Resumo: Diante da relação direta existente entre ideologia e poder, buscamos voltar nossos estudos para o poder punitivo e um dos principais resultados de sua ampliação: o hiperencarceramento frente ao abuso das prisões cautelares. Neste contexto, queremos questionar se é possível afirmar que existe uma ideologia cautelar no espaço judicial brasileiro. E, se for possível, questionar também, como ocorreu a estruturação da ideologia cautelar no processo penal brasileiro. Para responder tais perguntas, esta pesquisa exploratória adota o método histórico, a abordagem qualitativa e os procedimentos bibliográfico e documental, sendo possível concluir que existe uma ideologia cautelar que exerce influência direta no poder punitivo brasileiro e que é estruturada a partir das epistemologias inquisitoriais, guardando relação, sobretudo, com a busca da verdade real; com o abuso das prisões cautelares; com a utilização da tortura; com a perseguição perigosista e com a criminalização da defesa, de modo a "legitimar" formalmente a primazia da presunção de culpabilidade de pessoas selecionadas pelo poder (punitivo (in)formal).
Palavras-chave: Ideologia cautelar, poder punitivo, processo penal brasileiro, inquisição.
Resumen: Dada la relación directa entre ideología y poder, buscamos virar nuestros estudios hacia el poder punitivo y uno de los principales resultados de su expansión: la hiperencarcelación frente al abuso de las prisiones cautelares. En este contexto, queremos cuestionar si es posible decir que existe una ideología cautelar en el espacio judicial brasileño. Y, si es posible, también preguntarnos cómo se produjo la estructuración de la ideología cautelar en el proceso penal brasileño. Para responder a estos cuestionamientos, esta investigación exploratoria adopta el método histórico, el enfoque cualitativo y procedimientos bibliográficos y documentales, lo que permite concluir que existe una ideología cautelar que ejerce influencia directa sobre el poder punitivo brasileño y que se estructura a partir de epistemologías inquisitoriales, manteniendo una relación, sobre todo, con la búsqueda de la verdad real, con el abuso de las prisiones cautelares, con el uso de la tortura, con la persecución peligrosa y la criminalización de la defensa, para "legitimar" formalmente la primacía de la presunción de culpabilidad de las personas seleccionadas por el poder (in)formal punitivo.
Palabras clave: Ideología cautelar, poder punitivo, procedimiento penal brasileño, inquisición.
Abstract: Given the direct relationship between ideology and power, we seek to turn our studies to punitive power and one of the main results of its expansion: hyperincarceration in the face of the abuse of precautionary prisons. In this context, we want to question whether it is possible to say that there is a precautionary ideology in the Brazilian judicial space. And, if possible, also question, how did the structuring of the precautionary ideology occur in the Brazilian criminal procedure. To answer such questions, this exploratory research adopts the historical method, qualitative approach and bibliographic and documentary procedures, making it possible to conclude that there is a precautionary ideology that exerts direct influence on Brazilian punitive power and that is structured based on inquisitorial epistemologies, keeping relationship, above all, with the search for real truth; with the abuse of precautionary prisons; with the use of torture; with dangerous persecution and the criminalization of defense, in order to formally "legitimize" the primacy of the presumption of guilt of people selected by ((in)formal punitive) power.
Keywords: Precautionary ideology, punitive power, Brazilian criminal procedure, inquisition.
Artículos de investigación
IDEOLOGIA CAUTELAR E PODER PUNITIVO: OBSERVAÇÕES SOBRE A ESTRUTURAÇÃO DA CAUTELARIDADE NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
IDEOLOGÍA DE LA PRECAUCIÓN Y PODER PUNITIVO: OBSERVACIONES SOBRE LA ESTRUCTURA DE LA PRECAUCIÓN EN EL PROCESO PENAL BRASILEÑO
PRECAUTIONARY IDEOLOGY AND PUNITIVE POWER: OBSERVATIONS ON THE STRUCTURE OF CAUTELARITY IN THE BRAZILIAN CRIMINAL PROCEDURE
Received: 26 April 2024
Accepted: 22 June 2024
Published: 30 November 2024
Inicialmente, cumpre destacar que a problemática central deste trabalho está relacionada com os valores ideológicos que circulam no espaço judicial e exercem influência direta na ampliação do poder punitivo através da aplicação indiscriminada das prisões cautelares, especialmente, por meio de argumentos que legitimam a utilização desta medida "excepcional" enquanto regra, contrariando aquilo que preconiza a legislação. Desta forma, buscamos responder a seguinte pergunta: É possível afirmar que existe uma ideologia cautelar no espaço judicial brasileiro? Se sim, como ocorreu a estruturação da ideologia cautelar no processo penal brasileiro?
Para responder estes questionamentos, é imprescindível que se remeta à historicidade das questões envolvendo o poder punitivo e os valores (ideológicos) responsáveis pela sua ampliação, pois, para que esses valores sejam colocados em prática até se tornarem uma ideologia propriamente dita e serem aplicados de forma semi-automatizada,1 passam por um processo construtivo que envolve o conhecimento, a compreensão e a absorção das concepções estruturantes.
Este texto, que é parte de um esforço mais amplo de pesquisar a ideologia cautelar e as técnicas de neutralização no processo penal brasileiro e que foi defendido como dissertação de mestrado, buscará se debruçar pelos processos construtivos, propondo um exame da presença ou não da ideologia cautelar2 no processo penal brasileiro e, mais especificamente, nas prisões processuais. Esta análise dará subsidio para que, em estudos futuros, seja possível verificar os significados e os valores que circulam no espaço judicial e como as técnicas de neutralização são utilizadas neste espaço quando da decretação das prisões cautelares.
Esta pesquisa é exploratória, adota o método histórico, se utiliza de abordagem qualitativa e dos procedimentos bibliográfico e documental. O olhar aqui lançado para o processo penal brasileiro é feito a partir das lentes da criminologia cultural e, portanto, se utilizará também da metodologia triádica da criminologia cultural para analisar a presença e a estruturação da ideologia cautelar no processo penal brasileiro.
Para atingir o escopo apresentado, o estudo será dividido em três etapas, onde, primeiramente, buscará trazer alguns aspectos gerais sobre a presença da ideologia dentro dos campos do (poder-)saber e, mais especificamente, do poder punitivo. Em um segundo momento, a análise será voltada para a influência que a colonização punitiva exerce sobre o processo penal brasileiro e sobre a predominância das ideologias que nele produzem efeitos. Por fim, os olhares serão voltados para a forma pela qual a ideologia cautelar se estruturou dentro do processo penal brasileiro.
Inicialmente, para tratarmos sobre a ideologia presente no (saber-) poder punitivo, precisamos recordar que desde a demonologia inquisitorial, eram buscados meios para justificar as causas do crime e o exercício do poder punitivo. Contudo, só a partir do século XIX que esses estudos foram denominados enquanto criminologia e passaram a ser importados para a América Latina através da criminologia etiológica, que desconsiderava a análise do poder punitivo, tratando-o como se houvesse uma neutralidade. Essa criminologia etiológica importada do norte contribuiu para a legitimação do poder punitivo através da sua ausência, bem como, forneceu subsídios para uma fundamentação de biologismos racistas responsáveis por inúmeros genocídios (Zaffaroni, 2021, pp. 15-25).
A criminologia constitui uma parte importante do controle social diante da sua capacidade de manutenção de valores necessários para a consolidação de determinado sistema, constituindo assim, um instrumento de legitimação do exercício do poder (Aniyar, 2005, pp. 43-49). A criminologia etiológica, por sua vez, forneceu subsídios para a consolidação e legitimação do poder punitivo através dos pressupostos (pseudo)científicos que se baseavam.
Foucault (1996) menciona que os desenvolvimentos científicos podem ser observados não apenas como descobertas, mas também como formas de vontade de verdade. Quando essa vontade de verdade encontra apoio institucional, passa a exercer um poder de coerção sobre os discursos diferentes daquele que está sendo proferido. Isso porque a vontade da verdade é, sobretudo, a vontade de poder e que, se encontrar os substratos necessários, poderá excluir todas as concepções que se contraponham à "verdade" responsável por camuflar esta vontade de verdade (Foucault, 1996). É justamente neste camuflar discursivo que será exercido o controle da população como um todo.
Situação que vai de encontro com a afirmação de Aniyar (2005, p. 49) de que a criminologia não buscou apenas observar a violação da ordem, mas também a própria preservação. Essa dupla atuação visava o não questionamento da ordem e, consequente, a não promoção da delinquência e, em contrapartida, a não contestação dos sistemas de classe. Nesse sentido, a autora refere que a manutenção de determinada ordem social depende da existência de uma ideologia que a sustente.
Essa ideologia, por sua vez, estará camuflada discursivamente -e, entendendo aqui como discurso não apenas aquele que é falado, mas sim, em todas as suas formas possíveis-. Partindo deste pressuposto, cabe ressaltar que todo o conhecimento -assim como todas as formas de poder e de controle social- estão sedimentados em bases ideológicas que ditam os caminhos a serem seguidos e as formas de encontrá-los.
Esta pesquisa assume seu compromisso com o Estado Democrático de Direito, com a liberdade e com a resistência ao autoritarismo, visando assim, a efetivação da justiça social e a consagração dos objetivos da Constituição Federal. O que, consequentemente, a leva para uma posição que se distancie do (re)conhecimento de neutralidades -até porque a neutralidade não existe-, mas distante também, de vestir as roupagens da neutralidade e da (pseudo)cientificidade. Pois, conforme Zaffaroni (2013): "Não é simples para um saber que pretendeu se apresentar como neutro por crer que isso é condição do científico, quando na realidade o é a renúncia ao conhecimento da dimensão do poder do saber" (p. 258).
E é justamente partindo deste pressuposto de distanciamento das falsas concepções de cientificidade -não só, mas também por tudo o que elas representaram dentro da história da criminologia-, que este trabalho assume o seu compromisso com olhar para o processo penal brasileiro a partir das lentes criminológicas críticas e, consequentemente, buscar um ol-har-agir militante e não silenciador.
Seguindo, portanto, as lições de Vera Regina Pereira de Andrade (2012, pp. 57-58) -atribuídas à obra de Baratta-, de que a pesquisa em ciências sociais deve estar compromissada com o processo de transformação social, o que envolve, necessariamente, transpassar a concepção de objetividade e neutralidade científica e assumir o compromisso com o outro. Isso significa buscar um humanismo emancipatório através da pesquisa militante.
Neste mesmo sentido, ao afirmar a importância da criminologia dentro do sistema penal, Zaffaroni (2013) menciona que "essa é, sem dúvida, uma tarefa teórica, mas também prática e militante, pois deve fazer chegar seus conhecimentos a todos os estamentos comprometidos no funcionamento do sistema penal" (p. 262).
Por partir de um lugar que reconhece a impossibilidade de neutralidade e a presença de dimensões do poder dentro dos campos do saber, assim como, dentro do campo penal, que este estudo busca observar e tornar visível as concepções ideológicas que estruturam o funcionamento do sistema punitivo.
Especialmente porque essas concepções ocupam o plano de uma "dimensão muito mais invisível e difusa (lato sensu) do sistema que é a dimensão ideológica ou simbólica, representada tanto pelo saber oficial (as ciências criminais) quanto pelos operadores do sistema e pelo público, enquanto senso comum punitivo (ideologia penal dominante)" (Pereira, 2012, p. 134).
Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2015, p. 66), o conceito de ideologia é passível de inúmeros equívocos, uma vez que existem diversos sentidos "pejorativos" a ela destinados. Dentre eles, dois sentidos se destacam por serem amplamente utilizados quando há menção ao termo: o sentido napo-leônico, que considera a ideologia enquanto uma especulação distante da realidade, de modo que se aproxima de ideais utópicos; e o sentido marxista, que vislumbra a ideologia enquanto uma grande estrutura responsável por encobrir a realidade. Quando os autores abordam sobre ideologia em referência aos sistemas de controle, não se referem a nenhum destes supracitados, mas a um sentido "não pejorativo" do termo. Este é o mesmo sentido pelo qual será aderido na presente pesquisa.
A definição de ideologia aqui abordada diz respeito àquilo que fornece controle e direcionamento para o agir humano em determinadas situações. Ou seja, se interpreta enquanto ideologia as crenças3 que determinam os comportamentos humanos. Neste sentido, podemos considerar enquanto ideologia tanto as crenças realizáveis quanto aquelas irrealizáveis,4 pois o que faz com que as crenças se tornem ideologias é, sobretudo, a capacidade que elas possuem de assumir o domínio dos comportamentos humanos em determinados casos (Abbagnano, 2007, p. 533).
Em outras palavras, podemos considerar que o termo ideologia diz respeito a um conjunto de ideias que são absorvidas pelos indivíduos e passam a fazer parte do ser individual, bem como, do ser coletivo, já que estão intrínsecas nos saberes subculturais. Desta forma, consideraremos enquanto ideologia tudo aquilo que se apresenta antes de ser construído um pensamento propriamente dito. Sendo, portanto, as premissas que levam a pensar de determinada forma e, consequentemente, a balizar determinadas atitudes/decisões. Ou seja, são as formas de pensar que se (re)produzem no tempo e espaço dentro de um determinado grupo que compartilha valores que são construídos, negociados e circulados entre os indivíduos que a ele pertencem.
O poder se relaciona diretamente com as ideologias, uma vez que ele é o responsável por instrumentalizar e exercer um controle sobre elas, de forma que irá utilizar e validar aquelas que lhe forem úteis e descartar as que forem consideradas negativas ou perigosas (Zaffaroni e Pierangeli, 2015, p. 65). Isso significa que as ideologias estruturantes do poder punitivo são previamente definidas pelos detentores do poder, de modo que as ideologias contrárias não encontrarão terreno fértil no sistema penal. Isso significa que existe um domínio político5 sobre as ideologias, uma vez que são negociadas através do poder.
Fato é que o saber jurídico-penal trazido do Norte para ser reproduzido no Sul não leva em consideração as especificidades aqui presentes como por exemplo, a existência de um poder punitivo informal e da própria seleti-vidade do poder punitivo formal (Zaffaroni, 2021, p. 21).
Esse apagamento, que encontra guarida no domínio político, é responsável pelos genocídios no território marginal(izado). Diante deste quadro, a ausência da criminologia no que tange à estruturação do poder punitivo transnacional, contribui para a ampliação deste e para a consequente produção de efeitos, que recaem sobre os corpos (tardo)colonizados.
Ao observarmos a capacidade de controle das ideologias através do poder e, mais especificamente, a partir de uma análise do poder punitivo, é importante pensarmos no atual contexto de transnacionalização da política criminal, onde os detentores de poder possuem, dentro das arenas de deliberação, a capacidade de impor as próprias agendas aos demais países, na busca de obter uma harmonização dos ordenamentos jurídicos e, consequentemente, dos valores político-criminais (Pitrez, 2017, p. 3).
Como a América Latina se encontra nas margens destes espaços de decisão, há uma incidência de efeitos no sistema penal e nas formas de controle social (dentre elas, o direito penal). Consequentemente, essa posição acaba impedindo a construção de uma ideologia própria, o que a leva a assumir o espaço de uma grande importadora da ideologia dos países centrais (Zaffaroni e Pierangeli, 2015, p. 65).
Ou seja, a ausência de força decisória nas arenas deliberação no que tange à construção das normas penais, implica em aceitar passivamente a transnacionalização de determinadas políticas criminais. Neste contexto de homogeneização normativa através da transnacionalização da política criminal, são transnacionalizadas também -de forma conjunta- as ideologias presentes nas construções destas políticas. De modo que a América Latina deixa de possuir uma política criminal própria e, consequentemente, uma ideologia própria, ficando refém de um tardo-colonialismo6 legislativo e ideológico.
A transnacionalização da política criminal não significa, necessariamente, a aplicação do poder punitivo. Isso porque a forma como este será exercido depende diretamente da realidade estrutural na qual estará inserido.
Zaffaroni (2021, pp. 35-41) ao mencionar que a aplicação do poder punitivo no Norte é diferente em relação ao Sul e que, apesar de existirem algumas semelhanças estruturais, no Norte há uma predominância do poder punitivo formal, enquanto que na América Latina, há a predominância do exercício informal do poder punitivo, informe que dentro deste contexto, a livre permissão para o exercício do poder punitivo informal, leva o poder punitivo formal para a informalidade. Pois, diante da não contenção do poder punitivo informal, há uma legitimação e ampliação do estímulo para a atuação deste poder. Cabe ressaltar ainda, que o poder punitivo formal também se torna informal na medida em que autoriza prisões vedadas nas Constituições.
A diferenciação entre as formas de aplicação do poder punitivo está diretamente relacionada às especificidades em relação aos critérios qualitativos e da dose de violência em critérios quantitativos. Ou seja, a aplicação do poder punitivo no contexto do Sul global se baseia em uma lógica genocida, na medida em que é constituído a partir da interação entre a informalidade e formalidade; entre o público e o privado; entre o sistema penal oficial e o sistema penal subterrâneo; entre a seletividade estigmatizante e a tortura e o extermínio (Pereira, 2012, pp. 105-109).
Essas circunstâncias são facilmente observáveis no contexto político-criminal latino-americano e, mais especificamente, brasileiro, conforme evidenciado por Zaffaroni (2021):
Aqui, no sul da nossa América, o exercício do poder punitivo gera fenômenos quase completamente desconhecidos no norte: autonomização da polícia, execuções, envolvimento de exércitos, prisões deterioradas como campos de concentração, elevada mortalidade e morbidade prisional, mais de metade dos prisioneiros sem condenação, cultura de assassinos profissionais, crimes de ódio, perseguição de opositores e dissidentes, crianças de rua, prostituição infantil tolerada, acobertamento do tráfico de pessoas, remoções massivas da população, altas taxas de morte violenta, impunidades de homicídios etc [...]. Esse custo anual em vidas e saúde é, definitivamente a forma que o genocídio assume na nossa região: massacre parcimonioso, mas com uma continuidade inexorável. É o nosso genocídio por gotejamento em ato, sem prejuízo de alguns surtos não muito distantes da torneira livre (p. 38).
A permanência do "imperialismo ideológico" no Sul Global por meio da construção e imposição de modelos neoliberais e globalizados do controle penal euro-americanos para o Brasil -e também américa latina- promove mortes indiretas através da busca pelo "eficientismo penal", conforme menciona Pereira (2012, p. 111), que por sua vez, se relaciona de forma direta com essa ampliação de recursos criminais a fim de promover a segurança, seja através da repressão e, especialmente, da prevenção.
É evidente que a política criminal brasileira -fruto de inúmeras tras-nacionalizações- possui bases ideológicas estruturantes que se fundam na noção de presunção de culpabilidade das pessoas consideradas enquanto dissidentes, contra as quais é aplicado o direito penal do inimigo, que por sua vez, se mascara através das noções de prevenção e de garantia da segurança da sociedade.
Há uma constante busca pela securitização que se demonstra na esfera legislativa, onde são hipertutelados determinados bens jurídicos em detrimento de outros. Essa securitização se demonstra através da insuflação do poder de polícia, especialmente diante da não intervenção judiciária quando reconhecidos o estado de periculosidade de determinadas regiões, que acabam sendo consideradas necessárias algumas respostas policiais como forma de garantir a segurança. Aliado a isso, ressalta-se para a criminalização de atos que são considerados enquanto pequenas infrações, situação que transfere para a polícia a competência de atuar nessas questões, já que são os responsáveis pela atuação imediata e in loco quando do cometimento de crimes (Guedes, 2019, pp. 51-59).
Desta forma, o processo penal -que deveria servir para a proteção de direitos e garantias fundamentais- passa a ser um instrumento para a aplicação do poder (punitivo informal), norteado por uma ideologia cautelar, que por sua vez, pode ser considerada enquanto uma forma de opressão e que aliada a tantas outras -e também incorporada por elas- (como por exemplo: fascismo, machismo, capitalismo, racismo e autoritarismo) que se fazem presentes no sistema penal, carregam consigo suas racionalidades (binárias) favoráveis ao encarceramento em massa.
A ideologia cautelar é responsável por nortear a aplicação do poder punitivo (informal) na medida em que o seu significado está diretamente relacionado com três "sentidos": o primeiro -"autolegitimante" e expressamente admitido por parte dos operadores do direito- que é a busca pela prevenção de possíveis riscos; o segundo -que é o "legitimador" dos riscos, expressamente construído pelos detentores do poder- que é o medo. Este se baseia em uma verdade real e inquestionável, comumente visível na opinião publica(da); e o terceiro -que embora não expressamente divulgado, é facilmente observável- que é a punição/repressão daqueles que preenchem os requisitos estigmatizantes do medo construído. Esses três "sentidos" são edificados nas bases da racionalidade binária e responsáveis por atribuir significado à ideologia cautelar. Dentro destes três campos existem questões de cunho macro, meso e micro que igualmente dão significado para a estruturação de cada um deles e, quando unidos, podem ser facilmente remetidos às concepções inquisitoriais.
Ou seja, a cautelaridade possui "sentidos" que remetem à perspectivas legitimadoras de determinadas violações a direitos e garantias fundamentais, na medida em que a partir do estímulo do medo, mecanismos supostamente preventivos -embora com função repressiva, ou seja, com vontade de repressão e, consequentemente, com vontade de poder- passam a ser utilizados a fim de garantir a "ordem".
Existe uma tendência justicialista que se relaciona ao fato de fortalecer os poderes judiciais existentes e uma consequente redução de direitos e garantias individuais. O processo justicialista ocorre com a busca pela redução da criminalidade e da sensação de impunidade, o que desagua na necessidade de dar credibilidade às legislações repressivas, seja através do aumento da repressão. Essas tendências legitimantes do direito penal do inimigo se fazem mais presentes na conjuntura da sociedade do risco, onde predomina a ideia de insegurança cognitiva que determinados indivíduos representam para a população como um todo. Desta forma, diante da possível ameaça, estes indivíduos passam a ser considerados enquanto inimigos e a ser tratados como tal diante de um direito que se pauta na dogmática de um direito penal do autor (Guedes, 2019, pp. 59-63).
Neste contexto, a aplicação da sanção não é, necessariamente, direcionada ao fato praticado, mas à representatividade do indivíduo. Esse direito penal do autor que supostamente atua como forma a prevenir o crime se trata de um campo para o exercício do poder onde o estado de periculosidade passa a ser presumido e punido diante do prejuízo representado à segurança social cognitiva (Guedes, 2019, p. 69).
É justamente neste campo da racionalidade binária, da estereotipi-zação e da criminalização de determinados indivíduos dissidentes daquilo que é considerado enquanto "padrão", que a ideologia cautelar encontra o espaço necessário para hipertrofiar. Neste contexto, o colonialismo tardio é responsável por oferecer um terreno fértil para este desenvolvimento, pois conforme afirma Zaffaroni (2021):
O colonialismo tardio procura condicionar psicologicamente as pessoas (introduzir nelas colonialidade), a fim de alienar a sociedade colonizada mediante racionalizações e neutralizações de valores, de acordo com um programa de ressubjetivações que degeneram todos os papéis próprios de uma sociedade democrática plural. Promove assunções de papéis que perversamente reinventa, degenerando-os em relação aos que deveria fomentar qualquer estado de direito democrático (p. 101).
O tardo-colonialismo se utiliza da ferramenta mais antiga de dominação social: o condicionamento psicológico. Ou seja, a mesma ferramenta que, conforme afirma Quijano (2005, p. 117), ficou marcada como identidade da modernidade, qual seja: o padrão de poder constituído na América a partir do binarismo baseado em uma ideia de raça que buscava a partir das supostas diferenças biológicas, situar os indivíduos em posições de inferioridade ou superioridade. Essa racionalidade estruturou a atuação dos colonizadores, constituindo assim, a relação de dominação e que, com a construção da identidade europeia, instituiu a perspectiva eurocentrada do conhecimento, de modo a naturalizar os processos colonialistas de dominação.
De modo não surpreendente que as crenças tardo-colonialistas são construídas com uma visão de mundo eurocentrista e acabam sendo trans-nacionalizadas para as periferias que, na maioria das vezes, as aderem de forma acrítica. Sendo este um dos grandes problemas, especialmente, em se tratando de legislação que regulará condutas e criminalizará atos em um contexto pautado por problemas estruturais que influem diretamente na atuação do poder punitivo.
O Direito Penal deve ser pensado a partir da nossa realidade marginal, o que significa um olhar para os problemas locais e a consequente necessidade de abandono dessas importações colonialistas. Essa construção de-colonial deve caminhar na direção oposta das crenças de proteção aos bens jurídicos e de prevenção de danos, que comumente são atribuídas ao Direito Penal. O contexto marginal latino-americano necessita de uma maior contenção do poder punitivo a fim de promover a justiça social e combater a seletividade penal (Khaled Jr., 2021, pp. 86-88).
Para evitar construções e reproduções tardo-coloniais -sejam elas legislativas, criminológicas ou políticas-, se faz necessário (re)conhecer as ideologias presentes nestes saberes. Para isso, é necessário remontar o passado a fim de perseguir aquilo que sustenta hoje as estruturas processuais e científicas que vestem as roupagens de racionalidades cautelares, mas que na pele carregam as marcas do autoritarismo e seus atravessamentos de classe, raça e gênero.
Desta forma, é importante analisarmos as bases estruturalistas do campo penal para que seja possível compreendermos o sistema penal tardo-moderno. Pois, são estas as bases que fornecem subsídios para a plena estruturação deste sistema e, até mesmo, para determinados modelos autoritários.
Assim, (re)conhecer e (re)visitar a inquisitorialidade é de extrema importância para a identificação dos rumos jurídicos autoritários que são/ possam ser seguidos nos transcursos processuais. Diante deste quadro, é possível afirmar que no atual contexto e, a partir de uma realidade marginal latino-americana, é através dessa revisitação ao medievo que há uma maior nitidez no olhar para as relações e práticas, tanto sociais quanto institucionais transmodernas (pré e pós moderna) (de Carvalho, 1993, p. 6).
Isso porque a questão criminal é a projeção do passado. Estamos parados em uma continuidade de poder, motivo pelo qual, precisamos pensar na Idade Média enquanto algo que ainda não terminou e que ainda está presente, porém, de forma oculta, especialmente através de determinados discursos legitimantes. Ou seja, o poder punitivo segue exercendo seu papel de verticalizar a sociedade, alcançar sua auto expansão e, consequentemente, produzir letalidade em massa (Zaffaroni, 2013, pp. 25-26).
As estruturas ideológicas que hoje marcam presença dentro do sistema penal são as mesmas do século xvin, vestindo, apenas, novas roupagens e assumindo uma homogeneização com as alterações nas dinâmicas sociais. Essas estruturas ideológicas básicas são responsáveis pela sustentação das teorias aplicadas, que embora possam ser modificadas, manterão as mesmas formas. Esse quadro fica evidente diante de uma observação do exercício do poder punitivo, especialmente, sob o signo da função do Estado promover a defesa social que constitui um dos grandes argumentos legitimadores deste exercício, sendo amplamente utilizados para atender determinados interesses hegemônicos que se proliferam no tempo e espaço antes mesmo do século XVII (Zaffaroni, 2020, pp. 105-106).
E é exatamente por isso que neste estudo buscaremos -através da análise da inquisitorialidade- encontrar as matrizes responsáveis pela construção, estruturação e conservação daquilo que iremos chamar de ideologia cautelar dentro do sistema penal, de modo a demonstrar os efeitos de sua aplicação que (ainda) são reverberados na atual quadra histórica.
Para isso, realizaremos uma abordagem genealógica da ideologia cautelar, mas sem exauri-la. Ou seja, não pretendemos aqui fazer uma reconstrução historiográfica a ponto de reduzir determinados períodos históricos a apenas um capítulo, nem demonstrar uma "evolução histórica" -até porque inexistem evoluções propriamente ditas em um sistema penal que ainda objetifica os indivíduos através das prisões. O que podemos chamar de evolução são os refinamentos discursivos utilizados para mascarar genocídios e autoritarismos-. O que pretendemos neste estudo é, sobretudo, demonstrar como a inquisitorialidade se faz presente no processo penal, especialmente, através da ideologia cautelar. E para isso, é necessário abordarmos, brevemente, os processos inquisitoriais.
Justificamos a necessidade desta abordagem, pois acreditamos no fato de a ideologia cautelar carregar traços da ideologia inquisitória, sendo esta, uma das bases epistêmicas fundantes da ideologia cautelar. Ocorre que a diferença está no fato de a noção de cautelaridade ser mais moderna e, talvez, mais abrangente. Possuindo um aparato discursivo-justificador mais amplo e refinado, a ponto de fornecer blindagens para autoritarismos dentro do processo penal tardo-moderno.
A escolha por realizar essa abordagem da ideologia cautelar enquanto um fenômeno independente não decorre de uma visão jurídica e legalista das prisões cautelares, mas sim, de uma visão criminológica, onde consideramos as prisões cautelares enquanto um método de punição, estando, portanto, afastada das teorias da pena. Essa escolha pode se fundamentar na observação de Rusche e Kirchheimer (2004, pp. 17-20) de que as penas não podem ser compreendidas a partir única e exclusivamente dos seus fins e das concepções jurídicas que com ela se relacionam. Mas sim, a partir das manifestações específicas, das causas do desenvolvimento e das escolhas pelos seus usos em determinados períodos históricos.
Este olhar para a cautelaridade enquanto um fenômeno independente não significa que esta ideologia não seja constituída por outras epistemologias, nem que ela esteja separada e/ou em um plano fora do processo penal. A busca por essa forma de observação advém de uma necessidade sentida de desmembramento de um dos maiores problemas do sistema penal brasileiro: as prisões cautelares. Esse desmembrar, desconstruir e (re)construir uma análise daquilo que as estruturam é uma forma de trazer aos olhos questões que, por vezes, se encontram camufladas nas entrelinhas discursivas e que preenchem -mesmo que camufladamente-, determinadas argumentações genéricas e abertas, que legitimam a punição antecipada.
Diante desta busca por encontrar tudo aquilo que constrói essa ideologia, ressaltamos que um dos pontos mais fortes é a presença da própria epistemologia inquisitorial, pois oferece um aporte fundamental para essa concepção da cautelaridade, de modo a estruturar e promover facilitações, a fim de garantir a permanência e a livre-circulação desta ideologia dentro do sistema penal como um todo.
Na próxima subseção, portanto, demonstraremos as primeiras manifestações punitivas do sistema inquisitório7 e que, em comunhão com os elementos característicos do contexto tardo-moderno brasileiro, culminaram para a primeira construção e estruturação da ideologia cautelar, além da manutenção da presença desta ideologia dentro do sistema penal.
As primeiras manifestações inquisitoriais podem ser percebidas no Império Romano, chegando ao ápice da construção teórico-estrutural durante a inquisição, especialmente, através das práticas relacionadas à perseguição religiosa como forma de obtenção da verdade católica. Posteriormente, foi disseminada para a jurisdição laica na Europa continental e assim passou a ser assimilada nos sistemas processuais (Khaled Jr., 2020, p. 29).
Apesar de representarem importantes períodos históricos, aqui não falaremos sobre as primeiras manifestações das práticas punitivas; do direito propriamente dito e nem dos sistemas adotados que forneceram subsídios para a consagração da inquisição -o que englobaria uma análise da Grécia antiga e Roma antiga-, pois são temas longos para reduzir a pequenas linhas a fim de caber neste trabalho, o que nos distanciaria dos objetivos aqui propostos. A análise partirá da inquisição -especialmente papal medieval- e do processo inquisitório,8 na intenção de comparar9 com o processo penal tardo-moderno e verificar qual é a ideologia predominante, bem como, a presença da estrutura inquisitória no Processo Penal tardo-moderno e sua respectiva contribuição para a construção da ideologia cautelar.
A estrutura inquisitorial esteve diretamente relacionada com a Igreja Católica e com sua necessidade de controle dos pensamentos considerados heréticos. A relação Estado-Igreja propiciou um crescimento conjunto de ambos os lados, pois enquanto a Igreja transpassou uma ideia de legitimidade com base nas crenças católicas, o Estado forneceu o próprio poder baseado nos mecanismos administrativo-burocráticos. Deste modo, foi construído um modelo jurídico-político baseado na intolerância (de Carvalho, 1993, pp. 11-15).
A partir do momento em que o cristianismo se tornou a religião oficial do Império, passou a ser considerado também um dos principais responsáveis pela homogeneidade política da época. Deste modo, qualquer doutrina que pudesse divergir dos ideais cristãos, era considerada herética. Sendo que os tratamentos destinados aos integrantes destas doutrinas eram compostos por sanções que variavam entre excomunhão, perda de bens e até mesmo a morte (Boff, 1993, pp. 12-13).
A inquisição foi fruto de uma necessidade política de apoiar um poder autoritário. E com ela houve um crescimento das questões procedimentais relacionadas à busca pela verdade, bem como, à persecução penal pública e obrigatória através do procedimento penal como forma de atacar todo e qualquer movimento que estivesse em desencontro com a ideologia imperante (Maier, 2006, p. 261).
Desta forma, os manuais clericais10 -que por sua vez, são extremamente importantes para compreendermos o processo inquisitório puro e suas respectivas manifestações- revelavam a importância não só jurídica, mas também política. Pois, era através do processo inquisitorial que aconteciam as excomunhões. Ou seja, o próprio processo penal medieval se apresentava de forma política (de Carvalho, 1993, pp. 11-12).
Estas apresentações políticas são compreensíveis, uma vez que no Direito Penal -diante do exercício do poder público que exerce sobre direitos e garantias individuais-, existe uma força de influência que é aplicada por determinada ideologia que se encontre em vigor ou que tenha sido determinada pelo exercício do poder. Isso porque é função do Direito Penal promover o respeito à organização política, bem como, dos valores sociais que a constituem, a fim de garantir a convivência pacífica entre os indivíduos sob a ideologia predominante (Maier, 2006, pp. 259-260).
E para além disso, se observarmos a característica praxiológica do Processo Penal e a capacidade que possui de produzir efeitos na esfera da vivência humana e social, notaremos que há uma relação ainda mais forte entre o conteúdo disposto nele e o sistema. Ou seja, há uma relação direta entre política e Processo Penal, que supera a relação que aquela possui com os outros ramos jurídicos -inclusive com o Direito Penal-. Neste sentido, as manipulações políticas também acabam ganhando uma força maior e adquirindo um espaço de notoriedade no que tange à influência exercida sobre o Processo Penal (Maier, 2006, p. 260).
E de fato, ao analisar o processo penal da modernidade tardia é possível perceber as conotações políticas que o delineiam e que embasam inúmeras prisões, especialmente em se tratando de prisão cautelar. Pois, esta é uma das formas de eleição dos indivíduos que devem ser punidos e, consequentemente, terem alienados os direitos e garantias fundamentais, o que ocorre diante da desconsideração de princípios basilares do direito e da construção de novos princípios norteadores do processo penal do inimigo, como a presunção de periculosidade; a construção de determinados bens jurídicos a serem tutelados e a sobreposição destes aos direitos e garantias individuais, sob uma concepção securitária, por exemplo. Neste sentido, é viável afirmar que não só o processo penal tardo-moderno demonstra suas facetas políticas, como também, que toda a prisão se trata de prisão política.
Isso porque, nas palavras de Batista (2003), a criminalização de qualquer conflito é uma decisão política, motivo pelo qual, não existe crime natural; todo crime é político. Neste mesmo sentido, Gonzalez (2020, p. 29) afirma que, acertadamente, o Movimento Negro Unificado em 1978/1979 caracterizou o "preso comum" como "preso político" como consequência da política criminal que prevê as sanções mais altas para os atos indesejáveis menos gravosos, mas que atingem uma parcela minoritária da população - àquela que possui poder econômico-.
Khaled Jr. (2020, p. 31) menciona que a economia de poder e a anatomia da política estatal possuem relações diretas com a permanência da inquisitorialidade. Isso porque o poder político possui uma capacidade de subalternar a capacidade de contenção do poder punitivo nas relações jurí-dico-politicas. Isso significa que o espaço político sempre se utilizou de mecanismos discursivos capazes de se sobrepor à contenção do poder punitivo na esfera da política criminal.
Sendo, portanto, este poder político, um dos responsáveis pela ampliação do poder punitivo baseado em critérios seletivos que se estendem desde a inquisição até a atual quadra histórica, o que ocorre através de alguns refinamentos discursivos.
Essa utilização do poder político para ampliar o punitivismo durante a inquisição pode ser observada na menção que Boff faz ao crime de heresia, ao referir que "a heresia é tida como um crime político de lesa-majestade" (Boff, 1993, p. 17). E acrescida da observação de Tavares que -ao perpassar pela temática das inquisições- aduz que a perseguição das bruxas foi, sobretudo, política, uma vez que, iniciou buscando o fortalecimento dos poderes da igreja e, posteriormente, buscou a centralização do poder laico. Tanto é que passados os períodos "complicados" da Igreja e resolvidas algumas questões internas contraditórias, a mira deixou de ser as bruxas, passando para os inimigos externos; detentores do poder financeiro (judeus) e dissidentes (reformadores) (Tavarez, 2020).
Ou seja, podemos observar a volatividade da escolha das "vítimas" das/pelas inquisições como forma de manutenção do poder. Ocorre que esta volatividade sempre esteve restrita aos grupos sociais vulnerabilizados pela própria política através das estruturas sociais.
Isso significa que o alvo do poder punitivo esteve -e está- em constante movimento, seguindo o ritmo da política criminal e das blindagens discursivas por ela utilizadas, sob a guarida da ideologia predominante. Nestes casos, diante das análises da aplicação do poder punitivo, podemos observar fortemente a presença da ideologia cautelar, que encontrou subsídio para sua estruturação durante a inquisição e foi hipertrofiada no processo penal tardo-moderno, a ponto de ditar e se sobrepor às regras do jogo democrático através da instrumentalização discursiva persuasiva.
Neste sentido, segundo de Carvalho (1993, pp. 14-15), para analisar o processo inquisitório e a própria epistemologia, devemos levar em consideração as concepções de crime nela presente, pois, não se trata de crimes previamente estabelecidos nas legislações, mas adequações normativas às pessoas consideradas enquanto perigosas e/ou heréticas. Outro elemento epistemológico presente diz respeito ao decisionismo, que por sua vez, estava -e está- diretamente ligado com a noção de perigosismo de determinados indivíduos, pois, ao inexistir critérios objetivos que definam os ilícitos, as decisões passam a ser tomadas com base em critérios subjetivos, desprovidos de certa cognição. Situação que facilita a tomada de decisão baseada em valores ideológicos predominantes na subcultura que os responsáveis por este processo estão inseridos.
Ou seja, conforme Khaled Jr. (2020) "a Inquisição visava perseguir a todos que potencialmente pudessem vir a apresentar uma ameaça para a economia de poder na qual sua hegemonia estava assegurada e que, desse modo, passavam a ser vistos como hereges" (pp. 63-64). Essa racionalidade binária, predominante na inquisição, revela a busca pelo controle social diante da categorização dos indivíduos entre aqueles que não seguem os dogmas da Igreja católica: os hereges, ou seja, inimigos a serem combatidos por meio da persecução, e, os cidadãos, definidos como aqueles que vivem de acordo com estes dogmas (Khaled Jr., 2020, pp. 63-64).
Essa ameaça à economia do poder já estava relacionada com algumas terminologias típicas da ideologia cautelar, pois Eymerich menciona que os hereges elegem doutrinas falsas e perversas e que, por serem contrárias à igreja católica, há um afastamento daqueles indivíduos que seguem os dogmas católicos, dando início a um processo de isolamento e exclusão ocasionados pela heresia. Ou seja, a heresia era considerada a responsável pelas calamidades existentes, uma vez que provocava o enfraquecimento da verdade católica, tornando os solos férteis para a propagação de insurreições, desvios e quebra da ordem pública, por exemplo. Neste sentido, Eymerich (1993, pp. 31-84) estabelece no Manual dos Inquisidores um rol taxativo de quem é considerado enquanto herege, sendo estes, vislumbrados enquanto inimigos a serem combatidos.
A racionalidade binária existente no processo inquisitório se faz presente no fato de que qualquer desvio é suficiente para considerar o responsável enquanto inimigo e, consequentemente, enquanto uma ameaça social na qual devam ser tomadas as medidas inquisitoriais necessárias para a contenção dos perigos por ela representados. Isso significa que o processo inquisitório pode ser considerado enquanto um processo penal do inimigo (Khaled Jr., 2020, p. 65), que visa diuturnamente o controle das ameaças criadas pelo próprio poder punitivo, sob a guarida dos traços iniciais da ideologia cautelar, que adquire seu status completo no processo penal tardo-moderno.
Pois, Segundo Khaled Jr. (2020) "O instrumental inquisitório foi concebido como ferramenta de persecução e erradicação da alteridade, taxada de inimiga a ser combatida em prol dos desígnios do reino dos céus" (p. 61). Esse inquisitorialismo continua produzindo seus efeitos no processo penal tardo-moderno que, aliado a outros elementos estruturantes, (re)constitui e fortifica a permanência da ideologia cautelar.
As epistemologias inquisitoriais, que são carregadas de construções jurídico-políticas calcadas na intolerância; na seleção de verdades únicas; na busca por homogeneidade; na exclusão e extermínio de tudo aquilo que representasse uma ameaça à ordem da organização político-estatal da época, foram responsáveis por expandir o poder punitivo sob retóricas que representam aquilo que convencionamos a chamar de ideologia cautelar. Não atoa que os atuais alvos do poder punitivo através da prisão cautelar, são comumente selecionados diante dos "riscos apresentados" para a garantia da ordem pública.
Ou seja, a ideologia cautelar encontrou subsídios necessários para o seu crescimento e estruturação na inquisição, período em que também começou a marcar sua presença no controle social de modo a construir uma trajetória ascendente no decorrer dos anos no que tange à força e às formas incorporadas para ditar as regras do jogo processual penal. Contudo, apesar das camuflagens (per)formáticas adquiridas por esta ideologia, ela ainda carrega no seu cerne as raízes autoritárias inquisitoriais, que se fazem visíveis a partir de uma análise crítica do processo penal.
É através da ideologia cautelar que ainda são produzidos efeitos semelhantes aos da inquisição. Os assuntos mais problemáticos do processo penal no que tange à violação de direitos e garantias fundamentais ocorrem através da objetificação dos dissidentes da atualidade e a imparcialidade, ambos frutos (proibidos) dessa gênese inquisitória, que produz os piores efeitos possíveis em termos de violação aos direitos humanos e que se fundam na ideologia cautelar, ora abordada.
Dentre os principais elementos responsáveis pela estruturação da ideologia cautelar, podemos destacar o sistema inquisitório; a busca da verdade real; a banalização das prisões cautelares; a utilização da tortura; a criminalização da defesa e a perseguição etiológica. Ou seja, são elementos que estão diretamente interligados, sendo responsáveis pela violação dos direitos e garantias das pessoas acusadas e que, igualmente, reproduzem - com novas roupagens e sob novas justificativas, estas baseadas na garantia da ordem- as cerimônias degradatórias dos acusados durante o medievo, mas agora, através da objetificação dos corpos por meio do enjaulamento de indivíduos no transcurso processual a fim de mantê-los (eternamente) disponíveis para os inquisidores, já que a vontade de poder é camuflada na presunção de culpabilidade.
Este estudo -que ainda está em desenvolvimento a fim de atingir outros objetivos e para ampliar os aqui buscados- se propôs a responder dois questionamentos: O primeiro se é possível afirmar que existe uma ideologia cautelar no espaço judicial brasileiro? E, em sendo possível, como ocorreu a estruturação dessa ideologia no processo penal brasileiro?
Ao interpretarmos a ideologia enquanto conjunto de ideias que fazem parte dos indivíduos e, consequentemente, dos valores subculturais, consideramos que a ideologia é responsável por estruturar a forma de pensar e, consequentemente, as decisões tomadas pelas pessoas pertencentes a determinado grupo.
No decorrer das pesquisas, pudemos observar que existem bases ideológicas que estruturam todas as formas de poder e de controle social e, por vezes, estas ideologias se camuflam em discursos (falados ou não). Contudo, pudemos perceber também que o poder é capaz de exercer controle sobre as ideologias, de modo a selecionar as que forem consideradas úteis e excluir aquelas que não forem, exercendo assim, um domínio político -situação que ocorre com o poder punitivo-. Esse domínio exercido sobre as ideologias úteis e o próprio domínio que elas exercem sobre as atuações estão diretamente relacionadas à vontade de verdade e, consequentemente, à vontade de poder.
Dentro deste contexto, há uma reprodução histórica de ferramentas colonialistas responsáveis pela dominação social, como por exemplo, o condicionamento psicológico. Dentre as principais consequências desta ferramenta, destacamos a racionalidade binária, responsável por naturalizar os processos colonialistas -e tardo-colonialistas- de dominação, seja através da verticalização social, baseada em uma estrutura de raça, classe e gênero, seja através da manutenção desta verticalização -ou através de uma verticalização nacional- de imposição de perspectivas eurocentradas do conhecimento.
Como consequência podemos observar a política criminal brasileira que através de inúmeras transnacionalizações, carrega consigo bases ideológicas estruturantes que se fundam na noção de presunção de culpabilidade das pessoas consideradas enquanto dissidentes, contra as quais é aplicado o direito penal do inimigo, que por sua vez, se mascara através das noções de prevenção e de garantia da segurança da sociedade. Diante deste contexto, consideramos que a ideologia cautelar é a responsável por promover essa estruturação da atuação e de mascaramento através do processo penal, especialmente porque, lemos este enquanto um fenômeno cultural.
Desta forma, o processo penal -que deveria servir para a proteção de direitos e garantias fundamentais- passa a ser um instrumento para a aplicação do poder (punitivo informal), norteado pela ideologia cautelar, que por sua vez, pode ser considerada enquanto uma forma de opressão.
Essa ideologia cautelar é responsável por nortear a aplicação do poder punitivo (informal) na medida em que o seu significado está diretamente relacionado com três "sentidos": o primeiro -"autolegitimante" e expressamente admitido por parte dos operadores do direito- que é a busca pela prevenção de possíveis riscos; o segundo -que é o "legitimador" dos riscos, expressamente construído pelos detentores do poder- que é o medo. Este se baseia em uma verdade real e inquestionável, comumente visível na opinião publica(da); e o terceiro -que embora não expressamente divulgado, é facilmente observável- que é a punição/repressão daqueles que preenchem os requisitos estigmatizantes do medo construído. Esses três "sentidos" são edificados nas bases da racionalidade binária e responsáveis por atribuir significado à ideologia cautelar. Dentro destes três campos existem questões de cunho macro, meso e micro que igualmente dão significado para a estruturação de cada um deles e, quando unidos, podem ser facilmente remetidos às concepções inquisitoriais.
A cautelaridade, portanto, possui "sentidos" que remetem à perspectivas legitimadoras de determinadas violações a direitos e garantias fundamentais, na medida em que a partir do estímulo do medo, os mecanismos supostamente preventivos -embora com função repressiva, ou seja, com vontade de repressão e, consequentemente, com vontade de poder- passam a ser utilizados a fim de garantir a "ordem".
É justamente diante desta função divulgada -e não necessariamente função real- da cautelaridade, que encontramos suas nas epistemologias inquisitoriais, que são carregadas de construções jurídico-políticas calcadas na intolerância; na seleção de verdades únicas; na busca por homogeneidade; na exclusão e extermínio de tudo aquilo que representasse uma ameaça à ordem da organização político-estatal da época e que foram responsáveis por expandir o poder punitivo sob retóricas que representam a presença inicial daquilo que convencionamos a chamar de ideologia cautelar. Não atoa que os atuais alvos do poder punitivo através da prisão cautelar, são co-mumente selecionados diante dos "riscos apresentados" para a garantia da ordem pública.
As consequências desta ideologia muito se assemelham às da inquisição, especialmente através da violação de direitos e garantias fundamentais das pessoas acusadas através da objetificação dos seus corpos. Desta forma, dentre os principais elementos responsáveis pela estruturação da ideologia cautelar, podemos destacar o sistema inquisitório; a busca da verdade real; a banalização das prisões cautelares; a utilização da tortura; a criminalização da defesa e a perseguição perigosista.