DOSSIER
Recepción: 15 Junio 2015
Aprobación: 15 Septiembre 2015
Resumo: Este paper tem como objetivo analisar o problema dos graus de separacao do corpo e da alma no Fédon de Platao, em busca tanto de seus pressupostos ontologicos como de suas consequencias epistemologicas. Apesar deste dialogo ser normalmente abordado como pedra miliar literaria e filosofica para todos os dualismos psico‑ fisicos da historia de nosso pensamento, entendo que e possivel distinguir dois sentidos fundamentais, duas maneiras diferentes de pensar esta separacao. O primeiro sentido indicaria uma separacao intencional, isto e, undamentalmente dependente do que o filósofo pensa ou com aquilo do qual o filósofo se procurar curar: o filósofo, como tal, se curaria da alma, mas não se curaria do corpo. Uma segunda maneira de pensar esta separação entre corpo e alma é aquela que privilegia a ideia de uma separação ontológica segundo a qual a alma seria, a tal ponto independente do corpo, que po- deria sobreviver após a morte deste. Apesar do sucesso que am- bas as abordagens tiveram ao longo da história do platonismo até nossos dias, a duplicidade dos sentidos expressos contém contudo, em si, uma irrevogável ambiguidade e tensão. o ob- jetivo deste paper é o de propor uma solução diferente para a referida ambiguidade. A nossa proposta tem como ponto de partida, a consideração ontológica dos graus de plasticidade da alma, que Bostock (1986, p.119 @ Phd. 79c), em seu comentário ao diálogo, chama ‘traços camaleônicos da alma’, isto é, como se a alma pudesse assumir feições corpóreas para conhecer a realidade sensível. A separação entre corpo e alma, antes do que pressuposto ontológico, parece precisar de um esforços perma- nente do indivíduo, tanto em sentido epistemológico como em sentido ético.
Palavras-chave: Platão, Alma, Fédon, Argumento da Afinidade.
Abstract: This paper aims to address the problem of the separation between body and soul in Plato's Phaedo, in search of both its ontological features and moral consequences. Apart from the traditional approach and use of dialogue as a literary and philosophical milestone for all body‑ soul dualisms in the history of philosophy, I believe that two ways of understanding this separation are outlined in the dialogue. The first one would indicate a moral separation, regarding what a philosopher should take care of: philosophers would be able to cure of the soul, but not of the body. A different way to address this separation between body and soul is the one I would like to consider as an ontological separation: the soul is so independent from the body that is declared to survive after its death. Although both concepts of this separation could seem pretty familiar, due to the success they had throughout the history of Platonism until today, the duplicity of meanings expressed by the Platonic passages carries on an irrevocable ambiguity. The aim of this paper is to propose, however, is a quite different solution for resolve this ambiguity. My suggestion is that we should pay the proper attention to the ontological and epistemological ductility of the soul. Bostock (1986, p. 119 @Phd. 79c), called it the chameleon‑ like traits of the soul, enabling the soul to assume bodily features to meet the sensible world. Separation between body and soul, rather than an ontological, seems to need the contribution of a permanent epistemological and moral effort of the soul.
Keywords: Plato, Soul, Phaedo, Affinity argument.
O presente paper deseja enfrentar o problema da separacao do corpo e da alma no Fédon de Platao, em busca tanto de seus pressupostos ontologicos como de suas consequencias para a teoria do conhecimento platonica. Apesar de o dialogo ter sido utilizado por toda a historia do pensamento ocidental como pedra miliar para todas as formas de dualismo psico‑ fisico, e possivel reconhecer no dialogo dois sentidos fundamentais, duas maneiras diferentes de pensar a separacao entre corpo e alma1. O primeiro sentido indicaria uma separacao intencional, isto e fundamentalmente associada ao que o filosofo pensa ou com aquilo do qual o filosofo se cura: o filosofo como tal se curaria da alma, e nao se curaria do corpo.
Ha diversas passagens em que esta tese, amplamente retomada pela tradicao, e acenada. Baste – creio – deixar aqui ecoar uma delas para termos uma ideia da importancia da separacao corpo‑ alma quando tomada em sentido moral:
‑ Cres portanto, sem restricoes, que os interesses de um homem desta tempera [o filosofo] nada tem a ver com o corpo e que, pelo contrario, a ele renuncia ate onde lhe for possivel, para se concentrar sobre a alma?
‑ Exato.
‑ E e ou nao por indicios desses que o verdadeiro filosofo se revela logo como tal – dando o melhor de si para emancipar a alma do comercio com o corpo, e sobrelevando nisso todos os demais?
‑ Manifestadamente.
‑ Por outro lado, Simias, e preconceito corrente entre os homens, creio, que aquele que nao se agrade dessas coisas vulgares, nem tome parte nelas, nao merece viver: pois (pensam) que e isso de rejeitar os prazeres que o corpo proporciona, senao estar a dois passos da morte?
(Phd. 64e‑ 65a – Trad. Schiappa)
Assim, um primeiro sentido desta separacao, o sentido moral, e aquele que diz respeito a um filosofo que renuncia ao corpo para se concentrar na alma. Esta separacao, operada por aqueles que dão pouca importância ao corpo e vivem na filosofia .Phd. 68c) e considerada como estar a dois passos da morte, pois de fato a morte nao e outra coisa senao a separacao entre corpo e alma.
Uma segunda maneira de pensar esta separacao entre corpo e alma e aquela que eu chamaria de uma separacao ontologica: a alma seria a tal ponto independente do corpo de poder sobreviver apos a morte deste.
Novamente, creio, sera suficiente aqui lembrar uma das muitas passagens do dialogo dedicadas as provas (e aos mitos) da imortalidade da alma. Prefiro aqui o argumento final, nao porque (pace Frede, 1978, p.27) o argumento seria considerado aqui por Platao como definitivo, mas porque – de um ponto de vista dramatico – o argumento parece finalmente esvaziar o criticismo de Simias e Cebes e, desta forma, alcancar o consenso dos interlocutores:
Ora, uma vez que o que e imortal nao esta sujeito ao perecer, entao a alma, se e efetivamente imortal, nao podera deixar de ser imperecivel?
Inevitavelmente
Logo, quando a morte sobrevem ao homem, e a sua parte mortal, ao que parece, que morre; a outra, a imortal, subtrai‑ se a morte e escapa‑ se a salvo, isenta de destruicao.
(Phd 106d‑ e ‑ Trad. Schiappa Azevedo)
Ainda que ambas as concepcoes desta separacao possam parecer, de certa forma, familiares, devido ao sucesso que tiveram ao longo da historia do platonismo ate nossos dias, a duplicidade de sentidos expressos pelas paginas platonicas carrega uma irrevogavel ambiguidade. Esta ambiguidade tem sido resolvida em geral considerando que o dualismo moral seria simplesmente uma especie de homicidio antecipado do corpo, que, por sua vez, seria conditio sine qua non para o pleno e sucedido exercicio da filosofia.
Aqui nao faltam exemplos desta lectio, sugerida pelo proprio Socrates ao considerar a separacao da alma do corpo como exercício para morrer facilmente (τεθνάναι μελετῶσα ῥᾳδίως, Phd. 81a1‑ 2). Estariamos na frente, portanto, de um processo de conformacao do filosofo a inevitavel realidade ontologica deste dualismo.
O grande sucesso desta conformacao moral do filosofo na historia do pensamento ocidental faz Dixsaut afirma, com razao, que:
[Le Phedon] est le texte entre tous que a permis la substitution du platonisme aux Dialogue, car l’on s’accorde a y trouver la formulation achevee de la theorie des Idees, et l’expression la plus radicale de l’ascetisme, voire meme, avant la lettre, du christianisme de Platon. (Dixsaut , 2001, p. 219)
Mas ate que ponto vai esta separacao ontologica – isto e qual e a intensidade da separacao corpo‑alma nos dialogos platonicos – e obviamente objeto de infinitas discussoes e um problema de dificil solucao.
O meu paper propoe assim duas hipoteses de trabalho, ambas indemonstradas, ainda que amplamente utilizadas pela critica: A) O dualismo de Platao esta longe de poder ser considerado um substance dualism, como aquele utilizado pela filosofia depois de Descartes (Broadie, 2001); B) A ideia de Platao pela qual a alma existiria independentemente do corpo – abordagem esta que conteria o mais alto grau de dualismo – nao pode pela verdade ser encontrada nos dialogos platonicos como uma teoria definitiva e coerente. Carone (2005, p. 230) afirma, com razao, que Platao suspendeu o seu juizo com relacao ao fato de a alma ser imaterial ou menos, a tal ponto de fazer parecer as evolucoes historicas sucessivas sobre o tema, como as teorias de Aristoteles e dos estoicos, muito menos abruptas e originais do que se pensaria2.
O que sugiro aqui e uma solucao diferente para a ambiguidade acima apontada entre o dualismo moral e aquele ontologico. Sugiro mais propriamente de prestar mais atencao a ductilidade ontologica e epistemologica da alma, e mais propriamente daqueles que Bostock (1986, p.119 @Phd. 79c), em seu comentario ao dialogo, chama dos tracos camaleonicos da alma, que lhe permitem assumir feicoes corporeas para conhecer a realidade sensivel.
A passagem central e aqui a pagina 79c e sobre ela agora nos detemos. A passagem encontra‑ se no interior daquele que se costuma chamar de Argumento da Afinidade .Phd. 77e‑ 80b). O argumento parte do reconhecimento de uma diferenca substancial entre a dimensao sensivel e a dimensao inteligivel. Esta diferenca e ligada a mutabilidade, a identidade/simplicidade e, por consequencia, , a visibilidade. Enquanto a realidade sensivel, e nela o corpo, e nao‑ identico a si mesmo, e portanto mutavel; a realidade inteligivel, a qual a alma e semelhante, e sempre identica a si mesma (αὐτὸ καθ' αὑτό, 78d6), portanto imutavel. A realidade em si, isto e, as ideias (τὸ ἴσον, αὐτὸ τὸ καλόν, αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν 78d3‑ 4) nao admitem qualquer possibilidade de μεταβολὴ, de mutacao. Enquanto τά πολλά καλά (78d10) – a pluralidade das coisas belas (homens, cavalos, roupas, etc.) – jamais sao identicas a si mesmas e entre elas.
A esta altura do argumento, Socrates da um passo adiante, introduzindo o tema da visibilidade:
Nao e verdade entao que estas sao as coisas que voce pode tocar, enxergar e apreender pelos outros sentidos, enquanto as que sao identicas a si mesmas nao e possivel apreende‑las senao com o raciocinio do intelecto (τῷ τῆς διανοίας λογισμῷ), por serem estas coisas invisiveis e nao apreensiveis pela vista? (Phd. 79a1‑4).
Assim, prossegue a argumentacao socratica, sera o caso de admitir que existam duas especies (εἴδη) de coisas que sao: τὸ μὲν ὁρατόν, τὸ δὲ ἀιδέ, a visivel e a invisivel. Uma vez levado o interlocutor a admitir, partindo da existencia das coisas invisiveis, a realidade de um genero (εἶδος) do invisivel, e jogo facil para Socrates concluir o argumento com um duplo xeque‑mate: a) atribuir agora para o εἶδος do invisivel o que valia antes (79a1‑ 4) para as coisas invisiveis, isto e que o invisivel e imutavel, sempre identico a si mesmo; b) afirmar que, das duas partes constitutivas do individuo, o corpo e mais semelhante (ὁμοιότερον) ao visivel, enquanto a alma ao invisivel (79b15)3.
Creio seja importante lembrar a esta altura que o Argumento da Afinidade nao goza em geral de muito respeito por parte dos comentadores. Apolloni (1996) reconhece que the lack of sympathy and enthusiasm for this argument is not difficult to understand. De fato, prossegue o mesmo comentador:
the main thrust of this chain of arguments is clearly very weak. That the soul is more similar to the Forms than it is to bodies does not establish how it is similar. And so it falls short of showing that it is similar in that both the soul and the Forms are indestructible or indissoluble (...). If the conclusion leaves open the possibility that the soul is nearly indestructible, then it is destructible after all, in which case the argument falls short of establishing what it was supposed to (Apolloni, 1996, p. 5‑ 6)4.
Elton (1997, p. 313) ve no argumento uma object lesson in how not to do good philosophy. Dorter (1976, p.298) pode afirmar que the argument is clearly not intended to be a rigorous one.
O mesmo tipo de reclamacao parece apresentar Trabattoni (2011), ao comentar a mera semelhanca da alma ao invisivel, pois invisivel mesmo somente as ideias. Com isso o argumento se enfraquece – diz Trabattoni – pois somente o invisivel como tal e imutavel e indestrutivel, nao algo (como a alma) que seria semelhante a esse (Trabattoni, 2011, p.107 n.123).
O mesmo Bostock (1986, p. 119) ja havia definido o argumento, construido a partir dessas similitudes, somewhat shaky. Pela verdade, esta mesma reclamacao a encontramos no Contra Boetus de Porfirio, preservado na Preparação Evangélica de Eusebio de Cesareia. Eusebio, apos citar uma parte substancial do argumento de Socrates, cita Porfirio, que dela explicaria o sentido” (Eus. PE 9. 27.20.1), em polemica com as criticas que o argumento ja havia recebido por Boetus5.
Todavia, esta constante reclamacao dos comentadores com relacao a certa inconsistencia na argumentacao da semelhanca da alma com as ideias parece‑me nao considerar uma questao central na economia do dialogo: a enfase central do dialogo como um todo e aquela de persuadir Simias e Cebes de que a alma e imortal. A mesma ideia, nao acaso, aparece na introducao dramatica ao proprio Argumento da Afinidade; aparece aqui o medo infantil da morte de Cebes e Simias, que Socrates se compromete a desfazer atraves de uma obra de persuasao e encantamento (Phd. 77d‑ e). O argumento que estamos analisando e o resultado deste investimento socratico, portanto. Espero poder demonstrar que esta persuasao e mais do que uma estrategia dramatica. Creio poder demostrar que um certo tipo de inversao da logica ontologica estaria em jogo no argumento.
Minha suspeita e que os comentadores esperem de Socrates, de certa forma, a afirmacao de um dualismo ontologicamente mais forte do que aquele que Socrates esteja aqui disposto a admitir. Muitos comentadores reclamam do fato que a alma nao e incorruptivel como as ideias; mas, de fato, ela nao o e, pois, a meu ver, o argumento de Socrates nao quer propriamente afirmar que o seja.
Pela verdade o argumento de Socrates, ainda que aponte para a comum invisibilidade da alma e das ideias, nem sequer procura aproximar as duas quando se trata de sua imutabilidade. Enquanto as ideias sao, por definicao, imutaveis, a alma, ao contrario, e continuamente sujeita a mudanca.
Vamos entao a passagem em questao:
Nao costumavamos dizer isto aqui ha tempo, que a alma quando utiliza o corpo para investigar, quer pela vista, quer pelo ouvido, quer por qualquer outro sentido – de fato investigar algo por meio do corpo significa exatamente faze‑ lo por meio dos sentidos – e arrastada pelo corpo para as coisas que nao sao jamais identicas a si mesmas, e ela anda por ai em estado confusional, cambaleando como bebada, por estar presa a realidades como essas? (Phd. 79c2‑ 9)
O termo ταράττεται (que traduzimos por estar em estado confusional) e a passagem como tal remetem para uma discussao semelhante que aparece algumas paginas antes, mais precisamente em 66a: aqui, da mesma forma os sentidos sao percebidos como um estorvo (ταράττοντος, 66a5) para o acesso da alma encarnada a verdade (Cf. Rowe, 1996, p.186). Da mesma forma, na passagem que traduzimos acima, este processo e descrito por Socrates sobretudo para alertar para os perigos da perversao da alma quando quer usar o corpo para investigar a realidade sensivel6. Chamaremos este processo de somatização da alma, pois o termo σωμᾰτοειδής aparece por bem duas vezes na passagem (Phd. 81b6 e 81c4).
Ha nesta descricao do processo de somatizacao da alma uma possibilidade ontologica de certa forma inedita. Surpreendentemente, a alma, diferentemente das ideias, que sao irremediavelmente imateriais, pode ate assumir tracos corporeos.
A plastica descricao da alma que, como bebada (ὥσπερ μεθύουσα), e arrastada e vaga pela realidade corporea em estado confusional (Phd. 79c), parece revelar algo mais preciso do que a simples descricao de uma alma presa ao corpo.
Ha dois elementos aqui que merecem ser destacados:
a) O primeiro, ja anunciado, e que a alma parece assumir ela mesma tracos corporeos. A intoxicacao da alma (bêbada) parece sugerir isso. Esta descricao e substancialmente diferente daquela de um simples aprisionamento da alma no interior de um involucro corporeo, o que nao implicaria em si mesma qualquer contaminacao.
b) Este processo de encarnacao da alma no corpo nao parece ser o resultado de um aprisionamento passivo do alma pelo corpo. Ao contrario, parece haver aqui um movimento intencional da alma no sentido de usar o corpo para conhecer a realidade atraves dos sentidos (o termo αἴσθησις e aqui significativamente repetido duas vezes @79c4‑ 5)7.
Bostock (1986), como vimos, em seu comentario ao dialogo, ve na alma assim descrita traços camaleônicos, pois lhe permitem assumir feicoes corporeas para conhecer a realidade sensivel:
Isso acaba atribuindo a alma uma personalidade camaleonica. A alma simplesmente assume a natureza de qualquer coisa ela queira – e nao ha realmente muitas bases aqui para dizer que seja mais provavel que assuma a natureza do que e imutavel em lugar do que e mutavel. (Bostock, 1986, p.119)
A alma, portanto, pode se transformar; mais do que isso, quer se transformar para sentir a realidade atraves do corpo.
Com uma ontologia da encarnacao assim desenhada, portanto, insinua‑ se sub‑ repticiamente nas paginas platonicas a possibilidade de um inedito sentido para o dualismo psicofisico.
O lexico desta somatizacao da alma, para nos limitarmos exclusivamente a estas paginas do argumento da afinidade, inclui termos como κοινωνέω (80e4), σύνειμι (81b3 e 81c5), ὁμιλία (81c5), assim como o ja citado adjetivo σωματοειδής (81b6 e 81c4) e a συγγένεια (79d3) que da tradicionalmente o nome ao argumento como um todo.
Mas uma correta compreensao deste dualismo dependera provavelmente de como iremos traduzir um termo central para o argumento de Socrates. As modalidades de somatização da alma acima descritas sao possiveis, – dira Socrates – gracas ao fato da alma ser σύμφυτον (Phd. 81c6) com o corpo.
Eis aqui a passagem em questao:
Mas, creio, que [a alma] se separara junto com seu traco corporal, que a frequentacao e uniao com o corpo, por estar sempre com este e pela grande cura [a este reservada], fez crescer junto com ela (Phd. 81c4‑ 7).
Adotamos aqui a intuicao de Rowe (1996, p.193) que traduz o termo σύμφυτον como made grown together in [the soul], apontando aqui para uma metafora botanica, portanto. Mas com uma leve e significativa correcao: enquanto Rowe pensa a um corpo que cresce junto no interior da alma (como uma pedra que cresce na raiz de uma árvore – precisa Rowe), creio que aqui o termo σύμφυτον seja ontologicamente mais forte do que pareceu a Rowe. A ideia, fascinante, e aquela de um corpo que cresce junto com a alma.
Minha correcao, nao acaso, vai em direcao da lectio facilior da traducao de σύμφυτον, que privilegia mais o resultado do crescer juntos do que o processo em si, como elegantemente propoe Rowe. O termo parece assim conter em simais uma indicacao de conaturalidade entre corpo e alma. Um bom exemplo deste uso do termo encontra‑ se nos Tópicos de Aristoteles, onde se afirma que ἡ ἀλγηδὼν διάστασις τῶν συμφύτων μερῶν μετὰ βίας (Arist. Top. 145b2‑ 3 – “a dor e a interrupcao violenta das partes naturalmente unidas”), onde o termo σύμφυτον aqui indicaria exatamente uma uniao das partes a tal ponto natural, que uma separacao poderia ser somente violenta (e gerar dor, por consequencia).
A uniao do corpo e alma, portanto, nao pareceria ser acidental, como aquela de uma pedra que cresce junto no interior da raiz de uma arvore, no exemplo de Rowe. E sim natural, como aquela de duas partes naturalmente unidas entre elas, como e o caso dos Tópicos. Como dois irmaos, por exemplo, que cresceram juntos e cuja separacao violenta so pode vir a provocar dor.
O lexico desta comunhao e conaturalidade entre o corpo e a alma parece colocar em seria dificuldade, portanto, qualquer interpretacao do argumento da afinidade que queira olha‑ lo somente a partir da afinidade da alma com o invisivel e imutavel. O que esta aqui descrito, mais propriamente, e uma luta da alma em sua dupla (camaleônica) natureza: crescida junto com o corpo, mas aspirando a companhia dos deuses invisiveis (81a10). Pois, como diziamos, haveria, neste caso, uma enfase injustificada dos comentadores num dualismo ontologicamente mais forte do que aquele que as paginas analisadas parecem admitir. A alma, no argumento da afinidade, nao e incorruptivel como as ideias pois o estatuto ontologico dela nao o permitiria, devido a seus ineludiveis tracos corporais.
Por consequencia, antes que um premissa ontologica forte, a separacao entre corpo e alma e algo a ser conquistado com violencia e dolorosamente, para nos remetermos, mais uma vez, a passagem acima citada dos Tópicos.
O dualismo parece precisar, para se manter ontologicamente, de um esforco permanente do individuo, tanto epistemologico como etico.
Desta forma, a separacao intencional precede aquela ontologicae nao o contrario, como somos normalmente levados a crer. A ontologia dualistica platonica parece ainda depender da busca pela verdade e pela felicidade (81a6‑ 7) de uma alma‑ camaleao em seu vagar cambaleante pelo mundo sensivel, junto com o corpo com a qual ela cresceu e se formou.
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Notas