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RACISMO AMBIENTAL E O “DIREITO VIVO” DOS POVOS INDÍGENAS: UMA LEITURA A PARTIR DA TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS
RACISMO AMBIENTAL Y LA “LEY VIVA” DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS: UNA LECTURA DE LA TEORÍA CRÍTICA DE LOS DERECHOS HUMANOS
ENVIRONMENTAL RACISM AND THE “LIVING LAW” OF INDIGENOUS PEOPLES: A READING FROM THE CRITICAL THEORY OF HUMAN RIGHTS
Ratio Juris, vol. 17, núm. 35, pp. 765-798, 2022
Universidad Autónoma Latinoamericana

Artículo de Investigación


Recepção: 23 Março 2021

Aprovação: 02 Setembro 2022

Publicado: 30 Dezembro 2022

DOI: https://doi.org/10.24142/raju.v17n35a15

Resumo: Este artigo visa discutir o atual desmonte das políticas ambientais no Brasil, referenciada no Racismo Ambiental e na Teoria Crítica dos Direitos Humanos, sob a perspectiva do “direito vivo” dos povos indígenas brasileiros, uma vez que expõe a importância de uma reflexão voltada à construção de um novo paradigma civilizatório a estes grupos vulneráveis, pautados numa sociedade igualitária e justa. Indicamos que o racismo ambiental sofrido pelos povos indígenas brasileiros, somado à dificuldade de elaboração de políticas públicas universais em razão de suas diversidades culturais, impõe-lhes um atendimento particular e especial a partir de um direito vivo, embasado na Teoria Crítica dos Direitos Humanos, que parte do processo de lutas sociais desses povos. Destacamos que as práticas do “Bem Viver”, alicerçadas na perspectiva crítica do Direito, podem se constituir num referencial contrahegemônico ao encontro de um paradigma civilizatório a estes grupos étnicos vulneráveis e marginalizados pela matriz colonial de poder.

Palavras-chave: Racismo ambiental, direito vivo, povos indígenas brasileiros, bem viver.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir el actual desmantelamiento de las políticas ambientales en Brasil, referidas al Racismo Ambiental y a la Teoría Crítica de los Derechos Humanos, desde la perspectiva del “derecho vivo” de los pueblos indígenas brasileños, ya que expone la importancia de una reflexión orientada a construir un nuevo paradigma civilizatorio para estos grupos vulnerables, basado en una sociedad igualitaria y justa. Indicamos que el racismo ambiental que sufren los pueblos indígenas brasileños, junto con la dificultad de elaborar políticas públicas universales debido a sus diversidades culturales, exige un entendimiento particular y especial desde un derecho vivo, basado en la Teoría Crítica de los Derechos Humanos, que parte del proceso de luchas sociales de estos pueblos. Destacamos que las prácticas del “Buen Vivir”, basadas en la perspectiva crítica del Derecho, pueden constituir un referente contrahegemónico al encuentro de un paradigma civilizatorio a estos grupos étnicos vulnerables y marginados por la matriz colonial de poder.

Palabras clave: Racismo ambiental, ley viva, pueblos indígenas brasileños, bien vivir.

Abstract: This article aims to discuss the current dismantling of environmental policies in Brazil, based on Environmental Racism and Critical Theory of Human Rights from the perspective of the “living right” of Brazilian indigenous peoples, since it exposes the importance of a reflection aimed at building a new civilizing paradigm for these vulnerable groups, based on an egalitarian and just society. We indicate that the environmental racism suffered by Brazilian indigenous peoples, together with the difficulty of drawing up universal public policies due to their cultural diversities, imposes on them a particular and special service from a living right, based on the Critical Theory of Human Rights, which starts from the process of social struggles of these peoples. We emphasize that the practices of “Living Well”, based on the critical perspective of Law, may constitute a counter-hegemonic referential to the meeting of a civilizing paradigm to these vulnerable ethnic groups marginalized by the colonial matrix of power.

Keywords: Environmental Racism, Living Law, Brazilian Indigenous Peoples, Living Well.

INTRODUÇÃO

O último censo demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBgE), revelou que o Brasil possui um contingente populacional de aproximadamente 817.963 indígenas, os quais estão organizados em 305 etnias, e que falam 274 línguas diferentes. Esta cifra demonstra que 0,4 % da população brasileira é formada por índios. Deste total, 502.783 encontram-se na zona rural e 315.180 nos centros urbanos, ressaltando que setenta povos vivem em locais isolados, e que ainda não foram contatados.

Em que pese a expressiva população indígena no Brasil, estes grupos enfrentam um longínquo histórico de adversidades e desafios que permeiam os mais diversos campos fáticos e cognitivos, desde o antropológico, o social, o político, o ambiental, o sanitário, e outros. Desse modo, a reprodução das relações do capital impõe a transformação da natureza em mercadoria, o que conduz, à destruição do ambiente. Constata-se que as populações que vivem em relações mais simbióticas com a natureza sejam as primeiras vítimas desse ecocídio (Galeano, 2005), e que inúmeras vezes, resistem à expansão devastadora do capitalismo. Fato este, visto em mobilizações locais em defesa dos rios ou das florestas, contra as multinacionais petrolíferas e mineradoras, mas também propondo um modo de vida alternativo ao avanço desenfreado do modelo de desenvolvimento. Tais lutas e resistências em boa parte são indígenas, mas com frequência elas ocorrem em aliança com camponeses sem terra, ecologistas, comunidades cristãs, sindicatos, partidos de esquerda, pastoral da terra e da pastoral indígena (Lowy, 2014).

Primeiramente, vale lembrar os desafios enfrentados quanto às suas lutas por territórios, e nesse sentido, não se pode olvidar que o conceito de território indígena transcende o sentido espacial do termo. Quando nos referimos a território indígena, o antropólogo Gersem Luciano (2006) , membro da etnia Baniwa, explica que este se refere à condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas de vida. Território indígena, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva, de onde tais comunidades extraem todos os elementos necessários à firmação de suas identidades, enquanto grupo étnico dotado de idiossincrasias e modos de vida determinados. Ora, conforme consta do art. 231 da Constituição Federal de 1988 (CF/88),1 para que os direitos dos indígenas sejam garantidos demanda-se o reconhecimento e a garantia desta definição de território!

Considerando a dimensão territorial do Brasil, que foi divulgada pelo IBgE, e publicada no Diário Oficial da União - DOU nº 94 de 19/05/2020, conforme Portaria nº 177, de 15 de maio de 2020, o país possui uma superfície calculada em 8.510.295,914 km2 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2020). No entanto, em que pese os indígenas constituírem os povos originários deste país de grandeza continental, - e por isso mesmo, deveriam ser considerados donos inequívocos destas terras -, atualmente, as terras indígenas (TI) devidamente regularizadas, ocupam uma irrisória proporção do solo brasileiro. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão oficial executor da política indigenista do governo federal, existem apenas quatrocentas e sessenta e duas terras indígenas regularizadas, que representam cerca de 12,2 % do território nacional, localizadas em todos os biomas, com concentração na Amazônia Legal (Fundação Nacional do Índio, 2020).

A partir de lamentáveis eventos de matrizes ambiental e política que se opõem à luta dos povos indígenas pela conquista de territórios e consequente demarcação e regularização de TIs, os quais serão objetos de discussão neste artigo, é que se argumenta que estes sujeitos já enfrentam historicamente batalhas em busca de direitos e exercício da cidadania, garantidas apenas por lei; mas, não, de fato. Ou seja, trata-se de eventos que revelam o racismo ambiental sofrido por estes sujeitos.

Somando-se a estes, releva-se o atual enfrentamento pelo qual passam todos os brasileiros perante um novo embate: a pandemia mundial, ocasionada pela disseminação do coronavírus, que está dizimando a população através da SARS-COV2, ou covid-19. Esta doença atinge a todos indistintamente, mas principalmente as pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade social, econômica e sanitária, pois mais expostas aos fatores que influenciam o contágio, como densidade populacional, uso e ocupação do solo, índice de desenvolvimento humano (IDH), dentre outros.

E, em razão deste cenário, alarmamos a situação dos povos indígenas, principalmente daqueles que vivem nas regiões mais remotas do Brasil. Conforme dados atualizados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, revelam um boletim epidemiológico com a seguinte situação: existem 627 casos suspeitos, 33.011 confirmados, 33.449 descartados, 28.864 recuperados, e 479 óbitos. O órgão informa em seu site oficial, que as informações são obtidas junto a cada um dos trinta e quatro Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) (Brasil, 2020b). Esta situação remete à outra necessidade incessante de reflexão sobre a precária condição dos indígenas, os quais clamam por serem ouvidos e terem seus pleitos atendidos, sobretudo no que tange à conquista de territórios.

A pandemia pela covid-19 apenas tornou mais visível o estado de vulnerabilidade dos indígenas a doenças infectocontagiosas, pois ela sempre existiu e esteve essencialmente relacionada à dependência de territórios hábeis a proporcionar o desenvolvimento de seus modos de vida articulados com as suas culturas e em harmonia com a natureza. É o que infere a análise do médico especialista em epidemiologia e saúde de populações indígenas, Andrey Moreira Cardoso, do Departamento de Endemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o qual afirma que o problema de disponibilidade de territórios tradicionais para o exercício dos modos de vida indígena, de acesso a saneamento básico, os problemas relacionados à desnutrição e anemia, assim como a emergência de doenças crônicas, tornam estas populações ainda mais vulneráveis à esta atual pandemia (Queiroz, 2020).

Retrata-se, pois, mais um caso de essencialidade do território tradicional como elemento caro e imprescindível para a preservação da vida dos povos indígenas, e para a efetivação dos seus direitos, enquanto cidadãos de um país democrático, “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito”.2

Ante a este cenário de adversidades que se opõem à luta dos povos indígenas por condições dignas de vida, e pela conquista de territórios onde possam exercer os seus modos de vida em consonância com suas idiossincrasias é que se desenvolve o artigo, cujo principal objetivo é advertir para a importância da reflexão e da discussão de possibilidades voltadas à construção de um novo paradigma civilizatório a estes grupos vulneráveis, pautado em uma sociedade igualitária e justa. Para abrir os caminhos destas possibilidades, as abordagens deste estudo foram divididas em três subseções: a primeira voltada à contundente agenda ambiental do Brasil para os povos indígenas executada pelo atual governo federal; a segunda visa expor as proposições teóricas sobre o racismo ambiental, à luz das teorias de Tânia Pacheco (2010) , cujas pesquisas concentram ênfase na injustiça ambiental e no racismo ambiental sofrido pelos povos tradicionais; e, por fim, na terceira subseção, serão abordadas as vertentes da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, elaborada por Herrera Flores (2009) , e epistemologicamente adequada a atender, dentre outros, o direito dos povos indígenas que nascem das suas lutas e movimentos sociais.

Em conclusão, indicamos que as práticas do Bem Viver (Acosta y Brand, 2018), consistem num conjunto de ideias que primam pela relação harmônica entre o ser humano e a natureza, podem configurar como plataforma de discussão para se buscar alternativas contra-hegemônicas ao sistema capitalista neoliberal, e, assim, delinear as bases teóricas para a realização dos direitos humanos dos povos indígenas, permitindo-se lhes a caracterização como um direito vivo nascido das suas lutas sociais no contexto do capitalismo latino-americano.

A ATUAL CONJUNTURA AMBIENTAL DO BRASIL PARA OS POVOS INDÍGENAS

O governo federal exercido pelo presidente Jair Bolsonaro, cujo mandato iniciou-se em 1º de janeiro de 2019, vem sendo apontado pelo desmonte das políticas ambientais e pela preterição dos povos indígenas em prol dos agentes relacionados ao agronegócio. A restrição em órgãos de proteção ao meio ambiente, flexibilização de legislações de proteção ambiental e ameaça a direitos de povos indígenas são os principais argumentos para tal afirmação.

Projetos, ações e articulações políticas na área ambiental estão sendo executadas à oposição dos interesses dos povos indígenas, e ao encontro do capital financeiro, atendendo especialmente, os agentes dos setores do agronegócio, da lavra, industrialização e comércio de minérios, da indústria de metalurgia, de empreendimentos eletrointensivos, da silvicultura, dentre outros que dependem da exploração de recursos ambientais, renováveis ou não. Os quais também impactam nos processos de demarcação e regularização de terras indígenas (TIs), considerando que, segundo afirmação do presidente Bolsonaro, proferida no ano de 2019, “se depender dele, não haverá mais nenhuma demarcação de terra indígena no país” (Salomão, 2019), ao passo que a Constituição Federal Brasileira determina a competência da União para a demarcação e proteção de TIs, impondo, portanto, esta obrigação ao governo federal.3

Com efeito, desde que Jair Bolsonaro assumiu o mandato, já se vislumbrou o desmonte das políticas ambientais no Brasil, as quais, reafirma-se, impactam a vida dos povos tradicionais4 brasileiros, e em particular, a dos indígenas. Os alardes de desmonte do presidente já implicaram algumas ações em suas agendas, as quais afetaram diretamente nos ecossistemas brasileiros, na vida e no exercício da cidadania de comunidades tradicionais que vivem especialmente nas zonas rurais do Brasil.

Pode-se citar como alguns exemplos desta assolação desde o início do atual governo, a extinção da Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), sendo que, inclusive, foi cogitada a extinção do próprio MMA, o que sofreu severas críticas; extinção do Comitê Orientador do Fundo Amazônia; reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) com a militarização da sua diretoria e chefias regionais, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os quais passaram a ser orientados por ideais liberais e em defesa do agronegócio. Nesta senda, convém lembrar que o ministro do MMA, Ricardo Salles, defendeu uma solução capitalista para a Amazônia, criticando o modo como foram criadas as unidades de conservação e terras indígenas.

Desta medida, já se depreende o continuum das dificuldades que serão enfrentadas por estes povos em relação à conquista dos seus territórios. Não há que se olvidar, ainda, as contendas ocorridas em 2019 no que se referem à transferência da Funai, do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), assim como a demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura (MAPA), restando claro o conflito de interesses dentro do mesmo ministério, e colocando em xeque os direitos dos povos tradicionais, uma vez que a ministra desta pasta, Tereza Cristina, foi líder da bancada ruralista no Congresso Nacional.

Ainda na seara ambiental, demais transferências da pasta do MMA para outros ministérios também evidenciaram as arruinações políticas, como a do Serviço Florestal Brasileiro para o MAPA, ressaltando que o órgão tem entre suas funções o cadastro ambiental rural (CAR), a recuperação da vegetação nativa e florestal, a proposição de planos de produção sustentável e o apoio aos processos de concessão florestal; e a da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) para o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).

Outros desmontes na área ambiental também ocorreram no ano de 2019, a exemplo da extinção do Comitê Orientador do Fundo Amazônia, agravando a crise diplomática com Alemanha e Noruega -principais doadoras para o Fundo-, que suspenderam novas doações, após terem destinado R$ 3,6 bilhões de reais. Com esta medida, o Brasil deixou de receber 35 milhões de euros, o equivalente a R$ 224,7 milhões, por conta do avanço do desmatamento na Amazônia. Mesmo com a reativação do Fundo Amazônia, em maio de 2020, pelo vice-presidente da República e atual presidente do Comitê e do Conselho Nacional da Amazônia Legal, Hamilton Mourão, Alemanha e Noruega não confirmaram a retomada das doações. Somado a este fato, está a desconsideração e o descrédito do governo federal sobre os programas das instituições de pesquisa ambiental, como os sistemas de monitoramento de florestas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), levando à demissão do seu diretor, Ricardo Galvão, por ele ter respondido às críticas de Bolsonaro sobre os dados do Instituto que revelavam alto índice de desmatamento na Amazônia.

Embora algumas das reformas administrativas citadas não prosperaram -graças a um “resquício de luz” do governo, tais movimentos anunciam que o presidente permanece envolto pelo seu discurso de campanha em favor da agricultura, o que reflete na flexibilização das regras de preservação e proteção de áreas ambientais e indígenas, assim como no favorecimento da desregulação imposta pelo capital, em prol de megaempreendimentos interessados em zonas habitadas pelos povos tradicionais, e em áreas de preservação ambiental.

Em sequência, no que tange ao posicionamento negativo do executivo federal quanto às questões que envolvem os processos de identificação e demarcação de TIs, particularmente, a justificativa paira sob o argumento de que as terras demarcadas são muito extensas em relação à população que as habita. Portanto, segundo o presidente, indígenas e quilombolas devem ser integrados à população, seguindo a proposta assimilacionista do Estatuto do Índio, de 1973, que os considera pertencentes à uma categoria social transitória e que, por isso, deveriam ser integrados à comunhão nacional. Este parecer de Bolsonaro revela a sua explícita negação do outro, pois retrata um comportamento que considera as minorias identitárias e grupos étnicos, sobretudo, como inumanos, inferiores, não civilizados (Dussel, 1992). Isto é, sujeitos que se auferem superioridade, subjugam outros, em uma nítida relação díspar e opressiva de poder (Quijano, 2005).

Entende-se que por estar assim eivado, é que Bolsonaro editou a Medida Provisória (MP) sobre a transferência da Funai para o MMFDH.5 No entanto, após a MP sofrer fortes críticas, o Congresso não aprovou os textos referentes à demarcação de terras e à transferência da FUNAI (além de outras partes), a qual voltou para a sua pasta de origem (MJSP) e também voltou a ter a titularidade na identificação e demarcação de terras indígenas.

Nesse sentido, ainda merece destaque a pauta de discussões levantada pelo deputado federal, general Sebastião Peternelli (PSL-SP), já no seu primeiro mandato, sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas. Peternelli defende atividades econômicas de larga escala nestes espaços demarcados, o que inclui o plantio de soja transgênica, exploração de madeira e mineração E foi com essa intenção que, antes mesmo de assumir o mandato, o deputado encomendou à Consultoria Legislativa da Câmara estudo técnico sobre o tema, cujo relatório apontou que a função primordial das terras indígenas é “garantir a dignidade ao índio” e não a “conservação e uso racional dos recursos”. Peternelli justificou, argumentando que, quando o artigo 231 da CF brasileira menciona que os indígenas têm direito à demarcação das terras que “tradicionalmente ocupam”, não se refere à forma de uso da terra e, portanto, não impede “que nela sejam exercidas atividades ‘ao modo de produção capitalista” (Carmo, 2019). E conclui, afirmando, in verbis:

mesmo reconhecendo que os indígenas (mas não todos) desenvolvam uma relação mais harmoniosa com o ambiente que os circunda, caso eles optem por ter meios de vida mais ligados ao capital, não se pode impor, por mera ideologia, que ele deixe de exercer qualquer atividade econômica em sua terra (Carmo, 2019).

Ora, trata-se de uma afirmação que aqui se denominou, “hipnose liberal”, ou seja, de um discurso liberal envolvente, atrativo, o qual se entende que remete à concepção de que proporcionar melhores condições de vida aos povos indígenas significa tão somente promover-lhes prosperidade econômica. Ou seja, remete à perpetuação do ideal neoliberal, colonial e integracionista, no caminho da negação do direito à diferença (Luciano, 2006). Ou ainda, às “alternativas infernais”, demonstrando como a globalização redefine as condições das lutas por justiça ambiental, a partir de uma “retórica liberal da perversidade”. Tais alternativas, vale dizer, representam “situações que parecem não deixar outra escolha além da resignação ou da denúncia impotente ante à guerra econômica incontornável” (Stengers-Pignarre, 2005, pp. 39-40 apud Acselrad y Bezerra, 2020).

Além destes entraves de cunho ideológico, no campo fático, elevam-se as ocorrências de invasões de TIs. Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), desde o início do governo Bolsonaro, os índices de invasão, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio aumentaram exponencialmente, passando de cento e nove casos, em 2018, para duzentos e cinquenta e seis no ano passado; isto é, um crescimento de cento e trinta e cinco por cento. Estas informações constam do relatório anual de violência dos povos indígenas, elaborado pelo Cimi, e divulgado em 30 de setembro de 2019 (Valente, 2019).

No texto de abertura do documento, o presidente da entidade, arcebispo dom Roque Paloschi, afirmou “que as comunidades originárias e tradicionais são atingidas diariamente por uma política nefasta e criminosa do atual governo”. Preambularmente, o relatório aponta que “a intensificação das expropriações de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem e no loteamento, consolida-se de forma rápida e agressiva em todo o território nacional, causando uma destruição inestimável” (CIMI, 2019, p. 6).

No ano de 2020, a agenda política ambiental também não foi diferente. Além dos problemas decorrentes da covid-19 enfrentados pelos povos indígenas (e pela população em geral) -que visibilizou e/ou potencializou, principalmente suas precárias condições sanitárias (dentre outras), seguiram as políticas de flexibilização das regras ambientais e do desmonte institucional dos órgãos vinculados ao MMA, sobretudo com a reestruturação -ou o descalabro- do Ibama e do ICMBio pelo ministro, Ricardo Salles, conforme já mencionado.

Dentre outras assolações do governo, estão também as ações que refletiram diretamente nas queimadas da região do pantanal, e provocaram animosidades entre o poder executivo e as populações indígenas locais - tragédia anunciada!-. Dentre estas, destacam-se as manifestações de representantes dos povos indígenas da região pantaneira, ocorridas no início do mês de outubro na Câmara dos Deputados, em Brasília-DF. Os manifestantes clamaram por serem ouvidos e repudiaram o pronunciamento de Jair Bolsonaro na Organização das Nações Unidas (ONU), segundo o qual, os indígenas seriam responsáveis pelas queimadas. Em resposta, Eliana Xunakalo, representante da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso, salientou: “os povos indígenas não são responsáveis pelas queimadas no pantanal. [...] Precisamos que os povos indígenas sejam ouvidos e precisamos que as políticas cheguem a esses povos de fato”. Nesse sentido, também foi a fala de Valdevino Gonçalves Cardoso, da etnia Terena, acrescentando, que “acredita que a destruição dos povos indígenas ‘é arquitetada no gabinete presidencial’ e que a estrutura do governo está sendo utilizada para isso” (Haje, 2020).

Estes são apenas episódios dentro de um nefasto espectro de embates que vêm sendo defrontados pelos povos indígenas em face das políticas do governo, como se já não bastassem suas lutas travadas há séculos pela conquista de território, dignidade e cidadania. É mister que não se olvide da importância destes povos como agentes da preservação e conservação dos ecossistemas nacionais, uma vez que exercem a sua cidadania condicionados à uma relação harmônica com o meio ambiente em que vivem, além de reconhecerem que esta relação, e todos os seres vivos, são igualmente importantes. Vale dizer, os indígenas são atores essenciais, não só ao patrimônio cultural do país, mas sobretudo à preservação do meio ambiente, assim como suas terras, “para além de materializar o reconhecimento de um direito originário, [...] são, comprovadamente, as áreas que mais protegem as matas e os seus ricos ecossistemas” (CIMI, 2019).

Por fim, corrobora-se a atual conjuntura política que pesa sobre os povos indígenas brasileiros, com a contundente afirmação do relatório de 2019 sobre a violência contra os povos indígenas, segundo o qual:

o aumento vertiginoso de invasões, grilagens, incêndios criminosos, loteamentos ilegais, ameaças, conflitos, descasos no atendimento à saúde e à educação, criminalização, dentre outras violações a seus direitos, evidencia que os indígenas enfrentam um dos momentos históricos mais desafiadores desde a invasão dos colonizadores (CIMI, 2019, p. 4).

Vejamos na sequência, o debate do racismo ambiental e sua articulação na Teoria Crítica dos Direitos Humanos para os povos indígenas do Brasil.

RACISMO AMBIENTAL E O DIREITO VIVO DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS

Esta seção abordará as injustiças ambientais sofridas pelos povos tradicionais brasileiros, dentre os quais compreendem povos indígenas, quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos, quebradeiras de coco, pescadores artesanais, dentre outros,6 destinando-se tratamento especial aos indígenas brasileiros, que são os sujeitos da análise deste artigo.

A estas injustiças ambientais enfrentadas por estes povos, ainda que não se caracterizem como ações de natureza racial, mas causam um impacto racial por serem opostas a grupos identitários vulneráveis (étnicos ou não) sobre os quais o capitalismo gera mais ônus e ferocidade, atribuiu-se a denominação de racismo ambiental (Pacheco, 2008). Ou seja, constituem violências que expulsam estes grupos dos seus territórios, geralmente em prol de interesses financeiros. Vale dizer, caracteriza uma guerra entre os excluídos e o capital.

Tal processo denominamos como “matriz colonial de poder”, que instaurou uma racionalidade de poder, ser e saber a partir do controle da sociedade, economia, raça e trabalho, cujo desdobramento histórico alicerçou um paradigma civilizacional com base na apropriação mercantil da natureza (Quijano, 2013). A lógica perversa do ambientalismo liberalizado (Acselrad, 2005), indica que a racionalidade econômica que impera é a da desigualdade ambiental, ou seja, equivale a apontar uma espécie de otimização da economia da vida ou da morte para populações indígenas e tradicionais. Assim, a disputa territorial se dá em torno aos recursos naturais e a oferta de espaços a degradar e espoliar, assim como de áreas de fronteira com vistas a expropriar grupos sociais. Trata-se de uma matriz civilizatória, baseada na exclusão de povos originários e tradicionais, onde a desigualdade ambiental mostra-se parte integrante do capitalismo liberalizado (Acselrad, 2005).

Com efeito, o estudo parte da ideia de que tais violências e expulsões praticadas contra povos identitários, vulneráveis, que padecem das mazelas do capitalismo selvagem, constituem violações aos direitos humanos, porquanto afetam sobremaneira os seus modos de vida e dignidade. Isso posto, concebe-se que o marco teórico mais pragmático a explicar e a responder tal realidade, mediante o fornecimento de elementos categóricos hábeis a dar efetividade aos direitos humanos daqueles sujeitos, é a Teoria Crítica dos Direitos Humanos (TCDH), elaborada pelo jurista espanhol, Herrera Flores (2009) . O autor dedicou-se ao estudo dos direitos humanos sob uma perspectiva crítica, sugerindo a sua reinvenção para que pudessem, de fato, assumir um papel contra-hegemônico à lógica da expansão colonial, e suplantar os diferentes tipos de injustiças e violências causadas pela matriz ocidental eurocêntrica e neoliberal. Segundo os postulados da TCDH, são os movimentos sociais e as lutas travadas pela sociedade que constituem as fontes dos direitos humanos, afirmando que estes são produtos culturais e que, por isso, para serem efetivos, suas construções devem partir de um olhar “desde abajo” (Santos y Garavito, 2007); ou ainda, conforme Wolkmer (2002) , são direitos produzidos pela sociedade, seguindo a construção teórica proposta por Ehrlich (1986) em sua obra, Fundamentos da Sociologia do Direito,7 para o qual as normas têm suas origens na sociedade, ao que ele denomina de “direito vivo”. Importa ressaltar que desta base teórica crítica também se fundamentou o pensamento decolonial latino-americano, que a luz desta racionalidade trouxe seus aportes teóricos para a realidade dos povos latino-americanos, acrescentando as categorias do gênero e da raça em seus estudos. A Escola Decolonial, por conseguinte, também será base para este escorço teórico.

Portanto, para o desenvolvimento deste contexto e estudo dos conceitos a ele relacionados, esta subseção será subdividida em dois tópicos, sendo o primeiro dedicado à categoria do racismo ambiental, especialmente sob as contribuições de Pacheco (2010) , e analisado enquanto violência enfrentada pelos povos indígenas brasileiros; e o segundo abordará os princípios e conceitos que constituem a Teoria Crítica dos Direitos Humanos, escolhida como matriz teórica a atender a violação aos direitos humanos dos povos indígenas.

O RACISMO AMBIENTAL SOFRIDO PELOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS

A instauração e hegemonia das concepções neoliberais que passaram a orientar as políticas econômicas e sociais dos Estados a partir da década de noventa, determinaram o afastamento do Estado na administração da política econômica para deixá-la aos alvedrios do mercado, provocando, assim, um esvaziamento da democracia (Ivo, 2001).

Sob este cenário real e atual da América Latina, e particularmente do Brasil, a indagação que se formula é a de como sustentar o regime democrático em uma realidade em que o Brasil não tem controle sobre a conflitividade social que extrapola os marcos do direito, da força corretiva das leis, da igualdade social e política, da convivência pacífica, e fragiliza as instituições comprometidas com as políticas sociais de Estado (não meramente compensatórias). Ou seja, a abertura desta seção com tal questionamento tem por finalidade chamar ao debate àquilo que Sassen (2016) já sinalizava como um processo de descontentamento com o funcionamento da democracia perante a fórmula da agudização da pobreza e da exclusão social versus os mecanismos extremos de acumulação de riqueza operados entre o Estado e os interesses do mercado nacional e internacional. Processo este que provoca o que se pretende denominar de modos complexos de expulsão (Sassen, 2016), como uma das principais causas do que se tratará como racismo ambiental; senão a principal.

A situação estrutural contemporânea de dependência do Brasil, sobretudo, ao mercado interno e internacional, reafirma a herança das suas desigualdades sociais, políticas e econômicas, assim como fragiliza a sua condição soberana e avilta a resistência democrática dos seus povos, especialmente daqueles em situação de vulnerabilidade e exclusão. E essa realidade perpetua-se hodiernamente, o que também demostra, entre outros, a crise de governabilidade do país a partir da sua incapacidade (e/ou do desinteresse) de atender as demandas sociais em provimento dos interesses do capital financeiro internacional. Vale dizer, principalmente a partir da década de noventa, o ritmo acelerado em que se operam os mecanismos dos acordos negociais entre os atores do mercado externo e o Estado, valida e aprofunda a conflitividade histórica entre mercado e sociedade; mas agora, em um contexto de globalização econômica como palco de acumulação internacional sem fronteiras. Tais acordos sobrepujam-se aos interesses do povo que padece à classe baixa e aos que enrobustecem os índices de miserabilidade nacional,8 muitos sendo expulsos dos seus territórios, para dar lugar aos conglomerados mercantis, a exemplo dos povos tradicionais, em especial, os indígenas.

Ao dedicar-se sobre a temática das expulsões ocasionadas à população marginalizada e à biosfera, em razão da prevalência dos interesses do mercado, Sassen (2016) tensiona o aprofundamento das investigações sobre o que está por trás destas relações de brutalidade ao ser humano e à natureza, invisíveis e mais complexas às definições elaboradas pelo senso comum, e que causam uma concentração aguda de riquezas. No centro destas investigações, está a ideia nuclear de que existem formações predatórias, as quais consistem “na combinação de elites e de capacidades sistêmicas na qual o mercado financeiro é um facilitador fundamental, que empurra na direção de uma concentração aguda” (Sassen, 2016, p. 22). Isto é, a autora defende que pessoas ricas e empresas multinacionais, sozinhos, não conseguiriam chegar a concentrações tão extremas da riqueza mundial sem contar com uma ajuda sistêmica, isto é, uma interação complexa dos atores com sistemas reorientados a possibilitar a concentração extrema, e nesse sentido, explica que

essas capacidades sistêmicas são uma combinação variável de inovações técnicas, de mercado e finanças, mais a permissão governamental. Elas contêm enormes capacidades de intermediação que agem como uma espécie de névoa, reduzindo nossa capacidade de enxergar o que está acontecendo (Sassen, 2016, p. 23 ).

Ou seja, trata-se do que foi denominado de relações complexas de expulsões brutais9 aos indivíduos pobres e à biosfera, as quais agudizam os níveis de desigualdade social e econômica e a pobreza extrema.

Ao abordar este tema, intenta-se, pois, tornar sensível e invocar à re- flexão as destruições causadas à natureza e os despejos realizados sobre aqueles que residem e/ou trabalham em zonas afetas à exploração de minério e à implantação de empresas que determinam relevante impacto ambiental na região onde irão se instalar. Assim como à restrição causada às práticas existenciais e ao exercício da cidadania dos povos indígenas ameaçados em suas terras em nome do tão aplaudido “desenvolvimentismo” (Sassen, 2016) de ordem neoliberal.

E é nessa corrente que Acselrad, Bezerra e Mello (2009) , ao explorarem a categoria “justiça ambiental”,10 preocupam-se com as perversidades causadas pelos setores dominantes da economia e da política, sob o manto dos princípios liberais, principalmente no início dos anos noventa, período em que se iniciou um “movimento de regressão social, com a quebra das condições de aplicação das regulações fossem elas sociais, políticas ou ambientais” (Acselrad, Bezerra y Mello, (2009, pp. 133-134), como mecanismos para naturalizar as desigualdades, dentre outros fins.

Dentre os exemplos brasileiros de casos de “expulsão” e/ou disputa, ou ainda, das ditas “perversidades” (Acselrad, Bezerra y Mello, 2009), destaca-se o emblemático evento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima, quando a União iniciou, através da Funai, em 1992, a realização do relatório de identificação da terra para fins de demarcação. Ressalta-se que esta área abriga 194 comunidades com uma população de cerca de 19 mil índios dos povos Macuxi, Taurepang, Patamona, Ingaricó e Wapichana, além de povos não-índios. Assim, em 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que homologou a Portaria nº 534 do Ministério da Justiça, que demarcou a área.

No entanto, este fato desencadeou uma disputa entre a população local e os orizicultores vindos do sul do país, os quais iniciaram o ajuizamento de inúmeras ações judiciais perante o Supremo Tribunal Federal (STF) visando ao impedimento da conclusão da reserva, sob a alegação de terem títulos que lhes garantem a posse das terras. Neste embate, o Estado de Roraima posicionou-se a favor dos produtores rurais, sob a justificativa de que a retirada deles da área em questão afetaria seriamente a economia do Estado, pois a cultura representaria em torno de 25 % de seu Produto Interno Bruto. Também alegou que, o próprio Estado, por ser o maior produtor de arroz da região norte do Brasil, contribuiria tal qual, para o abastecimento dos Estados vizinhos com o cereal. Outro argumento seria de que 46% da área de Roraima são reservas indígenas e, 26 % áreas de conservação, o que deixaria Roraima sem espaço para desenvolver-se economicamente.11

Ao abordar-se estas expulsões, centramo-nos em sequência, à relação constituída entre estes povos tradicionais e os seus territórios, uma vez que os termos que os identificam como tais referem-se precisamente aos vínculos com o seu ambiente (Leroy y Meirelles, 2013). Por “territórios tradicionais” acolhemos a definição constante do inciso II, do art. 3º, do Decreto nº 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, segundo o qual:

II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectiva- mente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.

Esta definição de território para os indígenas, portanto, reafirma o que Gersem Luciano (2006) , -pesquisador e membro indígena do povo Baniwa- já havia elaborado sobre o seu significado. Segundo ele, território possui uma concepção que transcende o seu aspecto físico e geográfico, uma vez que os povos indígenas “têm conservado uma visão comunitária e sagrada da natureza”.12 Pode-se afirmar, destarte, que a relação dos povos indígenas com seus territórios constitui um vínculo essencial à reprodução da sua cultura, costumes e tradições; vale dizer, dos seus modos de vida, condicionando-os, portanto, ao gozo dos seus direitos fundamentais. Em vista disto, defende-se que políticas e ações do Estado que proporcionem o estabelecimento e/ou a permanência deste vínculo aos povos indígenas, constituem-se como pressupostos ao exercício de suas cidadanias.

Por outro lado, ao descaso, à injustiça e às violências praticadas contra os povos tradicionais, em razão de suas diferenças étnicas, ou simplesmente, pela sua cor, denomina-se “racismo ambiental”, filiando-se à definição de Pacheco (2008) , para a qual o racismo ambiental13 opera seus efeitos quando estas moléstias recaem sobre os indivíduos que, dentre outros, caracterizam-se pela condição de vulnerabilidade, expulsando-os de suas terras14 e/ou territórios.

Tais ações inconvenientes e perigosas estão associadas à imposição do capital por grandes corporações empresariais que têm como corolário, a destruição da natureza e a apropriação dos territórios, sem olvidar que muitas destas são conquistadas mediante pilhagens das terras. A destruição da natureza pode claramente ser verificada a partir da introdução de monoculturas e demais atividades ligadas ao agrohidronegócio, consolidando-se territorialmente com as plantações de cana-de-açúcar, soja, eucaliptos etc. E estas expansões custam caro, pois avançam às expensas de ações entre trabalhadores, povos tradicionais e capital, ou seja, entre “as fissuras intercapital reveladas pela necessidade de terras planas, férteis e com disponibilidade hídrica, portanto aptas à mecanização, e entre os próprios trabalhadores, mediante as ocupações de terra e a ações no âmbito da luta pela terra” (Thomas, 2010, p. 92). A dicotomia cidadania-capital opera em sua forma mais aviltante e opressora, provocando, outrossim, a desestabilização das atividades nas terras tradicionalmente ocupadas, que “podem fazer com que o desenvolvimento de uma atividade comprometa a possibilidade de outras atividades se manterem” (Acselrad, Bezerra & Mello, 2009, p. 74 ), assim como das pessoas que ali nasceram, se desenvolveram, e permaneceram para sobreviver, trabalhar e reproduzir sua cultura e modos de vida.

Em vista disso, é mister a reconstrução das subjetividades sociais, cujas compreensões naturalizem que os povos indígenas, assim como os demais povos tradicionais, têm seus direitos garantidos se, e em incolumidade territorial, convencidos de que eles se constituem a partir de uma relação peculiar com a natureza e seus elementos, e não como “meros guardiões dos ecossistemas” (Leroy y Meirelles, 2013, p. 119 ). Vale dizer, é naturalizar as concepções de que suas formas de apropriação exprimem,

um conjunto de relações potencializadas pelas formas ancestrais de apropriação comunitária dos sistemas ambientais com seus “códigos”, informações e “encantados” materializados no extrativismo, na produção de remédios, moradia, produção de alimento nas florestas, matas, roçados, fundos de pastos, vazantes, integrados aos saberes populares conectados aos rios, lagoas e o mar. [...]. Território apresenta múltiplos sentidos, dentre os quais está o “espaço de produção e de reprodução” (Leroy y Meirelles, 2013, p. 119 ).

Por conseguinte, todas as ações humanas ou institucionais, projetos sociais ou políticos, acordos, contratos que visem impedir a expropriação territorial por estes povos que, em uma sociedade desigual, social e economicamente, sofrem a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento, constituem o que a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) define como, “injustiça ambiental”.15 O Mapa dos Conflitos, estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz, capitaneado pela professora, Tânia Pacheco (2010) , expõe que os fatores etnicidade ou cor destes povos influenciam diretamente na gravidade das injustiças que sofrem, o que denuncia a prática do racismo ambiental nestes casos. O estudo desenvolvido no mapa dos conflitos permitiu, dentre outras constatações, a exposição das mazelas socioambientais a partir dos “sujeitos negados” (Dussel, 1992), o que aqui se pondera como o seu maior quilate.

Povos indígenas, quilombolas, e demais comunidades tradicionais, além de terem que enfrentar a luta da reterritorialização, ao mesmo tempo, necessitam resistir nos campos da supremacia hegemônica dos não indígenas e dos brancos, em busca de afirmação e reconhecimento, uma vez que, “o conceito de territorialidade tem se colocado como um elemento central na construção política da identidade dos sujeitos” (Acselrad, 2010, p. 10 ). E nesse sentido, destaca-se, que neste embate os povos tradicionais ainda carregam o estigma de serem os óbices do desenvolvimento, uma vez que lhes é imputado o ônus de destruidores da natureza, o que denota uma aviltante inversão, não somente de papeis, mas principalmente de valores, reforçando, destarte, a necessidade urgente de reconstrução das subjetividades humanas anteriormente proposta.

Nesse sentido, e à guisa de conclusão, é que se exalta a eloquência dos autores, Leroy e Meirelles (2013) :

Que contradições o Brasil está vivendo? As poderosas coalizões, que buscam eliminar do mapa ou reduzir a reservas (as menores possíveis) povos indígenas e comunidades tradicionais, parecem considerá-los elementos sobreviventes do passado, arcaicos obstáculos ao progresso. O crescimento econômico, na perspectiva dessa aliança, se sobrepõe aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Em nome dele, passa-se por cima dos direitos fundamentais: à liberdade, à opinião, à vida (p. 129).

Na seção a seguir, será exposta, portanto, a base teórica escolhida neste estudo para fornecer os elementos epistemológicos hábeis a dialogar com essa inversão de papéis e de valores que recaem sobre os povos tradicionais, particularmente sobre os indígenas, e propor alternativas a minimizar, senão extirpar estes danos e o racismo ambiental que recaem sobre estes sujeitos.

A TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS COMO ALICERCE PARA A REALIZAÇÃO DO DIREITO VIVO DOS POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS

O contexto apresentado neste artigo destacou o racismo ambiental sofrido pelos povos tradicionais como um dos eventos decorrentes da atual conjuntura ambiental do Brasil ante ao desmonte das políticas ambientais verificadas, sobretudo, no atual governo de Jair Bolsonaro. Destes povos, os indígenas foram destacados como os sujeitos de análise do estudo, principalmente devido à reincidência e atualidade das suas lutas em prol da manutenção e da demarcação de TIs contra os agentes públicos e os grandes conglomerados mercantis.

Ao tratar os povos indígenas como “sujeitos negados”, referimo-nos ao sujeito vivo, tal qual elaborado por Dussel (1992) , por se tratar de um “sujeito corporal, pelo qual a satisfação da necessidade se constitui como um feito radical”. Ou seja, “um sujeito que é parte da fundamentação dos direitos humanos a partir do pensamento da libertação” (Martínez, 2015, p. 105 ). Concebemo-nos, destarte, o sujeito vivo como objeto que aspira a realização do direito vivo de Ehrlich (1986) , pois ele se posiciona como um referente crítico à satisfação das necessidades das vítimas, dos oprimidos e dos empobrecidos, enunciando-se como a possibilidade da produção, reprodução, e desenvolvimento da vida dos sujeitos reais do sistema.

Este sujeito vivo, operante de um direito vivo, é o sujeito sobre o qual a Teoria Crítica dos Direitos Humanos foi construída, cuja viga mestra é a de que o direito nasce do processo de lutas, dos movimentos sociais, das necessidades reais pautadas por um olhar atento às várias dimensões atinentes ao sujeito de direitos, como por exemplo, culturais, sociais e econômicas.

Alicerçada sob o pressuposto de que a sociedade é plural, e que a constituição da república é um marco de correlação de forças e de lutas sociais em um determinado momento histórico do desenvolvimento da sociedade de um Estado, que se legitima pela coexistência de concepções divergentes e participativas (Wolkmer, 2013), o direito deve refletir essa pluralidade de valores, culturas, saberes e práticas que compõem e ordenam o Estado, e ser validado, por conseguinte, a partir desta diversidade de fontes participativas e estruturantes. Ora, “não é possível reduzir-se toda e qualquer constituição ao mero formalismo normativo ou ao reflexo hierárquico de um ordena- mento jurídico estatal” (Wolkmer, 2013, pp. 19-20); haja vista que é o povo o titular do poder de elaboração da constituição do Estado, assim como o representante do sincretismo social.

Logo, o direito, por sua vez, deve atender a todas emanações que convergem ao resultado sincrético, a partir da validação e efetivação dos diferentes anseios, pleitos e saberes dos sujeitos que os representam. Trata-se, destarte, da consagração do pluralismo constitucional, tal qual procederam, por exemplo, os países latino-americanos do Equador e da Bolívia, em suas Cartas Federais de 2008 e 2009, respectivamente, as quais, dentre outrem, incluíram o direito dos povos indígenas como prioridade política do país. Com a consagração do pluralismo constitucional, estes países reconheceram que a norma jurídica não nasce exclusivamente do poder estatal, mas advém e está centrada na força de um complexo sistema de poderes fluído dos diversos sujeitos e coletividades sociais.

As injustiças ocasionadas pelo mercado, e decorrentes do consumo indiscriminado e desigual, o aumento desmesurado da violência contra os povos subalternizados e vulneráveis, principalmente, a subjugação do conhecimento e das culturas não eurocêntricas, impõe-nos pensar os direitos humanos “desde uma perspectiva nova, integradora, crítica e contextualizada em práticas sociais emancipadoras” (Herrera, 2009, p. 25 ). Assim, compete à epistemologia crítica sobre os direitos humanos colocar frases às práticas sociais de indivíduos e grupos que lutam para que esses fatos possam ser transformados em outros mais justos, equilibrados e igualitários (Herrera, 2009).

Ou seja, para a TCDH importa saber o que são, por que e para que servem os direitos humanos, chamando a atenção para a importância da distinção entre o que o fenômeno é, e o que ele significa; tensionando, destarte, a teoria tradicional e hegemônica, a qual “confunde os planos da realidade e das razões na mesma Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948” (Herrera, 2009, p. 26 ). Vale dizer, tal vertente teórica apresenta-se como uma racionalidade contra-hegemônica à ordem universal de que apenas direitos instituídos em atos normativos conferem direitos humanos a todos indistintamente, desprezando o direito à diferença cultural. Segundo a teoria universalista, os direitos humanos são produtos de direitos, e não de realidades materiais e concretas dos povos que lutam e buscam o acesso a bens que lhes proporcionem uma vida digna e menos desigual. Noutro passo, para a TCDH, os direitos humanos “mais que direitos ‘propriamente ditos’, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida” (Herrera, 2009, p. 28).

Os direitos humanos envoltos pela matriz crítica devem ser pensados a partir de uma concretude que não cabe no discurso da modernidade, posto que visa contundir com a episteme individualista, normativista e abstrata construída por esta concepção filosófica (Sanchez, 2018). Ora, vive-se em um novo contexto, os principais eventos bélicos do Século XX, I e II Guerras Mundiais, e a Guerra Fria, que condicionaram a comunidade internacional representada pela ONU à elaboração dos textos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, assim como dos Pactos Internacionais sobre direitos civis e políticos, e sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, ambos de 1966, foram sucedidos por outros eventos de ordem política, econômica e cultural, os quais podem ser demarcados pela queda do muro de Berlim, na década de oitenta, a qual simbolizou a autoproclamação dos vencedores da Guerra Fria.

Esta nova era caracterizou-se pela flexibilização das medidas interventoras do Estado na economia, o qual cedeu espaço às regras impostas pelo mercado internacional, sobretudo mediante a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio (ONC) sobre os países. Em razão disso, a efetividade dos direitos humanos tornou-se onerosa aos Estados, haja vista que

assistimos durante as últimas décadas à substituição dos direitos obtidos [...] por aquilo que agora se denominam “liberdades” [...]. em definitivo, entramos num contexto em que a extensão e a generalização do mercado [...] fazem com que os direitos comecem a ser considerados “custos sociais” das empresas, que devem suprimi-los em nome da competitividade (Herrera, 2009, pp. 24-25 ).

Como corolário deste ônus, os direitos humanos padecem de problemas fundamentais, dentre os quais destaca-se o hiato entre a teoria e a prática, a distância estabelecida entre o que é preconizado e o que é, de fato, realizado. De acordo com Sánchez (2018), este “não é um simples problema lógico nem de um ajuste teórico-formal, mas principalmente sócio-material, [...] porque há muitos seres humanos na Terra que padecem sofrimentos, injustiças, e consequências nefastas por essa lacuna.16

Isto é, segundo o autor, este saber dominante que hasteia a bandeira de baluarte da democracia por se proclamar compositor dos direitos humanos universais, assenta-se em um abismo sobre um discurso de inclusões abstratas, amalgamado em teorias, normas jurídicas e instituições que os reconhecem, mas subordinado a um terreno de relações e estruturas de exclusões específicas que são naturalizadas, justificadas e toleradas.

Ante a este contexto é que os povos indígenas sofrem os abismos entre o dever ser o direito, e a realidade, pois, ainda que sejam titulares de direitos e garantias fundamentais de envergadura constitucional, estas normas ainda se constituem plataformas para se obter direitos, cujas concretudes ainda estão ao alvedrio de políticas públicas a serem executadas pelo Estado, as quais, ante à atual conjuntura ambiental do Brasil, estão distantes de serem realizadas, tendo como principal obstáculo para a aproximação entre o abstrato e o real para o direito vivo dos povos indígenas.

Com efeito, o desafio que assiste estes povos consiste na busca por meios que representem os seus direitos humanos para além do mero direito de ter a capacidade de poder exercê-los; mas para que a finalidade destes lhes seja factual; isto é, que representem, sine qua non, o devido acesso aos bens que lhes garantam vida digna de acordo com os seus costumes e necessidades particulares. Vale dizer, um “modo não neutro” de alcance a determinados bens da vida, mediante a criação de políticas públicas por parte do Estado que possibilitem a construção de condições materiais e imateriais necessárias para poderem viver (Herrera, 2009).

Não há que se olvidar que a antiga política indigenista no Brasil sempre se alinhou à extinção cultural dos povos indígenas mediante regramentos de ordem assimilacionista, a exemplo do Estatuto do Índio de 1973. Assim sendo, a garantia de seus direitos, sobretudo quanto à demarcação e registro de TIs, seria menos onerosa ao Estado, posto que favoreceria o êxodo rural dos seus membros em busca de vida “mais fácil”, tal qual concedida ao não índio, inclusive quanto ao acesso de bens e serviços relacionados ao exercício da cidadania.

Somada a esta negação cultural e ao direito à diferença, Carlos Frederico Marés (2018) rememora ainda a dificuldade da aquisição coletiva de direitos pelos povos indígenas brasileiros, em que pese o reconhecimento legal de sua capacidade de serem sujeitos de direitos, mas individualmente. A importância desta constatação reside no fato de que os sujeitos coletivos são titulares de direitos, assim como os sindicatos e os partidos políticos, por exemplo e, em razão disso, podem ter patrimônio próprio e, enquanto coletividade reconhecida institucionalmente, podem exercer este direito de forma mais combativa, por conseguinte, mais eficaz.

Particularmente, quanto aos indígenas, o reconhecimento do direito coletivo faz-se imperioso, sobretudo quanto à luta pela conquista de territórios, e pelo direito à autodeterminação, ou seja, “os direitos coletivos dos povos que são direito a um governo próprio, aos recursos naturais, ao território, à própria cultura, à liberdade, se encerram no confronto com a soberania do Estado” (Souza, 2018, p. 170 ). Direitos esses que se traduzem nas lutas políticas destes povos, posto que não reconhecidos no campo jurídico, isto é, de um direito vivo que se acende na força da coletividade, no anseio dos movimentos indígenas pelo acolhimento de pleitos que carecem em uma (ou mais) determinada realidade aldeada. Em síntese, o argumento de Marés (2018) ao encontro da importância do reconhecimento da aquisição coletiva de direitos pelos povos indígenas é no sentido de que o direito coletivo destes não se traduz em direitos individuais, “porque sua existência depende da coletividade como a cultura, o idioma, a religião e o território” (Souza, 2018, p. 172).

Existem direitos coletivos que, excepcionalmente, têm como titulares apenas as minorias étnicas e os povos, não pertencendo a todos os indivíduos da sociedade indistintamente. Trata-se de direitos que pertencem a todos os membros de uma determinada comunidade, por isso, definidos como coletivos, pois configuram-se como direitos que pertencem a um grupo, sem pertencer a ninguém em especial, a exemplo dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas, aos quais ainda pode ser acrescentado o direito à autodeterminação.

No que concerne aos direitos territoriais dos povos indígenas, por exemplo, vale destacar que cada povo indígena tem uma concepção própria de território, lastreada pela ideia do local onde eles podem desenvolver suas for- mas de vida e estabelecer suas relações com a natureza. Ou seja, território para os indígenas detém uma acepção ampliada à de terra, um sentido cosmológico que o eleva enquanto o todo indivisível que une o ser humano à terra e à natureza, o ambiente que permite o Buen Vivir (Acosta, 2016) de seus membros.

O Buen Vivir, ou Bem Viver sustenta a proposta de viver-se em harmonia com a natureza, abrindo portas para a contrução de visões alternativas de vida (Acosta, 2016). Suas construções estão ao encontro do reconhecimento e da valorização de outros saberes e práticas, permitindo a reinterpretação social da natureza a partir de imaginários culturais. Trata-se, portanto, da construção de uma nova racionalidade social, política, econômica e cultural insdispensável para a transformação dos indivíduos e das comunidades (Acosta y Brand, 2018). Constitui-se como um conjunto de valores plasmados na cosmologia indígena, o que lhe permite configurar-se como um fundamento para o reconhecimento pelo Estado do direito à terra e ao território aos povos indígenas, posto que seus conceitos estão ao encontro da reconstrução de processos autônomos de vida em seus espaços territoriais, porque muitos destes povos “definem e organizam as aldeias em seus territórios segundo seus sistemas sociais, econômicos, jurídicos e religiosos” (Luciano, 2006, p. 93 ).

Mister ressaltar que o Bem Viver, que ganhou mais adeptos nos países andinos, foi incorporado nas Constituições Federais da Bolívia e do Equador (promulgadas em 2009 e 2008, respectivamente), amparando a criação de Estados plurinacionais nestes países, a autonomia dos povos indígenas e direitos coletivos, entre outros avanços. A Constituição equatoriana, particularmente, com base no Bem Viver, reconheceu os Direitos da Natureza - Pacha Mama. Nesse sentido, Enzo Bello (2018) demonstra como foram previstos no texto constitucional equatoriano os direitos do Bem Viver” e “dos povos”, in verbis:

No seu título II prevê um extenso e variado catálogo de direitos de cidadania, dividido em nove capítulos: (i) princípios de aplicação dos direitos; (ii) dos direitos do “bem viver” (Sumak Kawsay); (iii) direitos das pessoas e grupos de atenção prioritária; (iv) direitos das comunidades, povos e nacionalidades; (v) direitos de participação; (vi) direitos de liberdade; (vii) direitos da natureza; (viii) direitos de proteção; e (ix) responsabilidades (Bello, 2018, p. 121 , grifado).

No caso da Constituição do Equador, percebe-se um protagonismo dos povos no sentido da sua inclusão igualitária no sistema social, jurídico e político do país. Destarte, vislumbra-se a contemplação das minorias, o abarcamento da diversidade cultural como um direito de cidadania, e uma ampliação dos direitos de cidadania. Assim como também é perceptível, no Equador e na Bolívia, como estes países latino-americanos adotaram uma racionalidade ambiental necessária, para que se “desconstrua a irracionalidade econômica por meio da reapropriação da Natureza e da retorritorialização das culturas” (Acosta y Brand, 2018, pp. 136-137 ). Ou seja, defenderam uma transformação nas subjetividades humanas, procurando romper com o conceito de acumulação perpétua pregada pelo capitalismo, para então, “ceder espaço a outras aproximações, sustentadas nos Direitos da Natureza e, sempre, nos Direitos Humanos” (Acosta y Brand, 2018, p. 137).

As propostas do Bem Viver não sugerem o regresso ao passado ou a idealização de modos de vida indígenas ou comunitários, mas pretendem, “reconhecer ou respeitar os múltiplos conhecimentos, experiências e práticas de vida existentes na região. Na Bolívia, por exemplo, os ayllus revelam-se unidades de organização social fundamentais para a convivência nas comunidades indígenas” (Acosta y Brand, 2018, p. 143 ), mostrando-se apto a fundamentar, portanto, o reconhecimento ao direito à autodeterminação dos povos indígenas, enquanto direito vivo que há muito é reivindicado nos seus movimentos de luta no Brasil.

Com efeito, ressalta-se que os conceitos do Bem Viver estão sendo requisitados para fundamentar as lutas por territórios como uma alternativa para organizar resistências, sobretudo na América Latina, que está vivendo um processo de lutas por terra e território em favor do ser humano e da natureza. No caso do Brasil, um dos exemplos emblemáticos foram os protestos contra a Usina de Belo Monte, no Estado do Pará, cujos pleitos também estavam a favor dos povos indígenas que viviam na região. Ou seja, busca-se como referência paradigmática para o Brasil, uma ressignificação no âmbito da politização da cultura, tal como o foi arquitetada pelos indígenas andinos, ao encontro da libertação de suas comunidades e do descortinar de suas vozes, que antes ficavam limitadas ao comunitário, para ecoar nos poderes do Estado.

É a partir de uma produção teórico-filosófica de matriz latino-americana, aqui contemplada pela qualificada Filosofia da Libertação elaborada por Dussel (1992) , que se pretende debater o saber hegemônico eurocêntrico, para então explicar e compreender uma história, realidades e saberes que foram menosprezados, subjugados, destruídos em favor da imperiosidadedas elites capitalistas. In casu, invoca-se a necessidade de contemplação dos povos indígenas brasileiros, visando-se à construção de um saber que se refere ao seu direito à diferença negado, o qual, fundamentado na Teoria Crítica dos Direitos Humanos, pretende tornar vivos os pleitos dos seus movimentos sociais de luta para a conquista de territórios e de outros direitos que lhes garantam o efetivo exercício da cidadania. Noutras linhas, pretende-se, mediante o estudo crítico, o alcance da realidade fática e jurídica do objeto em estudo, especialmente na dimensão da práxis histórica, de um olhar desde abajo dos povos indígenas brasileiros, a fim de conceder-lhes a finalidade concreta dos direitos humanos, o para quê destes direitos.

Ora, a história do Brasil, sem considerar ainda o contexto latino-americano sanguinário contra os povos indígenas desde 1492, mostra o maniqueísmo entre o país e os índios desde 1500: à medida que um cresce, o outro perece. Nossa contribuição teórica busca o enlace desta dicotomia.

Finalizamos nosso artigo, apontando as reflexões finais que assinalam que o território brasileiro é indígena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O TERRITÓRIO INDÍGENA É BRASILEIRO...

Celso Luiz Ludwig, ao prefaciar O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito (2018) , destacou, dentre outros aspectos da obra, a metodologia utilizada por Souza Filho para narrar em seu livro como cada povo indígena entrevistado percebe a sua relação com o Estado. Concebemos que a transcrição de alguns trechos destes sentimentos e concepções, assim como fez Ludwig, talvez represente de forma mais viva e concreta as últimas considerações deste estudo, do que qualquer análise formal e/ou científica que se pretendesse elaborar acerca do tema.

E nesse sentido, relatou as vivências de um dos tuxauas, as quais Souza Filho contemplou na seção: “Aprendendo com os Macuxi”, que, ao ser questionado sobre o seu direito e sua relação com o Estado, respondeu:

Essa Constituição é coisa boa, está certo o que os brancos estão fazendo. Nós também temos que fazer uma Constituição para nós, para deixar escrito e sabido quem é que pode entrar em nossas terras e quem tem que ficar de fora, quem é que diz onde podemos construir nossas casas e fazer nossas roças e quando são nossas festas (Ludwig, 2018, p 11 ).

São esses “detalhes do mundo empírico” (Ludwig, 2018, p. 10 ) que concebemos como simbólicos de tudo o que está por trás deste trabalho. São essas visões de mundo, esses olhares de baixo para cima para saber o que, de fato, são direitos humanos para os povos indígenas, a partir da análise real e concreta do que necessitam para viver com dignidade, que deve demarcar o campo de ação dos agentes federativos enquanto operadores de políticas focalizadas na efetivação dos direitos destes seres humanos. Os “brancos” não têm legitimidade para dizer o que é e o que não é direito dos povos indígenas, sem que haja o devido exercício da alteridade, da análise empírica, do olhar e da escuta atenta às comunidades, as quais, são as únicas legitimadas a darem voz para o que carecem. Logo, a prática social efetivamente concretizada que permita o encontro de diferentes mundos (Ludwig, 2018) é que se converterá no palco dialógico defendido pela TCDH capaz de proporcionar a realização, ou melhor, a “reinvenção dos direitos humanos” (Herrera, 2009) destes povos.

O estudo, por sua vez, está urgido na necessidade de contribuir para o rompimento das práticas de negação às minorias étnicas que se têm estabelecido pelo atual governo federal brasileiro, representado aqui não somente pelos seus agentes públicos, mas também pelas oligarquias e pelos conglomerados mercantis que com aquele aliam-se na execução de projetos que atendem essencialmente à parcela mais favorecida da sociedade e, sobretudo, ao capital.

Por conseguinte, as práticas destrutivas analisadas por este trabalho referiram-se, especialmente, ao desmonte das políticas ambientais causadas principalmente a partir de 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil e, desde então, articulou uma política ambiental juntamente com os seus gestores representada por eventos que revelaram o aparelhamento e o desmonte dos principais órgãos vinculados ao MMA, pelo que cogitaram, dentre outros, a própria extinção deste ministério, além de terem alinhado estratégias antidiplomáticas, a exemplo da crise com a Alemanha e Noruega, principais doadores do Fundo Amazônia, manifestado a preponderância de ideais capitalistas para orientar os processos de demarcação e registro de TIs, dentre outros vários eventos denunciantes do descalabro político e ambiental que assola o Brasil, o que reflete, inexoravelmente, em questões sociais e econômicas, principalmente dos que estão em situação de vulnerabilidade, a exemplo dos indígenas.

São tais situações de vulnerabilidade e injustiças que subsumimos na definição de racismo ambiental elaborada por Pacheco (2008; 2010), para dar visibilidade aos povos indígenas lesos, atingidos pelas violências que, embora não se caracterizem por ações de natureza racial, causam um impacto desta ordem, e que, em razão de sua condição étnica, vivem em situação de precariedade e subalternidade, seja em relação aos bens e serviços prestados pelo Estado, seja em relação com a privação do desenvolvimento dos seus modos de vida em território adequado. Estas condições de negação aos povos indígenas instam, portanto, a elaboração de estudos e a criação de instrumentos que, com base na práxis histórica, sejam capazes de arrolar e efetivar a garantia dos seus direitos humanos.

Trata-se do que Gomes (2018, p. 21) já chamava a atenção em sua obra ao enfatizar que “o presente indígena está diante de nós, como um fenômeno real social. Assim, voltar-se para o seu passado é imprescindível a fim de se cotejar com o presente e compreendê-lo melhor”. Isto porque a relação estabelecida pelos povos indígenas é ampla, posto que eles estão em quase todos os segmentos da nação, sendo, portanto, uma questão de âmbito e interesse nacionais.

Assim é que nos propusemos, não somente a compreender o indígena, como parte integrante e indissociável da nação brasileira, mas contribuir para o acesso da voz multivocal que caracteriza suas aldeias aos palcos do poder social, e do espaço aos seus pleitos na agenda da política pública brasileira de suas lutas, pois o território brasileiro é indígena!

Referências

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Notas

1 CF/88, Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
2 Excerto do texto que compõe o Preâmbulo da Constituição Federal Brasileira de 1988.
3 De acordo com a CF/88, Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (Grifado).
4 Acolheu-se a definição de povos tradicionais consoante a do Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil, segundo o qual, em seu artigo 3º, define esses povos e comunidades como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
5 A MP referia-se à reforma administrativa proposta pelo governo federal.
6 A definição de povos tradicionais acolhida neste estudo está disposta na nota de rodapé n.º 11, p. 6.
7 A primeira edição da obra foi publicada em Munique, 1913: Eugen Ehrlich, Grundlegung der Soziologie des Rechts. München; Leipzig: Dunker & Humblot, 1913.
8 Conforme Lupion (2020): mais 170 mil brasileiros entraram para a pobreza extrema em 2019. Segundo dados da Síntese dos Indicadores Sociais 2018, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBgE), o número de pessoas na faixa de extrema pobreza no Brasil aumentou de 6,6% da população em 2016 para 7,4 % em 2017, ao passar de 13,5 milhões para 15,2 milhões. De acordo com definição do Banco Mundial, são pessoas com renda inferior a US$ 1,90 por dia ou R$ 140 por mês. Em 2019, houve o acréscimo de 170 mil novos integrantes, encerrando o ano de 2018 com 13,8 milhões de pessoas, o equivalente a 6,7 % da população do país. É o quinto ano seguido no qual o número de brasileiros na miséria cresce.
9 Ou seja, de acordo com o entendimento da autora, são as: expulsões de projetos de vida e de meios de sobrevivência, de um pertencimento à sociedade, e do contrato social que está no centro da democracia liberal [...]. Quando uma corporação ou um governo estrangeiro adquire uma grande extensão de terra para plantar palmeiras para a produção de biocombustível e expulsa de lá a flora e a fauna, os pequenos agricultores, as instalações de produção rural, e muito mais. Mas tudo isso se traduz em um aumento de lucros para as empresas e no crescimento do PIB do país (Sassen, 2016, pp. 39; 91) (Itálico nosso).
10 Segundo Bullard (apud Acselrad, Bezerra & Melo, 2009): justiça ambiental é muito mais do que uma disciplina acadêmica, mas constitui-se em um verdadeiro ‘movimento’ contra as injustiças tradicionalmente incrustadas no Estado de Direito convencional. “Bullard deixa claro como a problemática ambiental incorpora desigualdades sociais, de raça, de sexo e de classe, o que segue de perto a lógica hegemônica de acumulação de capital e cerceamento de oportunidades”.
11 Raposa Serra do Sol: entenda o caso. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/100628/ raposa-serra-do-sol-entenda-o-caso.
12 Assim, para estes povos, a acepção de território está associada à, in verbis: “condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas de vida. Território, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva. A terra é também um fator fundamental de resistência dos povos indígenas. É o tema que unifica, articula e mobiliza todos, as aldeias, os povos e as organizações indígenas, em torno de uma bandeira de luta comum que é a defesa de seus territórios (Luciano, 2006, p. 101). (Grifado).
13 Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. […] O conceito de Racismo Ambiental nos desafia a ampliar nossas visões de mundo e a lutar por um novo paradigma civiliza- tório, por uma sociedade igualitária e justa, na qual democracia plena e cidadania ativa não sejam direitos de poucos privilegiados, independentemente de cor, origem e etnia (Pacheco, 2008, s. p.).
14 O sentido de terra neste texto adota a definição de Gersem Luciano (2006), segundo o qual, “terra é o espaço geográfico que compõe o território”.
15 Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em: https://redejusticaambiental.wordpress.com/
16 Sanchez (2018, p. 5): tradução nossa. Versão original: “No es un simple problema lógico ni tampoco de ajuste teórico-formal, sino principalmente socio-material, [...] pues muchos son los seres humanos en la Tierra que padecen sufrimientos, injusticias y consecuencias nefastas por este desfase”.


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