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O CONJUNTO CEARÁ E A POLÍTICA DE HABITAÇÃO NA DITADURA CIVIL-MILITAR (1976-1985)
Angerlânia da Costa Barros
Angerlânia da Costa Barros
O CONJUNTO CEARÁ E A POLÍTICA DE HABITAÇÃO NA DITADURA CIVIL-MILITAR (1976-1985)
The Conjunto Ceará and the housing political in the civil-military dictatorship (1976-1985)
El Conjunto Ceará y la política de vivienda en la dictadura civil-militar (1976-1985)
Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 42, pp. 147-171, 2021
Universidade Federal da Grande Dourados
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Resumo: Este estudo busca entender de que modo e em que contexto a política de habitação dos militares foi implantada na capital cearense e como os grandes conjuntos habitacionais produzidos pelo BNH/COHAB, neste período, ocasionaram a expansão territorial de Fortaleza e se tornaram o lugar da população pobre na cidade. A escolha pela análise da construção do Conjunto Ceará, entre 1976 e 1985, deu-se por ele ser o maior de todos os conjuntos produzidos pelo BNH na metrópole cearense. Apesar de bastante desenvolvido e equipado, atualmente, o local nasceu quase desprovido de condições mínimas de moradia, levando os seus moradores a reivindicarem inúmeros equipamentos e serviços urbanos durante os seus primeiros anos de existência, os quais, segundo os planos habitacionais, deveriam estar implantados antes da entrega das casas. Utilizou-se como fontes, os jornais O Povo e Correio do Ceará e relatórios administrativos do município de Fortaleza.

Palavras-chave: Conjunto Ceará, Política habitacional, Moradia popular.

Abstract: The following study intends to understand how and in what context the military housing policy was implemented in the capital of Ceará and how the large housing complexes produced by BNH/COHAB, in this period, caused the territorial expansion of Fortaleza and became the place of the poor population in the city. The analysis of the Conjunto Ceará construction, between 1976 and 1985, was chosen because of the largest of all the sets produced by the BNH in the Ceará metropolis. Despite being quite developed and equipped today, the place was born almost devoid of minimum housing conditions, leading its residents to claim numerous urban equipment and services during its first years of existence, which, according to housing plans, should have been implemented before delivery of houses. The sources used were the newspapers O Povo and Correio do Ceará and administrative reports from the municipality of Fortaleza.

Keywords: Conjunto Ceará, Housing political, Low-income housing.

Resumen: Este estudio busca comprender como y cual contexto se implementó la política de vivienda militar en la capital de Ceará y cómo los grandes conjuntos habitacionales producidos por BNH / COHAB, en este período, provocaron la expansión territorial de Fortaleza y se convirtieron en el sitio de la población pobre de la ciudad. La elección de analizar la construcción del barrio, Conjunto Ceará, entre 1976 y 1985, es porque es el más grande de todos los conjuntos producidos por el BNH en la metrópoli de Ceará. A pesar de estar bastante urbanizado y equipado en la actualidad, el barrio nació casi desprovisto de condiciones mínimas de vivienda, lo que llevó a sus vecinos a reclamar numerosos equipamientos y servicios urbanos durante sus primeros años de existencia, los cuales, según los planes habitacionales, debían ser implementados antes de casas. Las fuentes utilizadas fueron los periódicos O Povo y Correio do Ceará e informes administrativos de la ciudad de Fortaleza.

Palabras clave: Conjunto Ceará, Política de vivienda, Vivienda popular.

Carátula del artículo

DOSSIÊ 18: HISTÓRIAS MARGINAIS, ALTERIDADES E CRÍTICAS EPISTÊMICAS

O CONJUNTO CEARÁ E A POLÍTICA DE HABITAÇÃO NA DITADURA CIVIL-MILITAR (1976-1985)

The Conjunto Ceará and the housing political in the civil-military dictatorship (1976-1985)

El Conjunto Ceará y la política de vivienda en la dictadura civil-militar (1976-1985)

Angerlânia da Costa Barros
Rede Municipal de Ensino de São Gonçalo do Amarante-CE, Brasil
Fronteiras: Revista de História, vol. 23, núm. 42, pp. 147-171, 2021
Universidade Federal da Grande Dourados

Recepción: 27 Septiembre 2021

Aprobación: 14 Diciembre 2021

Introdução

Alguns meses após a implantação da ditadura, de 1964, houve a criação de um projeto nacional de habitação popular destinado, na teoria, às pessoas menos favorecidas economicamente. Segundo Dilvo Peruzzo (1984), esse plano habitacional criou vários órgãos na tentativa de solucionar o problema de moradia dos mais pobres. Um deles foi o Banco Nacional de Habitação (BNH)1 que tinha por objetivo prover residências às populações de baixa renda, reduzir as aglomerações populacionais e favelas nas grandes cidades e, sobretudo, desenvolver a construção civil para beneficiar a economia do país. Em outras palavras, a medida procurava sistematizar a construção de casas para expandir o setor de construção civil, absorvendo mão-de-obra barata nesta área para alavancar a economia e, sobretudo, para conseguir manter o programa sem gerar prejuízos a União, como se pode perceber na notícia abaixo:

Escolheu-se, assim, uma estratégia indireta para, utilizando-se a habitação como meio, gerar empregos e, por via destes, pela criação de um mecanismo de poupança compulsória, gerar recursos para produzir mais habitações, mais empregos e mais recursos [...] Em síntese, buscou-se obter das forças incoercíveis do processo de urbanização a geração dos recursos para resolver os problemas por ele provocados, para isso se utilizando da habitação como meio e como motivação para restaurar hábitos de poupança popular. (CORREIO DO CEARÁ, 05/1971, p. 14, Edição Especial).

Interessante é que o governo apresentava essas medidas, culpando as consideradas forças incoercíveis do processo de urbanização por existir déficit habitacional. Entretanto, o problema era cíclico: se a população não tinha emprego, também não tinha muitos recursos, logo, como poderia economizar? Do mesmo modo, sem ter capital disponível, as pessoas não conseguiriam comprar casas, portanto, as opções viáveis eram morar de aluguel ou ocupar terrenos ociosos. Diante desta situação, os moradores pobres passavam a ser o incômodo das reformas urbanas, desconsiderando que a questão fosse advinda da má distribuição de renda e do espaço citadino, da pouca oferta de moradias, do pouco mercado de trabalho e da especulação imobiliária.

Como essa política habitacional era nacional, os chefes executivos dos estados e das capitais, por passarem a ser escolhidos pelo regime, estavam submetidos ao comando dos militares. Assim, rapidamente, as Companhias de Habitação (COHAB’s) efetivaram o seu papel de agente comercial do BNH, atuando na construção e venda de casas para os setores de baixa renda (AZEVEDO; ANDRADE, 1982), em várias cidades brasileiras. Em Fortaleza, por exemplo, foram erguidos pela COHAB-CE, de acordo com o relatório do Instituto de Planejamento do Ceará (IPLANCE), de 1978, seis Conjuntos Habitacionais, entre 1967 e 1978: Pirambu, Presidente Castelo Branco, Aliança, Santa Luzia do Cocó2, Prefeito José Walter e Conjunto Ceará.

Os dois últimos citados foram os primeiros grandes conjuntos construídos pela COHAB, os quais devido ao número expressivo de unidades de moradia alcançaram a posição de bairro (MÁXIMO, 2012). A quantidade de casas presentes no Conjunto Habitacional José Walter, mais de quatro mil, conferiu ao local o nome de “sétima cidade”, pois correspondia a mesma disposição de moradias contida no sétimo maior município do Ceará, à época. Todavia, os problemas de abastecimento e infraestrutura do lugar também tinham grandes dimensões, como pode ser observado na dissertação de mestrado de Marise Olímpio (2011), “A Sétima cidade: trajetórias e experiências dos primeiros moradores do Conjunto Habitacional Prefeito José Walter”, e nas inúmeras notícias dos jornais O Povo e Correio do Ceará, desde a sua inauguração em 1970.

Embora os administradores de Fortaleza percebessem que a experiência desse primeiro “conjunto-bairro”3 não fora tão positiva, eles prosseguiram com a estratégia de construir casas populares em quantidades cada vez maiores em porções de terra vazias e periféricas, a fim de concentrar os setores populares, ao invés de dispersá-los em várias localidades. O Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP), de 1973, surgiu para impulsionar essa prática de confinamento de pobres nas periferias, a partir de um discurso de beneficiamento social, por ter se proposto a suprir o déficit de casas para a população de renda média baixa e baixa. Em outras palavras, o PLANHAP era uma revisão do programa anterior e uma tentativa de democratizar o acesso à moradia. O segundo Conjunto Habitacional de Fortaleza idealizado para “cumprir” esse objetivo foi o Ceará e, de modo semelhante ao José Walter, também possuía as mesmas adversidades:

[...] os Conjuntos Prefeito José Walter e, mais recentemente, ainda em fase de conclusão, o Conjunto Ceará, que até o momento já conta com mais de quatro mil unidades residenciais, e uma população estimada em cerca de trinta mil pessoas, aproximadamente [...] tanto num conjunto como noutro, os aspectos de infraestrutura não foram levados na devida conta [...] o conjunto José Walter se ressente da falta de serviços públicos essenciais ou da má qualidade deles. Há problema d’água, tão velho como o próprio conjunto; há problemas de transporte coletivo [...] há problema de limpeza pública e, também, de iluminação. (CORREIO DO CEARÁ, 13/03/1979, p. 9).

O jornal enfatiza que as deficiências do Conjunto Habitacional José Walter eram tão velhas quanto ele, isto porque ele foi o primeiro a ser construído em Fortaleza através do BNH e o primeiro bairro planejado desta capital (OLIMPIO, 2011). Por esta notícia, quando o Conjunto tinha aproximadamente dez anos de existência, podemos deduzir o desinteresse dos administradores urbanos em oferecer melhorias a este local. Portanto, se o conjunto mais antigo não era aprimorado, o recente também não seria diferente: “[...] como o Conjunto pioneiro de Fortaleza, o Prefeito José Walter, o mais novo dele, Conjunto Ceará, atravessa sérias dificuldades, colocando seus habitantes em situação de desespero [...]” (O POVO, 07/10/1979, p. 16). Algumas destas situações de desespero foram pautas de uma página inteira do O Povo, intitulada “Conjunto Ceará: o sonho da casa própria revela-se um pesadelo”, de 8 de abril de 1979. Na notícia, diversos moradores reclamavam da falta de segurança, de policiamento, da ausência de energia e de coleta de lixo, da morosidade dos ônibus (O POVO, 08/04/1979, p. 8).

De acordo com Brasil (2020) e Ceará (1978), o Conjunto Ceará pertencia, inicialmente, ao bairro Granja Portugal, distando do centro da cidade em cerca de 12 km, sendo construído em quatro etapas, entre 1976 e 1981. Na primeira fase ou etapa, em 1976, foram entregues 966 unidades, sendo a maior parte das casas de tipo B e C.4 Ocupado desde abril de 1977, a inauguração oficial do Conjunto Ceará foi em 10 de novembro do mesmo ano. A segunda etapa prometia 2.516 unidades a serem entregues em dezembro de 1977, porém, só parte delas estava construída em 1978, 1.200 moradias, restando a conclusão de mais 1.316 (CEARÁ, 1978). Em 1979, era previsto a finalização do local com a entrega de mais 3.100 moradias, a terceira etapa. Porém, só edificaram 2.037 unidades. Devido à grandiosidade do conjunto, houve a necessidade de mais uma quarta etapa de construção. Para esta fase, a COHAB prometeu mais 3.150 casas.

“O conjunto é programado”, explica o Diretor da COHAB, referindo-se ao Conjunto Ceará [...] Até a terceira etapa, contam-se 5.519 casas e ele observa que “ao terminar a quarta etapa não poderá ser construída nenhuma habitação”, os concorrentes devem procurar outro conjunto. (O POVO, 14/01/1979, p. 6).

A soma de 5.519 casas no Conjunto Ceará significava, também, uma população de 30 mil pessoas, tendo como base uma média de seis pessoas por moradia. Ao fim da quarta etapa, seriam 8.669 residências. Todavia, como aponta a citação acima, a quantidade ainda era insuficiente, pois o número de inscritos desejosos de morar no Conjunto Ceará estava em torno de 25 mil e caso “os candidatos que concorrem às casas oferecidas pela COHAB, não forem classificados nesta terceira etapa (como também a quarta) [...] estarão automaticamente inscritos para outro conjunto” (O POVO, 14/01/1979, p. 6).

Os critérios de seleção dos moradores priorizavam a renda familiar, o tamanho da família, a necessidade de habitação a depender do tipo de casa, condições de emprego, entre outros. Era contraditório que o Conjunto realizado com recursos do PLANHAP, o qual estabelecia a aquisição de casas por famílias com renda entre 1 e 5 salários mínimos, permitisse a inscrição de candidatos, desde a sua primeira etapa, apenas de quem recebesse mais de 2 salários (CEARÁ, 1978).

No mesmo período de inauguração da primeira etapa e de construção da segunda, a COHAB já anunciava as “inscrições para a aquisição da casa própria na terceira etapa do Conjunto Ceará, que terá 2.037 unidades habitacionais” (O POVO, 07/10/1977, p. 5). A inauguração da terceira etapa ocorreu em março de 1979. Enquanto os políticos apresentavam a ampliação do local como uma grande obra social de habitação popular para a população de baixa renda (O POVO, 08/03/1979, p. 3), os moradores antigos lamentavam que mais 2.037 famílias teriam o seu sonho da casa própria transformado em pesadelo devido às más condições de moradia do Conjunto Ceará (O POVO, 08/04/1979, p. 8). Nem mesmo o fato de que a renda média dos inscritos atendidos pela COHAB, estivesse em torno de 3,5 e 7 salários mínimos, a infraestrutura do lugar continuava deficiente, persistindo a prática do BNH em implantar conjuntos habitacionais sem cumprir as exigências básicas como esgoto, limpeza, transporte e segurança.

A política habitacional dos militares em Fortaleza

A derrubada do presidente João Goulart, em 31 de março de 1964, e a tomada do poder pelos militares, além de acarretarem muitas mudanças político-administrativas no país, promoveram novas medidas na questão habitacional. Passados quase cinco meses do governo Castelo Branco, a Lei n.º 4.380, de 21 de agosto, instituía o Plano Nacional de Habitação e os órgãos que o compuseram, entre eles, o Banco Nacional de Habitação e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU)5, como um dos principais projetos ditos sociais do período. A prioridade desta política, “[...] a construção de conjuntos habitacionais destinados à eliminação de favelas, mocambos e outras aglomerações em condições subumanas de habitação [...]”6, assemelhou-se aos objetivos dos planos anteriores, os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP’s), de 1933, criados por Getúlio Vargas, e a Fundação Casa Popular (FCP), de 1946, a qual foi incorporada7 ao Programa.

O propósito de erradicar as zonas precarizadas, sobretudo, dos melhores locais das metrópoles, fazia parte da tentativa de ordenar as cidades através das intervenções urbanas de prioridade capitalista. O espaço urbano era considerado uma mercadoria altamente rentável, cara e disputada entre os seus habitantes ricos, médios e pobres e o mercado imobiliário, que se preocupava apenas em explorar e gerar riquezas com a terra urbana (MARICATO, 2015). A própria escolha dos terrenos onde seriam implantados os conjuntos das COHAB’s deveria obedecer a ordem do capital: precisava estar fora do jogo especulativo do mercado, ou seja, em áreas de vazios urbanos sem a implantação de serviços ou equipamentos citadinos, a fim de baixar o preço das terras (CEARÁ, 1978).

Segundo Azevedo e Andrade (1982), a política habitacional dos militares intencionava solucionar menos os aspectos sociais que os econômicos, pois, “[...] a geração de novos empregos, a mobilização da construção civil para atenuar a crise econômica e as vantagens táticas de sua utilização para sanar crises localizadas tiveram bastante peso na concepção da política [...]” (AZEVEDO; ANDRADE, 1982, p. 60). Não por acaso, já estava prescrito no artigo 55 da Lei supramencionada que a SERFHAU deveria “[...] fomentar o desenvolvimento da indústria de construção, através de pesquisas e assistência técnica, estimulando a iniciativa regional e local e incentivar o aproveitamento de mão-de-obra e dos materiais característicos de cada região [...]”. Ademais,

O Plano Nacional de Habitação – e com este o BNH – surge num momento em que é crucial para o novo regime dar provas de que é capaz de atacar problemas sociais. A percepção é que há “uma vacância de lideranças”, que “as massas estão órfãs” e “socialmente ressentidas”, e que é preciso mostrar que o novo governo é receptivo a suas necessidades [...]. (AZEVEDO; ANDRADE, 1982, p. 58-59).

No caso, as maiores necessidades “das massas” eram o déficit de moradias, a precarização das áreas onde habitavam os mais pobres e o desemprego. A produção de casas representava, aparentemente, a solução de todos estes problemas. Considerando a crise econômica do período que se arrastava desde o governo Jango, a estratégia utilizada para arrecadar fundos para o Banco Nacional de Habitação foi criar outros órgãos, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS),8 em 1966, de captação compulsória, e as cadernetas de poupança e letras imobiliárias, através do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), por meio de captação voluntária. O controle sobre estas finanças públicas e privadas estava sob a responsabilidade do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), cujo órgão central era o próprio BNH. Antes da criação destes órgãos, em 1966, as empresas já repassavam ao Banco do Brasil “[...] a importância correspondente a 1% sobre as folhas de pagamento, para a formação do capital do Banco Nacional de Habitação” (O POVO, 21/11/1964, p. 15).

Em outras palavras, os trabalhadores pobres “doavam” obrigatoriamente uma quantia fixa do seu salário para a realização de um projeto que, depois, excluiria grande parte deles de ter acesso às habitações, pois os preços dessas unidades eram inviáveis para os desfavorecidos financeiramente. Diferentemente do que ocorria com os contribuintes, por opção, das camadas médias e altas, os quais foram os mais beneficiados por este plano nacional. Mesmo existindo duas maneiras de captação, entre 1966 e 1974, “[...] o Fundo de Garantia de Tempo e Serviço continua(va) sendo a parcela maior da receita do BNH para a execução da sua política habitacional [...]” (CORREIO DO CEARÁ, 08/06/1971, p. 12). Somente a partir de 1975, os recursos das cadernetas de poupança e letras imobiliárias superaram os do FGTS (AZEVEDO; ANDRADE, 1982), mas isto não significou o equilíbrio das construções destinadas aos grupos médios / altos e aos pobres.

Apesar do plano se apresentar enquanto uma medida social que viabilizaria a aquisição de casas próprias para a população cuja renda fosse de 1 a 5 salários mínimos, ele produziu mais imóveis para os setores abastados, o público-alvo preferido dos financiamentos do BNH em todo o país, inclusive, em Fortaleza:

[...] não só em nossa cidade, mas em todo o Brasil, em outras capitais, sobe o número de imóveis construídos – principalmente edifícios de apartamentos, sendo que em São Paulo, no último mês do ano passado, foram lançados sessenta e três imóveis contra cento e três do Rio de Janeiro, onde predominam as construções mais caras, preferidas pelos que atingem “status” social mais importante na sociedade. Os apartamentos mais caros (que concorrem também com os preços de Fortaleza) estão na faixa de quatro milhões de cruzeiros, e os mais modestos [...] setecentos mil cruzeiros [...] os preços, principalmente para vendas financiadas pelo BNH, não são inferiores, vias de regra, aos anunciados em jornais de Rio e São Paulo (CORREIO DO CEARÁ, 19/01/1979, p. 4).

O órgão que promovia o mercado popular de casas era a COHAB, uma espécie de agente comercial do programa, atuando na construção e na venda de casas para os setores de baixa renda. Porém, suas atividades só foram consideradas exitosas, dentro da perspectiva do programa, em 1977, quando o número de residências financiadas para o mercado popular superou as do médio (AZEVEDO; ANDRADE, 1982). Contudo, observa-se pela notícia acima do Correio do Ceará, que, em 1979, o Banco Nacional de Habitação não diminuiu o investimento em casas para as famílias mais abastadas. Como a intenção da política habitacional era o lucro com a venda dos imóveis, a inadimplência dos mutuários9 pertencentes à população pobre foi o grande algoz deste projeto. Isto acarretou a limitação da COHAB, estimulou o BNH em investir mais em desenvolvimento urbano do que em habitação popular e, sobretudo, promoveu a parceria entre Município, Estado e União:

Em 1969, a política de habitação popular tinha se revelado o mais completo fracasso, devido ao total descompasso entre os rendimentos da clientela popular e as dívidas relativas ao financiamento da casa própria [...] Recursos não faltavam ao BNH. Faltavam clientes com estatura financeira para responder às regras do jogo, daí a investida rumo às prefeituras municipais e governos estaduais. (MARICATO, 1987, p. 38).

Dada esta situação de quase abandono aos menos favorecidos pelo plano, o Governo Federal reformulou algumas medidas para ajustar-se ao mercado popular, a fim de se aproximar dos objetivos e das intenções utilizadas para justificar a criação do BNH e do Sistema Financeiro de Habitação: a construção de casas populares (MARICATO, 1987). Assim, o presidente General Emílio Garrastazu Médici lançou, em 23 de janeiro de 1973, o PLANHAP, cujo termo popular simbolizava ou recuperava o público que eles, desde o início, deveriam priorizar: o pobre. O discurso deste “novo” projeto era praticamente o mesmo do programa elaborado em 1964 e, diante de um contexto político fortemente centralizado, todos os estados do Nordeste associaram-se a ele:

O Ceará e a Bahia vão participar do Plano Nacional de Habitação Popular - PLANHAP, que propiciará a construção de 57.273 unidades residenciais no primeiro estado e 91.210 no segundo [...] Enfatizando a rápida aceitação do PLANHAP pelos diversos Estados, o ministro Costa Cavalcante declarou que os Estados do Piauí, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Paraíba, Maranhão e Guanabara já assinaram idêntico protocolo [...] O PLANHAP atingirá apenas a população da faixa de renda entre um e três salários mínimos. A finalidade inicial do plano será garantir a eliminação do déficit atual de atendimento da demanda de novas famílias. (O POVO, 13/02/1973, p. 1. Grifos meus).

A proposta dos militares era construir conjuntos habitacionais em larga escala para atender à população carente, destacada em itálico na citação acima. A diferença entre a política anterior e o PLANHAP se deu com a redução do limite financeiro de cinco salários mínimos para apenas três, numa tentativa de voltarem-se às camadas populares. Ainda assim, muitas famílias, sobretudo moradoras de áreas marginalizadas, não eram incluídas pelo novo plano, por não estarem devidamente inseridas no trabalho formal e não conseguirem comprovar renda fixa. Como já comentado, os inscritos e contemplados pelos conjuntos habitacionais possuíam renda acima do limite estipulado pela política.

Uma das características dos conjuntos habitacionais construídos pelo BNH, a partir do PLANHAP, de acordo com Máximo (2012), era o expressivo número de unidades residenciais em um mesmo local, em nada comparáveis à reduzida quantidade de casas produzidas nos anos iniciais da ditadura militar. Em Fortaleza, antes de 1973, ano de criação do PLANHAP, os quatro conjuntos feitos pela COHAB tinham entre 84 e 380 unidades.10 O único construído com mais de 4 mil residências, neste período, foi o José Walter, o pioneiro. Depois veio o Ceará, com quase 9 mil moradias, seguido do Conjunto Esperança (1982), com 2.139 casas. A quantidade elevada de habitações nos conjuntos construídos entre o final da década de 1970 e os anos de 1980, a consequente ampliação do território periférico de Fortaleza, bem como da aproximação com as cidades vizinhas, são características que Máximo (2012) classificou de conjuntos-bairros11.

Os conjuntos-bairros de Fortaleza, por exemplo, são vistos pelo Sr. Roberto Cabral12, funcionário da Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (HABITAFOR), mais sob um aspecto negativo do que positivo, pois, ainda hoje, acarretam muitos transtornos de abastecimento e deficiência de infraestrutura devido ao grande contingente de pessoas em uma mesma região:

O BNH construiu muita casa e aí surgiram bairros como o Conjunto Zé Walter, Mondubim, [...] Conjunto Ceará, Conjunto Zé Walter, era você não pensar no seguinte: qual o planejamento que eu faço num conjunto que é uma cidade dentro da cidade? Qual o estudo feito para fazer um conjunto desse anterior, um estudo bem anterior para saber que a cidade terá que crescer pra onde? Então hoje, Conjunto Ceará e Zé Walter é um baita problema pra qualquer gestão pública, porque a maneira como eles foram colocados obriga a colocar uma cidade no Zé Walter. Como isso funciona? É como você tivesse que criar uma Prefeitura no Zé Walter, uma no Conjunto Ceará. É impossível um sistema de água, de esgoto, é administrar o caos. Imagina num mesmo lugar, a concentração de água para uma cidade e como fica o resto da cidade? As COHABs não planejaram bem.13

Um dos principais pontos em comum destes conjuntos-bairros é a localização deles em lugares afastados das áreas centrais / nobres da capital. Esta característica deveu-se à estratégia do BNH de construir residências em espaços vazios e longe dos locais bem equipados das cidades, tanto para comprar terrenos mais baratos e, assim, vendê-los por um preço relativamente baixo, quanto para não precisar atrapalhar os negócios lucrativos das empresas imobiliárias, que escolheram o lado leste da cidade para a construção de mansões e, posteriormente, edifícios de luxo.

De todo modo, foram a extensão territorial e o contingente populacional destes conjuntos que proporcionaram mais investimentos urbanos aos espaços periféricos onde eles foram implantados, ainda que, a maioria dos serviços como bancos, hospitais, postos de saúde e departamentos municipais tenham sido instalados mais para impedir a ida destes moradores ao centro da cidade, promovendo a redução do trânsito naquela área e um isolamento maior dessa população em seus locais de moradia.

A concentração de conjuntos habitacionais na porção periférica de Fortaleza se deu pela disponibilidade de terrenos e, também, pela estratégia de aglomerar a massa trabalhadora em locais específicos e afastados dos bairros nobres, a fim de homogeneizar os espaços e impedir o surgimento de favelas. Dessa forma, entende-se o porquê de muitas cidades terem zonas bem definidas e facilmente reconhecidas enquanto um bairro popular, um bairro de classe média ou de classe alta. Apesar de o governo ter promovido a aquisição da casa própria para vários brasileiros enquadrados no perfil de baixa renda, “[...] muitos dos conjuntos habitacionais construídos em todo o país trouxeram mais problemas para o desenvolvimento urbano do que soluções. A má localização na periferia, distante das áreas já urbanizadas, isolando e exilando seus moradores, foi mais regra do que exceção [...]” (MARICATO, 1997, p. 51).

Ainda que o governo municipal de Fortaleza “apresentasse” propostas de refreamento do poder da especulação, percebemos que este detinha o controle sobre as melhores áreas da urbe, ou seja, os locais equipados. Desse modo, os terrenos onde seriam edificados os conjuntos do BNH quase sempre estariam distantes dos espaços mais valorizados. Existia uma disputa entre moradores, prefeitura e imobiliárias pelas áreas próximas ao Centro, bairro mais antigo da cidade e que, comparado às zonas periféricas da década de 1970, apresentava uma melhor infraestrutura urbana, por dispor de serviços necessários à vida na urbe. Além disso, era a região com as maiores ofertas de trabalho, pois era a maior zona comercial da capital. Estava vizinho à Zona Industrial da Avenida Francisco Sá, como também das mansões da Aldeota, que empregavam muitos trabalhadores domésticos. Morar próximo ao Centro significava usufruir de todas estas vantagens:

O centro de uma cidade se configura como área de fisionomia própria, que a individualiza frente às demais que compõem o espaço urbano. É fácil distingui-la do conjunto da cidade, pois ela se caracteriza pela complexidade de funções e pela concentração de serviços. É nela que se localizam as atividades bancárias, os grandes negociantes, os escritórios de indústrias. Essas funções atraem a presença de outros serviços, tais como o comercial, o recreativo, o cultural que, por sua vez, implicam na presença de outras, como de alimentação e de alojamento. A procura dessas áreas para estabelecimento de todos esses serviços, torna o centro um setor altamente valorizado, o que traz como repercussão um adensamento vertical. Sendo um local de trabalho e de negócios, exige um sistema de transporte que converge basicamente para essa área central. Assim, é um lugar congestionado por veículos e pedestres durante o dia e vazio durante a noite. (PLANDIRF, 1972, p. 141).

Contudo, além da escolha por lugares afastados das áreas centrais, outra marca deixada pela política do BNH foi a má qualidade das casas. Se existia uma promessa quase remota de melhorar a infraestrutura dos conjuntos, havia também muita abstenção do governo federal sobre resolver o problema das péssimas condições físicas das residências. Foram noticiadas, mesmo após as mudanças internas da política habitacional com o PLANHAP, inúmeras reclamações de mutuários do Conjunto Habitacional Ceará, exigindo melhores condições de moradia nestes locais e insatisfeitos com as unidades recebidas. A justificativa dada pelo BNH era a de que o órgão tinha limitações internas, recursos humanos e financeiros escassos, presença de intermediários na construção, os quais eram responsáveis pela falta de qualidade das moradias, e existia pouca rigidez na fiscalização e no controle das obras (CEARÁ, 1978).

Em relação aos argumentos de defesa do BNH, quase nada correspondia ao real. O banco, criado em 1964, apenas para cumprir exigências da política habitacional e de urbanização das cidades, possuía todas as prerrogativas que possibilitavam o melhor funcionamento possível de suas ações e projetos. Mesmo após ser transformado em empresa pública14, deixando de ser uma Autarquia, em 1971, ele também era autônomo para contratar serviços auxiliares, fora que seus funcionários eram admitidos por meio de concurso público.

Desse modo, se existia escassez na qualidade do seu quadro humano, que influenciava diretamente nas péssimas construções de moradia, era porque não havia um trabalho de acompanhamento mais minucioso ou preocupado com os resultados. Ademais, afirmar que faltava capital econômico ao BNH servia para legitimar a diminuição do atendimento às camadas mais pobres e, em contrapartida, expandir o financiamento de casas para a população de renda média e alta, bem como em obras urbanas, a exemplo do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA):

[...] O Presidente do BNH acrescenta que para a primeira fase dos trabalhos do saneamento básico (esgotos) para Fortaleza foram liberados 36 milhões de cruzeiros [...] Os recursos, que chegam a 191 milhões de cruzeiros, vão possibilitar a CAGECE15 a implantação ou ampliação do abastecimento d’água de 72 cidades cearenses [...] (O POVO, 04/10/1975, p. 1).

O PLANASA foi apenas um dos inúmeros planos de melhoramentos urbanos existentes naquele período: “as grandes obras financiadas pelo BNH não se restringem ao saneamento [...] há os chamados polos econômicos e há obras nas áreas de transporte [...] além de vias expressas, viadutos e outras mais” (MARICATO, 1987, p. 40). As várias reformas internas na política habitacional dos militares, a partir dos anos de 1970, ocorreram para o programa aparentar ser sólido, eficaz e produtivo. Houve ainda o Programa de Complementação Urbana – Projeto CURA, desenvolvendo “[...] financiamentos com vistas à melhoria das condições de certas áreas da cidade [...]” (O POVO, 09/10/1977, p. 9). Esperava-se, assim, com estes investimentos advindos do PLANASA e do CURA, que a capital cearense deixasse “[...] a incômoda posição de uma cidade sem saneamento básico e passasse a liderar esta área de atuação no território nacional” (O POVO, 09/10/1977, p. 9).

Entretanto, em julho de 1978, a prefeitura de Fortaleza pouco realizou obras de infraestrutura e o Projeto CURA ainda não tinha sido iniciado (O POVO, 08/07/1978, p. 23). Ademais, os melhoramentos urbanos eram raramente realizados em áreas populares ou em conjuntos habitacionais. Prova disso é que, em 1975, surgiu o Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB), o qual, na teoria, passou a vender lotes já contendo a infraestrutura básica essencial: água, energia elétrica e esgoto sanitário (O POVO, 28/04/1979, p. 3). Entretanto, o projeto de implantação de lotes urbanizados em Fortaleza encontrava-se, em 1979, ainda em fase de ajustamento, pois, na primeira tentativa de obter recursos para a sua execução, ele foi rejeitado pelo BNH, por não apresentar um serviço de abastecimento de água condizente com o que previa o programa:

Encontra-se na Secretaria Municipal de Planejamento, para ajustamento, o projeto objetivando a implantação de lotes urbanizados em Fortaleza, destinados a abrigar os 15 mil favelados de Fortaleza, segundo cálculos das autoridades ligadas ao problema do desfavelamento. Este projeto foi entregue, à época da administração do prefeito Evandro Ayres de Moura, ao BNH, tentando a obtenção de financiamento para a sua execução, mas a direção do Banco Nacional de Habitação não concordou pelo fato de o projeto prever a utilização de chafarizes para o abastecimento d’água dos lotes, num total, segundo fontes do BNH, 2.600. A rejeição deu-se ao fato de o chafariz, por si só, (ser) elemento poluidor. (O POVO, 15/03/1979, p. 25).

Entre os anos de anúncio do PROFILURB e da tentativa de instalação deste na capital, o BNH ainda criou o Programa de Financiamento da Construção, Conclusão, Ampliação e Melhoria da Habitação de Interesse Social (FICAM), para complementar a política de aquisição de lotes pelas famílias de renda entre um e cinco salários mínimos. Em síntese, o FICAM financiava o pagamento do terreno adquirido pelo BNH, a compra de material de construção ou a contratação de mão de obra para a edificação da moradia, a fim de viabilizar a construção de casas pelos mais pobres (O POVO, 01/10/1977, p. 13). Os empréstimos concedidos pelo FICAM tinham três objetivos: primeiro, ele tornava flexível o alto custo dos terrenos, pois, aumentava o prazo de pagamento em até 25 anos e, assim, minimizava o valor das parcelas para deixá-lo acessível aos menos favorecidos financeiramente.

Segundo, através desta flexibilidade, o BNH intencionava reduzir a inadimplência dos mutuários e, por último, o plano comprometia-se em garantir que a população de menor renda construísse suas habitações, já que passou a vender lotes, ao invés de casas. A venda de terrenos era uma medida para amenizar a falta de lucro com o comércio de moradias prontas para as pessoas de baixo poder aquisitivo. Ou seja, à clientela pobre, o BNH / COHAB disponibilizava áreas vazias e empréstimos com o objetivo de impedir que o mutuário, por não ter condições financeiras, erguesse barracos, seja no conjunto ou em outros locais. Contudo, aos clientes médios e altos, o mercado habitacional continuava o mesmo.

Em outras palavras, recursos tinham, mas eles eram destinados a outras prioridades. “Casa para o pobre”, não era uma delas, como se observa no reduzido número de unidades habitacionais produzidas em todo o Brasil, bem abaixo das metas traçadas para minorar o déficit de moradia, quanto na carência de infraestrutura e de serviços urbanos nos conjuntos construídos. Em meio a estas deficiências ou negligências nasceu o Conjunto Habitacional Ceará, o qual apresentava os mesmos problemas contidos na maioria dos residenciais da COHAB. É importante ressaltar, que a provisão de habitações, tanto em Fortaleza quanto em cidades do interior do Ceará, também tinha relação com os objetivos de desenvolvimento urbano contidos no 2° Plano de Metas Governamentais (PLAMEG II), instituído pelo governador Virgílio Távora, entre 1979 e 1982. Em síntese, o plano valia-se do discurso do bem-estar social a toda população cearense, como uma das formas de evitar o atraso econômico, social e urbanístico no estado.

Entre o sonho e o pesadelo: a ida ao Conjunto Ceará

O Conjunto Ceará foi construído no bairro Granja Portugal, em uma área de 388 hectares. O projeto inicial previa 6.582 casas (CEARÁ, 1978), entretanto, entregaram quase 9 mil moradias. A escolha da localização deu-se tanto pela distância da área central da capital, 12 km, o que barateava o custo do terreno, quanto da necessidade de um extenso vazio urbano sem interferência da especulação imobiliária. Características quase sempre encontradas na periferia de Fortaleza, sobretudo, em locais próximos aos limites fronteiriços com outros municípios. A distância do Conjunto foi a primeira dificuldade enfrentada pelos moradores, já que 78,8% dos trabalhadores estavam empregados em polos longínquos de suas casas, ocasionando uma maior dependência em relação aos transportes, outro de seus principais problemas:

As dificuldades dos moradores com o transporte coletivo que serve o Conjunto Habitacional se estendem aos altos preços das passagens, a demora, a inexistência de ônibus durante a madrugada e a localização dos pontos de paradas, nas vias margeantes ao conjunto, não havendo circulação interna ao núcleo (CEARÁ, 1978, p. 53).

Uma das maiores adversidades dos espaços periféricos, até hoje, é a escassez de polos empregatícios, os quais, geralmente, situam-se nas áreas mais centrais ou em locais específicos como as Zonas ou Distritos Industriais. Isso acarreta o deslocamento diário de trabalhadores que moram em lugares distantes de seus empregos e a lotação dos meios de transportes em horários de pico. A desvantagem dos moradores de bairros periféricos inicia quando eles precisam dedicar muito tempo para ir e vir do trabalho, bem como gastar seus poucos recursos com locomoção. No final da década de 1970 e início dos anos de 1980, a questão dos transportes no Conjunto Habitacional Ceará era ainda mais complicada devido à pouca oferta de ônibus. Fato que só melhorou, a partir de 1985, após a construção da ponte sobre o Rio Siqueira, ligando o Conjunto às Avenidas Mister Hull e Bezerra de Menezes, através da implantação de duas linhas de ônibus: Conjunto Ceará/Aldeota e Conjunto Ceará via Bezerra de Menezes (O POVO, 03/03/1985, p. 10).

A circulação destas linhas com 10 ônibus cada, após quase dez anos de existência do Conjunto, representava o beneficiamento de aproximadamente 100 mil pessoas, portanto, entende-se as razões de haver uma solenidade de inauguração destas novas opções de itinerário ao centro da cidade (O POVO, 07/03/1985, p. 8). Neste período, ainda não existia o Terminal Integrado do Conjunto Ceará, instalado apenas em 1993 (BARROS, 2018). Mas a festa duraria pouco, as principais vias de acesso ao local, por onde escoavam o tráfego dos coletivos eram apenas buraco e lama, sobretudo, no tempo das chuvas, as quais agravavam os problemas antigos e nunca cuidados: a falta de infraestrutura adequada e de manutenção dos trechos mais utilizados (O POVO, 10/03/1985, p. 10). A situação era penosa, conforme apontou o jornal O Povo:

Os mais de 43 mil habitantes do conjunto repetem e cansam-se de reclamar, reivindicar e denunciar o esquecimento a que estão relegados. Além do péssimo estado de avenidas como a A, H, C e Central, entre outras, e também a Emílio de Menezes, que dá acesso aquele núcleo habitacional, ali se vê montes de lixo e muito mato invadindo a via pública, várias quadras sem água e iluminação pública deficiente, apesar de os postes disporem de lâmpadas. (O POVO, 10/03/1985, p. 10).

Entre as principais e recorrentes queixas dos moradores deste local, desde a sua ocupação, destacavam-se a ausência de segurança, de abastecimento de água, de iluminação, de transportes públicos, de infraestrutura das ruas e avenidas, de um sistema de coleta de lixo e de postos médicos. Em outras palavras, todos os serviços necessários a uma mínima condição de habitabilidade não faziam parte da realidade do Conjunto. Mas esta precarização não era característica apenas do Conjunto Habitacional Ceará. Como visto, a maioria das unidades de habitação feitas pela COHAB/BNH, em Fortaleza, no interior cearense ou por todo o Brasil, não tinha uma estrutura adequada e as deficiências estavam presentes em todos os setores, acarretando a frustação das pessoas esperançosas quanto à realização da sonhada casa própria.

Dessa forma, concorda-se com a afirmação do jornal O Povo: “[...] a tão sonhada casa própria somada às facilidades dos planos de venda oferecidos pela Companhia de Habitação do Ceará [...] (que) acabaria satisfazendo as famílias de baixa renda [...] parece não vingar” (08/04/1979, p. 8). O sentimento de realização da “conquista” da casa própria, concretizado pelo BNH, era rapidamente substituído pela insatisfação devido às inúmeras dificuldades enfrentadas pelos moradores. Por consequência, à medida que as reivindicações não eram atendidas, crescia o descontentamento: “[...] o sonho de muita gente simples vai acabar se transformando num enorme pesadelo [...]” (O POVO, 08/04/1979, p. 8).

Ao contrário da realidade dos conjuntos Ceará e José Walter, por exemplo, as residências para as famílias de renda mais alta tinham bastante qualidade, a exemplo do Parque Residencial Beira-Rio,16 construído com recursos do BNH pela Construtora Master Incosa na Barra do Ceará, zona oeste de Fortaleza. Conforme a propaganda dos jornais, as casas dispunham “[...] de água, luz e toda uma iluminação necessária nas vias de acesso [...] (além de serem) construídas em terreno totalmente urbanizado, com obediência a todos os critérios exigidos [...]” (O POVO, 13/12/1975, p. 4). Outro aspecto positivo era a sua localização privilegiada “[...] fora da confusão da cidade, mas a um pulo do mar [...]” (O POVO, 13/12/1975, p. 4). Ou seja, o Parque – termo usado para se distinguir de Conjunto – não apresentava as falhas existentes nas habitações populares e, ainda, situava-se no melhor espaço da Barra do Ceará, na praia, isto é, na área mais disputada pelo mercado imobiliário.

A desigualdade socioespacial entre as habitações da população mais humilde e das mais abastadas podia ser observada em todos os aspectos, desde a qualidade física das casas à infraestrutura do local. Os conjuntos do BNH destinados às pessoas de baixa renda não eram apenas mal servidos de equipamentos urbanos, situação oposta aos bairros mais elitizados, eles eram tratados com descaso. Mato, insetos, lixo, insegurança faziam parte da vida destes moradores que, com muito sacrifício, buscavam realizar o sonho da casa própria. Atualmente, muitos destes problemas abordados foram atenuados no Conjunto Ceará, porém, a discrepância entre as áreas ricas e pobres, nos dias de hoje, ainda se assemelham bastante com o cenário do final dos anos 1970:

Enquanto as piscinas dos palacetes da Aldeota transbordam, propiciando aos seus usuários prazeres burgueses e plenamente dispensáveis, as modestas residências dos habitantes de Conjuntos de Fortaleza não possuem em suas torneiras uma gota d’água sequer para as atividades mais básicas de qualquer comunidade. As mansões do bairro burguês da cidade têm ao seu dispor vigias particulares, pagos com migalhas da alta renda de seus moradores. Nos conjuntos habitacionais locais, sucedem-se os assaltos, roubos e crimes, pois não existe ali policiamento e a manutenção de guardas é uma fantasia jamais concretizável a depender das rendas dos seus habitantes sempre inferior à da dita classe média (O POVO, 07/10/1979, p. 16).

O descaso do governo em prover de infraestrutura estes conjuntos habitacionais mencionados permaneceu por muitos anos. Além disso, conforme Sousa (2014), as reivindicações só foram atendidas devido à organização e mobilização dos moradores, os quais, pela luta em prol de melhorias ao Conjunto, acabaram por construir um sentimento de pertencimento e de coletividade, sobretudo, entre os habitantes mais antigos. Quando anunciaram a construção do Conjunto Ceará, o governo propunha a realização do maior projeto habitacional de Fortaleza, como também a implantação de um modelo chamado Unidade de Vizinhança (UV), criado por Clarence Perry, na década de 1920. No Brasil, essa estrutura ficou conhecida como superquadra, ao servir de padrão arquitetônico na construção de Brasília. As UV’s priorizavam o pedestre e garantiam a autonomia das quadras, abrigando as necessidades e comodidades dos moradores (IRINEU; ALVES e LACERDA, 2019).

No Conjunto Ceará foram instaladas doze UV’s, nas quais, o centro era representado por uma escola – ainda hoje, os moradores costumam chamá-la dessa forma: UV1, UV2...UV12 –, além dos espaços de convívio social e comercial (IRINEU; ALVES e LACERDA, 2019). O objetivo das UV’s era facilitar os encontros e as sociabilidades entre os habitantes e frequentadores de cada quadra. De todo modo, elas serviram bastante como um local fixo de reunião, onde se discutia pautas de melhoramentos para o Conjunto: “[...] diariamente, haverá pessoas da entidade à disposição dos moradores, no centrinho comunitário UV-6, para orientar sobre a ação judicial” (O POVO, 26/08/1985, p. 8). A petição, em questão, era contra o aumento no valor das parcelas das casas, utilizando como defesa a falta de condições econômicas dos mutuários, bem como a precariedade e o abandono em que se encontrava o lugar:

Com o slogan “Povo organizado, limpeza conquistada”, os moradores do Conjunto Ceará, em ato público realizado ontem ao lado do terminal dos ônibus na 1ª etapa daquele núcleo habitacional, lançaram uma campanha voltada para a melhoria do conjunto que se encontra com diversos problemas, tais como insegurança, sujeira, pavimentação e transporte, além do aumento da casa própria (O POVO, 15/07/1985, p. 7).

A notícia acima corresponde ao ano de 1985, mas se compararmos as matérias anteriores reclamava-se sempre das mesmas adversidades. Isto demonstra que os gestores da ditadura não se preocupavam em solucionar as reivindicações dos moradores, contradizendo o discurso de que eles agiam em prol do bem-estar social e do desenvolvimento urbano. Os problemas não paravam na infraestrutura, a localização periférica do lugar também acarretava um superfaturamento nos produtos alimentícios comprados nos mercados do Conjunto, os preços eram 10% mais altos que nos supermercados do Centro. As justificativas mais plausíveis da carestia eram os gastos com os transportes e a dificuldade das distribuidoras em se deslocar para abastecer estes mercados. Assim, pediam agilidade na construção de uma cooperativa de alimentos na comunidade (O POVO, 21/05/1980, p. 12), pois os recursos financeiros dos moradores já estavam bastante comprometidos com o pagamento das prestações da casa, com os transportes e as despesas diversas.

Alguns problemas eram atendidos rapidamente, sobretudo, os que não causavam ônus aos cofres públicos ou garantissem algum retorno lucrativo, como foi o caso da implantação de três supermercados da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL)17, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, para proporcionar “[...] aos moradores do Conjunto Ceará maiores opções em termos de abastecimento, uma vez que eles não mais precisarão deslocar-se para outros locais a fim de fazer suas compras [...]” (O POVO, 06/06/1980, p. 5). A inauguração destes mercados da COBAL, presidida pelo governador Virgílio Távora, apenas alguns dias depois das petições dos mutuários, mostra como as autoridades empenhavam-se em solucionar apenas os aspectos que eles próprios elencavam como prioritários, sobretudo, quando “a melhoria” incentivava os periféricos a permanecerem mais tempo em seus locais de moradia, como se fosse permitido ou obrigatório sair apenas para trabalhar. A justificativa dada para os moradores, em relação aos três supermercados, era o agir pela legítima defesa do consumidor.

Porém, havia reclamações que perduravam por bastante tempo, como o precário fornecimento de água: “[...] embora a situação incômoda venha ocorrendo há vários dias, o órgão encarregado não deu nenhuma explicação a população” (O POVO, 21/08/1980, p. 5). Nesta reportagem, os consumidores não tiveram a mesma suposta defesa dos governantes, dita anteriormente, pois, mesmo sendo pagantes de um serviço deficiente – “[...] quando a água chega, sua força é insuficiente para subir até a caixa, beneficiando somente aqueles que possuem torneiras no jardim [...]” (O POVO, 21/08/1980, p. 5) – e quase sempre ausente, ainda eram explorados por quem possuía poços, comprando latas d’água a preços exorbitantes. Cabe lembrar que a CAGECE, responsável pelo abastecimento de água, pertencia à administração do estado. Ou seja, o mesmo governador que prontamente inaugurou os mercados da COBAL, poderia intervir, facilmente, na questão da água.

Uma das obras mais necessárias aos habitantes, realizada no local, e com a intenção de diminuir a demanda de atendimento em hospitais localizados em bairros distantes do Conjunto Ceará, foi a construção de uma unidade hospitalar “[...] com 36 leitos, sendo oito para pediatria, 12 para Clínica Médica e 16 para Clínica Cirúrgica [...]” (O POVO, 18/10/1980, p. 5). Este núcleo de emergência, construído pelo prefeito Lúcio Alcântara, fazia parte de uma estratégia municipal de ampliação da rede hospitalar nas áreas periféricas de Fortaleza, desse modo, escolheu-se os dois maiores conjuntos habitacionais do período, José Walter e Ceará, para instalarem os hospitais: “[...] a escolha desses locais se deve ao baixo nível de renda da população daquelas duas áreas de grande densidade demográfica e bairros vizinhos, além da distância para o centro da cidade, nos casos de urgência” (O POVO, 18/10/1980, p. 5). Destaca-se, entretanto, o atraso dessa medida, quatro anos depois da chegada dos primeiros moradores, apesar da exigência de possuir um serviço médico de emergência dentro de uma área de alta concentração de pessoas.

São inúmeras as reportagens sobre o descaso do poder público em relação ao maior de todos os conjuntos habitacionais da capital cearense. As características ou as falhas existentes no local apareciam ano após ano, de forma persistente, como se os jornalistas repetissem o mesmo texto, propositadamente. Admite-se a negligência estatal em concentrar um grande contingente populacional em uma única área residencial sem disponibilizar meios de garantir qualidade de vida. Contudo, a necessidade ou desejo de possuir a sonhada casa própria, acrescido da falta de opção e da pouca oferta de moradias aos setores mais pobres, tornava-os reféns das intenções desiguais, excludentes e deficientes da política habitacional dos militares:

Apesar das desvantagens locacionais, padrão construtivo e qualidade das habitações, a demanda por casa da COHAB-CE, contrariamente ao que se podia imaginar, continua acentuada. Este fenômeno ocorre em virtude das famílias de renda média e baixa não terem outra alternativa dentro do mercado imobiliário (CEARÁ, 1978, p. 53-54).

Alguns problemas estruturais, tais como a pavimentação, os buracos e o lamaçal no período das chuvas, inexistiriam se a COHAB tivesse realizado a drenagem do terreno. Por possuir o Rio Maranguapinho18 percorrendo o território do local, a falta de drenagem acarretou diversos transtornos aos moradores, limitando o acesso aos transportes e as outras áreas do Conjunto. A ausência de policiamento também poderia ser solucionada com a instalação de um posto policial e uma patrulha de vigilância, “[...] o Conjunto Ceará, a despeito de algumas vantagens, atravessa uma das fases mais críticas do ponto de vista de segurança pública, tendo em vista o índice alarmante de criminalidade que vem se registrando diariamente [...]” (O POVO, 08/04/1979, p. 8). É notório a tentativa do periódico em minimizar os problemas do lugar, sugerindo pontos positivos, mas, ao longo de toda a reportagem, não foi citada nenhuma vantagem, apenas complicações:

[...] São muitas as queixas denunciando invasão de domicílios, assaltos, roubos [...] o lixo depositado por alguns moradores em terrenos baldios está favorecendo o surgimento de monturos e contribuindo para a proliferação de moscas e muriçocas. A morosidade dos ônibus que servem o conjunto chega a impacientar seus usuários [...] Muitas das lâmpadas das ruas e avenidas do conjunto se acham queimadas, sem que se tome nenhuma providência para removê-las. (O POVO, 08/04/1979, p. 8).

Quanto a questão do lixo, há certa culpa dos moradores pelo mal descarte de seus resíduos, em contrapartida, isto ocorria, em partes, devido a quase inexistência de um sistema de limpeza pública. Das diversas imperfeições do Conjunto Ceará, uma das mais incômodas, mas, relativamente, fácil de resolver era a deficiência das casas. Os moradores mais insatisfeitos com a má qualidade física das casas e mais privilegiados financeiramente, assim que as adquiriam, tratavam de modificá-las. Apesar de construídas com tijolos e telhas – alguns conjuntos vendiam apenas os terrenos ou ofertavam casas de taipa ou de outros materiais –, o tamanho da habitação, a ausência de quartos, a falta de muros divisórios entre as residências, o emprego de materiais ruins em portas e janelas, as rachaduras nas paredes e caixas d’água e o piso afundado, tornavam-se mais uma frustração a muitos mutuários.

A falta de manutenção do sistema de esgoto também causava incômodo, tendo em vista que o “[...] o mau cheiro exalado pelos detritos humanos vazados das linhas estouradas [...]” (O POVO, 09/04/1981, p. 9), desde a ocupação das primeiras habitações do Conjunto Ceará, em 1976, além de não solucionado, ainda se agravava no período de chuvas mais intensas. Este problema, entretanto, não atingia apenas a paisagem do lugar e/ou a poluição do ar, ele gerava doenças, sobretudo nas crianças, provocadas pelo contato acidental e inevitável, dado o grande escoamento em volta das casas, das calçadas e das ruas. Quanto ao lazer, o local não dispunha de muitas opções, razão motivadora para a realização de uma maratona organizada pelos moradores, em 1983, “[...] que se organizaram em comissão para proporcionar à comunidade uma manhã de lazer, já que o conjunto não tem divertimentos [...]” (DIÁRIO DO NORDESTE, 25/04/1983, p. 1).

Além da recreação, entretenimento e competição, houve a premiação do corredor vencedor. Uma das intenções dos organizadores, moradores do Conjunto Ceará, era chamar a atenção das autoridades para a manutenção das praças, das ruas e das avenidas, bem como, de mais segurança para as famílias poderem desfrutar dos espaços de sociabilidades. Contudo, a falta de órgãos fiscalizadores de trânsito, de agentes da polícia e de jurados não pertencentes ao Conjunto, resultou em confusões entre as torcidas formadas pelos vizinhos e familiares dos competidores e um atropelamento por moto, ocorrências que, segundo a matéria do jornal, retiraram o teor alegre e questionador do momento e lhe trouxeram críticas, sobretudo, pelas falhas e os acidentes.

A última fase de entrega de casas, a chamada quarta etapa, deu-se entre outubro e dezembro de 1981, contudo, trazendo algumas das mesmas deficiências estruturais questionadas pelos moradores. A inexistência dos sistemas de água e esgoto, iluminação e vias pavimentadas, foram justificativas dadas devido à demora da inauguração da quarta etapa, prevista para ocorrer nos meses iniciais de 1981. Tais problemas persistiram durante e após a ditadura e muitos deles prosseguem atualmente, demonstrando o descaso dos governantes com os bairros mais periféricos, cuja população tem rendas mais baixas. Ao observar o espaço geográfico de Fortaleza, percebe-se, nitidamente, que um dos aspectos comuns de suas regiões de periferia, sobretudo, as áreas localizadas no limite entre a capital e as suas cidades vizinhas, como a Caucaia e o Maracanaú, é a presença de um grande conjunto habitacional, seja do BNH / COHAB ou dos realizados pelas políticas habitacionais locais.

Considerações Finais

O Conjunto Ceará passou a ser bairro em 11 de outubro de 1989, desligando-se da jurisdição do Bairro Granja Portugal. Suas dimensões físicas e populacionais acarretaram a necessidade de dividi-lo em dois bairros distintos: o Conjunto Ceará I e II. Entretanto, na perspectiva de frequentadores e de moradores, ele se configura enquanto um bairro único. O desenvolvimento e as melhorias encontrados neste local, atualmente, foram frutos de muitas lutas dos primeiros moradores, como visto ao longo deste texto. Apesar de ainda apresentar alguns problemas urbanos comuns à maioria dos bairros periféricos de Fortaleza, possuir um baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ocupando a 53° posição de 121 bairros, e localizar-se próximo de zonas também adversas, o Conjunto Ceará se destaca por dispor de importantes serviços citadinos, como bancos, escolas, hospitais e supermercados, utilizados por seus habitantes e moradores de bairros adjacentes.

Considerando a situação atual, muitas pessoas foram “contempladas” com a política habitacional do BNH, devido à possibilidade de comprar a tão sonhada moradia e de desfrutarem dos melhoramentos urbanos promovidos pelas reivindicações coletivas entre o decorrer dos anos. Os Conjuntos, transformados em bairros de Fortaleza, exemplos desta experiência nacional de concentração popular em espaços afastados das áreas de alta especulação imobiliária no período ditatorial, surgiram sem oferecer condições mínimas de habitabilidade. Assim, os moradores do José Walter, do Ceará, do Esperança, do Novo Mondubim e outros, passaram a engajar-se na luta pelo direito à cidade, reivindicando o cumprimento de todas as vantagens que lhes foram prometidas, em termos de infraestrutura, serviços e opções de lazer, quando da compra das casas nestes conjuntos construídos e agenciados pelo BNH / COHAB.

Esta necessidade de lutar pela moradia e pelos serviços urbanos essenciais reflete a desigualdade de tratamento do governo dado às pessoas menos favorecidas economicamente. Ao analisar outras notícias jornalísticas do período, referentes à venda de casas por construtoras privadas ou mesmo pelo BNH, aos setores mais abastados, quase não se observa problemas de infraestrutura, reclamações constantes dos compradores e, tampouco, da morosidade dos administradores em atendê-los, como visto nos conjuntos de habitação popular. O Conjunto Ceará e tantos outros servem como exemplos da política de exclusão socioespacial dos pobres, isto é, da prática política de destinar os locais mais afastados e menos equipados àqueles que possuem renda baixa, contribuindo para a manutenção dos privilégios espaciais das pessoas de recursos financeiros mais altos e favorecendo o lucro dos especuladores imobiliários.

Os moradores destes conjuntos, ao contrário dos habitantes de bairros mais elitizados, além de precisar lutar por melhorias e por seus direitos, ainda necessitam de paciência, de perseverança e de esperança, pois os avanços e o desenvolvimento de suas áreas residenciais, como no caso do Conjunto Ceará, demoraram a se concretizar, bem como, há muitos bairros, em que tais mudanças, ainda não ocorreram.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964/ Art. 1°: “O Governo Federal, através do Ministro de Planejamento, formulará a política nacional de habitação e de planejamento territorial, coordenando a ação dos órgãos públicos e orientando a iniciativa privada no sentido de estimular a construção de habitações de interesse social e o financiamento da aquisição da casa própria, especialmente pelas classes da população de menor renda.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4380.htm. Acesso em: julho de 2021.
2 Construído em convênio com a Fundação de Serviço Social de Fortaleza (IPLANCE, 1978).
3 Termo utilizado por Máximo (2012), referindo-se à construção de conjuntos habitacionais com proporções de bairros.
4 Existiam quatro tipos de habitações no Conjunto Ceará: A, B, C e D. A casa padrão A tinha 23 metros quadrados, com sala, cozinha, banheiro e lavanderia externa e custava entre quase 26 e 53 mil cruzeiros (a depender do ano de compra e do período de construção das quatro etapas). A padrão B tinha 41 metros quadrados, sala, cozinha, banheiro, lavanderia externa e dois quartos, custando entre 36 e 70 mil cruzeiros. A tipo C possuía 48 metros quadrados, sala, cozinha, banheiro, lavanderia externa, 1 quarto duplo sem divisão, área coberta atrás e varanda na frente, no valor de 38 a 74 mil cruzeiros. A casa padrão D tinha 57 metros quadrados, constituída de sala, cozinha, banheiro, lavanderia externa, três quartos e varanda frontal e vendida no valor de 46 a 86 mil cruzeiros (CEARÁ, 1978).
5 Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964/ Art. 2º: “O Governo Federal intervirá no setor habitacional por intermédio: I - do Banco Nacional da Habitação; II - do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo; III - das Caixas Econômicas Federais, IPASE, das Caixas Militares, dos órgãos federais de desenvolvimento regional e das sociedades de economia mista”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4380.htm. Acesso em: julho de 2021.
6 Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964/ Art. 4º.
7 Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964/ Art. 54º: “A Fundação da Casa Popular, criada pelo Decreto-lei n. 9.218, de 1° de maio de 1946, passa a constituir com o seu patrimônio, revogada a legislação que lhe concerne, o "Serviço Federal de Habitação e Urbanismo", entidade autárquica”. o General Eurico Gaspar Dutra criou a Fundação da Casa Popular (FCP) em 1º de maio de 1946. Esta é considerada por muitos pesquisadores o primeiro órgão institucional e centralizador de âmbito nacional “[...] voltado exclusivamente para a construção de casas populares para as classes de baixa renda [...]” (AZEVEDO, 1988, p. 108). A sua missão era resolver o déficit habitacional através da sistematização de várias medidas e órgãos, como os próprios Institutos de Aposentadoria e Pensão-IAP’s, direcionados a baratear as casas populares.
8 Lei nº 5107, de 13 de setembro de 1966/ Art. 11º: “Fica criado o "Fundo de Garantia do Tempo de Serviço" (FGTS), constituído pelo conjunto das contas vinculadas a que se refere esta Lei, cujos recursos serão aplicados com correção monetária e juros, de modo a assegurar cobertura de suas obrigações, cabendo sua gestão ao Banco Nacional de Habitação.” Art. 13º: “Aos agentes financeiros será creditada, a título de taxa de administração, percentagem não superior a 1% (um por cento) dos depósitos efetuados, a qual será fixada anualmente, para cada região do País pelo Conselho Monetário Nacional, por proposta do BNH.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5107.htm. Acesso em: agosto de 2021.
9 Nome dado aos compradores/financiadores de imóveis.
10 Conjunto Pirambu (1967), 218 casas; Conj. Presidente Castelo Branco (1968), 380 habitações; Conj. Aliança (1970), tinha apenas 84 moradias e o Conj. Santa Luzia do Cocó (1970), feito em convênio com a Fundação de Serviço Social, 294 unidades (CEARÁ, 1978).
11 Segundo Máximo (2012), o termo refere-se aos conjuntos habitacionais de grande porte que apresentam como característica fundamental a sobreposição quase que absoluta entre a área projetada e a divisão político-administrativa adotada pelas administrações municipais. Tais aspectos tornaram estes conjuntos em bairros de Fortaleza. Entre eles, destacam-se o Conjunto José Walter (1969-1973) e o Conjunto Ceará (1977-1981), ambos entregues por etapas, além do Conjunto Esperança (1981) e do Novo Mondubim (1981). Existem outros Conjuntos-bairros na Região Metropolitana de Fortaleza: Araturi (1985), Planalto Caucaia (1984) e Nova Metrópole (1985-1989), em Caucaia; Acaracuzinho (1982), Jereissati (1984-1987), Industrial (1979) e Timbó (1983), em Maracanaú.
12 José Roberto Matos Cabral, funcionário da Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR e participante de movimentos comunitários, sobretudo no período da Ditadura. Entrevistado em 29 de agosto de 2016.
13 Fala de José Roberto Matos Cabral, funcionário da Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR e participante de movimentos comunitários, sobretudo no período da Ditadura. Entrevistado em 29 de agosto de 2016.
14 Lei nº 5.762, de 14 de dezembro de 1971. “Transforma o Banco Nacional da Habitação (BNH) em empresa pública, e dá outras providências.” Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5762-14-dezembro-1971-357784-normaatualizada-pl.pdf. Acesso em: agosto de 2021.
15 Companhia de Água e Esgoto do Ceará.
16 “Para que se tenha uma ideia do êxito do Parque Residencial Beira-Rio, maior parte dos compradores são pessoas de excelente posição social, como executivos de empresas comerciais, industriais, médicos [...]” (O POVO, 13/12/1975, p. 4).
17 Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962. Dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leidel/1960-1969/leidelegada-4-26-setembro-1962-366961-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em 11 set. 2021. Decreto nº 55.898, de 7 de abril de 1965. Cria na Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) o Fundo para Melhoria da Distribuição de Gêneros alimentícios e dá outras providências. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-55898-7-abril-1965-396212-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 11 de setembro de 2021.
18 Atualmente, ele encontra-se canalizado e transformado em uma espécie de esgoto aberto, cortando as Avenidas C e G.
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