REVIEWS
Benoit, H. (2015). Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo, Annablume
Recepção: 15 Agosto 2015
Aprovação: 15 Setembro 2015
Foi finalmente publicada a primeira parte da tese de Livre Docencia em Filosofia de Hector Benoit, defendida em 2004 no Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. O.trabalho original era uma tetralogia dramatica e, para fins de publicacao, foi dividido em duas partes. Benoit apresenta, nessa primeira parte, um trabalho metodologico que serve como preparacao para a publicacao futura do romance filosofico A odisseia de Platão, mas que pode tambem ser lido como um livro autonomo.
O livro, que conta com apresentacao do professor Arlei Moreno, da Unicamp, procura aproximar o leitor da situacao de um leigo que le Platao sem nenhuma informacao, suspendendo os pressupostos teoricos que envolvem o texto dos dialogos e afastando‑ o da metafisica ocidental. A proposta e deixar de lado a ideia de que Platao e o autor supremo de uma doutrina sistematica e comecar a ver a cena dos dialogos como analoga a da poesia homerica e tragica. Nesse sentido, o livro tem um carater negativo, ao colocar em suspensao as interpretacoes que impedem a aproximacao a um Platao conceitualmente poetico. Seu intuito e preparar o leitor para ler os dialogos sem o recurso da tradicao interpretativa, o que permite contemplar a sua lexis (modo de exposicao). A disposicao ordenada dos textos em uma temporalidade construida com os elementos lexicos revolucionaria a interpretacao desses textos e o processo hermeneutico de toda a historia da filosofia, segundo Benoit.
O livro e dividido em cinco capitulos. O capitulo 1, Platao e a poetica do logos, levanta a questao da relacao entre discurso filosofico e poesia a partir do logosde Platao, questao que, segundo o autor, nao foi bem compreendida ate hoje, nem mesmo por Heidegger. O.problema passa a ser investigado a partir de um historico de narracoes que relatam Platao como sendo inicialmente um poeta e que, ao se tornar discipulo de Socrates, se afasta da poesia e se transforma em seu inimigo. Esse percurso biografico de Platao, que Benoit considera lendario, foi divulgado por Apuleu no seculo II d.C., sustentado no neoplatonismo por Proclus no seculo V d.C. e relatado no manual anonimo Prolegomena, texto do seculo VI d.C. A descricao de Platao como critico da poesia perdura ate Nietzsche, causando, na interpretacao do texto platonico, uma tensao entre arte, moral e metafisica. Essa tensao se repete em Heidegger e permanece na maioria dos comentarios contemporaneos que se referem a Platao como aquele que expulsou os poetas da cidade, dentre os quais Havelock. Gracas a esse tipo de interpretacao, ate artistas e pensadores de vanguarda se voltaram contra Platao, mostra Benoit. O autor coloca uma duvida: como e possivel que Platao tenha tentado destruir a poesia e, ao mesmo tempo, tenha escrito obras filosoficas que sao tambem esteticas e dramaticas?
Benoit considera que nao existe dialogo que seja propriamente narrativo. Todos os dialogos sao dramas nao narrados diretamente ao leitor, mesmo aqueles que a tradicao reconheceu como narrativos. Como exemplo, faz um exame do Protágoras, do Cármides e da República para mostrar que sao dialogos e nao narracoes, como se costuma interpretar. Se os dialogos forem lidos a partir da forma dramatica e da imitacao, propoe, a obra de Platao se aproxima da lexispoetica da tragedia e da comedia. Os dialogos seriam entao uma das formas supremas da arte grega.
Para Benoit, a cena da metafisica ocidental e uma visao exterior da obra. Nietzsche, ao pretender romper com essa cena, paradoxalmente encontra na filosofia de Platao seu alicerce. A duvida do autor e ate que ponto se pode aceitar essa posicao de Nietzsche e de seus seguidores. O livro e um esforco metodologico para mostrar que as acusacoes de que Platao expulsou os poetas e a poesia da cidade se fundamentam em uma tradicao interpretativa duvidosa, da qual Benoit acredita que ainda nao nos libertamos. Em vez de excluir a poesia, o autor opta por seguir a lexis platónica em busca da construcao conceitualmente poetica das temporalidades presentes em seu pensamento.
No capitulo 2, Os dialogos entre Homero e Proclus, Benoit faz uma escolha pela tautagoria, forma de leitura sem qualquer interpretacao, que procura trazer apenas o que se manifesta em suas relacoes de superficie, em detrimento da interpretacao alegorica, que procura uma outra coisa sob as coisas que se manifestam e um outro dizer com significado profundo. Benoit reconstroi historicamente a transformacao do discurso autonomo, nao instrumentalizado, em um discurso que passa a velar o mundo. Com o surgimento das formas mercantis, o logos deixa de ser parte da physis e exige tecnicas de interpretacao para a descoberta de significados profundos. A preocupacao do autor e mostrar como, a partir do seculo V a.C., toda a tradicao antiga e submetida a exegese alegorica, comecando pelos mitos e poemas homericos e chegando ate Platao no neoplatonismo. Ele elege como exemplo dessa tradicao exegetica neoplatonica a leitura que Proclus faz de uma passagem da Ilíada, segundo a qual busca‑ se compreender a doutrina secreta sob os versos de Homero e absolve‑ lo das acusacoes que Platao faz a ele na República. Para Proclus, as imitacoes poeticas escondem manifestacoes onto‑ teologicas e seu esforco corresponde a uma leitura de Homero a luz dos dialogos de Platao. Deve‑ se a Proclus tambem uma vasta interpretacao onto‑ teologica dos dialogos, que Benoit considera tao arbitraria e fantasiosa quanto aquela dedicada a Homero.
Benoit denuncia, nas leituras de Proclus e de seus antecessores, as origens da interpretacao de como Platao criador do mundo supra‑ sensivel, interpretacao essa que surgiu as custas de sucessivas camadas de hermenenutica neoplatonica, e coloca em duvida se as interpretacoes modernas e contemporaneas nao trazem esse legado de mutilacao da lexis platonica. O que Benoit propoe, entao, e um grande trabalho arqueologico para fazer surgir o texto platonico mais proximo de Homero, fora do ambito alegorico do neoplatonismo; propoe nao priorizar a doutrina filosofica, ao modo de Proclus, mas ler os dialogos como organismos internamente e externamente articulados.
O Capitulo 3, Uma obra sem autor e sem doutrina, e uma busca de Platao no interior dos seus proprios dialogos. Em uma epoca em que os gregos afirmavam a autoria de seus escritos, Platao esta ausente dos dialogos, seja como autor, seja como defensor de uma doutrina. Seu nome aparece poucas vezes como personagem, porem de modo breve ou que as vezes, suspeita Benoit, se faz presente por sua ausencia. Por isso, uma leitura com suspensao das suposicoes tomadas pela tradicao como certezas irrefutaveis levara o leitor a ver que pouco resta da presenca de Platao como identidade. Personagens como Socrates, Critias, Parmenides e o Estrangeiro de Eleia nao sao portadores da palavra de Platao e nao ha, nos dialogos, um unico autor que centraliza uma doutrina positiva, coerente e sistematica, ja que os dialogos sao discursos entrecruzados de multiplos personagens e nao podem expressar uma doutrina filosofica unica.
O privilegio da fala de Socrates, alem de diversas estrategias que suprimem a dramaticidade do dialogo, transformaram o texto em monologos e dai, explica o autor, se deduz uma “doutrina platonica” das ideias e, em torno dela, outros “dogmas”, como a ideia de Bem, a oposicao sensivel‑ inteligivel, a teoria da reminiscencia, a teoria da mímesis que condena os poetas, a paideia platonica e o projeto de cidade ideal. A questao que Benoit levanta e: em que medida recortes de discursos de diversos personagens podem, de maneira legitima, ser tomados como a doutrina de Platao? Se hoje essa questao nao faz sentido para os leitores e interpretes, Benoit nota que a Antiguidade nao teve tanta certeza a respeito da existencia de uma doutrina platonica. Para mostrar isso, faz uma exposicao de testemunhos antigos que negavam um Platao dogmatico.
Uma leitura conceitualmente poetica de Platao exige um olhar sem mediacao da tradicao, por isso o capitulo termina com uma introducao ao tema da temporalidade da lexis, mostrando que os personagens dos dialogos sao marcados por esta temporalidade e nao seres imutaveis como, em geral, tradicao os representa. A maioria dos dialogos possuem demarcacoes temporais objetivas inscritas nos proprios textos, como fatos ou acontecimentos historicos, que os situam em certa diataxis ou disposicao geral.
Segundo o autor, essas demarcacoes temporais ja eram utilizadas em edicoes dos dialogos desde o seculo III a.C. A primeira edicao teria ordenado os textos em trilogias que obedeciam as demarcacoes lexicais. Benoit faz entao um historico da ordenacao dos dialogos nas edicoes, que passam de trilogias para tetralogias, e salienta que ate o seculo II d.C. a disposicao era feita por demarcacoes lexicais, quando entao passa a obedecer a uma nova ordem exigida por uma suposta “doutrina” de Platao. So em 1920 a publicacao da Société d’Édition “Les Belles Lettres” rompe com a tradicao das tetralogias e passa a dispor os diálogos a partir do suposto tempo cronologico de producao da obra. Constroi‑ se, entao, um Platao socratico, dos primeiros dialogos, e um Platao da maturidade, dos dialogos metafisicos. Desde 1950, o problema do ordenamento foi sendo abandonado como teoricamente irrelevante para a compreensao dos textos de Platao, com excecao das interpretacoes de Schleiermacher e Munk.
O capitulo 4, A diátaxis enquanto temporalidade da lexis, tenta encontrar a disposicao dos dialogos a partir da lexis, sem qualquer interpretacao. Entre os vinte e nove dialogos reconhecidos como autenticos, Benoit data com precisao dezenove dialogos entre os considerados mais importantes do ponto de vista do conteudo da filosofia platonica e consegue uma datacao aproximada dos outros. A disposicao da temporalidade da lexisobedece uma periodizacao em cinco momentos. Apos a exposicao de seu trabalho de datacao de cada dialogo, Benoit chega ao seguinte esquema geral da temporalidade da lexis: primeiro momento (450) – Parmenides; segundo momento (434 a 410) – Protágoras, Eutidemo, Lysis, AlcibíadesI, Cármides, Górgias, Hipias Maior, Hípias Menor, Lákhes, Mênon, Banquete, Fedro; terceiro momento (410 a 399) – República, Timeu, Crítias, Filebo; quarto momento (399) – Teeteto, Eutífron, Crátilo, Sofista, Político, Apologia, Criton, Fédon; quinto momento (356‑ 347) – Leis.
No capitulo 5, A lexis e outras temporalidades, Benoit reconhece, em Platao, alem de uma temporalidade da lexis, outras tres temporalidades que partem desta e se articulam: uma temporalidade da noesis, correspondente ao pensamento logico‑ conceitual de Platao; uma temporalidade da genesis, correspondente aos acontecimentos que envolvem a historia dos personagens, do pensamento e da historia factual grega; e uma temporalidade da poiesis, correspondente a acao temporal de producao da obra, a sua cronologia.
Em geral, nota o autor, os comentadores privilegiam uma ou outra dessas temporalidades como filosoficamente pertinente. Sob essa perspectiva, faz criticas a tais comentadores, principalmente a corrente estruturalista de Victor Goldschimidt, que teria privilegiado a temporalidade logico‑ conceitual.
A partir da temporalidade da lexis, seguindo o criterio metodologico, pode‑ se chegar primeiramente a temporalidade logico‑ conceitual de um modo nao mais arbitrario, como aquele que propos o estruturalismo. A disposicao ordenada dos textos segundo a temporalidade da lexis poderia indicar a intencionalidade do autor, ou seja, a forma final atraves da qual Platao procurou ordenar seu logos. Teremos entao o sentido de cada dialogo no tempo geral de sua obra. Assim, a temporalidade da lexis deve ser pensada como nao meramente literaria, sob o risco de alterar a temporalidade conceitual dos dialogos.
Depois de descobertas lexis . noesis, havera a possibilidade de reconstruir (em maior ou menor medida) a temporalidade da genesis – a historia biografica de Platao . e dai se pode finalmente chegar a temporalidade da poiesis – a cronologia de sua obra. A ordem metodologica das temporalidades e lexis‑noesis‑genesis‑poiesis, embora a ordem objetiva de construcao dos textos seja genesis‑poiesis‑noesis‑lexis. A lexis deve ser sempre o ponto de partida metodologico para os leitores de Platao.
A temporalidade da lexis nao pressupoe que o Platao tenha o projeto de sua obra acabado desde o comeco. Benoit considera lexis . noesis como resultados de toda a producao do autor. Portanto, a temporalidade da genesise a temporalidade da poiesis nao coincidem com elas. Tanto lexis quanto noesis sao posteriores as outras duas temporalidades porque, afirma, provavelmente somente no fim da sua producao Platao conseguiu decifrar o enigma do tempo conceitual de sua obra.
A publicacao do livro se fazia necessaria porque traz aos estudiosos em Platao e publico em geral uma ideia que vem ha anos influenciando alunos e colegas de Benoit. Tambem e um alerta para que o leitor de Platao questione se o Platao que esta lendo nao e um texto recortado e completamente afastado da cena dramatica. Benoit provoca o leitor a ler o texto platonico na sua arquitetura e no seu movimento e mostra que Platao esta muito alem daquele filosofo dogmatico dos dois mundos, que condenou o corpo, o amor e a arte. Ao sabermos a origem dessa interpretacao, podemos coloca‑ la em duvida e olhar o Platao criador de uma filosofia poetica. Ao encontrarmos nos dialogos um sinal de que o pensamento de Platao so estava terminado depois de sua obra ter sido escrita, de que sua filosofia foi um pensamento dinamico sempre em construcao, nao uma doutrina, podemos ler os dialogos sem procurar neles um sentido pre‑ determinado.
Ha que ter o cuidado, no entanto, de nao nos deixarmos tomar por um medo das interpretacoes a ponto de cair em uma especie de odio aos interpretes, lembrando a misologia a qual Socrates se refere no Fédon. A leitura de um texto antigo nao e um fim em si mesmo, nem que tenha um objetivo de reconstrucao historica. Quando se trata de uma leitura filosofica, a leitura que se faz, as questoes que se coloca, tem a ver com nossa realidade, por isso dependem de ferramentas hermeneuticas. Varias interpretacoes aproximam os problemas filosoficos levantados por Platao a problemas filosoficos atuais e e isso que move a discussao e faz com que Platao seja um filosofo estudado ainda hoje.
O que Benoit propoe, um trabalho liberto de toda e qualquer exegese, e um primeiro trabalho metodologico necessario ao exame dos dialogos. Minha duvida, porem, e se deve ser definitivo ou se o trabalho metodologico de Benoit pode ser um guia para reconhecer uma boa interpretacao, aquela que ajuda a refletir sobre Platao sem mutila‑ lo. Talvez nao seja impossivel conciliar a leitura que Benoit nos proporciona com a leitura da vasta e importante pesquisa em Platao. Como Benoit mostra, Platao tem muitos logoi. Por que nao pode ser lido de varias maneiras?