DOSSIER
Recepção: 15 Junho 2015
Aprovação: 15 Setembro 2015
Resumo: Neste artigo, procuro explorar a relacao entre o prazeroso e o doloroso compreendidos como 'contrarios' e o tema da 'troca' como o uso de bens dirigido (ou nao) pela pensamento reflexivo (phrónesis) no Fédon (60b; 69a‑ b). Em contraposicao, o texto analisa alguns fragmentos de Antifonte (DK87B49; B57‑ 62 entre outros) com o proposito de evidenciar a critica operada por Socrates do dito "comercio" entre prazeres e dores, esperancas e medos. Esse confronto esclarece a diferenca entre o modo de vida filosofico e os valores predominantes entre os cidadaos atenienses.
Palavras-chave: Platao, Fédon, Prazer, Socrates, Antifonte.
Abstract: In this article, I aim to explore the relation between what is pleasurable and what is painful understood as opposites and the topic of 'exchange as the use of goods whichis guided (or not) by reflective thinking (phronesis) in the Phaedo (60b; 69a‑ b). On the other hand, I also analyse h some of Antiphon/s fragments (DK87B49, B57‑ 62, among others) in order to discuss the criticism that Socrates addresses to the so called "commerce" between pleasures and pains, hopes and fears. This confrontation helps to clarify the differences between a philosophical way of living and the values that are prevailing among Athenian citizens.
Keywords: Plato, Phaedo, Pleasure, Socrates, Antiphon.
Busco nos fragmentos de Antifonte passagens que me permitam vislumbrar formulacoes sobre o prazer e a dor analogas as que Socrates explicita e critica no Fédon. Meu ponto de partida e que as experiencias do prazer e da dor, assim como dos valores que lhes sao atribuidos, tanto por Antifonte como por Socrates, configuram modos de vida diferentes, definidos ou estruturados em funcao do papel da reflexao (phrónesis) feita enquanto calculo de ganhos e perdas. Alguns dos desafios postos pela discussao desenvolvida no Fédon sao: a concepcao da natureza do prazer; a compreensao do corporeo compreendido como obstaculo e fonte de dores (ou de prazeres com menor valor); a reflexao (ou calculo) necessaria para lidar com esses valores em oposicao; a definicao da natureza da excelencia ou virtude, em particular, da moderacao e da coragem; a discussao da significacao da experiencia (ou da vivencia) da morte.
Na primeira parte do Fédon (57a‑ 69e), a cena da preparacao feita por Socrates para o momento de sua morte e tao classica quanto fundamental para a elaboracao de uma teoria platonica do prazer; e nesse contexto inicial que destaco algumas passagens (60b‑ c; 68b‑ 69d) que antecedem o primeiro argumento relativo a imortalidade da alma (o argumento dos contrarios)1.
Apresento as passagens selecionadas e, em seguida, as contraponho a alguns fragmentos de Antifonte, tendo em vista a resignificacao que e feita do “calculo dos prazeres”, para se poder dizer que modo de vida vale a pena viver e o modo de morrer que ele implica.
1. O contexto do Fédon
Perante a questao classica, relativa a enfase nos prazeres corporeos como impedimento para a boa ordenacao da alma, donde um certo dualismo, proponho o seguinte principio interpretativo: trata‑ se de discutir e opor modos de vida, nao 'substancias' (corpo e alma) opostas extrinsecamente. Penso que e patente, nesta primeira parte do texto, que ha uma recusa de concepoes vulgares de hedonismo, as quais e contraposta uma formacao pela reflexao, uma educacao para o exercicio do pensamento, como modo de agir e viver.
Comeco destacando a ocorrencia, nessas passagens, dos termos 'estranho' (atopon), 'espantoso' (thaumasios), 'impossivel' (adynaton) e 'absurdo' (alogon), indicando o quanto o modo de viver filosofico e diferente do da maioria dos cidadaos, o quanto ele suscita uma atitude contraria aos valores hegemonicos, e como, para este ponto de vista, sao frequentes os contrasensos logicos e axiologicos.
Fedon ‑ Socrates se recompos entao para assentar‑se sobre sua cama, dobrou a perna, e se pos a esfrega‑la com a mao, durante um tempo, e, enquanto a esfregava, disse:
Socrates ‑ Que coisa estranha (hos atopon), meus amigos, parece ser isso que os homens chamam de prazeroso (hedy); que espantoso (hos thaumoasios) que, por natureza, ele tenha esta relacao com o que parece ser seu contrario, o doloroso (to lyperon): no ser humano um nao consente em vir a ser junto com o outro; mas se alguem busca um e o agarra, e quase como se fosse forcado a sempre agarrar tambem o outro, como se tivessem uma so cabeca, mesmo sendo dois (diy' onte). E me parece, disse, que se Esopo tivesse pensado nisso, teria composto um mito (dizendo que): o deus queria concilia‑ los, por estarem em guerra, mas, como nao fosse possivel, tivesse amarrado as (duas) cabecas no mesmo e, por isso, quando um vem a ser (acontece) o outro o acompanha em seguida; e assim que (me) parece acontecer no meu caso, uma vez que, por causa da amarra, tinha dor na perna, e o prazeroso parece segui‑ la (Phd. 60b1‑ c7)2.
Ao se recompor, Socrates esfrega a perna e expressa seu sentimento: como e estranho (atopon) que os seres humanos chamem de prazeroso algo que vem sempre acompanhado de seu contrario, o doloroso. Sera que sao, mesmo, dois contrarios, ou sera que um deles apenas parece ser o contrario do outro? Sera que o prazeroso (o prazer), necessariamente, comporta um contrario?3 Essa experiencia e tao espantosa (thaumasios) que merece ser tratada atraves do imaginario mitico, antropomorfico: um contrario "nao quer" vir a ser junto com o outro, mas estao sempre juntos, a ponto de parecerem ser dois, sendo um; aparentemente, sao dois seres, "com uma so cabeca". Este e o mito do prazer: dois 'seres' em guerra, que so poderiam ser unidos a forca, sendo amarrados (synepsen) e, eventualmente, apaziguados, por um deus. Perante tal desconcerto, a imagem proposta acolhe o espanto e elabora o estranhamento: sera que o prazer e a dor sao uma unidade, equivocadamente compreendida como dualidade, ou, pelo contrario, sao duas coisas diferentes que, por alguma circunstancia de quem as experimenta, sao percebidas como uma? Sera que esta descricao de uma experiencia sensorial, transformada em narrativa mito‑ poetica pode ser tomada pelo que parece ser? Ou sera que merece um exame mais detalhado?
A meu ver, o estranhamento inicial e posto, nao visando uma conciliacao (mitica), mas para exigir uma explicacao verdadeira. No Fédon, a questao da relacao intima entre prazer e dor, compreendidos como afeccoes sucessivas, e apenas o prologo que prepara a discussao sobre a filosofia como preparacao para a morte. Quanto a relacao entre corpo e alma, pensada a partir da concepcao do corpo como sema (tumulo ou signo), sigo as interpretacoes que compreendem que trata‑ se de uma relacao de cuidado ou de preservacao, ou seja, o corpo oferece uma oportunidade para que o individuo possa cuidar de si mesmo, preservando sua alma; para alem do dualismo convencional, e preciso reconhecer que os apetites e prazeres corporeos tem como centro de determinacao a dimensao psiquica (Phlb. a6‑ c7; Tht. 185c‑ 186c) o corpo preserva a alma na medida em que permite que ela 'signifique' alguma coisa, ou seja, que ela exerca sua determinacao numa dimensao 'signica', tornando‑ se manifesta ou visivel, e, nessa medida, significante4.
O cuidado reflexivo e reciproco entre alma e corpo prepara o filosofo para o convivio com os deuses, que sao nossos cuidadores; a morte pode tanto significar o convivio com o invisivel, em vida, quanto o encontro com o divino (deuses), quando da separacao do corpo (63b‑ c).
E preciso reforcar que se trata de saber a que tipo de prazer deve dedicar seu tempo alguem que tem como objetivo o saber propiciado pela phronesis, sendo que isso indica, a meu ver, uma perspectiva predominantemente axiologica (64d‑ 65b); o que significa que estao em jogo os valores que determinam as prioridades de cada um: comida, bebida, sexo e outros cuidados do corpo (roupas e sapatos) se opoem ao exercicio da reflexao e a pratica de elaborar argumentos frente a problemas de natureza cognitiva. Separar‑ se ou distanciar‑ se dessas ocupacoes e simplesmente uma questao de se estabelecer prioridades; trata‑ se de escolher aquilo que confere maior dignidade ao modo de conduzir a vida; nao esta em questao a possibilidade de se suprimir as demandas basicas do corpo. Morrer e entao tomado como metafora do exercicio do pensar5, na medida precisa em que implica em concentrar‑ se na dimensao psiquica e por em suspenso, em circunstancias determinadas e 'na medida do possivel', as demandas corporeas; o que Socrates propoe enquanto modo de vida e valorizar atividades e prioridades outras que a satisfacao de necessidades basicas de sobrevivencia6.
A dimensao psiquica nao tem a ver so com conhecimento, mas tem seus proprios valores e prazeres e e tambem condicao da experiencia dos prazeres em geral. "Despedir‑ se do corpo" (chairein) deve ser tomado metaforicamente, por mais que na situacao efetivamente vivida por Socrates, este seja o caso factualmente; ou seja, em termos de valor que guia a vida (filosofica), trata‑ se daquilo que deve ser priorizado; no caso particular do momento vivido por Socrates, a questao fica ainda mais compreensiva: o que poderiamos esperar de alguem que esta prestes a 'separar‑ se do corpo' se nao o esforco por mostrar as vantagens que esperam por ele?
Aos poucos, o contraponto proposto (postulado) aos valores e prazeres corporeos comeca a ser formulado: tender para 'o ser' ou buscar 'aquilo que e' (oregetai tou ontos), ou seja, os valores maiores postulados como seres que sao 'em si' e 'por si mesmos', essencias puras e independentes (ousia), como o justo, o belo, o bom, a medida, a saude e a forca (65d‑ 66a). Enquanto atitude ou modo de agir que se contrapoe a busca dos prazeres sensoriais, essa ultima compreendida como um modo de vida convencional, a postura filosofica implica no exercicio puro do pensamento centrado nele mesmo (autei kath´hauten tei dianoiai).
Prender ou fixar a alma no corpo (65a; 83d) sao metaforas usadas para indicar a incapacidade de uma compreensao mais elaborada, seja do dinamismo do modo de ser psiquico (dynamis, acao/afeccao), seja da consistencia ontologica dos valores que devem orienta‑ lo (65d‑ e). As escolhas, fundadas ou nao (medidas ou nao), pela reflexao determinam o modo de se viver e o rumo do viver (antes e/ou depois da separacao com relacao ao corporeo). Trata‑ se, na perspectiva que me interessa aqui, de uma reflexao que orienta a escolha dos prazeres: morrer significa separar‑ se de certos valores e prazeres e vincular‑ se a outros (67a‑ b); nessa medida precisa, filosofar ainda e o exercicio efetivo de desejos e prazeres7.
A fala atribuida aos filosofos autenticos (tois gnesios philosophois), que conversam entre si e contundente (66b‑ 67b): o corpo e inequivocamente marcado como sendo um mal (meta toiouton kakou), mas o contexto no qual tal valoracao negativa e feita e igualmente evidente. Por um lado, trata‑ se de movimentos da psyche (de carater apetitivo, amoroso): estar em busca de (en tei skepsei), realizar uma caca (theran), ter apetites ou desejos (epithymoumen, epithymion, eroton, epithymiai, epithymoumen), ser amante de (erastai einai); o que e posto em questao sao modos de se relacionar com os objetos (corporeos e/ou psiquicos), estar ou nao estar (ao maximo) em companhia de ou em comunidade com (malista meden homilomen toi somati medo koinonomen), ser preenchido (contaminado) por (anapimplometha), ser libertado (apallattomenoi), ser liberado (apolyse), estar misturado ou nao (eilikrines), ser puro (katharos). Por outro lado, os objetos contrapostos aos valores corporeos sao objetos para . psyche que, em grande medida, esta sendo considerada enquanto instancia cognitiva (mesmo que nao apenas): o verdadeiro (to alethes), o que e (tou ontos), pensar (phronesai), tempo livre (skhole), filosofia (philosophias), examinar algo (skopein ti), discernir o verdadeiro (kathoran alethes), saber algo puramente (katharos ti eisesthai), as coisas elas mesmas (auta ta pragmata), a reflexao (phroneseos), o saber (eidenai). Em sintese, este e o sentido do raciocinio, e isso o que o argumento significa (hos ho logos semainei), e nessa direcao que toda a argumentacao aponta.
E feita uma lista de afeccoes, acoes e valoracoes praticadas pela maioria dos homens; atitudes e objetos que, na perspectiva do filosofo, devem ser avaliados, medidos ou 'informados' pelos valores do exercicio do pensamento puro: alimentos, doencas, apetites eroticos, medos, imagens, banalidades, guerras, lutas, posses e dinheiro, todos associados ao modo de viver que prioriza a satisfacao das demandas corporeas. Entretanto, como valores que sao, estes fins podem ser considerados bons ou maus, em perspectivas diferentes; para aquele que valoriza o exercicio do pensamento e da pesquisa acima de tudo, esses objetivos significam impedimentos (obstaculos) que fazem com que nos tornemos contaminados ou preenchidos (anapimplometha) excessivamente; e mais, ocupar‑ se principalmente deles indica falta de sensatez (aphrosyne), o que nao significa que eles sejam maus neles mesmos8.
A meu ver, e bastante claro que nao se trata de 'buscar' a morte literalmente, ficando descartada a leitura extremista. Nesse sentido, o texto de Leis IX sobre a condenacao do suicidio, pelo Ateniense, e contundente e inequivoco: a vida e o que ha de mais familiar e de mais amavel (ton panton oikeiotaton kai philotaton) ao ser humano; privar‑ se da parte que recebeu do destino, fora de circunstancias muito especificas que o forcarem a tal (a lei da cidade, um grande dor inevitavel, o acaso) e uma atitude marcada pela vergonha, pela indolencia e pela covardia9.
Ademais, o contexto argumentativo e preciso: o objeto do desejo nao e passivel de ser alcancado plenamente, sem limites peles seres humanos; donde a ideia de liberacao ou 'morte' compreendida como 'figuracao' de um encontro pleno com o que e buscado, ou seja, como exercicio pleno e puro do pensamento.
'Ser amante de' e o vies proposto por Socrates para diferenciar os generos de individuos que se definem tanto por suas estruturas psiquicas como por seus modos de vida (68c). Por definicao, 'ser amante do' saber implica em ter o saber como valor maior que efetivamente organiza o psiquismo, sendo capaz de estabelecer medidas e limites 'reflexivos' para os diversos apetites e, ainda, sendo capaz de enfrentar experiencias e afeccoes que ameacam sua propria ordenacao. Nesse sentido preciso, ser sabio implica tambem em ser moderado e corajoso; as afeccoes perante a morte sao variadas e cada um as experimenta e as enfrenta de acordo com os recursos que tem; considerar a morte como um mal e ter medo de morrer sao a opiniao e a afeccao compartilhadas pela maioria dos seres humanos; e nesse embate que surgem diferentes estrategias, tais como a ideia da troca ou do comercio de prazeres e medos.
2. O sentido da troca
Socrates critica essas trocas, apontando situacoes problematicas e surpreendentes, na medida em que implicam em dimensoes que afirmam e negam a mesma coisa: como, por exemplo, ser corajoso por causa do medo, ser moderado atraves da falta de moderacao, dominar na medida em que se e dominado.
Socrates ‑ (...) Se tu ves um homem se revoltar, quando esta perto de morrer, e que ele nao era amigo (amante) do saber, mas um tal amigo do corpo; esse mesmo podendo tambem ser, se for o caso, amigo do dinheiro, amigo das honras, seja de uma ou de outras, seja de ambas ao mesmo tempo.
Simias ‑ Tu dizes as coisas exatamente como elas sao.
Socrates ‑ Sendo assim, Simias, o que chamamos de coragem, sera que isso nao convem, principalmente, aqueles que possuem as disposicoes sobre as quais acabei de falar?
Simias ‑ Sem duvida, disse.
Socrates ‑ E a moderacao, mesmo aquilo que os muitos chamam de moderacao: em relacao aos apetites, nao se deixar excitar violentamente por eles; pelo contrario, diminuir sua importanciae adotar uma conduta comedida; nao convem ela (a moderacao), entao, apenas aqueles que desvalorizam o corpo e passam sua vida no amor pelo saber (filosofia)?
Simias – Necessariamente, disse.
Socrates ‑ Se queres, disse ele, refletir sobre a coragem e a moderacao dos outros (ennoesai ten ge ton allon andreian te kai sophrosynen), te parecera estranho.
Simias ‑ Como assim, Socrates?
Socrates ‑ Sabes, disse, que todos os outros consideram a morte como estando entre os grandes males.
Simias – Certamente.
Socrates ‑ E, entao, por medo de males (ainda) maiores que aqueles que sao corajosos enfrentam a morte, quando a enfrentam?
Simias ‑ E assim.
Socrates ‑ E entao porque tem medo, e por medo que todos, exceto os filosofos, sao corajosos; e, no entanto, e absurdo ser corajoso por medo e por covardia (toi dedienai ara kai deei andreioi eisi pantes plèn hoi philosophoi. kaitoi alogon ge deei tina kai deiliai andreion einai, Phd. 68b8‑ d13).
A situacao extrema da morte suscita a explicitacao, por parte do individuo em questao, do conjunto de valores que o guiam nas suas acoes na vida. Sua atitude perante a morte acaba por explicitar de modo inequivoco aquilo que o determina maximamente em vida: as coisas corporeas, o corpo, o dinheiro ou as honras. Sao, entao, explicitadas estruturas psiquicas que se contrapoem ao que seria o modo filosofico de ser, aquele no qual o valor maior e o saber; valoracao maxima essa que vem sintetizada no uso de termos compostos com o prefixo philo etc.
A partir dessa postulacao pode‑ se compreender diferentes modos de ser excelente, ou seja, o ser corajoso, o ser moderado, sempre se contrapondo uma constatacao empirica a uma avaliacao reflexiva: partindo do uso dos termos, a descricao empirica e submetida a uma analise reflexiva, que compara e submete a prova; avalia‑ se, entao, o modo como se organizam os psiquismos dos individuos em questao, ou seja, explicita‑se a maneira como conduzem suas vidas.
Nesse contexto, 'coragem' nao e mais simplesmente “dominar os medos”, mas esta sendo resignificada para indicar a atitude reflexiva perante a morte, perante a autenticidade (ou nao) dos valores, em particular, dos prazeres, que se contrapoem uns aos outros e as experiencias de sofrimento. Por sua vez, a 'moderacao' e pensada a partir do uso comum do termo (aquilo que 'os muitos' chamam de moderacao – nao ser dominado pelos apetites, paixoes ou prazeres), sendo tambem retomada criticamente: ela indica a nao excitacao violenta de certos apetites e uma diminuicao de sua importancia, donde uma conduta limitada; compreendida dessa maneira, ser moderado seria proprio daqueles que nao poem os valores associados ao corpo como sendo prioritarios, contrapondo a eles os valores ligados a pesquisa e a busca do saber10.
Portanto, e na medida em que informamos, analisamos e avaliamos nossas afeccoes e praticas com a reflexao inteligente (phronesis) que nos tornamos filosofos (68c‑ 69c); ou seja, ser filosofo significa reavaliar pesos e medidas menores, valores e praticas com a medida maior do exame racional, do discernimento inteligente, da sabedoria; nao importa quantos serao capazes de faze‑ lo, se sao poucos ou muitos.
Novamente, o tema do estranhamento (atopia) e evocado para lidar com outra situacao de oposicao insustentavel, ou seja, aparentemente conflitante. Perante tal dimensao racional discriminadora, aquilo que e compartilhado pelos muitos, como, por exemplo, o medo da morte, acaba por revelar‑ se como algo pernicioso e que ameaca os conceitos comuns de valor e excelencia. A contradicao e explicitada: se a morte e um mal, e se o medo e o afeto pelo qual os homens enfrentam a morte, temos que reconhecer que esses individuos sao corajosos porque tem medo, sao corajosos atraves do medo e covardia, o que, realmente, nao faz sentido!
Simias ‑ Certamente
Socrates ‑ E quanto aqueles dentre eles que sao bem ordenados? Nao sao afetados do mesmo modo? Nao sao eles moderados por algum tipo de desregramento? Certamente, nos dizemos que isso e impossivel, mas acontece com eles uma situacao (afeccao) semelhante a anterior, essa moderacao ingenua. Por temerem que lhes faltem alguns dos prazeres, aqueles que desejam, e, desejando‑ os, se abstem de outros, sendo, entao, dominados por eles; e isso o que chamam de desregramento. Ou seja, o que lhes acontece e que so dominam outros prazeres, sendo dominados por prazeres. Isso e semelhante ao que foi dito ha pouco, que, de certo modo, e atraves de um certo desregramento que eles sao moderados.
Simias ‑ Pois e o que parece.
Socrates ‑ Caro Simias, receio que essa nao seja uma troca correta para (se obter) a excelencia; trocar prazeres contra prazeres, dores contra dores, e medo contra medo, mais por menos, como se fossem moedas. Mas so pode haver uma moeda correta, contra a qual todas essas coisas devem ser trocadas: a reflexao (o pensamento) (Phd. 68e1‑ 69a10)11.
A reflexao continua na mesma direcao: os que sao aparentemente (bem) ordenados seriam afetados do mesmo modo, ou seja, seriam moderados justamente atraves de algum tipo de desregramento, o que devemos dizer que e impossivel. Mas e isso mesmo o que lhes acontece, homens marcados por uma moderacao ingenua, mesmo que bem‑ intencionada. Desejam certos prazeres, mas tem medo de lhes faltarem outros; por isso, deixam de buscar outros prazeres, o que faz com que sejam, entao, no fim das contas, dominados por prazeres; e essa situacao contraditoria, inusitada e nao razoavel que chamam de moderacao, sendo, na verdade, um tipo de desregramento. Ou seja, a versao da relacao entre busca de prazeres e tentativa de evitar medos, e formulada da seguinte maneira, para ser criticada: consistentemente com sua propria compreensao das coisas, eles so conseguem dominar certos prazeres porque sao dominados por (outros) prazeres; e uma falta de medida que os tornaria moderados, e uma falta de controle que faria com que fossem autocontrolados, sendo, na verdade, autoindulgentes.
A critica esta implicita na formulacao mesma da versao que os proprios individuos (os muitos) propoem do que acontece; essa formulacao elaborada atraves da relacao entre contarios e o que suscita a compreensao da suposta virtude como troca (allage), formulacao que nega flagrantemente aquilo mesmo que e afirmado. Esse modo de compreender o funcionamento do psiquismo nao e correto, ou seja, este nao e o caminho para a excelencia. A troca, se troca deve haver, nao pode ser feita desta maneira: envolvendo, estritamente, prazeres, dores e medos. A compensacao ou 'troca correta' (se e que se trata mesmo de uma troca) e aquela operada entre a vivencia do afeto e sua compreensao reflexiva.
O que e proposto e que o prazer experimentado deve ser objeto de reflexao, que a dor vivida deve ser compreendida pela inteligencia, que o medo que nos afeta deve ser esclarecido pelo discernimento; as quantidades e qualidades das afeccoes devem ser avaliadas, sopesadas pelo pensamento. O que e criticado e uma pratica comum, mecanica e dogmatica, porque extrinseca a compreensao da natureza mesma dos elementos em questao; esse tipo de calculo e recusado porque ele envolve apenas a dimensao quantitativa ou relativa a intensidade dos prazeres envolvidos; sendo que o que conta realmente e a dimensao reflexiva de toda virtude, e o ganho que lhe e intrinseco, ou seja, a realizacao efetiva da excelencia humana.
A meu ver, nao se trata simplesmente do plano motivacional da acao (ou da causa final, em termos aristotelicos), mesmo que este esteja implicado, enquanto valor posto e buscado. Nao se trata tampouco de meramente evitar (ou minimizar) resultados negativos ou dores (nivel epithymético), ou de buscar reconhecimento (thymoeidético); a equivalencia com o pensamento, ou a 'troca' pela reflexao implica na reformulacao da nocao de virtude, em termos de discernimento, aquele exercicio do saber argumentativo que busca esclarecer o que e o bem do individuo humano, em termos da configuracao racional da psique, de modo a conduzi‑ la na direcao daquilo que, entao, se passa a saber que ela e mesmo12.
Alem disso, e preciso reconhecer os limites da metafora da troca ou do comercio: a rigor, quando se introduz a phronesis, nao se trata exatamente de trocar ou de substituir, mas de reconfigurar, de modo a que aquilo que discernimos com a inteligencia seja efetivamente o que determine nossa acao; pela racionalidade reflexiva, podemos avaliar efetivamente a complexidade dos fatores em jogo em diversos planos (fisico, motivacional, racional, individual, coletivo etc.)
A inteligencia ou reflexao purifica, na medida precisa em que leva em conta as determinacoes inteligiveis, que so sao acessiveis a inteligencia sabia (ou que busca o saber efetivo).
Socrates ‑ Reflexao atraves da qual e com a qual (pensamento que e aquilo atraves do que e com o que) todas essas coisas (panta) devem ser compradas e vendidas. Todas essas coisas (panta) poderiam, entao, realmente ser a coragem, a moderacao, a justica e, em resumo, a verdadeira excelencia, acompanhada pela reflexao, sejam (a elas) acrescentados ou retirados prazeres ou medos e todas as outras coisas desse tipo. Mas, se, ao contrario, sem reflexao (separadas do pensamento), a excelencia consiste no trocar essas coisas umas pelas outras, essa excelencia nao e mais do que uma pintura feita de sombras, sendo, na verdade, servil e nao tendo nela nada de saudavel ou de verdadeiro. Sendo que a verdadeira (excelencia), na verdade, e um tipo de purificacao em relacao a todas as coisas desse tipo – a moderacao, a justica e a coragem ‑ e a propria reflexao e como que um meio para essa purificacao (Fédon 69b1‑ c3)13.
Se e que deve haver 'troca', compra, venda, 'comercio', se vamos nos ater a esta imagem, o meio comum, o elemento de 'troca' ou de mediacao, que pode e deveria perpassar a avaliacao dessas diferentes experiencias e o pensamento reflexivo. Contudo, a meu ver, a phronesis nao e exatamente uma virtude, mas o caminho do pensamento, o meio reflexivo, o vies inteligente 'atraves do qual' ('com o qual', 'pelo qual') se pode chegar as realidades inteligiveis, tornando possiveis as purificacoes que sao as virtudes14. As diferentes excelencias (virtudes) serao verdadeiras se forem (mais que apenas) 'acompanhadas' pela reflexao; elas sao constituidas pelo proprio pensamento reflexivo, ou seja, elas so se tornam o que podem ser se houver reflexao no exercicio mesmo da pratica virtuosa, com ou sem as diversas afeccoes positivas ou negativas. Mas a ausencia da reflexao indicaria que nao se trata de verdadeiras virtudes, de excelencia autentica, mas de aparencias enganadoras (contrafacao), as imagens das coisas sendo tomadas pelas coisas das quais elas sao as imagens, ou seja, representacoes que distorcem e enganam. A ausencia da reflexao inteligente indica submissao, em vez de autodeterminacao, enfermidade por oposicao a saude, falsidade e nao verdade, sombras e nao clareza, erro e nao purificacao.
3. Antifonte
Passo agora a elaborar a interlocucao que proponho com alguns dos fragmentos de Antifonte, aproximacao que se justifica por diversas razoes15. Xenofonte relata tres dialogos ocorridos entre Socrates e Antifonte, que sao verdadeiros confrontos, em termos de concepcoes de educacao, valores eticos, modos de conduzir as proprias vidas, nocoes de autocontrole (enkrateia) e felicidade (eudaimonia); uma das formulacoes comuns entre os comentadores e, justamente, contrapor um Antifonte hedonista (DK87B44) a um Socrates cinico (DK87B10). O que fica patente e que Antifonte era um dos interlocutores implicitos de Socrates em diversos niveis, mesmo quando nao e mencionado diretamente; e que os objetos das polemicas, mesmo que construidos diferentemente pelas diferentes fontes, sao diretamente pertinentes as passagens do Fédon em questao. Me parece que a pertinencia da aproximacao com Antifonte fica progressivamente mais clara, na medida em que os textos vao sendo analisados.
A titulo de contextualizacao, comeco justamente pelo testemunho de Xenofonte (Mem. 1.6.1‑ 15; DK87A3), no qual Socrates responde as suas criticas; fica claro que este texto pode ser considerado uma boa oportunidade para se discutir a concepcao de comercio de prazeres e dores criticada por Socrates no Fédon.
Antifonte diz que os filosofos sao menos felizes, por viverem pior que escravos, por terem acesso a comidas, bebidas, roupas e calcados os mais miseraveis (phaulotata; phaulon), e por nao terem dinheiro, que e algo que da prazer e faz viver bem a quem tem (euphrainei; hedion poiei)16. A longa resposta de Socrates, argumenta, entre outras coisas, que a sua propria vida (de Socrates) seria tal que Antifonte preferiria morrer a viver como ele; o que sugere claramente que estao falando de modos de vida fortemente em oposicao; e o criterio inicial, para Socrates, e avaliar o que na sua vida poderia ser considerado dificil ou penoso (chalepon). Dentre suas praticas, ele destaca a liberdade para dialogar com quem quer, assim como a liberdade com relacao a discutivel qualidade de alimentos, bebidas e roupas; o maior ou menor prazer nao tem a ver com dificuldade de obtencao ou com precos altos; os calcados e os exercicios fisicos tambem deveriam ser avaliados levando‑ se em conta a resistencia do individuo, mais do que outros criterios; sao contrapostos radicalmente, assim, diferentes modos de ser saudavel (hygieina), de ser prazeroso (hedio, hedista) e de ser forte.
Socrates ‑ Achas que alguma outra coisa e mais responsavel pelo nao ser alguem escravo do ventre, do sono e da libertinagem do que o ter prazer com o que agrada nao apenas no momento da necessidade, mas que traz a expectativa de sempre proporcionar beneficio?17
A argumentacao de Socrates contra Antifonte destaca questoes centrais que reencontramos claramente no Fédon: o fato de o prazer ser ou nao fonte de escravidao; o papel do fator temporal na fruicao do prazer, ou seja, em perspectiva imediata (no momento, ou atraves de mediacoes progressivas, no futuro, por antecipacao ou sempre); e ainda, como, ao longo de diferentes experiencias prazerosas, tem‑ se ou nao, em vista, beneficios futuros. Para Socrates, o agir bem e causa de alegria (euphrainontai) e o prazer (hedonen) esta relacionado com o tornar‑ se melhor; trata‑se claramente da contraposicao de modos de vida diferentes, nos quais estao incluidas atividades como ajudar amigos ou a cidade, ir a guerra, ser capaz de satisfazer as proprias necessidades etc.
Antifonte contrapoe justica e saber: dizendo que Socrates pode ser mais justo, mas nao e mais sabio que ele, os criterios evocados sendo o dinheiro, as roupas e o valor da companhia e do proprio saber. Socrates responde novamente, contrapondo o modo de se dispor da juventude ou do saber. Os exemplos de objetos de prazer vao: do uso dos cavalos aos bons amigos, passando pela disposicao a ensinar o outro a seguir na direcao da virtude, pelas situacoes de leituras coletivas ou compartilhadas, pela amizade e pela pratica da politica. E nesse momento que o tema do comercio e evocado:
Se alguem ganha dinheiro ao vender a juventude a quem a queira comprar, chamam‑no prostituido. (...) Do mesmo modo em relacao a sabedoria: os que a negociam por dinheiro sao chamados de sofistas18.
Ou seja, lendo a partir da perspectiva do Fédon: sem reflexao, a excelencia reduz‑ se a mera troca ou ao comercio banal; a falta de discernimento reflexivo faz equivaler coisas ou valores desiguais; o que seria um modo de agir bom e livre revela‑ se inautentico e servil; a falta de criterios para a 'troca' mostra a confusao entre saude e doenca, impureza e purificacao; em ultima analise, so o pensamento do que e 'em si' (inteligivel) e puro, porque tem acesso ao que as coisas sao realmente, objetos do saber verdadeiro.
Num fragmento recortado a partir do Papiro de Oxyrhynchus, a discussao central e a da oposicao entre as determinacoes da natureza por oposicao as determinacoes dos costumes ou da lei19. A justica e concebida em termos convencionais, ou seja, e vista como o fato de se nao transgredir as prescricoes da cidade da qual se e cidadao; a discussao que se segue e feita em torno do valor da 'utilidade,' se ele e levado em conta convenientemente (xynpherontos) ou nao, as prescricoes relativas a acao sendo avaliadas em termos de serem extrinsecas ou necessarias. Outro tema conexo e o da visibilidade ou nao da acao: se se transgride as prescricoes das leis, de modo encoberto (lathei), afasta‑ se da vergonha e do castigo (kai aischynes kai zemias apellaktai), mas, se nao se encobre, nao (me lathon d´ou).
E neste contexto que, em relacao a dimensao da convencao, Antifonte chega a afirmar nao so que muitas das coisas justas, por convencao (ou segundo a lei), estao em guerra com a natureza (polemios tei physei), mas que as proprias coisas que (os homens) veem ou nao veem, ou melhor, que devem ver e as que nao devem sao dispostas por convencao aos olhos (nenomothetetai gar epi te tois ophthalmois, ha dei autous horan kai ha ou dei), e do mesmo modo, tambem as coisas a serem ouvidas, ditas, feitas. Enfim (sao dispostas por convencao) ao pensamento as coisas que (alguem) deve desejar e as que nao deve (kai epi toi nooi hon te dei auton epithymein kai hon me).
Destaco aqui um ponto de aproximacao, e nao de oposicao, entre Antifonte e o Socrates do Fédon, quando o primeiro se refere as limitacoes a que estao submetidas as coisas visiveis, por oposicao as determinacoes nao visiveis da dimensao da natureza. A oposicao e analoga, mesmo que Socrates esteja 'resignificando' a 'natureza nao visivel' enquanto inteligibilidade invisivel dos seres em si. Mas permanece uma diferenca importante: o fato de a justica para Socrates ser tambem da ordem da natureza inteligivel, por oposicao a Antifonte, que pensa as determinacoes da lei e da justica como convencionais.
Para Antifonte, o proprio viver e o morrer sao da natureza, sendo que o viver e uma das coisas convenientes (ton xynpheronton), ja o morrer uma das nao convenientes. As coisas que causam sofrimento (ta algynonta), por uma correta razao, nao sao proveitosas a natureza mais do que as agradaveis (ta euphrainonta); nao seriam, portanto, em nada mais convenientes as coisas dolorosas que as prazerosas (oukoun an oude sympheront´eie ta lypounta mallon e ta hedonta). Nesse contexto e dito que alguem poderia encontrar muitos outros casos de guerra contra a natureza, entre eles o caso de se 'sofrer mais', sendo possivel se 'sofrer menos'; 'comprazer‑ se menos', sendo possivel 'comprazer‑ se mais' (en t´en autois algynesthai te mallon, exon hetto, kai elatto hedesthai, exon pleio.
A meu ver, fica patente a dimensao do calculo quantitativo de beneficios, prazeres e dores, nas trocas que os cidadaos efetuam permanentemente: e o caso de se avaliar o que se deve fazer ou nao, tendo em vista a possibilidade ou nao de se receber punicao. Por um lado, surpreende a reflexao que reconhece o quanto a propria percepcao sensivel e determinada pelo que e convencional, a ponto de os proprios desejos o serem tambem; o que aponta necessariamente para a discussao relativa a utilidade ou conveniencia das experiencias da dor e do prazer20. Por outro lado, e tambem relevante reconhecer que o calculo de prazeres e dores seja formulado em termos de determinacao natural; a avaliacao da 'conveniencia' do prazer ou da dor toma como referencia algo de efetivo, objetivo, que e dito ser 'natural'.
Outra passagem de Xenofonte21 trata da discussao sobre se o consenso (homonoia) a ser estabelecido na polis e algo em cuja direcao os cidadaos caminham por decisao propria ou a fim de se comprazerem (hina tois autois hedontai); ou, ainda, se sao meramente persuadidos nas circunstancias vividas nas assembleias, ou se sao as leis que os persuadem, tendo em vista a forca ou a felicidade da cidade como um todo. Isto e, fica claro que a construcao coletiva do consenso esta necessariamente associada seja a imposicao de penas (dores), seja a expectativa de futuros beneficios (prazeres). O fato de o tema do consenso politico estar tambem associado, assim, aos diferentes tipos e quantidades de prazer e de dor nao deixa de surpreender; mas o que e mais relevante e a consequencia desse modo de formular o problema para a concepcao da excelencia como 'arranjo coletivo' ou comercio de prazeres e dores. Mesmo que nao possamos decidir se ha referencia direta de Platao a Antifonte, na critica feita por Socrates aos homens em geral, fica patente o quanto essas passagens do sofista sao consistentes com a concepcao de excelencia que e criticada pelo Socrates do Fédon.
Em outro fragmento, trata‑ se do fato de um homem desejar casamento e mulher (kai gamon kai gynaikos epithymesato), o que e visto como um grande jogo ou competicao (megas gar agon); de partida, o tema e o da nao adequacao (me epitedeia) e da dificuldade (desgraca) (chalepai, tei symphorai) que isso pode implicar, nas situacoes de oposicao ou conflito que serao geradas, levando‑ o a fazer dos amigos inimigos (tous philous ekhthrous poiesai), cada um valorizando e sendo valorizado (axiosanta kai akiothenta) diferentemente22.
O tema explicito e o desejo basico de amor e acasalamento, ja compreendido como uma situacao de competicao, ou seja, que inevitavelmente levara a necessidade de avaliacao e calculo; os valores sao pragmaticos, como a adequacao e a utilidade, que causam dificuldades ou conflito, por um lado, mas tambem prazer e amizade, por outro, ficando explicita a dimensao axiologica do contexto maior. Nesse ambito, tambem e proposta outra versao do calculo elementar dos prazeres. Cito frases recortadas do fr. 49:
(...) dificil tambem, por outro lado, e ter adquirido tal bem, parecendo conquistar prazeres, mas atraindo dores (...) onde esta o agradavel esta tambem o miseravel, como o seu mais proximo, pois os prazeres nao dao passagem a prazeres, mas a eles seguem dores e sofrimentos (...) tambem os saberes e todos os prazeres consentem em se presentar a partir de grandes aflicoes (...) Eu, pois, nao poderia viver, se para mim um outro corpo surgisse tao carente de cuidado como eu mesmo ja sou (...)23.
Aquilo que parecia ser prazeroso se revela exatamente como seu proprio contrario, mesmo no caso da mulher, o que ha de mais agradavel e mais doce (hedion, glykyteron), e que deveria ser apenas oportunidade de prazeres; donde a conclusao extraida de modo quase empirico: o prazer e seu contrario estao no mesmo lugar, sao opostos muito proximos; surgindo agora uma perspectiva temporal de sucessao: um oposto sucede, da passagem ao outro (tal como no mito do prazer, em Fédon 60B‑ C).
Curiosa observacao, feita a partir da simples descricao empirica, fisica da experiencia elementar da vida de casado: o fato de surgir ao meu lado um outro corpo, igualmente carente, igualmente exigindo cuidados e as dificuldades que isso implica, a ponto de se pensar que seria impossivel viver tal situacao. De um modo geral, dentre os valores contrapostos, nesse contexto, estao a saude do corpo, a vida de cada dia, a reputacao, a reflexao, a boa imagem e o bom nome; os mesmos objetos, praticas e valores que encontramos listados no Fédon, que sao aqui inseridos num calculo que parece nao diferencia‑ los, a nao ser convencionalmente.
Menciono rapidamente o fr. 50, que trata tambem de um tema tao classico quanto central para a interpretacao global do Fédon:
O viver se parece com uma vigilia (phrourai) efemera e a longitude da vida com um dia24.
O texto poetico e tambem pertinente para a nossa reflexao, na medida em que o termo central e justamente phrourai, com sua ambiguidade de local de prisao e de vigilia, ou seja, a vida sendo comparada tanto com a atividade propria de um cuidar, proteger, preservar, quanto com a situacao de emprisionamento; essa ambiguidade presente na frase de Antifonte nos da elementos justamente para refletirmos tambem sobre a funcao do corpo como cuidador da alma, na passagem classica do nosso dialogo.
O fr. 51 e outro texto surpreendente. E espantoso (thaumastos), diz Antifonte, que possamos acusar a propria vida, de nao ter nada de grandioso (nada alem do limite, nada solene), na medida em que, sugere ele, tudo e pequeno e fragil; ou seja, uma vez que a relacao entre os valores, grandes ou pequenos e os afetos que lhes sao proprios vem sempre "misturados com grandes dores" (anamemeignmena lypais megalais)25; essa formulacao pela nocao de "mistura" introduz uma nova abordagem, se nao um novo modo de avaliar o comercio, que difere tanto da indistincao, da confusao entre opostos, quanto da sucessao, que ja encontramos em outros textos de Antifonte. Outro aspecto que remete ao Fédon e a oposicao entre grande e pequeno, ou da 'troca' do menor pelo maior, nocao que esta de algum modo presente no fr. 53: aqueles que realizam obras (que trabalham), poupam, sofrem e guardam a riqueza produzida "tem prazer assim como qualquer um imaginaria (ser possivel) ter prazer" (hedontai hoia de tis an eikaseien hedesthai); mas quando tem que gastar a riqueza, usa‑ la, sentem dor / sofrem (algousin), como se alguem estivesse arrancando um pedaco de suas carnes26. A avaliacao e a seguinte: o produzir, o guardar ou usar algo e visto como fonte de prazer, mas o fato de gastar ou usar os bens e, ao contrario, considerado como fonte de muita dor; ou seja, uma relacao mesquinha, que sugere um apego excessivo a valores menores, nao autenticos, se pensarmos do ponto de vista do Socrates do Fédon. A corporeidade inerente a esses valores, objeto de forte investimento axiologico, esta sintetizada na forte e contundente imagem da 'carne' arrancada.
O fr. 53a fala de individuos que nao vivem a vida presente, pois agem como se fossem viver (literalmente) outra vida, o que faz com que nao vivam bem o presente, e percam seu tempo27. Penso que ha aqui tambem, do ponto de vista de Socrates, uma ideia equivocada de 'troca' ou de comercio, na qual a crenca infundada de que havera outra vida (heteron tina bion) que nao esta faz com que nao vivam autenticamente, trocando o presente por outro tempo que nao vira, o que significa que, na verdade, perdem na 'troca' assim compreendida. Resta vermos como compreendemos a imortalidade da alma no Fédon.
O fr. 54 e uma narrativa (logos)28: um homem que tinha muito dinheiro guardado recusa‑ se a empresta‑lo a outro, e acaba tendo esse dinheiro roubado; quando procura o primeiro, arrependido, ouve dele consideracoes que explicitam a dimensao do calculo operado por ele: por um lado, nao fazer uso do bem nao implica nem em ganhar, nem em perder; ou seja, o bem nao esta na mera posse, mas no saber usa‑ lo; o uso tem que ser regulado pela inteligencia, por alguma reflexao, o que e formulado da seguinte maneira:
Pois o deus, quando nao quer dar a um homem bens, mesmo concedendo uma riqueza de posses, o faz pobre do bem pensar, porque, sendo privado de uma dessas coisas, sera privado de ambas29.
Surpreendentemente, a narrativa nos remete a passagem do Fédon com a qual comecamos nossas consideracoes, em que e feita uma referencia explicita a Esopo. E mais: a expressao usada por Antifonte e tou kalos phronein. Por um momento, parece que o Esopo de Antifonte vai alem do Esopo de Socrates (segundo o qual o deus amarra as duas cabecas para junta‑ las), pelo menos nesse aspecto. A mera posse de riqueza nao constitui o valor, mas o saber usa‑ la, sim; o bem pensar e um valor tao importante quanto o proprio bem material, ou melhor, e elaborada uma equivalencia bilateral, um polo sem o outro nao significa nada. A postulacao do phronein como um bem dado pelo deus indica uma valorizacao do pensar que unifica as duas ordens de bens, mesmo se os iguala 'por baixo'.
O elenco de temas que Antifonte nos proporciona nesses breves textos e surpreendentemente analogo ao que recortamos nas proprias passagens da primeira parte do Fédon: partimos de um mito e chegamos a postulacao do pensamento reflexivo como um elemento decisivo da virtude e da vida bem vivida. Se, por um lado, reconhecemos que ha evidente contraposicao critica, por outro lado, temos que conceder que ha um nivel razoavel de antecipacao das formulacoes de Socrates, mesmo que, obviamente, a nocao de reflexao tenha que ser inserida, no caso de Platao, no contexto bem mais complexo dos dialogos como um todo.
Finalmente, dois fragmentos sobre as aretai:
O fr. 57 trata da coragem30: o homem covarde, sob o pretexto de estar doente, considera justificada sua falta de iniciativa para agir, chegando mesmo a festeja‑ la (ou seja, a ter prazer em nao agir); donde inferimos que a nao virtude seja um tipo de nao acao (um nao partir para a acao), que certamente remete, por sua vez, a um falso prazer.
O fr.58 fala da moderacao31: o homem mais moderado (sophronesteros) e aquele que calcula; antes de agir contra alguem, de modo nao nobre (kakos), hesita, temendo (deimainei) antes (muitas vezes, nesse meio tempo) que, ao agir erradamente (hamarton), traga sobre si as coisas que nao quer; o calculo pondera ainda tanto sobre o que ja aconteceu como sobre o que ainda nao aconteceu; aquele que nao calcula corretamente a possibilidade de receber de volta as consequencias negativas de sua acao nao e prudente (ou sophronei); nesse mesmo sentido, sao mencionadas as esperancas ou expectativas de acao futura, que nem sempre sao boas, podendo se converterem no seu contrario:
Nenhum homem é capaz de discernir (krineien) maisretamente a moderação (sophronynen) de outro homemdo que aquele que contém os prazeres momentâneos(imediatos) (tais parachrema hedonais) do coração, aodominar‑se a si mesmo (autos heauton kratein) e ter prazerem vencer ele mesmo a a si mesmo (nikan hedynetheautos heauton); pois aquele que quer agradar seu coraçãomomentaneamente (imediatamente) (kharisasthai parakhrema)quer as coisas piores no lugar das melhores32.
Chama a atencao a dimensao temporal, no calculo das acoes e dos prazeres; entram em jogo o "antes", o "imediato", o passado e o futuro, as expectativas.
A ponderacao indica o risco que o desejo de prazeres imediatos pode trazer, por causa da possibilidade de o prazer transformar‑ se em seu contrario. E mais: a capacidade de discernimento, ou do reconhecimento perspicaz da virtude do outro esta diretamente ligada a capacidade de dominar a si mesmo; e, ainda, em ter prazer nesse dominio de si; a ausencia de poder sobre si mesmo, ou seja, o ceder ao prazer sem mediacao reflexiva, converte o que e bom no seu contrario; donde a necessidade do calculo de diferencas.
Finalmente, o fr.59 trata da moderacao como dominio de si mesmo, sem explicitar o funcionamento dessa ordenacao de modo detalhado33. A experiencia de desejar (epethymese) (ou tocar) coisas vergonhosas ou ruins e de, nessa medida, ter que dominar a si mesmo, pode tornar um homem moderado (sophron), pois e esse exercicio que faz com que se torne belo e ordenado. O que o fragmento sugere e que quem nem mesmo deseja nao poderia tornar‑ se moderado, porque sequer tem a oportunidade de exercer o dominio de si.
Volto ao texto do Fédon, para finalizar.
E ainda, pode ser que aqueles que estabeleceram para nos os ritos de iniciacao nao fossem, na verdade, inferiores (phauloi); mas, (pode ser que) na verdade, ha muito tempo, este seja o sentido do que disseram enigmaticamente: ou seja, que quem quer que chegue no Hades sem ter sido admitido nos misterios e iniciado permanecera na sujeira; mas aquele que tiver sido purificado e iniciado, ao chegar la, habitara junto com os deuses pois, como dizem os que praticam as iniciacoes, "muitos sao os portadores de tirso, poucos os bacantes (iniciados)". E, na minha opiniao, esses ultimos nao sao outros que aqueles que, sempre, se ocuparam de filosofar retamente. Para fazer parte deles, no que me concerne, tanto quanto foi possivel, eu nao negligenciei nada, ao longo de minha vida, pelo contrario, me empenhei com todo ardor, utilizei todos os meios; se este ardor se orientou corretamente, se chegou a alguma coisa, nos o saberemos com clareza so quando chegarmos la, se agradar ao deus; e me parece que nao sera preciso esperar muito tempo. Esta e, Simias e Cebes, a minha defesa (...) (Phd. 69c3‑ d8)34.
Atraves da metafora da iniciacao, Socrates trata da necessidade de se purificar de erros ou equivocos, de se desfazer a inversao de valores, de livrar‑ se da incapacidade flagrante de discernir entre atitudes autenticas e atitudes nao autenticas, de sair da situacao inferior, na qual nao se compreende em que consiste ser um ser humano excelente.
Socrates esta pronto a rever sua avaliacao em relacao aos iniciados, ou seja, esta propondo que a referencia pode ate ser aceitavel, contato que saibamos interpreta‑la; que a imagem e util, se soubermos resignifica‑ la no sentido da filosofia e da verdade dos valores e da excelencia humana. Parece que, a partir dessa nova compreensao da imagem, Socrates esta disposto a admitir que, na verdade, o que os iniciados diziam, indiretamente, atraves de enigmas talvez estivesse certo, ou seja, que, para se ter acesso ao Hades ou ao plano do invisivel, e preciso, antes, passar por alguma iniciacao, contanto que isso signifique uma efetiva purificacao, uma formacao efetiva no sentido do que ele, Socrates, chama de saber verdadeiro.
4. Conclusoes
Quanto ao calculo dos prazeres, objeto de nossa avaliacao entre os dois autores em questao, penso que o cotejamento com os fragmentos de Antifonte mostra que ha efetivamente, no fundo, um repertorio tematico comum as duas discussoes, mesmo que nao possamos, sem mais, estabelecer vinculacoes diretas.
Por um lado, ha o reconhecimento de um calculo, que e uma troca que "homogeniza valores", que mistura prazeres e dores, confundindo‑ os. Por outro lado, ha a postulacao comum do valor do phronein, como dimensao critica e criterio de discernimento entre as afeccoes que acompanham o uso dos bens e a avaliacao de prazeres e dores, mesmo que de maneira apenas inicial.
Medir os prazeres e dores pelo phronein os unifica, nao miticamente (como sugere ironicamente Socrates no texto inicial, ao propor que as duas cabecas devem ser amarradas), mas impondo‑ lhes uma medida comum: em Antifonte, o valor de troca, de equivalencia; em Socrates, a medida (muito maior) do 'em si' inteligivel, objeto por excelencia da reflexao filosofica, que propoe a (inedita) compreensao da unidade psiquica como configuracao excelente. Alem disso, a resignificacao do calculo redimensiona tambem a temporalidade, implicita na passagem do plano do imediato (do momento) a mediacao (do sempre, permanente).
Na verdade, a phronesis socratica poe em questao criticamente o comercio ou a troca da mera equivalencia entre desiguais (ou de opostos), que nem um deus conseguiria amarrar juntos. Em Antifonte, essas trocas se dao em contextos precisos: por exemplo, no acordo (homonoia), no casamento, nas relacoes entre opostos (grande e pequeno), nas relacoes regulados pelo dinheiro, na relacao entre coragem e moderacao.
E preciso reconhecermos os limites da imagem da troca (comercio); o que muda (entre Antifonte e Socrates) nao e, propriamente, a moeda de troca, mas o sistema de relacoes de equivalencia, que e a racionalidade reflexiva critica. Por um lado, a coragem nao se reduz a dominar seus proprios medos, muitos menos a controlar o medo da morte; prazeres e dores, esperancas e medos, viver e morrer devem ser objetos de reflexao, podendo, assim, ser resignificados pelo proprio processo de reelaboracao pela phronesis. Por outro lado, a moderação nao significa meramente "nao ser dominado" pelos prazeres, desejos ou paixoes; a mediacao da phrónesis reconfigura radicalmente o ambiente ou o sistema de relacoes que e a virtude / excelencia, tal como e concebida pelo Socrates do Fédon.
Perante a contraditoriedade do modo de se compreender as virtudes (que leva a formulacoes como "ser corajoso por medo" ou "ser moderado por excesso"), e toda uma nova estruturacao da psique que e proposta, atraves da reflexao inteligente. Nao se trata exatamente de "trocar o pequeno (prazer) pelo grande (prazer)" ou "o grande (medo) pelo pequeno (medo)"; trata‑ se de uma troca que nao e mero comercio de objetos constituidos por opinioes questionaveis ou equivocadas, mas um processo de mediacao reflexiva, realizado pela inteligencia exercida criticamente, que pesquisa e conhece a dimensao inteligivel do que e, efetivamente, cognoscivel.
Phronesis nao e mera competencia tecnica, nem estrategia pratica, mas ambiente ou contexto de resignificacao, atitude reflexiva, filosofia, compreendida como esforco e busca argumentada, no sentido de se compreender as implicacoes ontologicas subjacentes as determinacoes que justificam diferentes valoracoes de prazeres e dores.
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Notas