Resumo: O objetivo deste artigo é situar a biografia como método relevante de pesquisa, atualizando sua validade para além de uma dimensão individualista ou subjetivista. Nessa direção, o texto resgata as contribuições da sociologia com-preensiva e da fenomenologia para o emprego de dados biográficos no trabalho científico. Depois, apresenta a crítica de Pierre Bourdieu ao uso desses materiais, apontando a proposta de biografias sociológicas de Bernard Lahire como uma via metodológica com potencial revigorado para a utilização de relatos biográficos. Por fim, posiciona o argumento de que uma abordagem em escala individual, como a designada por Lahire, pode dialogar com alguns dos principais dilemas epistemológicos da atualidade.
Palavras-Chave: Biografia sociológica, Metodologia de pesquisa, Ciências Humanas.
Abstract: This article aims to place biography as a relevant research method, updating its validity beyond an individualist or subjectivist dimension. To this end, the text rescues the contributions of compre-hensive sociology and phenomenology for the use of biographical data in scientific work. Subsequently, it presents Pierre Bourdieu’s criticism regarding the use of these materials, pointing out the proposal of sociological biographies by Bernard Lahire as a methodological route with reinvigorated potential for the use of biographical reports. Finally, the argument that an individual scale approach, as designated by Lahire, can dialogue with some of the main epistemological dilemmas of today is presented.
Keywords: Sociological biography, Research methodology, Humanities.
Resumen: El objetivo del artículo es situar la biografía como método relevante de investigación, actualizando su vigencia más allá de una dimensión individualista o subjetivista. En esa dirección, el texto rescata los aportes de la sociología comprensiva y la fenomenología para el uso de los datos biográficos en el quehacer científico. Luego, presenta la crítica de Pierre Bourdieu al uso de estos materiales, señalando la propuesta de biografías sociológicas de Bernard Lahire como un camino metodológico con potencial revitalizado para el uso de relatos biográficos. Finalmente, posiciona el argumento de que un abordaje a escala individual, como lo designa Lahire, puede dialogar con algunos de los principales dilemas epistemológicos de la actualidad.
Palabras clave: Biografía sociológica, Metodología de investigación, Ciencias Humanas.
Dossiê
Para além da ilusão: biografias sociológicas como método de pesquisa
Beyond illusion: sociological biographies as a research method
Más allá de la ilusión: biografías sociológicas como método de investigación
Recepción: 16 Mayo 2023
Aprobación: 10 Agosto 2023
Na última década, venho trabalhando com a obra de Pierre Bourdieu em pesquisas sobre o campo educacional brasileiro. No momento em que direcionei a investigação para as histórias de vida de professoras e professores de sociologia na Educação Básica, objetivando construir as suas biografias sociológicas, Bourdieu (1996) instaurou um verdadeiro obstáculo epistemológico no desenvolvimento da pesquisa. Definindo o uso de narrativas biográficas como uma invasão do senso comum na prática científica, o sociólogo francês demarcou uma espécie de interdição para a biografia como método de pesquisa.
No período em que realizei as investigações de inspiração bourdieusiana, diferentes críticas às ciências humanas emergiram e ganharam força no Brasil. Elas versam sobre as pretensões epistemológicas e metodológicas originadas na e pela modernidade europeia. Importa sublinhar os exames críticos que as acusam, por exemplo, de “epistemicídio” (Carneiro, 2023; Kilomba, 2019), “colonialidade do saber” (Quijano, 2005) ou que fomentam uma “epistemologia feminista” (Collins, 2019; Haraway, 1995). Não somente denunciando opressões e desigualdades múltiplas na produção de conhecimentos legitimados socialmente, essas abordagens questionam o estatuto cartesiano da separação entre sujeito e objeto.
No escopo dessas inquietações, o objetivo do artigo é sinalizar a biografia enquanto método relevante, atualizando a sua pertinência para além de uma dimensão subjetivista ou individualista. Em sociedades altamente diferenciadas, as manifestações identitárias são múltiplas e constituem elementos prioritários nas e das disputas por recursos e poder. Por essa razão, a atenção às disposições plurais construídas socialmente pelos agentes pode executar uma “ressignificação positiva” (Junqueira, 2019, p. 41) no uso de materiais biográficos como dados de pesquisa. Isso significa olhar para os fenômenos sociais a partir de uma escala individual, sem deixar de entender como a sociedade aparece inscrita nas pessoas e nas suas biografias.
No campo acadêmico do conhecimento histórico, as discussões sobre as abordagens biográficas possuem larga tradição. Em um denso panorama sobre a temática, François Dosse (2015, p. 13) categoriza as transformações profundas do gênero biográfico, mobilizando três diferentes modalidades: a idade heroica, a idade modal e a idade hermenêutica. Ainda que seja possível demonstrar uma evolução cronológica entre as modalidades, o autor argumenta que elas podem coexistir no decorrer de um mesmo espaço de tempo.
As biografias da idade heroica se caracterizavam por analisar a história de “vidas exemplares”, sublinhando as qualidades morais do protagonista da narrativa, o herói. Esse tipo de construção tinha como marca principal apresentar um retrato de personagens representantes de valores que deveriam ecoar na sociedade como um todo. Tratava-se, portanto, de produzir uma espécie de orientação moral. Isso distanciava a biografia do conhecimento histórico, pois enquanto esse último girava em torno da procura pela verdade, a primeira se mostrava uma forma mais propícia a misturar ficção e realidade.
No século XIX, esse distanciamento resultou em ampla crítica à escrita biográfica. A abordagem passou a ser considerada inferior na academia, sendo destinada ao amadorismo (Dosse, 2015). Esse cenário foi acompanhado pela descentralização do interesse na singularidade e pela diminuição do interesse no indivíduo enquanto unidade de análise científica. O conhecimento especializado sobre a história passou a se debruçar sobre as estruturas e os processos históricos mais amplos.
Mesmo com esse longo eclipse entre profissionais da história, a biografia se manteve presente em “doses homeopáticas” (Dosse, 2015, p. 215). Sua aparição no século XX tendia a estar relacionada com tentativas de iluminar contextos, momentos particulares ou meios sociais, naquilo que Giovanni Levi chamou de “biografias modais”. Nessa perspectiva, o indivíduo é entendido unicamente como representante da sociedade e do tempo histórico em que está inserido. As suas possíveis heterogeneidades e especificidades pessoais não são levadas em conta.
Na atualidade, em especial a partir da década de 1980, os estudos biográficos vêm se proliferando na historiografia, como consequência das críticas às interpretações demasiadamente generalizantes da história. Pela ênfase dada ao individual e à reflexividade, Dosse (2015) define essa retomada como a “idade hermenêutica” da biografia. A essa renovação se somam questionamentos teóricos, metodológicos e historiográficos importantes, que direcionam atenção para os limites e possibilidades do uso de biografias na produção científica (Cabral; Schmidt; Silva, 2020).
Na sociologia, por outro lado, dados biográficos foram usados pela primeira com os estudos de Isaac Thomas e Florian Znaniecki, no contexto da chamada Escola de Chicago, nos Estados Unidos, nos anos 1920 e 1930. Os autores dessa tradição procuravam alternativas epistemológicas e metodológicas que fizessem frente ao positivismo. De acordo com a Escola de Chicago, o método biográfico era visto como uma ferramenta importante para a compreensão das experiências e dos processos sociais vivenciados pelos indivíduos nas suas vidas cotidianas. Nas décadas seguintes, essa perspectiva acabou sendo substituída quase completamente pela abordagem empiricista que passou a ser dominante no meio sociológico estadunidense (Bueno, 2002).
No Brasil, as ciências sociais dialogam com as perspectivas biográficas desde a década de 1940, aparecendo como variações da pesquisa qualitativa focada em lidar com relatos orais. Santos, Oliveira e Susin (2014) sublinham que a década de 1970 representou o aumento da relevância das histórias de vida, mesmo que não seja possível identificar procedimentos metodológicos organizados e específicos que pudessem oferecer maior robustez às abordagens biográficas. Ainda que em 1970 e 1980 houvesse algum destaque para o método biográfico na sociologia brasileira, o interesse diminuiu nas décadas seguintes.
Na Europa, no mesmo período, sobretudo na Alemanha, a tradição da sociologia compreensiva e da fenomenologia construía seus fundamentos teóricos direcionados para o exame de relatos biográficos enquanto possibilidade metodológica. Max Weber (2016), um dos principais fundadores da sociologia compreensiva, sustentava que a compreensão do comportamento humano deve se orientar para a análise das ações dos indivíduos em sociedade e das motivações que eles estabelecem nelas. Para o autor, a sociologia deveria se dedicar à compreensão dos significados subjetivos que os indivíduos atribuem às suas ações e experiências.
A abordagem da sociologia alemã tende a enfatizar o sujeito e suas produções de subjetividades, ênfase também compartilhada por outras escolas de pensamento como o interacionismo simbólico e a etnometodologia (Santos; Oliveira; Susin, 2014). Uma severa crítica epistemológica ao apanhado dessas concepções pode ser encontrada em autores e autoras que fundamentam seus olhares indo além da sobrevalorização do sujeito e suas subjetividades. Esse debate gera perguntas centrais para a sociologia, tais como: as ações individuais são resultados do condicionamento das estruturas sociais? Ou as estruturas sociais é que são resultados das ações dos indivíduos? Qual a possibilidade de síntese entre ambos os polos analíticos? Como a sociedade imprime nos indivíduos suas características e como os indivíduos moldam a sociedade a partir dos seus atributos?
Questões como essa se relacionam ao problema ação/estrutura, micro/macro, subjetivismo/objetivismo e demais variações. Carlos Eduardo Sell (2017) argumenta que essa discussão tem pelo menos três níveis de interpretação. A primeira maneira de abordar a oposição é pensá-la como uma questão de escala de análise, ou seja, pensar a forma como se olha para a vida em sociedade. Mobilizando uma escala macro, com o foco nas estruturas, seria como olhar para a vida social de cima de um avião, conseguindo encontrar padrões, regularidades e tendências. Desde uma escala micro, seria como estar na rua, interagindo com as pessoas e vivenciando de perto as diversas situações do cotidiano.
Disso se pode retirar uma segunda dimensão, que também tem a ver com a oposição entre indivíduo e sociedade, ação individual e estrutura social. Essa dimensão diz respeito a estratégias explicativas ou questões metodológicas. Isso quer dizer que essa oposição também tem a ver com a forma como sociólogas e sociólogos conduzem seus estudos, com a forma como pensam a produção de dados e a análise deles. Se o foco explicativo estiver no micro, no indivíduo, a orientação metodológica, a forma de explicar as relações sociais priorizará o indivíduo e suas ações como causa da vida em sociedade. Esse foco, por vezes, é condensado sob a alcunha de “individualismo metodológico”. Se, ao contrário, o foco estiver no macro, na coletividade, a forma de explicar as relações sociais priorizará a sociedade e suas estruturas como causa das ações dos indivíduos. Esse foco costuma ser chamado de “holismo metodológico” (Sell, 2017, p. 23).
A terceira dimensão se relaciona com a forma de pensar o que é o social, com uma “ontologia do social”, procurando caracterizar a natureza do social e detalhar suas características. Para uma abordagem micro, o social deve ser pensado através do seu elemento mínimo, então o indivíduo é o que caracteriza a natureza do social. Para uma abordagem macro, o social é uma entidade que tem suas características próprias, que não podem ser encontradas apenas no nível do indivíduo, porque independem dele.
É evidente que os polos dessa oposição não ignoram a influência do seu contrário nos seus esquemas explicativos. As abordagens micro consideram os elementos estruturais, mas não lhe dão ênfase, assim como as abordagens macro consideram o indivíduo, mas enfatizam a sociedade (Sell, 2017). Na década de 1980, Jeffrey Alexander (1987) se notabilizou por sistematizar um movimento que já acontecia nas ciências sociais, “o novo movimento teórico”. Esse movimento congregou a busca por produzir sínteses sólidas entre as abordagens macro e micro, entre quem priorizava a escala e a explicação coletiva e quem que priorizava a escala e a explicação individual.
A busca dessa síntese encontra nas abordagens “disposicionalistas” de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire dois caminhos prestigiados de trabalho teórico e empírico. No que concerne à biografia, Bourdieu (1996) publicou um texto já clássico sobre os problemas do seu uso na sociologia, entendendo-o como uma submissão da ciência ao senso comum. Para o autor, a biografia pode ser um recurso útil para a compreensão de trajetórias individuais, mas seria uma ferramenta limitada como método de análise sociológica.
Uma das críticas centrais de Bourdieu à biografia recai sobre sua ênfase no papel do indivíduo na construção de sua própria trajetória, “ignorando” a influência de fatores sociais, culturais e estruturais mais amplos. Bourdieu (1996) defende que a trajetória individual é moldada pela posição do agente nos diferentes campos em que atua, e que as características da sociedade se imprimem nos agentes através do habitus. O conceito indica um sistema de disposições que opera como um mecanismo gerador das práticas dos agentes. A biografia, ao salientar o papel do indivíduo na construção de sua trajetória, tenderia a retirar os agentes dos contextos em que eles forjam as suas individualidades.
Bourdieu (1996, p. 81) prefere o conceito de trajetória para descrever a história de vida de um indivíduo ou um grupo, incluindo seus antecedentes sociais, as condições de sua vida e suas experiências. As trajetórias não são vistas como expressões de completa individualidade ou autonomia dos agentes, mas como uma construção social influenciada por uma série de condicionantes. Diferentes elementos sociais e culturais definiriam as oportunidades e limitações que os agentes encontram durante suas vidas, inclusive as escolhas e as estratégias que se utilizam para executar as suas práticas nas circunstâncias em que vivem. Caberia à sociologia investigar as trajetórias dos agentes situando-as nos campos aos quais eles se inserem e no espaço social como um todo, entendendo como são construídas, reproduzidas ou transformadas suas posições, relações e práticas.
Ainda que Bourdieu tenha declaradamente procurado firmar uma sociologia que não estivesse associada ao que chamou de subjetivismo (enfoque privilegiado no sujeito e suas ações), nem no que chamou de objetivismo (ênfase privilegiada nas estruturas objetivas da vida social), “sua abordagem tem sido frequentemente retratada por diversos críticos como uma versão sofisticada de neo-objetivismo e não como uma teoria sintética satisfatória da relação agência/estrutura” (Peters, 2013, p. 47-48). O verniz tácito ou mesmo “pré-reflexivo” presente no conceito de habitus, cuja incorporação da exterioridade social estruturaria as práticas e a própria exteriorização da interioridade socialmente engendrada dos agentes, levaria a teoria bourdieusiana a dar pouca atenção para a agência, a reflexividade e a discursividade.
Nessa direção, Bernard Lahire (2015, 2004, 2002) vem trabalhando para integrar a dimensão individual e coletiva na análise sociológica, sem resvalar ao acusado neo-objetivismo de Bourdieu, ou derivar para os caminhos da sociologia compreensiva e da fenomenologia. É dessa forma que o autor vê a biografia sociológica como uma ferramenta valiosa, na medida em que ela se debruça sobre a história de vida de um indivíduo, mas não a entende como um fenômeno isolado ou autônomo.
Com o exame em profundidade da vida de uma pessoa, com uma “sociologia em escala individual”, Lahire (2005, 2002) torna possível reconstituir as diferentes socializações nos diferentes contextos de ação pelos quais os indivíduos realizam as suas vidas. Boaes, Oliveira e Assis (2019) sugerem que essa seria a etapa “contextualista” da sua proposta. Por outro lado, reconstruindo as biografias sociológicas dos agentes, também se faz possível entender como ocorre a gênese dos seus patrimônios de disposições plurais. Entender o seu passado incorporado em forma de disposições múltiplas para agir, pensar e sentir, e a atualização ou a inibição dessas disposições. Essa seria a etapa “disposicionalista” da metodologia do autor.
A obra de Lahire se localiza entre aquelas que observam os processos de diferenciação acentuados a partir da segunda metade do século XX nas sociedades modernas. Na transição para o século XXI, também ocorreu uma mudança no foco de análise das ciências sociais. Até então, grande parte dos trabalhos sociológicos, fosse francófona ou estadunidense, vinha destacando como principal objeto de estudo as estruturas sociais e as forças que modelam a vida coletiva. A partir da “virada do sujeito”, muito inspirada na obra de Weber e Simmel (Santos; Oliveira; Susin, 2014, p. 371), a atenção se volta para o indivíduo, suas experiências e subjetividades.
A sociologia compreensiva de Max Weber e a fenomenologia de Alfred Schütz oferecem sustentação às abordagens biográficas que procuram valorizar a agência e a subjetividade individual (Santos; Oliveira; Susin, 2014). Na teoria weberiana, toda a ciência humana é tratada como uma ciência interpretativa, empenhando-se em compreender o sentido de uma atividade ou fenômeno e o sentido dos significados uns em relação aos outros. Como a realidade não tem sentido próprio, ela é indefinida; é a interpretação, que se fundamenta em valores, o que confere significado para a realidade. Por isso, Frédéric Vandenberghe (2012) lembra que a epistemologia da sociologia proposta por Weber é subjetivista, porque procura objetivar as significações subjetivas presentes na vida social.
Weber (2016) não parte da análise das estruturas objetivas da sociedade, mas da ação dos indivíduos e dos significados que eles estabelecem entre si. Sua sociologia está inserida na tradição alemã das chamadas “ciências do espírito”, uma tradição vinculada ao pensamento de Immanuel Kant. Como neokantiano, o autor põe em primeiro lugar as ações dos indivíduos e seus significados, para depois considerar a objetivação dos significados subjetivos nos contextos objetivos da ação humana.
O emprego da categoria “compreensiva”, termo usado para designar a sociologia de Weber, é consequência do seu diálogo com a hermenêutica de Wilhelm Dilthey. A hermenêutica de Dilthey postula que é preciso analisar as ações dos indivíduos a partir do sentido que os indivíduos conferem a suas ações. Isso indica um argumento metodológico que encontra nos indivíduos, e não em entidades coletivas, aquilo que pode e deve ser estudado pelas ciências da sociedade. O “Estado”, por exemplo, somente poderia ser pensado a partir dos indivíduos que o compõem, e não enquanto uma instituição com caráter próprio.
A prática científica de matriz weberiana produz uma análise que propõe detalhar quais eram os valores que estavam em jogo em determinada ação humana. Ao analisar os fenômenos sociais, os procedimentos envolvem captar, por meio da interpretação racional, as relações empíricas de significado entre os meios utilizados pelos agentes e os fins que eles desejam nas suas ações. Para Weber (2016), a validade objetiva dos conhecimentos empíricos está baseada na ordenação da realidade, com a mobilização de categorias e conceitos subjetivos que servem para analisá-la.
A fenomenologia de Schütz (1979), por sua vez, também busca apreender como as pessoas dão sentido às suas experiências cotidianas. Argumenta que a vida social é construída por meio de práticas e significados compartilhados, que permitem que as pessoas se comuniquem e interajam entre si. As experiências individuais são fundamentais para a compreensão da vida social, e a análise fenomenológica ajuda a entender como essas experiências são construídas e vividas pelos indivíduos.
A investigação fenomenológica analisa os fenômenos considerando a forma como eles se apresentam à consciência, intentando descrevê-los considerando a forma como eles são percebidos, sentidos e compreendidos pelos indivíduos. Ela parte do princípio de que a realidade não pode ser compreendida através da simples observação empírica, exterior ao sujeito e demasiadamente objetiva. Para uma efetiva compreensão dos fenômenos, deve-se partir da experiência subjetiva, na medida em que ela é a base para a construção do conhecimento.
Seguindo os passos de Schütz, Gabriele Rosenthal (1993) vem estudando o método biográfico e suas relações com a sociologia fenomenológica de Schütz. Em suas pesquisas, a autora emprega conceitos da fenomenologia para analisar as narrativas biográficas e as experiências vividas pelos indivíduos. Suas reflexões sobre o método biográfico pretendem levar em conta tanto as narrativas pessoais dos entrevistados como as condições sociais, culturais e históricas em que essas narrativas são construídas. Nessa linha de considerações, a socióloga alemã defende que o uso de narrativas biográficas possibilita a elaboração de tipologias interpretativas sobre o mundo da vida, definindo como os indivíduos mobilizam seu “estoque de conhecimento” e também o sistema de relevância e tipificação. Esses são os fundamentos do processo de interpretação da vida cotidiana por parte dos indivíduos.
A organização do trabalho analítico sobre as narrativas biográficas, conforme Rosenthal (1993), começa com uma análise da sequência dos dados produzidos pelas entrevistas. Estabelece a cronologia das experiências dos sujeitos e procura reconstruir gradualmente as ações narradas pelas pessoas. Esse momento analítico, entretanto, cabe exclusivamente aos dados que não se vinculam aos aspectos interpretativos que os entrevistados realizam sobre suas próprias vidas. Isso serve para evitar que os relatos não fiquem sobrecarregados pela carga emotiva ou sentimental dos próprios indivíduos.
Ao mesmo tempo em que Pierre Bourdieu entende como cientificamente falsa a antítese entre ação e estrutura, micro e macro, a sua posição sobre o método biográfico é bastante crítica (Bourdieu; Chartier, 2013). No texto “A ilusão biográfica”, Bourdieu (1996, p. 74) sentencia que “a história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram de contrabando no universo do saber”. Sua posição crítica impactou os debates sobre o uso de dados biográficos nas ciências sociais.
Na visão do autor, o senso comum, a vida cotidiana, carrega a tendência de descrever a vida das pessoas como um percurso dotado de deslocamentos lineares. Haveria etapas, um objetivo, uma teleologia, o que suscitaria a aceitação de uma filosofia da história desde um sentido de sucessão de eventos. A vida seria constituída enquanto um conjunto coerente de acontecimentos que podem ser detalhados com a mobilização das intenções subjetivas e objetivas das pessoas e seus projetos pessoais: “O sujeito e o objeto da biografia (o entrevistador e o entrevistado) têm de certo modo o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência contada (e, implicitamente, de qualquer existência)” (Bourdieu, 1996, p. 75).
Não se trata, para Bourdieu, de excluir totalmente a possibilidade de uso da biografia em pesquisas sociológicas; trata-se de entendê-la como um método menor ou pouco adaptável ao seu estilo de pensamento (Junqueira, 2019). Havendo a intenção de trabalhar com relatos biográficos, seria imperativo localizá-los em uma perspectiva relacional, localizando as narrativas nos diferentes campos em que o agente atua. Além disso, para uma sociologia embasada na obra de Bourdieu, seria necessário descrever os capitais disponíveis entre os agentes, bem como seu sistema de disposições duráveis, o seu habitus.
A realidade social deve ser vista a partir da noção de espaço social, um espaço de posições sociais e relações de poder em disputa e movimento. No espaço social, distribuem-se os diferentes campos, microcosmos relativamente autônomos, campos de disputa de posições sociais, ocupados pelos agentes com seus diferentes capitais (econômico, cultural, social e simbólico). O campo funciona como uma rede de relações objetivas, nas quais os agentes ocupam posições objetivas através de uma relação objetiva com outras posições. A posse, a estrutura e o volume dos capitais relevantes nos diferentes campos orientam a posição dos agentes. Esses capitais se manifestam também através do habitus, forma como as estruturas sociais são incorporadas na racionalidade e no corpo dos agentes, por meio da interiorização da exterioridade. Funciona como estruturas estruturadas que agem como estruturas estruturantes.
Com sua teoria das práticas, Bourdieu pretende rejeitar qualquer variante das “filosofias do sujeito”, sem recorrer a um estruturalismo que ignora a agência. O conceito de habitus faz parte da ambição de Bourdieu (2021, 2008) em sublinhar as vocações geradoras das disposições adquiridas e construídas socialmente. Esta inclinação ativa, criadora e inventiva dos agentes não significa, para o autor, algo análogo ao sujeito transcendental das tradições individualistas. O habitus é um sistema de esquemas adquiridos na prática, atuando como categorias de percepção e apreciação. São princípios classificatórios que organizam as ações e servem ao agente como um operador prático nas distintas relações cotidianas.
O ataque de Bourdieu ao uso de biografias na sociologia pode ser visto, contudo, de maneira mais nuançada. Maria da Conceição Passeggi (2014) desloca a crítica ferrenha do sociólogo francês demonstrando como os registros biográficos foram assumindo outros contornos no decorrer da sua obra. Passeggi (2014, p. 225) sustenta que “Pierre Bourdieu aderiu e converteu-se ao biográfico, deixando um importante legado, ainda não estudado”. Para isso, apoia-se na leitura das considerações metodológicas do livro “A miséria do mundo”, material em que Bourdieu valoriza os depoimentos orais das pessoas entrevistadas sem grandes interpretações sociológicas. Passeggi também realça as contribuições epistemológicas presentes nesse texto e nos escritos autobiográficos do autor, produzidos após a sua aposentadoria1.
Crítico de Bourdieu, Bernard Lahire (2005, 2002) reconstrói a teoria bourdieusiana, avaliando a noção de habitus e procurando observar com mais profundidade as relações sociais. Ele propõe uma teoria da socialização, que é também uma teoria da ação. Sua sociologia tem como foco o “patrimônio disposicional” das pessoas, definição que não se contenta com o “passado incorporado” presente no conceito de habitus. Lahire sugere a reconstrução da gênese das disposições individuais, analisando a constituição social do passado dos agentes e as formas de atualização desse passado.
O autor fomenta uma investigação em escala individual, dedicada a examinar como as relações sociais se atualizam nas subjetividades e nos agregados individuais de disposições. O programa teórico de Lahire (2005, 2004, 2002) aprofunda a investigação sobre o conceito de habitus, apresentando uma sociologia contextual e disposicional na escala do indivíduo. Nesse caminho, sua sociologia aciona a possibilidade de entender o indivíduo na sua complexidade e explicar seu comportamento em detalhes. Trata-se de perceber que o social se manifesta no individual, e que o pessoal é social, ainda que em estado “dobrado”.
As práticas individuais podem ser estudadas considerando uma multiplicidade de processos de socialização. Esses processos de socialização imprimem no corpo, na mente e nas emoções um patrimônio de disposições (tendências, inclinações, propensões) de diversos tipos, como disposições corporais, perceptivas e avaliativas. As disposições podem ser ativadas ou resguardadas, entrar em ação ou colocadas em suspensão, continuadas ou atualizadas nos diferentes contextos de ação nos quais os indivíduos agem e vivem diferentes situações e interações. Uma mesma pessoa tende a carregar múltiplas disposições, que podem, inclusive, atuar em sentidos opostos umas às outras, ou podem ser inapropriadas às situações e interações que compõem os contextos de ação.
Se as disposições significam a incorporação do passado e mobilizam as tendências interiores do indivíduo, são os contextos de ação que delimitam as influências exteriores ao indivíduo e que são responsáveis por desencadear, ativar, inibir ou desativar as disposições, numa “equação” que produz as práticas (disposições + contextos = práticas). A noção de “contextos de ação” abrange tudo aquilo com o qual os agentes se deparam nos ambientes externos que frequentam. Tem a ver tanto com espaços sociais abstratos estruturados de forma vertical e hierárquica, a exemplo dos conflitos de classe ou de poder, quanto com esferas institucionais ou funcionais diferenciadas de modo horizontal em sociedades complexas e microcontextos e situações que engendram o cenário imediato das ações (Vandenberghe, 2013).
Lahire (2015) argumenta que a investigação e a análise das disposições, sua gênese e atualização nos diferentes contextos estruturais, institucionais e interativos de ação, capazes de engatilhar ou frear as disposições, constituem elementos suficientes para que seja possível compreender por que os indivíduos agem como agem, ou mesmo deixam de fazê-lo, pensam como pensam, sentem como sentem. Uma sociologia que foca no indivíduo não apenas enxerga a sociedade de maneira diferenciada, mas enxerga coisas diferentes, pois observa o social desde a infinita complexidade de cada uma das pessoas.
A perspectiva da sociologia em escala individual distingue as disposições para crer das disposições para agir. Lahire (2005) define as disposições para crer como crenças assimiladas pelos indivíduos, mas que nem sempre podem se transformar em disposições para agir. As crenças assimiladas possuem vinculações aos preceitos sociais formulados e disseminados pelas instituições em voga na sociedade, e sua incorporação advém de processos independentes das rotinas de ação que constituem as disposições para agir.
Exemplo dessa distinção pode ser encontrado quando a análise teórica identifica lacunas entre o que declaram os indivíduos e aquilo que é apreendido pelo pesquisador por intermédio da observação dos seus comportamentos. Nesses casos, pode ser viável perceber quando os indivíduos interiorizam valores, normas e ideais, mas não possuem rotinas de ação capazes de favorecer a consecução dos valores, normas e ideias interiorizadas. Podem ocorrer também casos em que os atores assimilam determinadas crenças, sem que tenham as possibilidades materiais para transformá-las em experiências concretas.
A sociologia disposicional em escala individual oferece ao pesquisador e à pesquisadora a oportunidade de abordar as alternâncias e vicissitudes das práticas entre indivíduos e no interior dos próprios atores. Desse modo, elabora um entendimento das relações sociais que não deixa de lado as singularidades dos indivíduos. Ao mesmo tempo, recusa a produção de simulacros ou caricaturas culturais sobre coletividades ou classes sociais. A proposição de Lahire (2004) movimenta exames dessas alternâncias e vicissitudes entre indivíduos e no interior dos próprios indivíduos, nas suas relações com diversos domínios de práticas ou contextos de interação.
Na comparação com as visões teóricas que salientam o fracionamento ilimitado dos indivíduos na modernidade, como aparecem, por exemplo, na obra de Jean-Claude Kaufmann (2003), a sociologia disposicional dos atores plurais pode ser considerada uma alternativa. Para Lahire (2002), o fracionamento ilimitado e pormenorizado dos atores, no âmbito da realidade social, ainda que pudesse gozar de alguma legitimidade argumentativa, complicaria a construção dos objetivos da pesquisa sociológica. Esse tipo de perspectiva teria relação direta com a ameaça de a pesquisa terminar resultando em um empirismo extremo, voltado somente para identificar identidades e comportamentos fragmentados, sem que se consiga estabelecer relações entre as inúmeras diferenciações. Em paralelo, Lahire (2002) também se afasta do individualismo metodológico e sua forma de conceber um indivíduo independente e racional perante a sua socialização.
Na compreensão de Lahire (2002), cabe identificar se os atores possuem uma univocidade ou uma pluralidade disposicional adquirida socialmente, o que passa necessariamente pelo trabalho de investigação empírica. Articulando com as questões teóricas, a pesquisa deve interpelar as condições históricas e sociais que permitem a fabricação de um indivíduo plural ou de um indivíduo composto por um grau elevado de unicidade. Estando os atores situados numa multiplicidade de contextos sociais heterogêneos e/ou contraditórios, inseridos em contextos diversos de socialização, seu patrimônio de disposições se configura plural, uma vez que relacionado com os contextos sociais do qual emergiu.
Nesse sentido, para a montagem de biografias sociológicas, quando é possível acessar o biografado em vida, Lahire (2004) salienta a importância do uso de repetidas entrevistas em profundidade com o mesmo informante. Mais especificamente, a construção de biografias sociológicas se relaciona com a realização de seis entrevistas em profundidade com o mesmo informante, levantando dados sobre comportamentos, crenças e maneiras de agir em diferentes domínios de práticas e em microcontextos de interação, internos às esferas de atuação dos indivíduos.
As entrevistas têm como foco a descrição detalhada e a análise do que Lahire (2015) chama de “quadros”, isto é, do universo, das instâncias e das instituições frequentadas pelo entrevistado; das modalidades, que representam as maneiras, formas e técnicas de socialização; dos tempos, que remetem à duração das ações de socialização, seus momentos específicos em trajetórias individuais, demonstrando a intensidade e o ritmo dessas ações; e dos efeitos das socializações, que formatam as disposições para crer e agir, as propensões dos atores para definir suas práticas nos contextos de ação em que se situam.
Os questionamentos das entrevistas, orientados para problematizar as disposições dos agentes, podem ser categorizados, em conformidade com Lahire (2004), na busca pelas seguintes propensões, antagônicas ou não: modos práticos de aprendizagem versus modos escolares de aprendizagem; disposições de planejamento versus disposições de espontaneidade; relação estrita com regras/normas versus relação frouxa com regras/normas (hipercorreção versus hipocorreção) versus recusa completa ou resistência à normatividade; disposições culturais consideradas legítimas versus disposições culturais entendidas como pouco legítimas; disposição à atividade pública e coletiva versus tendência individualista ou a atividades no âmbito privado; propensão à entrega de si mesmo e à passividade versus propensão à iniciativa ou liderança.
Essas disposições/propensões podem ser construídas através das entrevistas, com o enfoque voltado para a discussão das grandes matrizes socializadoras nas quais atuam os indivíduos. O dispositivo metodológico pretende investigar com profundidade as variações intra-individuais dos comportamentos, a atualização ou inibição das disposições em diferentes contextos de ação. Nesse intuito, cada uma das seis entrevistas carrega um teor biográfico, considerando os seguintes domínios de práticas: (1) a família, começando da infância e atingindo a vida conjugal adulta do entrevistado; (2) a escolarização, partindo da escola primária e abordando toda a carreira educacional; (3) o trabalho, desde a reconstrução de toda a trajetória profissional do informante; (4) a sociabilidade, tematizando as amizades antigas e as atuais, as principais redes de relacionamento; (5) o lazer e a cultura, revisitando as vivências de socialização cultural na vida pregressa e suas ressonâncias no tempo presente; (6) e, por fim, o corpo e a saúde, perpassando práticas esportivas, preferências alimentares e cuidados de si.
Se a produção dos dados empíricos provém da realização de seis entrevistas em profundidade com o mesmo informante, o trabalho de interpretação dos dados requer atenção. Lahire (2004) adverte que é necessário considerar: (1) a reconstrução das disposições sociais a partir do extenso material empírico fruto das entrevistas; (2) a constatação da variação ou não dos comportamentos/atitudes dos agentes, de acordo com o contexto de atualização ou não das suas propensões; e (3) o questionamento acerca das propriedades sociais dos contextos de ação nos quais são atualizadas as disposições ou dos contextos nos quais as disposições não mais se atualizam.
Quando não é possível acessar o biografado em vida, Lahire (2010) indica um conjunto de procedimentos, exposto na sua biografia sociológica bastante extensa sobre o escritor Franz Kafka. Sintetizando esses passos para a sua pesquisa sobre perfis de escritores periféricos brasileiros, Julio Souto Salom (2014) organiza as principais preocupações do autor francês. O primeiro princípio metodológico para elaborar biografias sociológicas sem a possiblidade de entrevistar a pessoa biografada é a necessidade de retorno sistemático às fontes. Isso significa lidar com as fontes nas suas totalidades, não trabalhando com versões editadas ou com apenas partes delas.
Em um segundo momento, Lahire destaca ser fundamental operar com um princípio cronológico no tratamento das fontes, em que é preciso organizá-las de modo a considerar a sua sequência temporal. As fontes devem ser classificadas considerando quando foram produzidas e como podem se relacionar com as etapas das trajetórias da pessoa biografada ou com os acontecimentos importantes que se situam em um espaço temporal próximo.
Depois, o autor estipula dois princípios de especificidade, um relacionado com as fontes e outro com os contextos de ação. O princípio de especificidade das fontes orienta a que seja detalhado, nas fontes, aquilo que se configura como uma declaração pessoal ou uma obra literária, por exemplo. O princípio da especificidade dos contextos de ação diz respeito à procura por reconstituir os comportamentos e as disposições da pessoa biografada a partir das fontes mobilizadas, localizando as disposições nos diferentes domínios de prática do indivíduo estudado.
Com um percurso que atravessa o século XX nas ciências sociais e uma longa tradição de debates na historiografia (Dosse, 2015), o método biográfico vem retomando destaque desde o retorno do sujeito ao centro analítico das ciências humanas. Mesmo sendo relevante a ênfase da fenomenologia acerca da importância da subjetividade e da ação, o conhecimento científico sobre as relações sociais demanda algum grau de objetivação das marcas duráveis do social inscritas no corpo e no pensamento dos indivíduos. Por esse caminho, parece promissor aproveitar a necessária valorização de uma análise reflexiva pautada pela intersubjetividade e pela consciência dos atores no mundo da vida (Schütz, 1979), mas apenas se for possível limitar a sua abrangência através da objetivação das práticas dos agentes em um determinado contexto.
Em entrevista para Loïc Wacquant, Bourdieu (2005, p. 121) argumenta que as análises empreendidas exclusivamente por meio de preceitos fenomenológicos (e suas possíveis derivações como a etnometodologia, o interacionismo, a escolha racional etc.) tendem a descuidar o mascaramento dos fundamentos históricos da relação de cumplicidade entre as estruturas objetivas da sociedade e suas significações políticas, por exemplo. De modo análogo, Albuquerque Júnior (2012, p. 37) entende que “narrar uma vida hoje implica narrar as suas relações de semelhanças e diferenças com outros, sejam esses outros humanos ou as mais diversas estruturas sociais que os moldam e os condicionam”. Não se trata de negligenciar a individualidade e a subjetividade, mas de dispersar o sujeito na descrição do seu processo de singularização e de subjetivação do social.
Considerando que os materiais biográficos não são documentos sociológicos a priori (Rosatti; Bordignon, 2022), penso que eles se destacam, pelos motivos expostos, enquanto possibilidades privilegiadas de acesso aos indivíduos, suas experiências e identidades. Nessa direção, por permitir menos riscos do que a sociologia de Bourdieu de incidir em uma espécie de neo-objetivismo (Peters, 2013), a sociologia em escala individual de Lahire se mostra metodologicamente promissora. Ela também parece mais capaz de reintroduzir a reflexividade no interior das disposições (Vandenberghe, 2016). Rejeitando fundamentar a utilização de biografias desde o universo teórico de “um projeto de ser” sartreano ou de uma sobrevalorização do indivíduo e sua subjetividade, a construção de biografias sociológicas concentradas em entender as disposições plurais incorporadas em diferentes processos, etapas e contextos de socialização dos indivíduos pode operar como uma ressignificação positiva (Junqueira, 2019) para o método biográfico.
Esse tipo de abordagem biográfica pode, ainda, estabelecer contato com diferentes contestações ontológicas e epistemológicas, como as decoloniais, feministas e interseccionais, na medida em que possibilita reconstituir experiências individuais de opressão, situando-as com as socializações e as práticas efetivadas por esses próprios indivíduos. Em outras palavras, possibilita revelar os entendimentos dos indivíduos sobre suas próprias histórias e discursos, revelando, em paralelo, a sociedade em que se realizam. Isso não resolve todos os dilemas, mas oferece um caminho de experimentação metodológica e empírica para uma sociologia que ambicione “desdobrar” a sociedade presente nos indivíduos, sem desvalorizar as suas singularidades e individualidades.