960 e nos é apresentada em Desglaç / Degelo lado a lado às versões em língua portuguesa realizadas pelas tradutoras. Há, portanto, um vínculo indiscutível entre mulheres das letras e artes, em torno à obra Marçal. É nesse sentido que ressalto outras duas que despontam como figuras imprescindíveis e que também se evidenciam na escritura da autora: Sylvia Plath e Frida Kahlo.
A poeta estadunidense ganha destaque na composição da catalã já na epígrafe de abertura de Degelo: “Peso de mármore. Saco repleto de Deus”. Introduz o poema inicial “A morte te deu xeque-mate sem retorno” (25), dialogando com ele no que se refere ao fardo que a voz poética carrega. Ela sente em seu pescoço os tentáculos de um polvo, o estigma do passado e de uma tradição que transfere à mulher o peso do próprio sexo. Outra epígrafe de Plath se apresenta em “Essa parte de mim que adorava um fascista” (39): “Toda mulher adora um fascista”, e ambienta a esfera sombria de uma figura paterna que oprime direta e indiretamente, mas que está morta, tal como o alinhamento com aquilo que oprime: “jaz contigo”. A autora estadunidense é citada ainda na dedicatória do poema “Maternidade”, que marca no corpo da mulher uma guerra, símbolo de luta pela partilha do amor: “A Heura, em contralei de um verso de Sylvia Plath” (73).
Emprestando as palavras utilizadas no Prefácio das tradutoras ao se referirem à experiência que tiveram em seu trabalho, “um Atlântico de distância” é também espaço que Marçal recorre outra vez com muita força, mas agora adentrando o contexto latino-americano: Frida Kahlo ressurge nas suas palavras em duas ocasiões. Na primeira delas a catalã retoma em “Tenho na testa uma testa de homem” (43) a composição “Diego y yo” (1949) da pintora mexicana, como fica explícito no primeiro verso do poema e na sua dedicatória: “Sobre uma pintura de Frida Kahlo”. Nesse intertexto entre as duas manifestações artísticas, remonta-se a ideia de vigilância impressa no olhar do homem sobre a mulher. Guardá-lo ou ejetá-lo resultam na morte dela, seu não pertencimento ao que chama “paradís”/“paraíso” ou, ainda, seu exílio desse lugar, como fica sugerido já na tradição criacionista. Por sua vez, em “De onde vem, de qual entranha, essa força” (69), a “Homenagem a Frida Kahlo” - como fica introduzida no poema - retoma a pintura “La columna rota” (1944) da mexicana. Isso se evidencia nas expressões de dor e da consequente força da mulher delineada no quadro de Frida e que também constituem os versos de Marçal: “se estilhaça a coluna”; “em gesso me molda”; “me encouraça de aço?”; “pregos, agulhas me fixam a pele morta”; “furos”. O corpo é uma estrutura rompida pela dor que a voz poética sente.
As quatro mãos que se unem no trabalho de tradução de Desglaç / Degelo nos permitem refletir sobre a noção de sororidade impressa no campo literário e propulsionada pela escritura de Marçal. Para dois poemas, apresentam duas versões distintas. “Sombra rapace” (93 e 95), que encerra a segunda parte da obra - “Sombra de presa” -, traz o gavião como figura que espreita a ponto de contingenciar o amor. Da primeira para a segunda versão traduzida, uma mudança marcante se dá no uso dos tempos verbais, de modo que num primeiro momento se opta pelo uso do futuro do subjuntivo, “Se não for o fervor do alto gavião” , enquanto que no segundo caso se utiliza o pretérito imperfeito desse modo verbal: “Se não fosse essa paixão do gavião”. Contudo, é sonora uma mudança evidente no dístico que arremata o poema: “te fitaria, amor, e o seu favor/faria toda meiga a hora mais áspera” se traduz na segunda versão através de uma rima externa: “te fitaria, amor, e essa sua isca/faria assim terna a hora mais arisca”. Já o poema “Não sei te amar sem esse fardo” (125 e 127), da terceira parte (“Contrabando de luz”), reitera o peso sentido pela voz poética ao manifestar seu sentimento amoroso e se modifica já no primeiro verso: enquanto Marsal escolhe o termo “fardo (de sombra)” para sua tradução, Barboza opta pelo uso da palavra “feixe (de sombra)”.
FOGO DE FUSÃO; SOMBRA DE GAVIÃO
Essencial é ainda ressaltar símbolos que se reiteram constantemente em Desglaç/Degelo. O primeiro e fundamental é o que dá título à obra. Só na primeira parte - “Daddy” - aparece em quase metade dos poemas que a constituem. Exemplifico aqui com “Eu que estrangulei a filha”, que encabeça os versos seguintes: “obediente de Ti/e a enterrei, convulsa/ainda, sob o gelo”. Neles se evidencia a complexa relação entre filha e pai, de modo que ela é influenciada por ele ao longo da vida, tendo como possibilidade de transformar-se somente enterrando parte de si mesma. No entanto, ela, por vezes, permanece imóvel no gelo que a envolve, tendo como possibilidade de vida somente o renascimento, o degelo, anunciado e almejado nos versos derradeiros: “Que o dia/nasça, nu, no degelo.” Este símbolo se apresenta na segunda parte por meio de uma série de elementos líquidos que desaguam a dor sentida e expressa pela voz poética. Onda (“A meio ar se detém”, 65); rio (“O rio escorre, como um sangue”, 63); lodo (“Não vou ficar onde minhas dores foram.”, 67). Poetiza-se uma guerra liquefeita nos ossos que demonstra, através do corpo, a dor física e interna.
Essa sensação se simboliza já no título da segunda parte, que está, no entanto, destacado na terceira, em “Busca-me o bico do gavião salaz” (129): “Mas o amor, astuto, dispõe reclamos/e ardis bem longe de onde estamos você e eu/e atrai a sombra de presa.” Essa esfera sombria ambienta a composição da obra tanto pela memória que se tem da figura impositiva do pai e das consequências de sua influência sobre a filha, quanto pelo tortuoso caminho da relação amorosa que ofusca por vezes a luz que irradia (com) a satisfação do desejo. Sobre a sombra que escurece os percursos e as relações humanas, paira uma ave que incansavelmente perscruta: “Pai-gavião que me espreita desde o céu/me deixo cair na tentação/de perseguir-te na sombra do meu mal” (37). Nessa releitura da oração do “Pai nosso”, a figura paterna se reconfigura no símbolo do gavião, que observa e vigia a filha. Ela cai na tentação, também traduzida em sombra e em autolimitação que a mantém congelada, presa às doutrinas de um pai terreno e um Pai celestial que deliberam sobre as leis a serem seguidas pela menina que se converte em mulher e expressa poeticamente a angústia pela vigília do gavião que a envolve em sombra.
Há, contudo, um contraponto às geleiras que se conformam causando enrijecimento nos movimentos e nas expressões da mulher que, por meio da palavra, revela-se. O fogo é símbolo metafísico para a composição de Marçal, pois é justamente ele que possibilita o Degelo. Ele está presente na obra como luz que irradia as sombras e afasta o olhar do gavião sobre a voz poética. É o que transforma a forma sólida da água em líquida, simbolizando o desejo expresso nos poemas e a manifestação do corpo de mulher que quer unir-se a outro corpo de mulher: “À mordida das minhas palavras, /sua mente se me abre como um fruto/ e a polpa se me funde, carne adentro” (113); “Tato de noite escancarada. /Nos dou ao olvido/assim, indistinguíveis.” É por entre essas chamas de fogo que a terceira parte da obra se faz abundante. Na sinestesia do tato e do paladar destacados, em conjunção aos demais sentidos, uma mulher percorre a carne de outra, sentindo-a em sua pele. O fogo, portanto, ocasiona o desejo e simboliza o sexo lésbico, a satisfação do desejo entre duas mulheres, o que, ressalto, coloca Marçal como poeta a frente do seu tempo, posto que a questão do corpo poetizada em Desglaç se traduz também como momento de inflexão na poesia feminina da Espanha.
“Vencidas? Não, que acendem/a albada” (199). Estamos frente a um diálogo com a lírica tradicional, porém, há uma inversão significativa. No trovadorismo, a chegada da aurora trazia consigo a dor da separação dos amantes que passaram a noite juntos. Em Marçal a dor também existe, mas não porque uma relação heterossexual se desfaz: é o amor homossexual que lamenta o fim da união entre duas mulheres, a priori, vencidas pela separação. “Vencidas, não: feridas/na raiz e na casca” (195). “Vencidas, não. Desapossadas/da raiz” (197). O símbolo do fogo carrega consigo o amanhecer. Flameja suas chamas por meio dos versos de Maria-Mercè que iluminam o desejo da mulher, tornando-o autêntico e possível. E dissemina-se no engenho da tradução de Meritxtell e Beatriz que, na terceira parte da obra, explicitam na tradução do título em catalão, “De llum”, a forma como a mulher busca iluminar-se em meio às geleiras e às sombras, através da resistência: do “Contrabando de luz”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Marçal, Maria-Mercè. Desglaç / Degelo. Trad. Meritxell Hernando Marsal e Beatriz Regina Guimarães Barboza. Bragança Paulista: Urutau, 2019.
Autor notes
Contato: dan.silva58@hotmail.com